Introdução
O mundo atravessa um momento de rápidas e profundas mudanças a que a globalização veio aportar uma outra dimensão e a ameaça terrorista uma substancial diferença qualitativa.
Igualmente a nível interno é cada vez maior o consenso quanto ao fim da dicotomia ameaça externa/ameaça interna, restando apenas algumas franjas, ideologicamente bem referenciadas que continuam a defender o modelo da compartimentação da segurança, naquelas duas vertentes.
O sistema de segurança e defesa terá pois que se ajustar à nova realidade internacional e às profundas alterações que a sociedade portuguesa sofreu ao longo dos últimos 30 anos, e é neste contexto que a GNR deverá mais uma vez, acompanhar as mudanças de forma directa e proactiva, não perdendo a iniciativa, sob pena de mais tarde se vir a queixar da sua própria inoperância.
A GNR desde a sua origem até à actualidade adaptou-se, reestruturou-se e acompanhou as transformações que a sociedade e o país dela exigiram, mantendo contudo uma identidade própria que a individualiza e a identifica, alicerçada na sua natureza militar e na polivalência de missões, militares e policiais.
Sendo a mudança inevitável, para qualquer organização que não queira ser ultrapassada pelos acontecimentos, é necessário distinguir o que mudar e o que preservar.
Quaisquer alterações a introduzir numa Instituição, deverão respeitar a sua identidade e não negligenciar a sua cultura organizacional, da mesma forma que uma desejável racionalização de recursos, não pode, no caso da GNR, ao contrário do que qualquer empresa faria, ser perspectivada numa óptica meramente economicista, porque se trata de realidades substancialmente distintas.
A mudança terá de partir de uma verdadeira análise de diagnóstico, que tenha por base o conhecimento da Instituição, que respeite a sua inserção no Sistema globalmente considerado e as missões que se lhe pretendam atribuir, sem descurar o seu estatuto jurídico, sob pena da aplicação de soluções técnica e teoricamente correctas, serem completamente desajustadas da realidade que pretendiam corrigir e que em lugar de melhorias, poderão causar prejuízos irreparáveis ao seu funcionamento e à sua eficácia.
Situação Actual
Mas se qualquer processo de mudança é complexo, no caso da GNR constitui um verdadeiro desafio, consequência de variadíssimas medidas que têm adulterado o seu estatuto e desequilibrado o seu posicionamento institucional, acabando por criar problemas ao próprio sistema de segurança e defesa, de que a GNR é parte integrante.
Desde a sua criação, a GNR sempre foi um Corpo Especial de Tropas, prolongamento do Exército, parte integrante das forças militares da Republica.
Neste momento e sem que a generalidade se tenha dado conta, mesmo os mais interessados nestas matérias, incluindo a maioria dos seus quadros, a GNR vem sofrendo ao longo dos últimos anos, um processo de transformação que, de forma paulatina e nunca politicamente assumida, corta com a sua natureza e identidade.
De uma instituição militar com funções policiais, viu-se transformada numa “força de segurança”, embora eufemísticamente adjectivada de “natureza militar”! O que faz toda a diferença e altera a sua própria essência.
As orientações politicas dos últimos governos, cuja concepção da GNR parece ser a de uma força de segurança, civil quanto possível, militar quanto necessário (Esteves, 2006)1, têm contribuído de forma decisiva para a situação de incongruência e ambiguidade em que hoje se encontra, donde que a clarificação seja imprescindível, dado que a manutenção da actual situação, por muito mais tempo, se apresenta insustentável.
A alteração da terminologia utilizada até meados dos anos 70 de “Forças Militares”, para “Forças Armadas”, não incluindo nestas a GNR, a par da adopção a partir de 19872 do termo “forças de segurança” e ao nelas incluir, sem mais a GNR, acabou por, certamente de forma involuntária, contribuir para a confusão em que nos encontramos.
É que não é indiferente a denominação de “força de segurança” ou de “força militar”, embora no preâmbulo da lei orgânica da GNR se afirme “a determinação de um posicionamento mais definido da GNR no conjunto das forças militares e das forças e serviços de segurança”.3
Numa interpretação literal, o que ficou expresso naquele preâmbulo, foi o reconhecimento de que a GNR continuava a ser uma força militar, embora desempenhando como sempre fez, funções policiais, integrando-se agora também numa nova catalogação, a “das forças e serviços de segurança”. Só que à medida que o tempo foi passando, a GNR tem sido desviada do seu posicionamento, natural e identitário original, do conjunto das forças militares, para passar a ser tratada apenas, como mais uma “força de segurança”, leia-se Polícia, o que para além de uma incompatibilidade genética, nos conduz a uma situação ambígua e incongruente.
