Nº 2441/2442 - Junho/Julho de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Democratização depois do conflito sob patrocínio de uma autoridade transitória
Dra.
Ljiljana Mrakovcic
Há nove anos terminou a guerra na Bósnia e Herzegovina, país cuja independência foi reconhecida em 1992, quando se tornou Membro de pleno direito das Nações Unidas. Porém, o país ainda precisa de supervisão internacional da implementação do acordo de Dayton1, acordo de paz assinado em 1995, uma vez que as instituições do Estado democraticamente eleitas e constituídas desde aquele, não constituem a garantia da execução de acordo. O presente artigo pretende analisar os motivos da lentidão desse processo e assinalar a necessidade de reforçar a supervisão dos poderes das autoridades transitórias internacionais, estabelecidas depois do conflito, da parte da comunidade internacional.
 
Na Bósnia e Herzegovina, a supervisão internacional da implementação do Acordo de Paz de Dayton manifestase nos poderes do Alto Representante da Comunidade Internacional para a República Bósnia e Herzegovina. O Alto Representante tem poderes para interferir no processo da decisão política do país como a última instância responsável de interpretação do Acordo2. Esses poderes incluem a aprovação das medidas nos casos em que as partes, em conflito até 1995, e presentemente cidadãos da Bósnia e Herzegovina, não conseguirem chegar a um acordo entre si; assim como a aprovação de outras medidas que assegurem a implementação do Acordo3. Dessa forma o Alto Representante pode alterar ou anular qualquer decisão que não esteja de acordo com o Acordo de Dayton, no cumprimento dos aspectos civis do Acordo, uma vez que os assuntos militares ficam excluídos dos seus poderes.
 
Lêse na página principal da Gabinete do Alto Representante (www.ohr.int) que o objectivo dessa instituição é de “trabalhar com o povo da Bósnia e Herzegovina e com a comunidade internacional para assegurar que a Bósnia e Herzegovina seja um estado pacífico e viável no caminho da integração europeia”4. Ou seja, o objectivo principal é a aproximação e a eventual adesão da Bósnia e Herzegovina à União Europeia, o mais bem sucedido modelo mundial da integração regional política e económica.
 
A realidade é outra. A República Bósnia e Herzegovina nem sequer conseguiu o avanço suficiente no processo da integração europeia para conseguir a conclusão da elaboração de um estudo de viabilidade5 por parte da Comissão Europeia, iniciada em 2003. Esse estudo obrigatoriamente precede a conclusão de um Acordo de Associação e Estabilização, instrumento jurídico que a comunidade decidiu utilizar para o estabelecimento formadas suas relações com os países dos Balcãs Ocidentais, denominação dada ao conjunto de 5 países, Albânia, Antiga República Jugoslava da Macedónia, Bósnia e Herzegovina, Croácia e Sérvia e Montenegro. Um Acordo de Associação e Estabilização é um prérequisito necessário para um país dessa região conseguir o estatuto de candidato e eventualmente abrir as negociações de adesão com a União Europeia. Os acordos já foram concluídos com a Macedónia e com a Croácia. Portanto, a Bósnia e Herzegovina nem sequer obteve o estudo prévio da Comissão europeia, apesar de ter cumprido a maior parte das recomendações feitas nesse sentido no ano 2000 pela União Europeia6, e muito menos poderá concluir em breve qualquer tipo de acordo com a União Europeia. Não se verifica o progresso objectivo formal na aproximação a Europa. Porquê?
 
Invocando as imagens televisivas do conflito violento naquele país, a resposta lógica seria que os três povos constitucionais da Bósnia e Herzegovina, bósnios, croatas e sérvios ainda não conseguem fazer as reformas políticas e económicas necessárias no seu país para seguir o caminho europeu, apesar de toda a ajuda da comunidade internacional.
 
Na nossa opinião, o progresso lento da Bósnia e Herzegovina na aproximação às integrações euroatlânticas não se deve apenas às mentalidades locais nem aos problemas políticos e sociais entre os três povos constitutivos, mas também àquilo que denominaremos, na ausência da palavra melhor, a falta da normalidade institucional.
 
