MUNDO
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A - E se conversássemos um pouco?
Após todos os grandes acontecimentos da vida de uma família (nascimento ou luto, momentos felizes ou catástrofes) a tradição em todas as culturas é de ela se reunir, de dar as mãos, para meditar, reflectir e simplesmente se reencontrar.
O resultado do referendo foi para a França um acontecimento deste género. Ele marca o paroxismo de um período muito intenso da vida do país; hoje não devia ser um tempo de luto dos vencidos, nem triunfalismo dos vencedores. O país devia fazer a economia de um acerto de contas, em cada campo, como entre os campos. Os Franceses deviam falar uns com os outros e abrir assim uma grande reflexão fraterna sobre a sua identidade e o seu projecto comum.
O conjunto desta campanha eleitoral (a do referendo), com os seus ricochetes, mostrou com efeito que os nossos concidadãos, tinham a maior dificuldade em se entenderem sobre as razões pelas quais devem viver com os seus vizinhos. E se eles não reflectirem muito depressa sobre o que forma a sua identidade, torna-se-lhes muito difícil viver juntos, porque já não sabem porque formam uma nação e não possuem uma visão clara do lugar dela no mundo que virá.
O momento é ideal para se lançar um debate como este: não haverá já nem eleição nem aposta de poder antes de dois anos e, será perfeitamente possível estabelecer uma pausa para abrir um vasto debate sobre a razão de ser da nação francesa (nós temos de esperar mais dois meses) e sobre as prerrogativas que ela deve conservar. Não um debate enquadrado pelos partidos ou pelo Estado, mas uma discussão espontânea, livre, aberta, onde cada um falará ao seu vizinho, nos cafés, nas colunas dos jornais, nos fóruns de Internet, nas associações. Onde cada um dirá sem cerimónia, com toda a candura, o que espera da França e em que cada um reconhecerá o que lhe deve.
Se uma tal meditação colectiva tivesse lugar pela primeira vez depois de um certo mês de Maio, os Franceses verificariam que estão muito menos divididos sobre o essencial do que julgam; compreenderiam que eles querem quase todos uma França tolerante, audaciosa, livre, aberta ao mundo, profundamente europeia. E afirmariam também, com orgulho, a sua recusa de mudar o seu formidável sistema de protecção social e os seus serviços públicos, construídos no decurso de lutas seculares, contra um desconhecido continental.
De um tal debate surgiria um novo alicerce para a unidade nacional e um novo projecto europeu que nos uniria quase todos antes que eleições nos dividam de novo. É provável que a classe política venha a negar ao país um tal momento de graça, como a prefigurava a lamentável noite eleitoral de 29 de Maio, em que vencedores sem projectos esmagaram vencidos sem remorsos.
O país poderá recusar deixar desta maneira roubar-lhe o seu destino por profissionais da política e decidir fazer que se calem um momento para se escutarem uns aos outros. E, talvez até, quem sabe? Para se entenderem.
(Jacques Attali, L’Express, 30 de Maio de 2005)
B - O século do medo
Eis que há uns bons trinta anos a França vive num estado de depressão. É certo que, no decurso de estas três décadas, conheceu momentos de felicidade e orgulho, a sua imagem mudou, a sua economia transformou-se e, com anos bons e maus, manteve-se à superfície no espaço planetário. Contudo, nunca reencontrou o ímpeto dos seus bons velhos tempos, nem, sobretudo, conseguiu sair do mal-estar que a mina:
- esse sentimento desencorajador de fazer esforços vãos e ir de plano de rigor em plano de rigor sem o menor resultado;
- esta impressão abafadora de que é sempre necessário renunciar a conquistas sociais adquiridas, mas que as compensações esperadas são permanentemente diferidas;
- esse “spleen” que torna o futuro incerto e coloca o nosso país na primeira linha europeia do suicídio dos jovens.
Com o desemprego, os défices, a dívida pública, entrámos num túnel de que se não vê mais saída alguma. Esse desespero alimenta egoísmos, a renúncia, quando não o desespero da juventude, como aconteceu a 23 de Setembro com o suicídio de duas jovens de 14 anos que se atiraram de um 17º andar “porque a vida, como escreveram, não valia a pena ser vivida” porquê fazer sacrifícios quando se instala a ideia destrutiva de que não servem para nada? O nosso país não conseguiu engrenar num círculo virtuoso que viesse a ver um dia as esperanças levantadas finalmente concretizadas.