De uma força polivalente, naturalmente constituindo-se numa mais-valia para o sistema, começou a ver-se restringida de facto, a uma mera Polícia.
Através da forma, adulterou-se a substância e por essa via, abriu-se caminho à transformação de um Corpo Especial de Tropas, numa Polícia.
Esta adulteração do “ser” da GNR, deveu-se fundamentalmente a dois fenómenos concorrentes, datados no tempo, mas neste momento completamente injustificados.
O primeiro, a dicotomia ameaça externa/ameaça interna, versos Forças Armadas/forças de segurança, empurrando a GNR para o segundo tipo de forças, sem cuidar de averiguar da sua verdadeira natureza polivalente de plena inserção natural nos dois sub-sistemas de segurança e defesa. E o segundo, contrário à sobrevivência de uma GNR conotada com o Estado Novo que após a instauração da democracia sobreviveu, ao invés do que sucedeu com as suas antecessoras, Guarda Real da Policia (1834) e Guarda Municipal (1910) que sempre que o regime político se alterou, foram sucessivamente extintas e substituídas pela mesma Guarda, mas com outra designação.
A esta constatação histórica há a acrescer a convicção, de que, pelo facto da GNR ser militar, tornaria mais difícil o seu controlo político-partidário4 e a sua manipulação sindical, o que em determinado período da nossa história recente e para alguns, constituiu um verdadeiro entrave aos seus desígnios.
Toda a descaracterização que a GNR vem sofrendo, tem sido acompanhada de aspectos simbólicos significativos, inibidores da preservação da sua identidade e imagem externa, como sejam as próprias cores que identificam a Guarda, aliado à proliferação de tipos e padrões de uniformes, alguns extremamente parecidos com os de outras organizações e serviços.
As suas viaturas começaram a ser pintadas de cores diferentes do verde; já há quartéis onde a designação “Guarda Nacional Republicana”, está inscrita em cor azul e a confusão com a PSP parece intencional, quando se sabe que a identidade de uma qualquer organização se preserva quando se valoriza aquilo em que se diferencia e se singulariza de quaisquer outras, sobretudo daquelas com quem tenha alguma parecença ou afinidade.
A Clarificação
Chegados a esta situação, só a clarificação do que realmente se pretende deste Corpo, é que poderá conduzir a um bom desfecho.
Sem uma tomada de posição política que partindo do que deverá ser a GNR e qual o papel que se lhe pretende reservar no seio do sistema de segurança e defesa, não será possível modernizá-la.
Aquela tomada de posição, condicionará decisivamente a sua organização e o seu funcionamento, bem como as atribuições e competências que se lhe confiram e o próprio estatuto do seu pessoal.
Duas são as alternativas verdadeiramente clarificadoras:
A transformação numa 2ª Polícia;
Ou a evolução para uma plena inserção no seio das Forças Armadas como 4º ramo, embora na dependência funcional do MAI, para efeitos da missão geral no âmbito da segurança interna5.
A primeira opção levar-nos-ia a curto/médio prazo, à passagem para uma Polícia de 2ª e a médio/longo prazo, à sua natural extinção por absorção.
A segunda opção que comportaria duas modalidades, uma decorrente da actual situação ou seja, mantendo a GNR as missões que actualmente detém, e consequentemente o seu dispositivo caracteristicamente disperso por todo o TN.
Outra, concebida numa visão mais minimalista, através da contracção da missão e da retracção do dispositivo.
A primeira modalidade, corresponderia ao modelo da Gendarmerie francesa ou dos “Carabinieri” italianos, a segunda, ao modelo da Marechausseé holandesa.
A alternativa da transformação, constitui uma verdadeira ruptura com o sistema dual português, na medida em que a manutenção de duas polícias de igual natureza, com as mesmas missões, só diferenciadas pelas áreas de jurisdição atribuídas a cada uma, não se justifica de todo.
A médio/longo prazo, o sistema evoluiria racionalmente para uma só Polícia.
Do sistema dual, passaríamos para o modelo de polícia única.
É naturalmente uma opção possível, embora ao arrepio e em contra ciclo com a complexidade das questões da segurança e defesa que preocupam o mundo dos nossos dias, designadamente com um terrorismo em franca evolução, onde as ameaças não são compartimentáveis e onde a existência de corpos militares de segurança como “forças charneira”, são uma mais-valia para os sistemas que os possuem.