Aparentemente, a Bósnia e Herzegovina é um país independente, soberano, democrático, com instituições eleitas. Na prática, as decisões do Alto Representante podemse sobrepor às quaisquer decisões das instituições nacionais, sempre que se verifica que alguma decisão nacional contraria a implementação do Acordo de Dayton.
 
Ainda que a letra de um acordo internacional procure ser precisa, o teor do acordo deixa sempre espaço a interpretação. Por conseguinte, temos que confiar que o interpretador o fará com todo o rigor intelectual e a objectividade possível, afastando interesses particulares inerentes à instituição que representa. No caso de dúvida sobre imparcialidade e capacidade interpretativa do interpretador é possível introduzir a fiscalização do seu trabalho - por exemplo o Acordo de Dayton estabelece o dever do Alto Representante de apresentar relatórios periódicos sobre o progresso na implementação do acordo “às Nações Unidas, à União Europeia, aos Estados Unidos, à Federação Russa e aos outros Governos, grupos e organizações interessadas”7.
 
O Gabinete do Alto Representante é um exemplo de um novo método de resolução de conflitos, frequentemente introduzido depois do fim do conflito armado a partir dos anos 90 do século passado, denominado autoridade ou administração transitória. Um órgão internacional, organizado de forma multilateral, assume todos ou alguns poderes soberanos num território, a base temporária, até amadurecer a capacidade de governo local.
 
Na vizinhança da Bósnia e Herzegovina, actua mais uma autoridade transitória, a UNMIK, administração transitória das Nações Unidas no Kosovo. Por forma diferente da Bósnia, o Kosovo não é reconhecido como um país independente, nem admitido como Estado Membro da ONU. Assim como de facto não é parte integrante de outro país qualquer, sendo de iure ainda parte da Sérvia e Montenegro8. De mesma forma como a Bósnia e Herzegovina, o Kosovo possui um parlamento e um governo eleito, com competências limitadas. A UNMIK, uma administração civil das Nações Unidas, detém o poder executivo, legislativo e judicial9, respondendo pelo seu trabalho ao SecretárioGeral da ONU, e ao SecretárioGeral do Conselho de Segurança, de forma que o sistema formal da fiscalização dentro da ONU talvez esteja mais estruturado do que o dever do Alto Representante para a Bósnia e Herzegovina de fazer relatórios, uma vez que esse cargo é um cargo especial estabelecido pelo Acordo de Dayton e não se enquadra numa única organização internacional responsável pelo seu funcionamento, como no caso da UNMIK e ONU.
 
A orientação central que a UNMIK proporciona ao Kosovo é a necessidade de estabelecer algumas normas internacionais no território antes do discutir o seu estatuto final10. Por conseguinte, o Kosovo necessita de atingir um certo nível da vida democrática, do estado de direito e do respeito dos direitos humanos e das minorias antes de ser estabelecido o seu estatuto jurídico definitivo no direito internacional.
 
Considerando que o objectivo principal de todas as actividades da comunidade internacional e das administrações transitórias internacionais é de evitar o relapso do conflito armado e violento na Bósnia e Herzegovina e no Kosovo, colocamos a pergunta se o conflito foi resolvido.
 
Se a resolução do conflito for definida como a cessação de combate entre as partes, o conflito foi resolvido. A continuação da paz militar é garantida pelas missões militares da NATO e da EU: SFOR no caso da Bósnia e Herzegovina, missão da NATO que em breve será substituída por uma missão militar da União Europeia, EU Altheia, com iniciação prevista a 1 de Dezembro de 2004; e KFOR, missão da NATO no Kosovo.
 
Se de repente, de um momento para outro, as missões militares abandonassem a Bósnia e o Kosovo, parecenos muito provável, olhando pela totalidade da circunstância política actual, que na Bósnia não haveria relapso do conflito armado, enquanto que por mais que nos esforcemos não sabemos responder se o haveria ou não no Kosovo, na sequência de uma saída repentina da KFOR. Esse juízo representa apenas uma conclusão lógica do nosso seguimento da evolução política dessas duas regiões nos últimos anos e não é nenhuma conclusão definitiva, nem muito menos previsão negativa de novo surgimento da violência.
 
