Nº 2471 - Dezembro de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Instituição Militar - Alguns Problemas Actuais
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento
A Instituição Militar em Portugal tem, ao longo dos tempos, sofrido alterações resultantes de vários factores, como o ambiente político internacional e nacional, o tipo e intensidade das ameaças a que deve fazer face, a tecnologia disponível, a estrutura social do nosso país. Mas ela tem, também, pela exigência das missões que lhe incumbem, mantido o culto de valores que são essenciais para que possa realizar os sacrifícios que se lhe pede, a prontidão das respostas, a eficácia na acção. Isto significa que, devendo dispor de capacidade de adaptação às circunstâncias envolventes, não pode todavia alienar certos princípios e valores, sob pena de se transformar num instru­mento que, para além de caro, é inútil.
 
A fronteira entre aquilo que se pode e deve mudar e aquilo que não pode ser mudado (clareza da linha de autoridade, disciplina, culto dos valores pátrios, espírito de sacrifício, vontade de servir, camaradagem, etc.) não é facilmente entendível por grande parte daqueles que são responsáveis pela legislação sobre a defesa, pela direcção política das Forças Armadas (FA), pelos “fazedores de opinião”, pelos aprendizes da política e, até, por elementos da própria população.
 
Face à essencialidade das missões que cabem às FA, ao ambiente em que desenvolvem a sua acção, aos custos sociais e financeiros que a sua manutenção e operação exigem, surgem interrogações sobre a sua indispensabilidade, sobre os efectivos, os materiais e gastos financeiros, e mesmo sobre o seu modus vivendi et operandi.
 
Não tendo a pretensão de neste breve apontamento fazer a abordagem histórica que estas “tensões” mereceriam, pareceu-nos todavia interessante procurar sublinhar os principais problemas com que se defronta actualmente a Instituição Militar em Portugal. Pensando que eles resultam, principalmente, de três factores - a situação envolvente, a política e os políticos, e a população - a nossa abordagem incidirá sobre estas três áreas, nas quais, sucintamente, lembraremos alguns problemas.
 
 
1.  A situação envolvente
 
Situação política internacional
 
O fim da guerra-fria, a implosão da União Soviética, a quase hegemonia dos Estados Unidos da América, a prevalência dos interesses sobre os princípios, as restrições de emprego e a consequente falta de credibilidade actual das armas nucleares, as flagrantes diferenças de desenvolvimento e bem-estar, a inexistência de um aparelho de coação internacional, e a desigualdade dos países no que se refere ao poder e à posse de bens essenciais fizeram reviver velhas tensões étnicas e religiosas que tinham estado contidas, e nascer outras, situação que tem levado à guerra e às tentativas para a sua contenção, nomeadamente através de forças militares disponibilizadas por países exteriores a esses mesmos conflitos, com vista ao seu controlo. Entre estes países tem estado Portugal, o que exige das suas FA capacidade de projecção, de adaptação às circunstâncias e de inserção em forças multinacionais.
 
Situação do Estado soberano
 
O Estado soberano, continuando a ser o principal actor da cena internacional, viu o seu espaço invadido por outros actores e tem vindo a sofrer restrições na sua independência e soberania: cedências para o mundo, pela aceitação de um direito que o transcende, o direito internacional; cedências para regiões maiores e às quais pertence e cede independência e soberania a troco de vantagens políticas, económicas e estratégicas; e cedências também ao regionalismo, no seu interior, e à onda de individualismo que nos invade.
 
Este fenómeno tem implicações na Instituição Militar, pelas alterações que provoca nas obrigações de defesa do Estado e dos cidadãos, na direcção superior (política e militar), das operações, nas missões, na estrutura das forças, no treino e participação combinada em operações.
 
Emergência de novos poderes
 
Dependendo a Instituição Militar, linearmente, da direcção política, esta ligação seria transparente se, para além do poder político, não houvesse outros poderes a manifestar-se. Mas, na actualidade, a importância, pujança e apetência dos agentes económicos pelo poder, e a descoberta do poder que possuem aqueles que dirigem e veiculam a comunicação social levam estes poderes a emergir ao lado do poder político, em concorrência com ele ou a influenciá-lo em âmbitos como os da segurança e do bem-estar, que até aqui só ao Estado pertenciam. Desta situação resulta que a constituição, acção ou inacção da Instituição Militar possa hoje não ser determinada apenas pelos superiores interesses do Estado, os quais compete ao poder político assegurar, mas também por outros interesses.
 