Se a opção for esta, obrigará ainda à criação no Exército, de uma força preparada para resposta aos compromissos internacionais em que a GNR era o corpo mais apto para intervir, em paralelo com as suas congéneres das gendarmeries.
A outra alternativa, a da evolução, respeitaria a matriz fundacional e genética da GNR como Corpo Especial de Tropas e poria um ponto final na confusão instalada. Desta forma se evitariam conflitos de competências com as Polícias no verdadeiro sentido do termo e mal entendidos com as Forças Armadas, no que concerne à atribuição de algumas missões militares no âmbito dos conflitos de baixa intensidade, para além do definitivo esclarecimento da condição militar, dos membros da GNR.
A partilha de recursos e a melhor rentabilização dos sistemas de observação e fiscalização da costa, entre a GNR e a Armada, seriam facilitadas.
A utilização de meios aéreos da Força Aérea, em missões normais da GNR e a protecção e segurança de bases e aquartelamentos dos três Ramos actuais, por parte da GNR, seriam uma possibilidade, são alguns dos casos em que a opção proposta, resultaria em claro benefício para o sistema.
Quaisquer das alternativas implicam mudanças, são efectivamente clarificadoras e terminam com a situação ambígua em que a GNR tem vivido nos últimos anos.
A manutenção da actual situação de dupla dependência formal (MDN e MAI) em que a GNR hoje vive, além de equívoca, não tem propiciado o pleno aproveitamento das suas características e capacidades, por descurar a natureza militar que lhe confere uma mais-valia no seio da segurança interna e uma polivalência no âmbito mais alargado da segurança e defesa.
4º Ramo
A preconizada evolução para 4º Ramo e a sua plena inserção no conjunto das FFAA, encontra justificação sob diversos aspectos.
O primeiro, porque esta opção não seria mais do que fazer coincidir o plano jurídico-formal com uma realidade de facto pré-existente, de uma força militar que, aquando da alteração da terminologia de “forças militares” para “forças armadas”, nelas não foi incluída, criando-se por tal facto uma dissonância no enquadramento institucional, que merece correcção.
Um segundo aspecto6, respeita à essência da GNR enquanto entidade que se sente militar, constituída por militares, com uma organização, cultura, valores e princípios em tudo idênticos aos dos restantes forças militares, mas que por razões exclusivamente politico-formais não foi considerada como parte das FFAA, salvo quando para efeitos de apresentação externa, a inclusão do seu orçamento, ajuda a tornar mais equilibrado com os nossos parceiros, a percentagem que o país destina às despesas com a defesa.
Um terceiro, consequência directa dos anteriores, é a duplicidade de tratamento da GNR em relação às FFAA, em muitas situações que deveriam ter a mesma solução, mas que por se encontrar numa tutela distinta, assim não sucede7.
As dificuldades sentidas pelo legislador quando pretende abranger todo o universo de militares (FFAA e GNR) ou quando se quer referir a toda a Instituição Militar8, são exemplos da dissonância em apreço.
Este esvaziamento que até agora não tem merecido a expectável correcção jurídico-institucional, vem causando dificuldades à valorização institucional da GNR, ao reconhecimento social dos seus militares e a uma melhor racionalização dos meios e recursos da Instituição Militar no seu todo.
Aspectos como a posição hierárquica-protocolar do comandante-geral, quando comparada com a dos restantes chefes militares; a não utilização de militares da GNR (órgãos de policia criminal, por natureza) na Policia Judiciária Militar; a discriminação no âmbito do sistema de saúde militar para os militares da GNR e seus familiares; a não representação, no seio da Casa Militar da Presidência da República, da força militar de maior efectivo; a dificuldade de utilização racional de edifícios/quartéis desactivados; a pouco equitativa participação da GNR na Academia Militar e no Instituto de Estudos Superiores Militares; a diminuta partilha de recursos, meios, conhecimentos, etc. entre a GNR e as FFAA, numa lógica de aproveitamento de sinergias entre todas as forças militares, são alguns exemplos de situações que seriam ultrapassados pelo simples facto da GNR assumir um novo enquadramento institucional, mantendo, no entanto, a sua dependência funcional do MAI, para a execução da missão de segurança interna.
Mas, para além de uma questão jurídico-formal, do não reconhecimento da GNR como parte integrante das Forças Armadas, subsiste uma outra de carácter material que se prende com a sua natureza e com as atribuições e competências que lhe poderão ser confiadas.