Fundamentamos o nosso juízo no facto que a Bósnia antes da desinte­gração da antiga República Socialista Federativa da Jugoslávia era de facto uma sociedade multiétnica, com um alto grau de comunicação, convivência e tolerância entre os bósnios, croatas e sérvios na prática, enquanto que no Kosovo as principais comunidades, a sérvia e a albanesa, viviam separadas. A imagem de que a comunidade internacional introduz e ensina as moda­lidades de uma sociedade multiétnica aos povos ignorantes da Bósnia é simplesmente falsa porque essa era a realidade da vivência daquela terra antes de 1992, estragada posteriormente com os eventos lamentáveis que se seguiram. Hoje em dia os povos constitucionais da Bósnia estão a comunicar, ainda que nem sempre da forma mais amena, dentro das instituições, e na vida diária, enquanto que no Kosovo a comunicação entre as duas principais comunidades parece estar mais condicionada e o relacionamento histórico anterior ao conflito mais complicado11.
 
Se a resolução do conflito for definida como “remoção das causas” do conflito ou a eliminação das fontes de “incompatibilidade nas posições” 12 das partes, verificase que entre as partes anteriormente em conflito persistem as diferenças, eventualmente incompatíveis, que se exprimem no presente através do discurso e luta política. A divisão em partes, ao longo das linhas de pertença nacional, sobreviveu ao conflito armado, os grupos não se dissolveram, nem se misturaram em grande medida.
 
Concluímos que a actuação das autoridades transitórias não se situa obviamente na área de conseguir a cessação de combate, que acabou antes do seu estabelecimento. Falta definir o seu papel no processo de eliminação de incompatibilidades como possíveis fontes do relapso do conflito.
 
A tarefa da administração transitória seria portanto de influenciar a mudança das posições das partes, no sentido de eliminar as fontes de incompatibilidade, resolver o conflito e não permitir relapsos, enquanto a paz militar continua garantida. Essa tarefa corresponde nos casos da Bósnia e Herzegovina e Kosovo ao esforço de democratização da sociedade como garantia de resolução pacífica de diferendos internos.
 
As antigas partes em conflito podem ser divididas em dirigentes e povo. Uma administração transitória tem ao seu dispor duas possibilidades fundamentais de influenciálas. Uma é de educar o povo e os dirigentes sobre a democratização e o desenvolvimento económico, para que os dirigentes possam tomar as decisões iluminadas e para que o povo vote nos dirigentes iluminados. Outra é de contrariar as decisões e a continuação do poder dos dirigentes vistos como ameaça a consolidação da paz e assim proteger o povo dos seus próprios dirigentes, quer sejam eleitos, quer não.
 
A primeira via, que chamaremos da educação, não é de competência exclusiva da administração transitória. Outras organizações internacionais, como por exemplo a Organização para a Segurança e Cooperação em Europa (OSCE), as agências humanitárias, como por exemplo UNHCR, e as organizações não governamentais estrangeiras e locais estão a desenvolver esta tarefa em simultâneo com a administração transitória, que apenas pode proporcionar mais valias ao processo pelos seus próprios programas ou pelo esforço da coordenação da totalidade de trabalhos de várias entidades envolvidas.
 
A segunda via, que chamaremos de governação, é de competência exclusiva das administrações transitórias, únicos organismos dotados de poderes políticos reais, conforme os seus mandatos e condições do seu estabeleci­mento. Constituídos em situações extraordinárias, a sua tarefa de contrariar as decisões não conducentes a estabilização e a paz, exige que lhes sejam conferidos poderes extraordinários, maiores que os poderes normalmente atribuídos às instâncias governamentais nos países democráticos ocidentais.
 
Tanto a via governativa como a via educativa têm vantagens e defeitos para o objectivo de transformação da sociedade no sentido de eliminar as fontes de incompatibilidades e as causas de conflito entre as partes, e de estimular a democratização e o desenvolvimento.
 
A via educativa é lenta e não transforma obrigatoriamente a sociedade no sentido desejado, uma vez que as pessoas têm a liberdade e inteligência crítica na aprendizagem, podendo podem elas próprias transformar a matéria ensinada de forma criativa. Não obstante, a educação transforma a sociedade mais profundamente e pode dar melhores resultados a longo prazo.
 