Mito da tecnologia
 
O desenvolvimento tecnológico exponencial dos últimos decénios tem conduzido ao deslumbramento por aquilo que o homem pode conseguir com o saber e a imaginação, com as inovações que cria, com o desenvolvimento que consegue.
 
À Instituição Militar a tecnologia dá a possibilidade de se aumentar a mobilidade estratégica e táctica, o poder de destruição, o conhecimento da situação, a capacidade e a eficiência do homem no combate, tendo-se verificado ao longo da história que o diferencial tecnológico foi muitas vezes responsável pelo sucesso da acção armada. Por esta razão, o desenvolvimento tecnológico que hoje se verifica induz muita gente a pensar que através dele é possível obter os meios que alcancem a vitória sem a usura do potencial humano e material que a guerra sempre produz. Isto é, a possibilidade de impor a vontade através da força, mas de forma cirúrgica, eficaz, limpa e asséptica. Tem-se verificado, porém, que o poder material, por restrições de emprego, pelo clamor público e aumento de resistência que produz é insuficiente para vencer a vontade e determinação de certos povos. Isto é, se os avanços tecnológicos são importante para o aumento da eficácia das estruturas militares, eles confrontam-se frequentemente com diferenciais de moral e de determinação que os podem neutralizar.
 
Missões
 
As formas de as FA cumprirem a sua missão genérica têm sido, ao longo dos tempos, as seguintes: pela sua presença e valor militar dissuadirem um possível opositor de agir ou reagir; e, pelo combate, oporem-se à acção ou à reacção do inimigo. Estas formas, na sua essência, continuam a caracterizar as actuais missões, mas, na sua aparência, pelo incremento e frequência com que se realizam operações de apoio à paz e com o cíclico renascimento da utopia da paz, há quem pense que tudo mudou. Por esta razão ouvimos, há bem pouco tempo, um conhecido político português dizer que o exército é hoje para a paz e não para a guerra, como se ele não tivesse sido, sempre, um instrumento para conseguir a paz. Mas, porque nas operações de apoio à paz, hoje frequentes, o recurso ao combate tem sido menos comum, porque a capacidade dissuasora das forças é evidente no seu poder militar e na sua presença permanente junto dos focos de conflitualidade, no controlo dos beligerantes e perto da população, alguns pensam, erradamente, que a guerra e o combate pertencem ao passado, ou são feitos por outros que não nós. Ora as FA existem e justificam-se na necessidade que há ou pode haver de agir pela força, ou seja, de desencadear a violência organizada, de realizar o combate.
 
Ameaças
 
As ameaças são hoje menos visíveis, mas mais variadas e subtis do que no passado, o que aumenta a dificuldade em as percepcionar e conhecer, e as torna mais imprevisíveis.
 
Para a Instituição Militar isto implica uma maior preparação moral e material e a necessidade de reagir com prontidões mais elevadas; para a opinião pública, a diminuição da ameaça clássica directa, mais visível, conduz frequentemente à ideia de que não há ameaça, ou que estas são “ameaças menores” que não justificam que seja dada uma grande atenção às FA nem a despesa feita com elas. Mas, porque as ameaças que necessitam de resposta da força armada não desapareceram, este alheamento e as conclusões que daí decorrem são, por isso mesmo, uma importante ameaça.
 
Segurança afastada
 
Pretendendo-se que os conflitos que emergem, mesmo em áreas geográficas longínquas, não alastrem por forma a afectar a nossa segurança e os nossos interesses, Portugal tem sido levado a intervir no quadro das Nações Unidas e das alianças a que pertence, como sucedeu em Moçambique e Angola, nos Balcãs, em Timor, no Líbano e no Afeganistão. Mas esta segurança afastada tem também o efeito de “afastar” para longe do cidadão comum as preocupações de segurança, como se tal não lhe dissesse respeito. Na Instituição Militar, principalmente no Exército, mais ligado ao solo pátrio, esta circunstância exige que os militares tenham consciência de que os sacrifícios que se lhes pede ou que podem ser exigidos têm que estar directamente relacionados com a forma de juramento de defesa da pátria que responsavelmente assumiram. Se assim não fosse, não precisaríamos de um exército nacional, bastar-nos-ia um exército de mercenários.
 