É verdade que nunca recebeu boas novas de interesse geral há muitos anos e como nos espantamos por ele estar inquieto, reclamante, deprimido ou emotivo a ponto de imaginar que uma vitória no campeonato de futebol é um sinal de ressurreição? Quando se deixa de acreditar no progresso, as pessoas mergulham no irracional ou no cada um por si. O pior é que os esforços já consentidos não são uma ilusão.
Mas não tiveram a medida das apostas. Os governos sucessivos optaram pela mudança homeopática, convencidos de que o corpo social do país nunca suportaria a reforma cirúrgica de tipo britânico de ontem, ou alemão de hoje.
Num mundo em plena devastação, em que a velocidade de execução se torna essencial e a capacidade de adaptação decisiva, estes pequenos passos dolorosos não serviram para nada. A França não vive à cadência internacional por não ter tratado de modo sério os seus males. É certo que soube tomar posições fortes em certos sectores, mas não encontrou um lugar bem definido, como por exemplo o da indústria alemã na nova divisão do trabalho. Alcança sucessos em certas situações de somenos, prova de que a sua criatividade se mantem intacta, mas não possui estratégia global em fase com a mundialização. Os resultados catastróficos do seu comércio externo são a sanção cruel deste fracasso. A andorinha Airbus não faz uma primavera económica!
De repente, o país sofre em fogo brando e já não crê em nada. É urgente falar-lhe verdade, de reconhecer que o tempo joga cada vez mais contra ela, que os atrasos se acumulam, e que chegará o momento em que nos parecerá inultrapassável adaptarmo-nos ao mundo actual. Nunca é demasiado tarde para reagir, mas o adiamento das oportunidades conduz sempre a um agravamento das dificuldades. Sejam de direita ou de esquerda, os Franceses têm a pesada responsabilidade de afrontar finalmente esta verdade.
Com toda a urgência. Nenhuma nação digna desse nome pode tolerar por muito tempo que os seus filhos desesperem. Se o século XX foi o século dos horrores, o século XXI não pode, não deve ser, o século do medo.
(Denis Jeambar, L’Express, 29 Setembro 2005)
O angelismo autodestruidor
Ninguém pode contestar a vontade americana de fazer triunfar a democracia através do mundo. E, de facto, mês após mês, países voltam as costas à ditadura e escolhem o seu futuro nas urnas. Mas este progresso é uma aparência enganosa. Porque a democracia não se resume a procedimentos eleitorais. Será angélico acreditar que governantes recebem uma iluminação democrática porque triunfaram segundo as regras num escrutínio. O passado serve para nos demonstrar que a democracia aconchega por vezes os seus piores inimigos. A república de Weimar sucumbiu sob os assaltos eleitorais do nazismo. Hitler só se tornou verdadeiramente Hitler após a conquista da Chancelaria alemã. Como devem defender-se as verdadeiras democracias? Será necessário que ressuscitem os seus princípios para barrar o caminho aos extremistas como pensaram alguns quanto à Argélia ameaçada por uma vitória eleitoral do GIA. Velho debate que reencontra uma inquietante actualidade com o envolvimento americano no Iraque, que foi certamente votado, mas que não se desprende no entanto do ciclo da violência. O dilema torna-se gritante com a vitória presidencial no Irão do candidato ultraconservador, o inquietante Mahmud Ahmadinejad.
As suas primeiras declarações fazem dele um resoluto inimigo de todos os valores - direitos humanos, liberdade de expressão, direito de imprensa, etc - que, além da eleição, fundamentam a democracia. Mas está lá pela sua legitimidade eleitoral, para espezinhar todos os princípios que animam o mundo ocidental e desafiá-lo. Como lhe replicar quando o seu povo o escolheu?
A tenaz de um messianismo democrático expedito fecha-se sobre os países desenvolvidos, que não podem contestar a representatividade de regimes saídos das urnas. Uma questão em forma de paradoxo impõe-se portanto: será necessário chegar a recusar a democracia a povos que a reduzirão a uma competição eleitoral? A resposta está cheia de armadilhas, mas é evidente que a democracia vai muito além de um simples escrutínio: é um conjunto de direitos, de deveres e de normas que a definem. À míngua de as pôr em prática ela não passa de ilusão. E pode mesmo tornar-se o cavalo de Tróia do extremismo nos países corroídos pela miséria e desespero social, porque o vendaval da demagogia pode então soprar sob a capa da legalidade.