É que, fazendo corresponder a substância (militar) à forma (natureza jurídica), as FFAA contariam com uma nova valência, hoje imprescindível nas situações difusas entre a paz e a guerra, caracterizadoras dos conflitos modernos que só uma força tipo “gendarmerie” pode aportar.
Não sendo possível o contrário, na medida em que não se pode exigir a uma Polícia que, em situação de crise ou de conflito, se comporte como uma força militar, a solução passa pela integração da GNR nas Forças Armadas.
Quem pode o mais, também pode o menos, mas a contrária não é verdadeira e só desta forma se rentabilizam totalmente as capacidades da GNR como força de duplo uso.
Ao que acresce, não fazer sentido que a força militar portuguesa de maior efectivo, não faça parte das Forças Armadas e não esteja organicamente, sob a tutela do Ministério da Defesa.
Esta solução, poria simultaneamente fim às incompreensões quanto ao tratamento a dar à GNR e aos seus militares no âmbito do MAI, derivadas do facto desta, ser a única força sob aquela tutela a ter diferente natureza (militar) e o seu pessoal um estatuto diverso (condição militar) de todo o restante.
Para concluir este ponto, chamo à colação a jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional que através de diversos Acórdãos se tem debruçado sobre a definição jurídica da Instituição Militar (IM), recorrendo para o efeito a algumas características, cujo significado se considera suficientemente identificador da IM:
- “O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos;
- Correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição (e, portanto, da actuação individualizada dos seus membros), não ao principio geral da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência;
- O uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício;
- O princípio do aquartelamento, ou seja, o agrupamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo, para a generalidade deles, da possibilidade (e do direito) de utilização da residência própria;
- A obrigatoriedade, para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme;
- A sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais”.
Nesta senda se apresenta o Acórdão n.º 521/2003 do Tribunal Constitucional, referindo-se expressamente à GNR, para a qualificar juridicamente como parte da Instituição Militar, afirma:
“Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a alínea c) do n.º3 do artigo 27.ºe do artigo 270.º da CRP quer na legislação actual [Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho maxime, artigos 1.º, 9.º, nos 1, alínea b), e 2, 12.º, 13.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 31.º 32.º e 63.º a 72.º, e Decreto Lei nº 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos 1.º, 2.º, 5.º, 6.º 7.º, 9.º, 14.º 16.º, 23.º e 24.º] quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos.
A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à Guarda Nacional Republicana.
Na verdade, à face de tal legislação, a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma forma de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (artigos 1º da LOGNR e 1.º a 4.º do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas, que é a de serem um corpo de tropas cuja função primordial é a da “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (artigo 2º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. Assim, os seus membros estão organizados segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (artigos 24.º, 26.º, 51.º e 90.º do EMGNR). O pessoal está distribuído por “armas” e “serviços” e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal e unidades de reserva, constituídas estas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (artigos 31.º e 63.º da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patente e postos (artigos 24.º, 26.º e 35.º do EMGNR)”.
Uma Nova Lei Orgânica
Definido que seja, sem tibiezas, o enquadramento legal da GNR e a sua inserção no sistema clarificado, poder-se-à intervir a um segundo nível, o da sua macro estrutura enquadradora - a lei orgânica.
Esta, para além de reflectir o posicionamento da GNR no seio do sistema de segurança e defesa, onde a sua dependência e definição sejam definitivamente clarificadas, deverá adaptar-se ao crescimento e alargamento das missões, com a consequente e inerente atribuição de meios humanos e materiais, adequados às novas responsabilidades entretanto assumidas, e a um novo desenho do sistema de forças.
Se antes da criação do Grupo de Intervenção Protecção e Socorro (GIPS) e do Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente (SEPNA), das missões decorrentes da Lei da Organização da Investigação Criminal (LOIC), da integração na Eurogendfor e da projecção de forças para missões da apoio à paz, a GNR dispunha de um efectivo de cerca de 26 mil militares e um muito fraco enquadramento, com todos estes novos encargos operacionais, não é possível manter os mesmos níveis de prontidão e eficácia, sem o correspondente aumento de efectivos e melhoria dos níveis de enquadramento, mesmo que algumas áreas territoriais (urbanas de maior densidade populacional), devam passar para a jurisdição da PSP.
Dependendo também da opção política que vier a ser tomada, o dispositivo manter-se-á de quadrícula ou será retraído.