Custo dos materiais
 
Os materiais de que as FA hoje necessitam são, pelas exigências de modernidade e eficácia, pela elevada tecnologia incorporada e pela nossa quase total dependência do exterior, muito onerosos. Este facto origina que se conteste com frequência os gastos feitos com a defesa, apesar de em percentagem do PIB termos valores muito inferiores aos que os nossos aliados preconizam e praticam; que o equipamento das FA se faça com muita lentidão e sobressaltos, com uma consequente diminuição da operacionalidade das forças; e que se deva ser muito ponderado quanto às prioridades, o que exige do poder político a definição clara daquilo que pretende que as FA façam, em que teatros de operações, com que empenhamento - enfim, os cenários previsíveis de emprego da força - o que infelizmente não acontece. É que a partir desta definição seria fácil prever as estruturas dos Ramos e os materiais de que eles necessitam.
 
Comandamento da comunicação social
 
A comunicação social, importante pilar da cidadania pela informação que transmite, não se limita infelizmente a esta nobre tarefa, porque, estando sujeita a critérios económicos e ideológicos, não se coíbe de, na defesa dos seus interesses, procurar o sensacionalismo, a polémica pela polémica, a venda fácil, mesmo que isso seja feito em prejuízo da verdade. Isto é, além de informar, também deforma e desinforma, tendo como efeito o de, quem a vê, lê ou ouve, apesar de saber frequentemente daquela situação, poder ainda pensar que aquilo que ela transmite é a verdade.
 
A segurança, a defesa e as FA, sendo temas sobre os quais os cidadãos deveriam estar verdadeiramente informados, ao serem tratados por aqueles critérios, são de difícil leitura ou predispõem para a aceitação de ideias como as do elevado custo da organização militar, da sua resistência à mudança, da sua desnecessidade, etc., que obviamente não promovem o espírito de defesa que deveria existir, deformam a imagem da Instituição e afectam o moral daqueles que nela servem.
 
 
2.  A política e os políticos
 
Dialéctica da segurança e do bem-estar
 
A segurança e bem-estar dos cidadãos, como finalidades do Estado, têm obviamente influência nas suas estruturas militares, porque, havendo concorrência e também uma certa convergência entre estas duas finalidades, sem segurança há mal-estar e sem bem-estar há insegurança. Assim, há que procurar um ponto de equilíbrio, para que nem o desejo incontido de bem-estar leve ao esquecimento da segurança, nem o excesso de segurança possa prejudicar o bem-estar. Este equilíbrio não é fácil de encontrar, quando sabemos que a organização militar carece de orçamentos significativos, que os materiais bélicos são onerosos e que as necessidades de defesa não são facilmente mensuráveis. Além disso, há sectores de preocupação do Estado e de satisfação dos cidadãos, com a saúde, a educação e o apoio social, os quais não é possível dotar com as verbas desejáveis, devido às limitações financeiras do próprio Estado.
 
Desconhecimento das matérias de segurança
 
Apesar de nos últimos anos o conhecimento dos assuntos de estratégia e defesa ter abrangido um maior número de indivíduos que não pertencem ou pertenceram às estruturas militares, graças à acção desenvolvida pelo Instituto de Defesa Nacional e algumas raras incursões destas matérias a nível universitário, a maioria dos indivíduos que constituem a classe política não conhece com a profundidade desejável o essencial sobre segurança e defesa, chegando mesmo alguns a posições de responsabilidade nestas áreas e até de tutela sobre as FA. Salvo raras excepções, só após algum tempo na Comissão de Defesa da Assembleia da República encontramos políticos que já se debru­çaram sobre estes assuntos com a atenção que eles merecem.
 
Comportamento político
 
A profissionalização da política, a apetência pelo poder, o desejo de cargos políticos, a importância dos votos que mais facilmente são obtidos através de promessas de um maior bem-estar futuro e o calendário político que absorve as atenções e dirige a acção da política partidária secundarizam assuntos realmente de Estado, mas que não dão votos, como a segurança, a defesa, as FA. Note-se também que as suas preocupações são essencialmente de curto prazo, enquanto estes problemas obrigam a um planeamento e a decisões para o longo prazo.
 
Esta marginalização dos assuntos de defesa, que é infelizmente uma quase constante histórica no nosso país nos períodos em que a ameaça não é muito visível, leva até a entregar a tutela da defesa, frequentemente, a pessoas que não têm peso político dentro do partido do poder, limitando a sua acção e impedindo que a segurança e as FA recebam a atenção que deveriam merecer.
 