O evangelismo democrático das nações ricas quebrar-se-ia sempre sobre este obstáculo. Para o ultrapassar estas últimas não têm outra escolha do que ajudar massivamente os países pobres a sair das profundezas do subdesenvolvimento. A História mostra-o: só se conjuga com a prosperidade. Os encantos das sociedades desenvolvidas sobre os países pobres já fizeram o seu tempo, tal como os grandes discursos sobre a eficácia das revoluções democráticas. Este proselitismo atola-se nos trilhos da miséria. Foram os mais pobres que elegeram o presidente extremista de Teerão. Como não têm mais nada a perder, podem tornar-se carne para canhão de um poder radical pronto a enfrentar todas as guerras sentindo-se ameaçado do exterior.
Este cenário deu já as suas provas, se assim se pode dizer, no ano de 1930.
Os piores inimigos da democracia sabem tornear os usos e explorar as fraquezas. Também será urgente que os países ricos dêem as mãos, não para se barricarem com as suas riquezas, mas para se lançarem numa autêntica política de solidariedade com os mais desprotegidos. “É fundamental, como acaba de dizer Tony Blair, ajudar o Sul”. Concretamente. Sinceramente. Com gestos. Não com palavras. Caso contrário, veremos voltarem grandes infelicidades.
(Denis Jeambar, L’Express, 4 de Julho de 2005)
Perigosos desequilíbrios
O pior, em geral, é previsível. Mas a lucidez faz muitas vezes falta para o antecipar. E nada indica na história humana que neste domínio sejamos capazes de progredir. Tornemos o exemplo do ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001. Alguns dias antes, de 31 de Agosto a 8 de Setembro, sob a égide das Nações Unidas, teve lugar em Durban, na África do Sul, uma Conferência Mundial contra o racismo, anunciadora do drama das Twin Towers: a violência verbal inacreditável de certos países do Sul contra as grandes nações ocidentais assemelhava-se a um tufão a formar-se.
Sabemos o que aconteceu. Hoje deveríamos, portanto, tomar precauções quanto ao que se passa à volta dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, no norte de Marrocos. O desespero dessas centenas de africanos que, sob as balas da polícia se precipitam sobre o arame farpado para ultrapassar a passagem que os separava da Espanha, da Europa e da miragem da prosperidade é a ilustração dolorosa, enlouquecedora mesmo, dos desequilíbrios do mundo em que vivemos. A ponto de ser tempo de se pôr claramente a questão:
- a falta de equidade na partilha das riquezas do nosso planeta pode durar ainda muito tempo?
Esta interrogação não é, por certo, nova, mas, dia após dia, a sua acuidade cresce, tanto os riscos se evidenciam. Ora nada é verdadeiramente feito para inverter o curso das coisas:
- os continentes da riqueza e da pobreza não param de se distanciar, e as tensões, em consequência, radicalizam-se.
A vitrina dos países ricos faz brilhar cada vez mais o olhar dos mais pobres. Com duas reacções contraditórias, mas igualmente perigosas:
- a rejeição brutal e definitiva de tipo “jihadista” e vastos movimentos migratórios incontroláveis.
Hoje mais de 150 milhões de seres humanos vivem fora do seu país de origem. Dentro de trinta anos serão 1 500 milhões.
Como escreveu Jacques Attali; “o homem volta a pôr-se em marcha”.
Num ensaio breve e límpido sobre a mundialização, Jean Peyrelevade, antigo Presidente do Crédit Lyonnais, põe a faca na ferida “Seguramente, esta formidável mecânica fabrica crescimento, o que a justifica aos olhos dos governos e fundamenta a sua perenidade. Mas ela tem temíveis efeitos externos (…) A média dos rendimentos dos países ditos do Norte é 37 vezes maior do que a dos mais pobres do mundo”.
Esta situação é sustentável? Não. Em virtude precisamente dos paradoxos da globalização, que contém dentro de si mesma os vectores da destabilização: ao mesmo tempo que faz cair as fronteiras económicas e comerciais liberta os movimentos migratórios que ninguém sabe controlar.
Como escreve ainda Peyrelevade: “Nunca tivemos tanta necessidade de regulação para assegurar o equilíbrio político, ético e ecológico do desenvolvimento do planeta. Nunca estivemos também tão afastados dele, nunca a distância entre o desejável e o real aumentou tão depressa”.
Assim avançamos às cegas num mundo que não chega a definir uma nova ordem. Damos com uma mão - como, por exemplo, na decisão do G8 em Gleneagles em Julho último, de aumentar 25 mil milhões de dólares de ajuda a África daqui até 2010 - o que tiramos com a outra - concretamente, a acção deliberada dos países ricos de se apoderarem de todas as reservas energéticas do planeta.