Em qualquer das hipóteses, as forças de reserva, intervenção e honoríficas, terão sempre um importante papel a desempenhar.
Na modalidade minimalista (contracção da missão e retracção do dispositivo), para além da atribuição à GNR de missões de Polícia Militar, em benefício das FFAA (3 Ramos actuais), seria de todo ajustado que o controlo das fronteiras externas e a vigilância e segurança de pontos sensíveis se mantivessem na GNR, deixando para a Polícia, todas as missões eminentemente policiais, com a consequente atribuição dos correspondentes recursos humanos, materiais e de infra-estruturas.
Contudo e porque se me afigura mais consentâneo com a nossa realidade, a opção pela primeira modalidade (manutenção das missões e do dispositivo, por respeitar os três princípios caracterizadores da organização da GNR, a saber: o da territorialidade9, o da proximidade10 e o da continuidade11), apresento sumariamente, algumas reflexões sobre dois aspectos que na generalidade dos estudos efectuados sobre a organização da GNR, figuram como disfunções ou desajustamentos estruturais, situando-se um ao nível do comando superior e o outro no âmbito do relacionamento entre unidades terri-toriais12 e especiais13.
Comando Superior
No que se refere ao comando superior, identificado com o comando-geral, apresenta-se com uma estrutura tipo comando divisionário em campanha, com um comandante e respectivo estado-maior coordenador, para além de um estado-maior técnico, constituído pelas chefias dos serviços e por um estado-maior pessoal.
Neste modelo, o elemento fulcral e “pivot” de toda a estrutura, é o chefe de estado-maior (CEM) do comando-geral, a quem reportam as seis repartições do estado-maior coordenador e as doze chefias de serviço.
Tradicionalmente coadjuvado por um subchefe, vocacionado para o comando do quartel do Carmo e em quem o chefe normalmente delega o “despacho” dos assuntos de âmbito logístico.
Não obstante este apoio, o CEM é insuficiente para coordenar eficazmente as dezoito14 áreas de intervenção do estado-maior (coordenador e técnico).
Não deixa no entanto de ser verdade que o modelo de comando e estado-maior coordenador, é uma estrutura criada nas grandes unidades para a situação de campanha e que em bom rigor pelo tipo de missões que a GNR desempenha, pode considerar-se sempre em “campanha.”
Alicerçado nas dificuldades sentidas neste âmbito, têm aumentado ultimamente os defensores da transformação do modelo de estado-maior, para o de comandos funcionais.
Contudo não será despiciendo referir que as experiências no Exército, com os comandos funcionais e na própria Polícia de Segurança Pública (PSP), com a departamentalização funcional, parece não terem obtido os melhores resultados, entre outras razões pela falta de um elemento coordenador, equivalente à figura de chefe de estado-maior no modelo de estado-maior coordenador.
Daí que, pelo menos numa primeira fase, por razões de prudência e também pelo peso institucional que o CEM tradicionalmente tem na GNR, me sinta mais inclinado para defender uma solução mitigada entre as duas antes referidas que simultaneamente mantenha a coordenação entre as diversas áreas funcionais, mas ao mesmo tempo possa aliviar a figura do CEM, reforçando-lhe as competências por um lado, para que dessa forma possa aligeirar o processo de decisão e por outro, retirando-lhe atribuições, através da criação de dois Chefes de Estado-Maior Adjuntos, para as áreas das Operações e da Administração15, respectivamente.
Neste quadro, o Estado-Maior deixaria de ser do tipo coordenador, para passar a ser do modelo director, assim esquematicamente representado.
Na dependência do CEM-Adjunto para as Operações, ficariam as áreas correspondentes às actuais 2º e 3ª Repartições e as Chefias dos Serviços da Protecção da Natureza e do Ambiente e da Investigação Criminal.
Na dependência do CEM-Adjunto para a Administração, ficariam as áreas correspondentes às actuais 1ª, 4ª e 6ª Repartições e Chefias Técnicas inerentes a este âmbito (Finanças, Material, Pessoal, etc).
Para comandante do quartel do comando-geral e outras tarefas que o CEM nele decidisse delegar, manter-se-ia um Sub-CEM.
Relação Unidades Territoriais/Especiais
A outra disfuncional idade diagnosticada nos vários estudos relativos à orgânica da GNR, é a sobreposição de áreas entre unidades territoriais e especiais.