A via governativa tem melhores resultados a curto prazo porque contra­riando decisões locais antidemocráticas e proclamando decisões democráticas atinge objectivos concretos. Não obstante, não é evidente de que forma pode modificar as convicções fundamentais das partes que podem apenas aceitar as regras do jogo sabendo que não poderão tomar certas decisões mas que encontrarão outros caminhos institucionalmente aceites para prosseguirem fundamentalmente os mesmos objectivos. Além disso, se falhar a fiscalização da actuação da administração transitória nessa área, são teoricamente possíveis abusos e decisões feitas pensando no próprio interesse institucional de sobrevivência da autoridade e não na democratização do povo administrado.
 
A tarefa das administrações transitórias exige fundos extraordinários para levar a cabo as suas actividades. Visto que as questões financeiras são sensíveis para todos os países membros das organizações internacionais, que nos foros multilaterais decidem sobre o financiamento das administrações transitórias, averiguase mais consensual atribuir poderes de acção do que recursos financeiros para o mesmo fim.
 
Sublinhamos que o nosso argumento não afirma de forma alguma que qualquer autoridade transitória mencionada por nós foi imposta a algum dos territórios mencionados ou que abusou dos poderes que lhe foram conferidos. Não se trata de nenhuma ocupação, apenas de mecanismos de ajuda à resolução de conflito, democratização e, recentemente, ao desenvolvimento económico, enquanto não há condições locais para prosseguir os mesmos objectivos.
 
Dito isso, voltamos à questão dos poderes extraordinários atribuídos às autoridades transitórias, ilustrandoas com alguns exemplos.
 
A UNTAES, administração transitória da ONU na República da Croácia (19961998), no território da Eslavónia Oriental, Baranja e Sirmio Ocidental, teve alguns poderes extraordinários de interferir no processo eleitoral, nas eleições autárquicas de 13 de Abril de 1997. Para assegurar a transparência e a boa condução das eleições o administrador transitório podia tomar medidas e decisões extraordinárias no próprio dia eleitoral, determinando a possibilidade de votar para certos cidadãos não registados e prolongando a duração do sufrágio por mais um ou dois dias13. Essas medidas foram introduzidas com o objectivo de melhorar o processo e conseguiramno, segundo consta do Relatório14 do SecretárioGeral das Nações Unidas, mas não deixaram de ser uma manifestação de poderes extraordinários, com possível influência no resultado das eleições, pelo qual ultrapassaram as competências atribuídas às comissões eleitorais e outros organismos encarregues da organização de eleições nos países democráticos.
 
Não é preciso perder muito tempo para demonstrar os poderes extraordinários da UNMIK que tem o poder judicial, executivo e legislativo no Kosovo, sem respeitar o princípio da separação de poderes.
 
Finalmente, o Alto Representante para a República BósniaHerzegovina tem o poder visível de demitir os políticos eleitos15, magistrados e directores das empresas estatais, se julgar que a sua actuação é contrária à tarefa da implementação do Acordo de Paz de Dayton. No ano 1998 foram demitidos 6 políticos, no ano 1999 - 32, no ano 2000 - 28, no ano 2001 - 14, no ano 2002 - 21, no ano 2003 - 7, no ano 2004 até ao dia 2 de Outubro - 616.
 
Não duvidamos minimamente das razões reais e objectivas que motivaram cada expulsão individual do cargo, constituindo um perigo para o processo de paz na Bósnia e Herzegovina. Porém, assim como no exemplo anterior, tratase de poderes maiores dos normalmente conferidos pela Constituição às instituições do estado democrático. Estamos perante a situação como se de repente um Presidente de um país europeu pudesse demitir qualquer político ou magistrado julgando que o seu comportamento é contrário às normas de democracia. Pelo contrário, os poderes extraordinários são limitados nas constituições democráticas, permitidos apenas no estado de emergência por um tempo determinado, ou conferem apenas o poder de dissolução de Parlamento nas condições estritas e determinadas pela lei fundamental, para evitar uma situação de arbitrariedade de longa duração.
 
Concordamos que a guerra representa uma situação de emergência e que a sua resolução requer as medidas de emergência, que por sua vez exigem os poderes extraordinários, maiores que democráticos.
 