Suspeições sobre a força militar
 
Estando hoje consolidada a democracia em Portugal, ninguém teme que as FA possam, como no passado, influenciar o percurso político do país. Mas isso não impede que muitos políticos continuem a olhar para as FA com suspeição, porque elas fizeram o 28 de Maio, foram o suporte do regime anterior, fizeram a guerra que lhes mandaram fazer, não fizeram uma revolução mais cedo, fizeram um golpe de Estado em 1974, deram alento a uma ideia revolucionária, mataram a revolução em Novembro de 1975. Enfim, tudo serve para o clima de suspeição de acordo com os respectivos ideários, mas a classe política esquece-se de como elas têm servido (com perturbações é certo), acima de tudo, Portugal.
 
Insensibilidade sobre a “coisa” militar
 
Sendo hoje raros os políticos que fizeram serviço militar e devido à marginalização das FA, é grande o desconhecimento sobre a Instituição Militar, os seus princípios, os valores que cultiva e os rituais que pratica para os preservar. Mas, como é à classe política que compete legislar e dirigir as FA, não raras vezes nos defrontamos com atentados à hierarquia, à disciplina, e com cedências ao populismo. A Instituição Militar tem que ser conhecida, na sua essência, nas suas formas de estar, de viver e operar, pela classe política que dirige o país e pelos políticos que o dirigem. A existência de alguns assessores militares qualificados junto de certos órgãos de soberania permite fornecer algum “sentir” sobre a Instituição, mas tal acção é por vezes insuficiente e mesmo os chefes militares ao mais alto nível desconhecem leis e decisões a serem adoptadas e que afectam o moral dos militares e as estruturas pelas quais eles são responsáveis.
 
Peso da opinião pública
 
A opinião pública, formada frequentemente com escasso conhecimento das situações e dos factos, por “fazedores de opinião” raramente indepen­dentes e pelos meios de comunicação social com as deficiências atrás referidas, é um elemento cada vez mais importante na condução da política do Estado. De facto, porque as eleições “aconselham” a que a direcção política tenha a opinião pública do seu lado; porque é difícil fazer pedagogia sobre assuntos de Estado e dar a conhecer as instituições fulcrais, uma vez que isso pode ser confundido com propaganda; e porque a intelligentsia portuguesa tem um pendor antimilitar, que, apesar de pouco inteligente, cai bem nas elites e é de bom-tom - a opinião pública restringe de forma significativa, quando não conduz, a política do Estado, na qual os assuntos militares aparecem como marginais e secun­dários. É assim que na Instituição Militar, a cujos elementos pode ser pedido o que é excepcional (como o sacrifício da vida), não se entende que, para se igualar os seus membros aos outros agentes do Estado, lhes seja dado apenas aquilo que é normal. Não se pode pedir o excepcional dando apenas o normal.
 
A Instituição Militar tem contribuído de forma significativa para o prestígio do país e, apesar de ter um lugar honroso nas sondagens, teme-se que a acção corrosiva que sobre a sua imagem é exercida, a voz que facilmente se dá aos seus detractores e até aos militares que não entendem as restrições impostas pela condição militar e o tempo que afasta milhares de portugueses que serviram generosamente as FA no passado possam conduzir a opiniões públicas desfavoráveis.
 
 
3.  A população
 
Egoísmo e bem-estar
 
Depois de 1974, felizmente, o nível de vida da nossa população melhorou de forma significativa. Mas aquilo que era uma aspiração justa foi-se transformando em hábitos de consumismo, num desejo crescente e incontido de bem-estar e caracterizado pelo egoísmo. Este crescimento do “eu”, que vem produzindo um apagamento do “nós”, nomeadamente do “nós” portugueses, sublinha os direitos em detrimento dos deveres, da posse em lugar da dádiva, e leva a olhar o Estado apenas como uma entidade que tem que dar tudo mas à qual nada se deve.
 
A situação descrita faz com que se conteste ou se pretenda fugir às obrigações para com o Estado, que deixasse de ser natural e aceitável o dever e serviço gratuito, como o serviço militar, e que nos assuntos relativos às obrigações do Estado interessem particularmente aqueles em que este responde às necessidades imediatas de cada um: a saúde, a educação, a segurança individual, o apoio social. Os outros assuntos, como a segurança colectiva, as obrigações do Estado como membro da sociedade internacional, com deveres de solidariedade e cooperação, e como guardião de princípios, são assuntos considerados incómodos ou que despertam apenas alguma curiosidade e um vago interesse.
 