A manutenção dos três sistemas de forças operacionais, completamente estanques, equivalentes a três vertentes da missão da GNR (Territorial, Trânsito e Fiscal), num mesmo espaço territorial, para além de desperdício e duplicação consumidora de recursos, dificulta a aplicação racional dos meios, não favorece a coesão interna, nem a coerência das actuações e é prejudicial para o relacionamento e imagem externa da GNR.
Esta proliferação de comandos e sobreposição de áreas, não possibilita a rentabilização dos recursos, nem potencia os meios operacionais, onde e quando forem necessários.
Quanto a esta matéria e partindo do pressuposto que a GNR manterá as mesmas atribuições e competências em todas aquelas valências, há que encontrar uma fórmula que conjugue o princípio da unidade de comando16, com a manutenção da especialização, racionalizando melhor os recursos.
Assim, afigura-se que aquele desiderato, será conseguido com a extinção das Brigadas Especiais (BT e BF), distribuindo as suas missões por três níveis.
As tarefas doutrinárias e de índole técnica, seriam entregues a um órgão no comando superior da Guarda (na área das operações).
As funções operacionais, nelas se incluindo as do âmbito da investigação criminal/fiscal aduaneira, seriam atribuídas às Unidades Territoriais que para o efeito e nos locais do dispositivo em que o ambiente operacional assim o exigisse, criariam Destacamentos Especializados (Trânsito ou Fiscais), integrados nos Grupos Territoriais17 (GTer) e sob seu comando completo.
Um terceiro nível e ainda no âmbito operacional para intervenções em qualquer parte do TN, em reforço da Unidades Territoriais, seriam criados nas Unidades de Reserva, subunidades de nível e escalão adequado, especializadas em trânsito e matéria fiscal, respectivamente, como aliás hoje sucede, com as unidades de intervenção e manutenção da ordem pública dos Regimento de Infantaria (RI) e Regimento de Cavalaria (RC).
Nesta possível solução, subsiste um aspecto que deverá ter um tratamento diferenciado, pelas próprias características especiais que detém. Refiro-me ao sistema de vigilância da costa, conhecida por sistema LAOS, a evoluir para o SIVICC18 que na actual estrutura faz parte da Brigada Fiscal.
A sua natureza e localização, não ocupando efectivamente uma zona de acção, sobreposta à das unidades territoriais, não conflitua com o princípio da unidade de comando, pelo que um dispositivo constituído por Postos de Observação e Vigilância, colocado numa faixa ao longo da costa (fronteira marítima portuguesa e da UE), complementado pelo Serviço Marítimo, aconselha a certa autonomização, alicerçada num comando único que se concretizaria através da criação de uma Unidade de Vigilância da Costa de escalão a estudar, com a missão de observação, vigilância e fiscalização da fronteira marítima.
Esta unidade para além de um comando e respectivo estado-maior, articular-se-ia em quatro subunidades localizadas na zona costeira, cujo dispositivo correspondesse aos limites das quatro brigadas territoriais, para além de duas subunidades destacadas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
Cada subunidade disporia de um núcleo de forças mínimo para patrulhamento e intervenção, de pouca envergadura, na zona restrita da costa, reservando-se as intervenções de maior vulto para a unidade de intervenção e reserva ou para as subunidades territoriais sedeadas na ZA respectiva, estas últimas ainda aptas a apoiar logisticamente.
Nesta perspectiva, o Sistema de Forças, seria constituído por uma componente territorial e outra especial, para além da de instrução.
A primeira, materializada pela ocupação do território, seria composta por unidades que executam todas as tarefas necessárias de comando, treino, operacionais e logísticas na área à sua responsabilidade, constituindo a estrutura base do dispositivo da Guarda para cumprimento da sua missão geral.
A segunda, complemento da primeira, de natureza mais heterogénea, porque constituída por unidades de diferentes tipos que têm por atribuição primária, determinada parte específica da missão, para a qual dispõem de pessoal devidamente especializado, seria composta pelas unidades de intervenção e de reserva, de representação e de guarnição e de vigilância e fiscalização da costa.
As unidades tipo, seriam de escalão brigada, mantendo-se contudo pela sua tradição, o Regimento de Cavalaria que seria por sua excelência a unidade honorífica e de representação.
Este absorveria as missões honoríficas que actualmente o RI desempenha, e manteria ainda à ordem da Brigada de Intervenção (BI), um grupo operacional.
Para além das 4 Brigadas Territoriais (BTer) da componente territorial, seriam criadas a Brigada de Intervenção (BI) e a Unidade de Vigilância da Costa (UVC), de escalão a definir.