O que não chegamos a compreender é uma certa falta de desenvolvimento de mecanismos de fiscalização e limitação do exercício desses poderes extraordinários, por parte dos foros multilaterais responsáveis pelo seu funcionamento. Os dirigentes dos territórios administrados por natureza não podem contrariar esse exercício, segundo os acordos que assumiram, e porque a sua intervenção seria vista como tentativa de oposição ao processo de democratização e uma revolta parcial e não objectiva a favor dos próprios interesses pessoais ou nacionais. Segundo G. Knaus e F. Martin (2003) o Alto Representante para a República BósniaHerzegovina “não é responsável perante nenhuma instituição eleita. Ele responde no encontro bianual dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros, o Conselho para a Implementação da Paz, do qual é presidente da mesa e cujo relatório normalmente redige”17. É interessante notar que foi precisamente o Conselho para a Implementação da Paz em Bonn de 199718 que aumentou os poderes do Alto Representante dandolhe a autorização de tomar medidas com efeito jurídico vinculativo na Bósnia e Herzegovina.
 
O nosso argumento não pretende demonstrar de forma alguma que o mecanismo da administração transitória não é adequado como método de resolução de conflito. Consideramos que tem as mesmas probabilidades de ser bem sucedido como qualquer outro meio utilizado para tentar resolver um determinado conflito ou crise política. A escolha do método influi no resultado, mas o exercício concreto do método escolhido determina se os objectivos serão atingidos ou não. Não invocamos a necessidade de abandonar o mecanismo das autoridades transitórias e deixar aos povos que se governem.
 
Na complexidade das relações internacionais a ausência de intervenção pode ser uma intervenção negativa ou um ideal impossível de atingir. Se não houvesse interferência na forma de autoridade transitória, haveria outras influências e exigências, das organizações internacionais e dos governos individuais com interesse em resolver os problemas da região, da forma que considerarem mais apropriada.
 
Apenas afirmamos que o mecanismo da administração transitória tem que ser aplicado com a plena consciência das dificuldades inerentes, sobretudo aquela de se tornar perene, devido à lentidão do processo da democratização da sociedade, ou de se tornar autoritário, por excessiva interferência no processo da decisão, com pouco poder dado as instituições locais, o que impede a criação da dinâmica local do desenvolvimento e afirma a dependência da presença internacional.
 
O processo de desenvolvimento social é sem dúvida complexo. A complexidade dificulta a previsão dos criadores das políticas públicas sobre os passos a seguir para atingir certos resultados. Às vezes há mais opções possíveis que estão igualmente em conformidade com o direito e com os princípios constitucionais e a escolha feita decorre das opções políticas e ideológicas dos decisores. Essa mesma perplexidade está em frente dos administradores transitórios e é natural que cada um deles enfrentado com a situação do território que administra chega à conclusão que poderia ter feito mais se tivesse tido mais tempo ou recursos financeiros19.
 
Da mesma forma, os objectivos da democratização e desenvolvimento económico, como factores que determinam a resolução do conflito, implicam um alargamento constante da área de actuação da autoridade transitória. Depois de aliviada a crise mais grave, a humanitária, actuase noutras áreas, como por exemplo na economia e na educação, combate ao crime económico e financeiro, áreas importantes para a vida quotidiana de um estado, que no entanto não estão tão evidentemente ligados com a resolução de conflito.
 
O problema reside igualmente no facto que no conteúdo concreto das determinadas políticas públicas, fora do âmbito do grande património jurídico europeu constituído das normas dos direitos humanos, do funcionamento de instituições democráticas e da supremacia do direito, há muito menos consenso nos caminhos a tomar, como o demonstra a variedade dos sistemas de educação e da segurança social dos países europeus. Da mesma maneira, depois de ter sido estabelecida a economia de mercado, os caminhos para conduzir a política económica bem sucedida podem variar entre os países democráticos.
 
Em 25 de Junho de 2004, o Tribunal Constitucional da República Bósnia e Herzegovina20, tomou a decisão que recusava uma proposta da Lei do Ensino Superior que não garantia expressamente o direito a cursos universitários em todas as três línguas dos povos constitutivos, considerando que isso limitava a igualdade de direito de uso de todas as línguas oficiais no país.
 