Joga-se o jogo da mundialização, mas o nacionalismo económico faz uma volta em força. Celebra-se a liberdade, enquanto a transgredimos face a movimentos migratórios que, para muitos, não são o fruto do nosso cinismo, mas se explicam pelo fracasso das elites locais que dão lições (como Bouteflika na Argélia, ou certos presidentes de África) ou de dirigentes que fazem prosperar as suas rendas no Ocidente com desprezo do seu povo (como a maioria dos governantes dos países do Golfo).
Estas contradições são outras tantas granadas que rebentam na face da História e destabilizam a noção do progresso. Precisamos de responder - mas alguma vez soubemos fazê-lo? - a conjugar o desenvolvimento económico com o respeito dos valores democráticos.
(Denis Jeambar, L’Express, 13 de Outubro de 2005)
Europa
A França na vanguarda da acção
Jacques Chirac pronunciou no Eliseu um discurso a 29 de Agosto na abertura da XIII Conferência dos Embaixadores, que a Défense Nationale publicou no seu número de Outubro.
Começou por evocar os valores da liberdade, da justiça e da solidariedade da República, fundadores do pacto social francês, valores cuja singularidade considerou referenciais num mundo à base de equilíbrios. Mais do que nunca a França deverá situar-se na vanguarda da acção.
A primeira prioridade iria para a resposta às ameaças à paz e à segurança internacional.
Os atentados de Londres e de Charm-el-Cheik, da Turquia e de Israel mostram a permanência da ameaça terrorista, que relacionou com as crises da proliferação, com especial incidência quanto ao Irão, a quem apelou para enveredar pela via do diálogo na escolha do caminho a que tem direito quanto a assumir o seu destacado papel no mundo. As eleições presidenciais que vieram a ter lugar posteriormente e o seu resultado favorável ao extremista Mahmud Ahmadinejad veio, porém, agravar a situação em vez de a acalmar.
Referiu-se depois à persistência de focos de crises regionais na Europa, na Ásia e na África, que originaram ressentimentos e constituem um desafio para a comunidade internacional, considerando o Médio-Oriente no coração da instabilidade planetária. Louvou quanto a este perigo a corajosa política de Ariel Sharon, como primeira etapa de um caminho doloroso, em que seria necessário retomar sem perda de tempo o caminho das negociações para chegar à paz entre dois Estados democráticos vivendo lado a lado em segurança. Também aí as realidades fizeram prevalecer a reacção violenta palestiniana, ou melhor, dos seus grupos extremistas e, neste momento, alternâncias de avanços e recuos, voltando-se ao predomínio da violência que levou Israel a reagir e põe em jogo a posição de Ariel Sharon.
No Iraque a ajuda à recuperação da soberania plena, que Chirac refere, apesar do passo favorável da realização de um referendo, não chegou ainda para atenuar sequer a violência sunita que continua a matar e destruir em larga escala.
No Líbano regista-se uma mobilização popular sem precedentes que abriu caminho à retirada das tropas sírias e permitiu ao povo libanês a possibilidade de se exprimir livremente, mas as relações entre a Síria e o Líbano não atingiram a mutação pacificadora pretendida, apesar de ser este o mais esperançoso exemplo dos citados.
Referiu-se em especial à Conferência de Chefes de Estado e do Governo a realizar em 27 e 28 de Novembro no âmbito do Processo de Barcelona, considerando a necessidade de afirmação de solidariedade entre as duas margens do Mediterrâneo, com vista a torná-lo um conjunto onde se possa aprofundar o diálogo intercultural entre os diferentes mundos que partilham este espaço. Nós sempre temos defendido como fundamental este objectivo, mas não se nos afigura assegurada a unidade dos povos da margem norte e a consistência do respeito dos respectivos valores por estes apregoados, o que é susceptível de vir a gerar situações de caos e violência perigosíssimos. Mas não há tempo a perder nesta matéria, tão perigosa nos parece a evidência dos contrastes. O que não significa que se considere sem utilidade, se bem conduzido, o tratado de amizade que a França pretende estabelecer com a Argélia com vista a proporcionar-lhe prosperidade, segurança e estabilidade na região.
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Além das crises regionais refere outros desafios nos quais se joga o futuro da humanidade e dos nossos valores, tão enaltecidos e tão pouco respeitados, como temos dito.