Sendo a organização militar uma Instituição que existe para a segurança e defesa, e que pratica a cooperação e a solidariedade internacionais no âmbito da nossa política externa, é natural que a sua imagem, no quadro descrito, possa vir a degradar-se.
 
Custo e desnecessidade das FA
 
Como acima referimos, as sondagens têm continuado a dar à Instituição Militar um lugar de relevo, podendo isto significar que para a maioria dos portugueses elas são ainda uma referência de valores e que existe também um reconhecimento pelos serviços que ao longo da história têm prestado ao país. Mas esta ideia confronta-se com a posição de grande parte das elites portuguesas, que, por razões várias, da moda à analogia que fazem entre as FA e as empresas e à dificuldade em as entender, são claramente hostis à Instituição Militar. Estando nessas elites muitos dos jornalistas, comentadores oficiantes e diletantes de verbo fácil, é pensável que a sua animosidade e incompreensão se alastre e venha, a prazo, alterar a ideia que a maioria dos portugueses tem das suas FA. Se tal vier a acontecer, se não se aceitar que aquilo que custam as FA é um preço a pagar pela defesa, passará a ser lógico que se defenda a desnecessidade da Instituição Militar.
 
Pulsões belicosas e paz
 
A direcção política não pode alhear-se dos sentimentos populares generalizados mesmo quando eles não são exemplos de racionalidade. Em relação à defesa surgem com frequência dois sentimentos que, se expressos com muita veemência, é difícil não serem tidos em conta. O primeiro é o que resulta das pulsões belicosas, como desde 1991 sentimos existirem quando se conheceu em Portugal a provação vivida pelo povo de Timor, quando se viu a repressão indonésia e se ouviu rezar em português. Reiterada mais a tarde a repressão, que deu origem a clamor internacional e a uma forte emoção em Portugal, o governo respondeu com o empenhamento das FA naquele longínquo território. O outro é o desejo e a esperança da paz, que é algo que não pode ser obtido a qualquer preço, já que isso significa um alheamento das tensões e conflitualidade que existem no mundo e porque implica abdicarmos da nossa defesa, dos nossos interesses, da nossa identidade. Porém, esta situação latente pode exacerbar-se se, nos teatros de operações em que as nossas FA estão presentes, em intervenções que à primeira vista não são fáceis de entender, sofremos baixas, o que é bem possível devido aos riscos que elas ali correm.
 
Estes dois sentimentos, se expressos pela população de forma apaixonada, ainda que possam não ter um fundamento racional, poderão fazer inflectir a decisão política e afectar a Instituição Militar.
 
Espírito de defesa
 
O espírito de defesa é uma forma de sentir dos cidadãos que os leva a constatar que há valores que devem ser defendidos, mesmo que para tal haja que fazer sacrifícios. Se este espírito de defesa for generalizado, as FA, que existem para, pelo combate, defenderem o nosso território, a nossa população e os nossos interesses, serão apoiadas física e moralmente; se tal não acontecer, começarão a sentir-se como um corpo estranho na nação.
 
O espírito de defesa é dado pelos valores de cidadania transmitidos pela família, pela escola e pelas FA. Porém, com as alterações que tem sofrido a família e o pouco tempo que os pais têm para os filhos, com a ideia de que a escola é muito mais a aspiração de notas do que a recepção de princípios e valores e com o fim do serviço militar geral e obrigatório - a passagem dos valores de cidadania é cada vez mais difícil.
 
Se for atingido o ponto de se aceitar que a defesa é desnecessária, teremos que concluir que um povo que pensa deste modo não merece ser defendido, ainda que isso signifique o ocaso de Portugal como Estado soberano. E este perigo pode vir a existir, se não houver por parte da Política medidas de carácter pedagógico sobre a cidadania e os valores a preservar.
 
Sendo estes alguns dos problemas com que se defronta hoje a Instituição Militar, se a quisermos preservar como organização fundamental do Estado, eles deverão ser matéria de reflexão e, na medida do possível, deveremos tentar solucioná-los. Caso não encaremos estes problemas, a Instituição Militar pode tornar-se inútil, ficando em causa a nossa identidade e o estatuto de Estado soberano que Portugal usufrui há muitos séculos.
 
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*      Sócio Efectivo e Presidente da Assembleia-Geral da Revista Militar.
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2008-03-20
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by COM Armando Dias Correia