Nos primeiros tempos a Lei foi advogada pela comunidade internacional por causa das outras características e vantagens que daria aos estudantes bósnios com abertura de vários programas internacionais. O seu chumbo no Parlamento federal foi duramente criticado pela OSCE com afirmações que isso “trai os estudantes”21.
 
A Lei foi chumbada no Parlamento porque o clube dos deputados croatas assumiu a posição que essa Lei destruía os interesses vitais do povo croata porque, entre outros, não garantia que o povo croata, assim como os outros povos, terão no futuro pelo menos uma Universidade com a sua língua. Isso impediu a aprovação da lei, e de acordo com o sistema político do país, o assunto foi remetido ao Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional examinou o mérito e concluiu que a proposta da Lei prejudicava os interesses vitais de todos povos constitucionais e não apenas do povo croata porque não garantia a igualdade de uso de três línguas oficiais na Bósnia e Herzegovina. O Tribunal afastou ao mesmo tempo outras alegações de clube dos deputados croatas sobre a referida Lei como não destruidoras dos interesses vitais desse povo constitucional. O Tribunal fez a análise jurídica profissional da queixa, deu razão em parte a um povo, e procurou proteger o interesse de todos os povos constitucionais na decisão.
 
Curiosamente, após essa decisão, foi aceite que a proposta da Lei deveria ser alterada. Uma decisão local contrariou a atitude da OSCE, actor internacional por excelência na área, sobre a urgência de adoptar precisamente essa lei e progredir rapidamente com a política pública de educação, mas parece que não contrariou a implementação do Acordo de Paz de Dayton porque o Alto Representante até à data não tomou a decisão de introduzir essa Lei na Bósnia e Herzegovina.
 
A Bósnia e Herzegovina perdeu oportunidades de intercâmbio de estu­dantes com esse atraso na aprovação da lei, mas ganhou na capacidade de resolver os seus próprios problemas dentro do seu sistema. Essa decisão e a sua fundamentação mostram que as instituições bósnias começam a ganhar vontade e capacidade de decisão, cuja habitual falta representa a razão da manutenção da administração transitória, personificada no Alto Representante, naquele país.
 
Ultimamente a Bósnia e Herzegovina tem começado a receber mais apoios do Conselho da Europa em Estrasburgo, única organização internacional europeia que a admitiu nas suas fileiras. Em 24 de Abril de 2002 a Comissão de Veneza para a Democracia pelo Direito elaborou pareceres consultivos precisamente sobre as questões da educação22.
 
A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adoptou em 23 de Junho de 2004 a Resolução sobre o fortalecimento das instituições democráticas na Bósnia e Herzegovina, que contém o apelo às forças políticas do país para “aumentar os seus esforços para atingir o consenso político amplo a favor do estabelecimento, reforço e garantia do funcionamento eficiente das instituições de Estado”23. A mesma Resolução apela à comunidade internacional para “dar maior confiança aos líderes políticos da Bósnia e Herzegovina (..) e restringir qualquer intervenção directa aos casos de absoluta necessidade”24 e para “planear uma estratégia mais coerente e específica para a transferência das responsabilidades e a saída gradual do Alto Representante”25.
 
Um dia, quando as instituições bósnias começarem a tomar decisões, sempre de acordo com as exigências do Conselho da Europa e com o respeito de regras de democracia, direitos humanos e das minorias e em conformidade com o estado de direito, e quando a administração transitória reconhecer esse facto, terá que ser reconhecido o valor daquelas decisões que não correspondam plenamente às políticas públicas planeadas pela administração transitória. Talvez nesse ponto seja estabelecida a “normalidade institucional” que impede o avanço da República Bósnia e Herzegovina no processo da integração europeia, a não ser que se possa contemplar no projecto europeu a adesão de um país que sempre terá que ser corrigido por uma autoridade mais competente porque nunca possuirá a maturidade de decisão política.
 
Sintetizando, o presente artigo descreve alguns dos poderes extraordi­nários atribuídos às autoridades transitórias internacionais no período de pósconflito, sobretudo na Bósnia e Herzegovina e no Kosovo, com o objectivo de assegurar a resolução do conflito e prevenir o seu relapso.
 
