Nº 2475 - Abril de 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
EDITORIAL - Políticas e Instrumentos de Defesa em Ambientes de Incerteza
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo
Vivemos tempos de incerteza quanto à situação e evolução previsível da situação global de segurança e dos factores que a afectam, nos quais se incluem ameaças e sua avaliação em termos de risco e probabilidade, actores em cena com a sua postura e comportamento e tempo e gradação das respostas às situações de insegurança, dirigidas, coordenadas e de amplo consenso entre actores ou de espontaneidade individualizada, esperando por seguidores. Resultam da situação diferentes paradigmas de segurança, muitas vezes mais dominados por emoções do que orientados por racionalidade e que se vão adaptando à evolução da sociedade, como noutras épocas que a História regista.
 
No início dos diferentes paradigmas figura a percepção das diferentes e voláteis ameaças que se configuram no cenário e a avaliação do risco que representam. O risco que uma ameaça pode representar para a segurança avalia-se pelo produto de dois factores: a sua probabilidade de ocorrência e os efeitos que pode produzir. Vivem-se tempos em que os paradigmas da segurança se vão construindo e privilegiando nesse produto o factor probabilidade de ocorrência em detrimento dos efeitos que podem produzir. Isto vai significando que nos paradigmas de segurança concebidos a componente defesa vá progressivamente perdendo importância, já que a probabilidade de ameaça externa sobre soberania e interesses tem tendência para ser avaliada como factor zero. Resultado? Políticas e opiniões públicas consideram que a defesa, ou seja combater e morrer pela defesa da soberania e de interesses, não constitui prioridade dos estados. Ministros da Defesa e Forças Armadas vivem tempos difíceis para alertar, perante os seus pares nas administrações centrais ou concidadãos, que a probabilidade de ameaça às soberanias e interesses ainda não atingiu o zero, que enquanto uns desarmam outros aumentam exponencialmente os seus investimentos na defesa, que as armas nucleares não foram desinventadas e continuam a proliferar ou que ainda há quem considere que a sua segurança passa pelo domínio do espaço que lhe é contíguo.
 
Esta verdade no interior dos estados também vai encontrando ecos em organizações internacionais vocacionadas para a defesa, e a defesa colectiva, como a OTAN, que neste momento procura uma Grande Estratégia e um Conceito Estratégico para evitar as tentações que vão surgindo para a transformar em algo de pendor policial vocacionada para missões de segurança, assegurando a presença mas evitando a todo o custo combater. As dificuldades que se vão encontrando na definição de uma Política Europeia Comum de Segurança e de Defesa passam também pelas diferentes visões na União Europeia sobre necessidades prioritárias: Polícias ou Forças Armadas. Também aqui combater, se necessário para defender, não é considerado “politicamente correcto”. A ONU nas Resoluções do seu Conselho de Segurança que prevêem a aplicação da força continua a perder-se em debates sobre a aplicação do Capítulo VI ou VII da Carta (ficando, normalmente, pelo Capítulo seis e meio).
 
Em Portugal, com as Ordenações Afonsinas, em meados do século XV, que pela primeira vez tentaram codificar o Regimento da Guerra, começou um longo caminho de resistências à organização de um instrumento militar da Nação para a defesa. O resultado dessas resistências ficou pela primeira vez evidenciado no passeio do duque de Alba, em Agosto de 1580, sobre a desordenada defesa do Reino na Ribeira de Alcântara. De então para cá, umas vezes com doçura e de outras vezes com revolta, a História relata os resultados de a Nação não cuidar da defesa.
 
Estas breves considerações servem de intróito a alguma meditação sobre a recente legislação visando “proceder à reforma do modelo de organização da defesa e das Forças Armadas, com impacto nas respectivas estruturas superiores, dispositivo e optimização das condições de comando e controlo operacional nas missões das Forças Armadas, designadamente na perspectiva da utilização conjunta de forças e sua interoperabilidade”. Trata-se da Resolução do Conselho de Ministros nº 39/2008 (Diário da República, 1ª série - Nº 42 - 28 de Fevereiro de 2008), que a Revista Militar reproduziu integralmente no seu último número.
 
A Resolução aprova as orientações para a execução da reorganização da estrutura superior da defesa nacional e das Forças Armadas visando a aprovação de projectos que reformulem a actual legislação e que há muito é considerada desajustada a modificações introduzidas na concepção e organização da Defesa (das mais significativas são o modelo do serviço militar, o conceito de crise e o envolvimento das Forças Armadas em missões fora do Território Nacional). Os objectivos pretendidos visam “reforçar a capacidade para o exercício da direcção político-estratégica do Ministro da Defesa Nacional…”, “…adequação estrutural das Forças Armadas, no sentido do reforço da sua capacidade de resposta militar, face às novas exigências e desafios actuais…” e “obter ganhos de eficiência e eficácia e assegurando uma racionalização das estruturas…”.
 