A primeira, integrando o Regimento de Infantaria que seria extinto enquanto tal, o Grupo de Acção e Conjunto (GAC) da actual Brigada de Trânsito (BT), uma subunidade semelhante da actual BF e a Companhia Cinotécnica da Escola Prática da Guarda (EPG) e a segunda, com a vertente da vigilância e fiscalização da costa alicerçada nos actuais Postos de Observação e no Serviço Marítimo da actual Brigada Fiscal.
A componente de instrução manteria uma Escola e dois Centros de Instrução, como unidades independentes.
A primeira para todos os cursos de graduados com excepção para os CFO, CPOS, CEM e CPOG, que se deverão manter na Academia Militar e no Instituto de Estudos Superiores Militares, respectivamente e os dois centros, para a formação e qualificação das praças.
Níveis de Comando
Apesar de não se poder considerar uma disfuncionalidade, mas porque tem sido objecto de discussão no âmbito da reorganização da GNR, abordo a problemática da redução ou manutenção dos níveis hierárquicos existentes na estrutura orgânica, a saber Comando-Geral, Brigadas, Grupos, Destacamentos e Postos.
A este propósito importa relembrar que os diferentes escalões de comando, não aparecem por mero capricho de alguém, mas antes obedecem a princípios da organização militar que, salvo se a GNR deixar de se organizar como um Corpo Especial de Tropas19, não deverão ser adulterados.
O comando exerce-se através de um conjunto de escalões, constituindo a cadeia de comando que permite a descentralização controlada da acção de comando.
A capacidade de decisão, deve ser entregue aos que possam resolver os problemas, reservando as decisões mais complexas e de maior responsabilidade aos escalões superiores, sendo neste entendimento que deverá ser visualizada a estrutura organizacional da GNR.
Neste aspecto, importa considerar o ratio entre os diversos níveis de comando em análise, o que por vezes é negligenciado quando se abordam estes assuntos.
Convirá não esquecer que as unidades se articulam em subunidades e que as designações têm um significado próprio e unívoco na organização militar, pelo que não são indiferentes as denominações. Assim uma brigada não é o mesmo que uma companhia e esta é diferente de um pelotão, da mesma forma que uma unidade não é sinónimo de comando, para só citar alguns exemplos. Também aos diferentes tipos de unidades, órgãos e escalões de comando, correspondam determinados postos da hierarquia militar e qualquer alteração neste particular, influirá nas carreiras dos militares e por consequência no seu próprio estatuto, sobretudo o dos oficiais.
Feita esta chamada de atenção que por vezes é esquecida ou não tida em conta com a devida cautela, afigura-se-me temerário afirmar-se que a GNR tem níveis de comando em excesso, sobretudo quando comparados com os de qualquer das suas congéneres, pois só se pode concluir pela escassez ou excesso, quando se efectua a comparação relativamente a outra entidade da mesma natureza e não de per si ou como se de uma empresa se tratasse.
Nesta conformidade entre o comando superior da GNR e o último escalão, apenas se situam 3 níveis, a Brigada, o Grupo e o Destacamento.
Se compararmos com a Guardia Civil, os Carabinieri ou a Gendarmerie, verificamos que a GNR não tem mais níveis do que qualquer outro destes corpos militares seus congéneres.
Senão atente-se no quadro seguinte:
Estatuto Pessoal e Regulamentação Ordinária
Por último e a um terceiro nível, o da gestão do pessoal, pelas razões apontadas no âmbito do posicionamento institucional, também aqui a evolução deste Corpo Especial de Tropas para 4º Ramo, dissiparia de uma vez por todas as dúvidas e as indefinições acerca da condição militar dos seus membros, que para além do acabar com a constante frustração e incerteza, prejudiciais ao moral das tropas e ao próprio funcionamento da Instituição, acarreta a vantagem objectiva da aceitação voluntária de restrições e exigências, que em situação de risco, constituem um elemento não mensurável, mas importante e por vezes decisivo, para o êxito do cumprimento da missão.
Como forma de pôr cobro a derivas e experiências mal sucedidas de finais dos anos 90, inícios de dois mil, haveria que adaptar toda a legislação ordinária e regulamentação interna que entretanto desrespeitou a condição militar dos membros da GNR e simultaneamente, durante um curto período transitório, permitir a todos aqueles que, apesar de ao ingressarem na GNR saberem que sobre eles impendia um conjunto de deveres e restrições, pudessem sem mais delongas, ser transferidos para quaisquer forças ou serviços de segurança civis, na certeza dos que assim não optassem, assumiriam mais convictamente, porque pela 2ª vez, a condição militar.