A abertura das trocas, a circulação dos seres humanos e das ideias, gera uma prosperidade sem precedentes, mas a reacção dos povos não devem deixar de nos alertar para o mal-estar crescente que suscita a mundialização.
Concentrada nas trocas económicas e financeiras, ela aparece como uma ameaça para a diversidade cultural, sobretudo de pequenos países, débeis e progressivamente despojados de projecto próprio, como acontece no nosso caso, como um perigo para o ambiente, como factor para ser colocado em causa, de modo insidioso, o equilíbrio das sociedades, alimentando nas democracias, pelos medos provocados, o populismo e a xenofobia.
Além disso, a mundialização acomoda-se, ou mostra-se impotente, quanto a serem relegadas centenas e centenas de milhões de mulheres e homens, nomeadamente em África, para a extrema pobreza, a fome, a doença e a ignorância.
Nenhum país tem sozinho as capacidades para resolver a questão, ainda menos hoje do que no passado, por isso, preconiza-se um sistema internacional mais democrático, e sobretudo mais justo e representativo das realidades do mundo contemporâneo.
As organizações internacionais, como a ONU, a Organização Mundial de Saúde, a Organização Mundial do Comércio e a UNESCO, deparam com dificuldades que ultrapassam as suas capacidades e a sua eficácia, ficando muito aquém dos seus objectivos e responsabilidades institucionais.
A própria União Europeia, que Chirac considera no mundo multipolar a única que possui dimensão crítica para estabelecer um diálogo de igual para igual com os seus grandes parceiros, atravessa uma crise que desmente, oxalá que de modo transitório e fugaz, a sua convicção de representar para as gerações futuras garantia de segurança e prosperidade. Necessita, para isso, de se libertar de ilusórias tendências e procedimentos. Um deles será, como ele afirma agora, o estabelecimento de relações de cooperação e confiança com os Estados Unidos, com quem nós estamos ligados por tantos valores comuns.
Também ele reconhece agora, felizmente, ter de propor outro modo de construir a Europa, provavelmente mais capaz de associar melhor os seus compatriotas e também os demais membros, acrescentemos, às decisões relativas do seu futuro. Insiste, a nosso ver ilusória e perigosamente, no papel da França partilhar com a Alemanha, ser motor exclusivo da construção da Europa. Esta ideia parece-nos contraditória do interesse vital da ligação com os Estados Unidos, pois não pode fazer dela uma entidade continental, relegando o seu factor marítimo, tão fundamental, porque o mais importante elo de ligação continua a ser o Oceano Atlântico, e por isso não dispensa que o Reino Unido ganhe mais apropriado estatuto, apoiado nos restantes países marítimos.
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O estado de saúde de Chirac e o resultado das eleições gerais alemãs fazem com que a necessidade de reformar a União Europeia se veja mais diferida, não obstante a urgência de que ela se reveste.
Não bastava o desfecho do referendo de 28 de Setembro para lhe reduzir a influência, que se viu muito mais afectada com o segundo abalo, o da sua saúde, quer em âmbito nacional, quer no seio da própria União Europeia.
O L’Express de 20 de Outubro dá conta disso, referindo como um sinal que não engana, nem mesmo o muito prudente José Manuel Barroso, presidente da Comissão Europeia, já não se embaraçou com nenhuma precaução para o enfrentar. Jacques Chirac, a propósito dos despedimentos anunciados pela Hewlett-Packard, acusou Bruxelas “de não defender com suficiente energia e determinação os interesses da Europa e, em particular, os interesses económicos”. A resposta saiu merecida, mas fustigante:
“Há agora na Europa dois tipos de populismo. O primeiro visa os mercados; o outro ataca a própria ideia de Europa e quer enfiar o carapuço nas instituições da Europa”. Barroso apontou aqui para uma convicção profunda de Chirac, que um seu antigo ministro diz “pensar que a França está do lado da Europa e não dentro, e que a Comissão é qualquer coisa que se pode atacar”. Prefere estas agressões a uma lógica de influência sobre a Comissão, que seria, contudo, mais eficaz.
Comenta o L’Express que a resposta do patrão da Comissão de Bruxelas foi um acontecimento, pois, pela primeira vez, um Presidente da República Francesa se viu obrigado a meter a viola num saco com tanta insolência por este organismo, o que mostra quanto desceu o crédito de Chirac no Velho Continente.
Acima, porém, do caso pessoal, o mais preocupante é o efeito que ele prenuncia, juntamente com o que mais se referiu, quanto a atrasar o processo vital da reestruturação e reorientação da União Europeia.