A influência decisiva das autoridades transitórias para a democratização das sociedades após conflito, segundo as competências governativas que possuem, requer maior fiscalização do seu trabalho por parte da comunidade internacional, para assegurar o cumprimento dos objectivos assumidos.
 
 
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* Doutoranda em Ciências Políticas na Universidade Católica de Lisboa. Investigadora do Centro de Gestão e Resolução de Conflitos do Instituto Português da Conjuntura Estratégica.
 
1 The General Framework Agreement (Dayton Accords) disponível em http://www.nato.int/ifor/gfa/gfahome.htm, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
2 “The High Representative is the final authority in theater regarding interpretation of this Agreement on the civilian implementation of the peace settlement.” Annex 10 The General Framework Agreement (Dayton Accords) disponível em http://www.nato.int/ifor/gfa/gfahome.htm, última consulta em 17 de Janeiro de 2003, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
3 “(…) interim measures to take effect when parties are unable to reach agreement, which will remain in force until the Presidency or Council of Ministers has adopted a decision consistent with the Peace Agreement on the issue concerned; a. other measures to ensure implementation of the Peace Agreement throughout Bosnia and Herzegovina and its Entities, as well as the smooth running of the common institutions. Such measures may include actions against persons holding public office or officials who are absent from meetings without good cause or who are found by the High Representative to be in violation of legal commitments made under the Peace Agreement or the terms for its implementation” PIC Bonn Conclusions Bonn Peace Implementation Conference 1997: “Bosnia and Herzegovina 1998: SelfSustaining Structures”, Bonn 10th December XI (2) Office of the High Representative, at http://www.ohr.int/pic/default.asp?content_id=5182#11, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
 4 “The mission of the High Representative (who is also the European Union’s Special Representative) is to work with the people of BiH and the International Community to ensure that Bosnia and Herzegovina is a peaceful, viable state on course to European integration.” www.ohr.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
 5 “2003: Following substantial completion of the Road Map, work is underway on a Feasibility Study for the opening of negotiations on a Stabilisation and Association Agreement. “http://europa.eu.int/comm/external_relations/see/bosnie_herze/index.htm, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
 6 “2000: Publication of the EU Road Map. This document set out 18 essential steps to be undertaken by BiH before work on a Feasibility Study for the opening of negotiations on a Stabilisation and Association Agreement could be begun”. http://europa.eu.int/comm/external_relations/see/bosnie_herze/index.htm, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
 7 “The High Representative shall (…)Report periodically on progress in implementation of the peace agreement concerning the tasks set forth in this Agreement to the United Nations, European Union, United States, Russian Federation, and other interested governments, parties, and organizations.” Annex 10 The General Framework Agreement (Dayton Accords) disponível em http://www.nato.int/ifor/gfa/gfahome.htm, última consulta em 17 de Janeiro de 2003, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
 8 S/RES/1244 Resolution 1244 United Nations Security Council 10 June 1999 available at http://odsddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/172/89/PDF/N9917289.pdf?OpenElement.
 9 Segundo a classificação do projecto de investigação sobre as autoridades transitórias da International Peace Academy disponível em http://www.ipacademy.org/Programs/Research/ProgReseTransAdmin_body.htm, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
10 “The Standards for Kosovo document describes this objective in detail. The Standards for Kosovo remains the target for Kosovo. Progress against this target will be the basis for any review in mid2005 to begin consideration of Kosovo’s final status” Kosovo Standards Implementation Plan, 31st March 2004, UNMIK, http://www.unmikonline.org/pub/misc/ksip_eng.pdf, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
11 Para um relato fidedigno sobre a desintegração da antiga Jugoslávia e dos relacionamentos históricos fundamentais entre os seus povos sugerimos o livro de Paul Garde “Vie et mort de la Yougoslavie” ed. Fayard 1992.
12 (…) conflict resolution, refers to removing the causes as well as the manifestations of a conflict between parties and eliminating the sources of incompatibility in their positions.” Zartman I. William and Rasmussen, J. Lewis, Editors: Peacemaking In International Conflicts, Methods & Techniques, Institute of Peace Press, Washington DC, 1997 p. 11.