Parecendo-nos uma orientação realista, necessária e com objectivos bem definidos e exequíveis, é uma decisão política desde há muito considerada necessária. Para que a sua execução não fique só na orientação, como algumas do passado e com um sentimento misto de alguma experiência recolhida no desempenho de funções passadas temperado com o realismo de saber que os tempos e as situações mudam, permitimo-nos tecer alguns comentários sobre o caminho da execução.
 
Porque estamos a falar de Defesa Nacional e de Forças Armadas, actividade do Estado e Instituição da Nação, a sua concepção, estruturas, recursos e códigos de conduta devem merecer amplo apoio dos cidadãos e das suas diferentes percepções. A sua aprovação deveria resultar de maiorias qualificadas na Assembleia da República traduzindo o consenso, sobre funções do Estado e o papel das suas Instituições, das diferentes percepções dos partidos políticos ali representados. A experiência passada mostra que decisões políticas sobre estas matérias, tomadas por Governos apoiados por uma maioria de partido, estão sujeitas a uma alternância nem sempre adequada aos tempos da sua implementação. As actuais estruturas têm mudado frequentemente em resultado desta realidade.
 
Ao elaborar-se legislação sobre Forças Armadas e a realidade dos seus valores estruturantes, que passam pelos seus Ramos diferenciados e com especificidades próprias, não se veja no conjunto economia, mas sim ganhos de eficiência e eficácia no emprego da força militar quando o objectivo militar a atingir exija que essa força tenha capacidades militares que são geradas e treinadas pela especificidade de cada um dos Ramos. É no Conselho de Chefes de Estado-Maior, em boa hora introduzido na legislação das Forças Armadas, tentando corrigir sentimentos corporativos desde há muito arreigados na tradição militar portuguesa, que se deverá aconselhar a decisão política sobre o que deve ser conjunto e o que deve ser próprio. Conhecemos numerosos exemplos de experiências feitas, umas atingindo os resultados pretendidos e outras efémeras que tiveram de ser corrigidas mas que deixaram marcas que o tempo não apagou. O Conselho de Chefes de Estado-Maior nas estruturas a conceber deverá continuar a materializar na sua organização e funciona­mento o “conselho militar independente à decisão política”.
 
Por mais que se tenha escrito e praticado para conciliar a “lógica da política” com a “gramática dos militares”, tentando estabelecer as linhas de fronteira entre a decisão política e o comando no que respeita à Instituição Militar, há sempre marcos a ajustar, para um lado e para o outro. A Política da Defesa encontrará sempre dificuldades em conciliar as suas necessidades face a outras políticas: a Económica, a de Segurança, a Social e outras. Na longa História de Portugal foi assim nas Cortes, como será nos Parlamentos. A procura dessa conciliação é uma das difíceis áreas de actuação dos responsáveis políticos pela defesa. Mas há responsabilidades próprias do comando, que se traduzem, entre muitas, na preparação e no apoio da força militar para que tenha êxito quando ordenada a actuar. Na actual legislação existe um órgão que permite o encontro entre o conselho militar e a decisão política: o Conselho Superior Militar. É no seu seio que se devem conciliar, antes da decisão, os pontos de vista diferentes, por vezes, entre a lógica da política e a gramática dos militares.
 
A Resolução do Conselho de Ministros agora tornada pública representa um compromisso político do Governo para corrigir fragilidades estruturantes da Defesa e das Forças Armadas há muito detectadas e que pediam solução desde o início do regime constitucional, mas que foram tratadas esporadi­camente com medidas cosméticas de soluções conjunturais. Não terá sido fácil, pelo que vamos seguindo sobre a lógica política na avaliação das prioridades da sociedade portuguesa actual, uma decisão sobre matéria que nos habituámos a ver tratada como não prioritária.
 
O esforço da lógica da política, louvável e oportuno, tem de ser continuado por uma gramática militar pragmática e realista, para obter propostas conjuntas exequíveis e que preservem os valores estruturantes da Instituição Militar. Em órgãos próprios, como o Conselho de Chefes de Estado-Maior e o Conselho Superior Militar, o conselho militar independente terá o seu espaço de afirmação.
 
 
*      Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.
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2008-09-21
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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by COM Armando Dias Correia