Mas se pelo contrário, a opção for a da transformação numa 2ª Polícia, então, razões éticas e o postulado de que o Estado é pessoa de bem, obrigaria a que fosse dada a oportunidade a todos aqueles que ao ingressarem na GNR, conscientes de que se tratava de uma força militar e que lhes era reconhecida a condição de militares, pudessem ser integrados na FFAA.
Conclusão
A Guarda Nacional Republicana como força militar, enquanto não fizer parte das Forças Armadas, será sempre subalternizada e os seus militares discriminados.
Com as propostas e reflexões apresentadas, em ordem a reposicionar a GNR no seu enquadramento jurídico-orgânico natural, maximizar-se-iam as suas capacidades no sistema de segurança e defesa, terminar-se-ia a controvérsia acerca da sua natureza, em suma, clarificar-se-ia a situação.
Bibliografia e outras fontes
- Site da Arma de Carabinieri;
- Site da Guardia Civil;
- Site da Gendarmerie Nacionale;
- Revista Militar (vários números);
- Acórdão n.º 521/2003, do Tribunal Constitucional;
- Lei Orgânica da GNR;
- Lei Orgânica do Exército;
- Lei de Organização e Funcionamento da PSP;
- Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas;
- Lei da Segurança Interna;
- Manual de Psicossociologia das Organizações (Ed Mc Graw Hill);
- Esteves, Jorge - (2006), Guarda Nacional Republicana, Tendências da Profissão de Oficial num Tempo de Transição;
- Lizurey, Richard (2006), Gendarmerie Nacionale, Les Soldats de la loi;
- Monet, Jean Claude (1993), Polices et Sociétés en Europe.
* Tenente-Coronel de Infantaria/GNR. Director de Instrução da Escola Prática da GNR, licenciado em Direito e pós-graduado em Estudos da Paz e da Guerra.
1 Jorge Esteves - Guarda Nacional Republicana, Tendências da Profissão de Oficial num Tempo de Transição (pág. 139).
2 Lei nº 20/87, de 12JUN.
3 DL 231/93, de 26JUN.
4 Relativamente à problemática da politização refere Monet (1993:82) que em países onde existem polícias militarizadas, sob a tutela do Ministério da Defesa, a autonomia operacional é, normalmente, mais forte do que nas polícias civis. A razão segundo o autor deriva da forma de comando dos órgãos militares, mais propensos à autonomia na acção.
5 À semelhança da Gendarmerie ou dos Carabinieri.
6 Vide mais adiante fundamentação jurídica.
7 Artº 31 da LDNFA, versus Lei do associativismo da GNR; Alteração aos sistemas de assistência na doença aos militares das FFAA, versus GNR.
8 Novo Código de Justiça Militar.
9 Territorialidade, assegura a presença soberana do Estado em todo o território.
10 Proximidade, traduz a aproximação real às populações, não só em termos geográficos, mas também no âmbito social e da segurança.
11 Continuidade, significa a capacidade de através de uma mesma força, o Estado assegurar a passagem da situação de normalidade, para as de crise ou de conflito, sem descontinuidade na acção.
12 Brigadas Territoriais N.º 2, 3, 4 e 5.
13 Brigada de Trânsito e Brigada Fiscal.
14 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª Repartição. Chefias de Finanças, Intendência, Pessoal, Material, Transmissões, Justiça, Assistência Religiosa, Saúde, Veterinária, Obras, Informática e Assistência na Doença.
15 Administração: Recursos Financeiros, Humanos e Materiais.
16 A aplicação decisiva do Potencial de Combate disponível, através da manobra e visando a conjunção dos princípios da economia de forças e da massa, exige uma acção coordenada de todas as forças por forma a fazerem convergir os seus esforços tendo em vista um objectivo comum. Essa coordenação só é possível se existir unidade de doutrina e de comando a orientarem a acção das diferentes forças. A forma de melhor garantir essa Unidade de Comando, aconselha a investir num único Comandante a autoridade necessária (RC 130-1 Operações).
17 À semelhança da reforma efectuada pela Gendarmerie, com o termo da autonomia das unidades de trânsito, relativamente aos Comandos de Grupo Territorial, onde foram integradas a partir de 1997.
18 Sistema Integrado de Vigilância, Comando e Controlo.
19 Art.º 1 do DL n.º 231/93, de 26JUN.