13 “UNTAES extended voting for a second and in some places a third day. The authorised permission for people to vote if they could present a valid Croatian ID card alleviated to some extent the problems with the voter registers” Election of Representatives to the Chamber of Counties of the Parliament and of Representatives of Local Government and SelfGovernment Bodies of the Republic of Croatia, OSCE/ODIHR REPORT 13 April p. 1997 p. 3 http://www.osce.org/documents/odihr/1997/04/1375_en.pdf, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
14 “The official result of the elections were announced on 30 April 1997 and confirmed by the Electoral Appeals Commission, which reported that most complaints received were addressed by the special measures adopted by the Transitional Administrator on election day, or dismissed after due consideration.” S/1997/487 Report of a SecretaryGeneral on the Situation in Croatia United Nations Security Council 23 June1997 p. 2.
15 Por exemplo: OHR Decision to remove Mr. Dragomir Vasic from his position as member of the Republika Srpska National Assembly and as councillor in the Zvornik Municipal Assembly Removals and Suspensions from Office, July 09, 2003, disponível em www.ohr.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
16 Dados obtidos na página da internet oficial do Gabinete do Alto Representante para a República Bósnia e Herzegovina em www.ohr.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
17 “In fact, the OHR is not accountable to any elected institution at all. It answers to a biennial gathering of foreign ministries, the Peace Implementation Council (PIC), which it chairs and whose report it normally drafts” p. 61 Knaus, Gerald and Martin, Felix. Travails of the European Raj. Lessons from Bosnia and Herzegovina. Journal of Democracy 14, 3 (Washington, July 2003): 6074. http://www.journalofdemocracy.org/articles/KnausandMartin.pdf.
18 PIC Bonn Conclusions Bonn Peace Implementation Conference 1997: “Bosnia and Herzegovina 1998: SelfSustaining Structures”, Bonn 10th December XI (2) Office of the High Representative, at http://www.ohr.int/pic/default.asp?content_id=5182#11, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
19 “As many participants of the conference attested, past transitional administrations have suffered from a chronic lack of resources. It is clear that running territories is a costly affair, even when they are as small as Kosovo or East Timor. Many panelists therefore advocated an increase in resources, with one diplomat suggesting a yearly overall budget of around $10 billion as adequate. Indeed, in order to ensure its own credibility, the UN should be wary of taking over transitional administration missions without being assured the necessary resources.” You, the People: Transitional Administration, StateBuilding and the United Nations, by Sebastian von Ensiedel, Executive Summary of the Conference Report, International Peace Academy, New York, 2003.
20 U 08/04 Decisão do Tribunal Constitucional da República Bósnia e Herzegovina, 25 de Junho de 2004, disponível em http://www.ustavnisud.ba/?lang=hr&page=decisions/byyear/2004, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
21 Failure to pass the Higher Education Law betrays students, OSCE Press Release by Elmira Bayrasli, OSCE Mission to Bosnia and Herzegovina, Sarajevo 11 May 2004.
22 CDLAD(2003)017 Opinion on the Transfer of Responsibility in the field of Higher Education within the Federation of Bosnia and Herzegovina adopted by the Venice Commission at its 56th Plenary Session (Venice, 1718 October 2003).
23 “12. The Assembly calls on: i. the political forces of Bosnia and Herzegovina to a. increase their efforts to achieve a broad political consensus in favour of establishing, reinforcing and ensuring the efficient functioning of state institutions; (…)” Council of Europe Parliamentary Assembly Resolution 1384 (2004) 23 June 2004 disponível em www.coe.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
24 “The Assembly calls on: (…) ii. the international community to: a. place greater trust in the political leaders of Bosnia and Herzegovina while continuing to support the reforms, and restrict any direct intervention to cases of absolute necessity” Council of Europe Parliamentary Assembly Resolution 1384 (2004) 23 June 2004 disponível em www.coe.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
25 “The Assembly calls on (...) ii. the international community to (…) envisage a more coherent and specific strategy for transferring responsibilities and gradually withdrawing the OHR” Council of Europe Parliamentary Assembly Resolution 1384 (2004) 23 June 2004 disponível em www.coe.int, última consulta em 12 de Novembro de 2004.
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2008-11-26
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia