O presente número especial da nossa Revista teve uma intenção: tentar evidenciar as relações entre Nação, Estado e Instituição Militar, descrevendo alguns problemas do passado e procurando detectar causas e consequências de falhas actuais nessas relações. Reconhecemos, agradecendo o esforço e o contributo dos nossos sócios, que para a finalidade pretendida algumas análises adicionais seriam úteis e valiosas, ficando por isso a intenção para ser prosseguida no futuro, já que o tema é dinâmico nos seus factores.
Reconhecemos que as relações que pretendemos evidenciar são afectadas, no passado como no presente, por questões estruturais dos actores e por questões de compromissos assumidos entre eles.
Nação, Estado e Instituição Militar, em tempos de mudanças, terão de encontrar adaptações estruturais a essa mudança, revendo e debatendo no seu interior e sem importar modas apressadas, como preservar ou adaptar conceitos como os de identidade e coesão nacionais, de soberania e funções do Estado, de segurança e defesa nacional e o papel da força militar organizada em cada um dos conceitos.
Os compromissos assumidos entre os actores, influenciados em tempos de mudança por questões culturais que deixaremos para especialistas debaterem, assentam, objectivamente, nas opções que a Nação adoptou na Constituição da República e nas Leis que os regulam e regulamentam, votadas pelos seus representantes eleitos.
Completando o que estabelece a Lei fundamental nos compromissos assumidos pela Nação (A defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses, Art 276º), pelo Estado (É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, Art 273º) e pela Instituição Militar (Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República, Art 275º), o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, a Lei do Serviço Militar, a Lei da Condição Militar e a Lei da Programação Militar deveriam ser a expressão material daqueles compromissos. Que não têm sido cumpridos.
O Conceito Estratégico da Defesa Nacional deverá ser a expressão de como a Nação entende a sua defesa (em tempo, em ameaças, em espaço e em meios), aprovado pelos seus representantes legais em Assembleia da República, representando um pacto discutido pelas diferentes representações políticas, com o apoio da população e a assumir pelo Estado. Só alterações do ambiente estratégico obrigariam à sua revisão. O que acontece actualmente, pela legislação aprovada e que há muito deveria ter sido revista em sede própria (Lei da Defesa Nacional e da Forças Armadas), o Conceito Estratégico é entendido, para efeitos daquela Lei, “como a definição dos aspectos fundamentais da estratégia global do Estado adoptada para a consecução dos objectivos da política de defesa nacional” (Nº 2 do Art 8º da LDNFA), sendo aprovado pelo Governo no contexto da política de defesa nacional prosseguida (Nº 1 do Art 8º da LDNFA). Esta situação tem conduzido a sucessivas alterações do Conceito Estratégico da Defesa Nacional, resultantes mais da alternância de governos e suas políticas do que reais alterações no ambiente estratégico aos vários níveis a que é usual avaliá-lo, tornando flexíveis os compromissos assumidos e obrigando a Instituição Militar, e a sua expressão material que são as Forças Armadas, a correcções de planeamento e execução frequentes que abalam os seus elementos estruturantes. A política de defesa nacional de cada Governo, traduzindo-se em opções legítimas de escolha nas formas de atingir objectivos, deveria materializar “o conjunto coerente de princípios, objectivos, orientações e medidas adoptadas para assegurar o contido no Conceito Estratégico de Defesa Nacional…”, corrigindo o texto do Art 4 da LDNFA que expressa “para assegurar a defesa nacional”.
O compromisso entre a Nação, o Estado e as Forças Armadas ficaria assim melhor materializado, menos sujeito às alternâncias de orientações políticas, com maior universo de apoio e traduziria o conceito de Defesa Nacional como expresso no Nº 1 da LDNFA “A defesa nacional é a actividade desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos…”. E seria um compromisso, porque escrutinado pela Assembleia da República, menos sujeito a quebras. Noutras sociedades democráticas, as materializações de como a Nação vê a sua defesa, tomando a forma de revisões estratégicas ou de pactos de defesa, assumem a forma de um compromisso tomado nos parlamentos.
É com base no Conceito Estratégico de Defesa Nacional (o porquê da defesa, a defesa face a quê e com que os meios para a defesa) que se elaborará a directiva militar para a sua implementação (o Conceito Estratégico Militar, na nossa terminologia, que define o quando, o como e o onde da defesa) dele resultando Missões para as Forças Armadas, Sistema de Forças e Dispositivo, graus de prontidão e tempos para implementação e crescimento. Se o compromisso tomado a montante não for cumprido, qualquer directiva militar que dele resulte deixará as Forças Armadas, quando tiverem de ser aplicadas, em situações de dificuldade. É por isso que o diálogo político-militar e o conselho militar independente se torna tão importante nesta fase da concepção e materialização da defesa, com o parecer do Conselho de Chefes de Estado-Maior à definição do Conceito Estratégico de Defesa Nacional e com a aprovação política das Missões, Sistema de Forças e Dispositivo das Forças Armadas, propostas pelos comandos militares. Este diálogo corresponde a um compromisso, que tem de ser cumprido pelas partes contratantes.
A Lei do Serviço Militar representa o compromisso da Nação e dos seus cidadãos para a defesa da Pátria, estabelecendo a Constituição da República que “A defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses” (Art 276º). A actual Lei do Serviço Militar (Lei nº 174/99, de 21 de Set.), estabelece que “em tempo de paz, o serviço militar baseia-se no voluntariado” e que esta disposição “não prejudica as obrigações dos cidadãos portugueses inerentes ao recrutamento militar e ao serviço efectivo decorrente da convocação ou de mobilização”. Acontece que este compromisso contratual não está a ser cumprido. Porque o voluntariado ainda não atingiu os níveis de efectivos necessários ao Sistema de Forças aprovado e porque quer o recenseamento, recentemente abolido, quer as normas reguladoras para a mobilização e convocação nunca foram definidas. Mais um compromisso quebrado.
As Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, materializadas na Lei nº11/89, constituem compromisso também não cumprido. O regime disciplinar que deve caracterizar a condição militar tem sido posto em dúvida, com a agravante de ser confundido com o regime jurídico, levando-nos a pensar que em Portugal, tal como parece acontecer com as faculdades de Economia (cada uma ensinando - como transparece - diferentes conceitos de inflação, desemprego e outras coisas), a confusão também assentou arraiais nas Faculdades de Direito. O Art 16º da mesma Lei afirma “É garantido aos militares e suas famílias, de acordo com as condições legalmente estabelecidas (à época do contrato…) um sistema de assistência e protecção, abrangendo, designadamente, pensões de reforma, de sobrevivência e de preço de sangue e subsídios de invalidez e outras formas de segurança, incluindo assistência sanitária e apoio social”. Este compromisso da Nação e do Estado pode ser quebrado por Governos?
A Lei da Programação Militar constitui, em Portugal, um embuste. Primeiro porque o modelo de onde se foi copiar era uma Nação com uma sólida indústria de defesa, o que não é o caso português. A lei constituía um contrato, em tempo dilatado, para Estado, Forças Armadas e indústria de defesa assumirem compromissos entre necessidades operacionais e capacidade de produzir, garantindo postos de trabalho. Era essa a filosofia das leis de programação militar. Em Portugal, reconhecendo as necessidades de investimento numas Forças Armadas desajustadas ao ambiente estratégico e missões a desempenhar, mascarou-se esse investimento - que podia ser inscrito anualmente no Orçamento - com promessas dilatadas no tempo, ultrapassando mesmo tempos de vida útil de armamentos e equipamentos, e que ou não são cumpridas ou são congeladas. E não vale a pena denunciar o não cumprimento do contrato, já que é o Estado o primeiro a colocar-se ao lado das vozes que reclamam manteiga em vez de canhões, esquecendo as suas funções e razão de ser.
Os compromissos assumidos, que por falta de melhor termo em português designamos por contrato, devem ser para cumprir. As Forças Armadas, com todas as dificuldades postas pelas outras partes contratantes, têm cumprido os seus compromissos. Militares portugueses, longe e mal amados, continuam a morrer pela Pátria, honrando o compromisso assumido no seu Juramento que o vinculou à condição militar. É tempo que as outras partes contratantes honrem os seus compromissos.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.