Nº 2479/2480 - Agosto/Setembro 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Nem Guerra nem Paz: Uma Pré-Constituição da Governança Mundial
Professor Doutor
Adriano José Alves Moreira
Primeiro Painel
 
 
 
Moderador: Tenente General Piloto Aviador António de Jesus Bispo
 
 
Primeira Comunicação
 
Nem Guerra nem Paz: Uma Pré Constituição da Governança Mundial
 
 
Professor Doutor Adriano Moreira*
 
 
 
 
A tentativa de racionalizar aquilo que à luz das concepções clássicas são desvios dos princípios, e em face das exigências da globalização são perplexidades, alvitra um conjunto de conceitos que mais disfarçam do que ajudam na percepção da realidade caótica em que vivemos.
 
Os textos de todas as inspirações vão uniformizando as referências, e falam concordantemente de conflitos de culturas, de fim do trabalho, de fim do Estado, de ultrapassagem do político, de reformulação das identidades, mas também da ameaça islamita, da proliferação dos armamentos desde as armas ligeiras às armas de destruição maciça, das guerras sem fim, e, finalmente, da guerra tecnológica ou guerra de laboratório.
 
Talvez a primeira evidência seja a de que a visão das guerras sem fim acompanha, com base nos factos, todas as teorizações, e nem sempre com referência à utopia das guerras tecnológicas. Nas antigas colónias portuguesas de África, a guerra interna durou mais longamente do que a guerra colonial: em Angola esta durou treze anos, a civil durou dezoito; em Moçambique, depois dos treze anos de guerra colonial, a guerra civil durou uns quinze; no Zaire, na Serra Leoa, na Libéria, no Congo Kinshasa, no Sudão, no Próximo Oriente, nos territórios numerosos onde vigoram regimes sem lei, a guerra parece um modo de vida e não uma violação da vida pacífica.
 
Depois da queda do Muro de Berlim em 1989, o modelo observante da democracia, dos direitos do homem, e da economia de mercado, foi a oferta, ainda e de novo ocidental, para redefinir a governança mundial enquadrada por uma legalidade consentida.
 
Ao mesmo tempo, os ocidentais das sociedades de consumo, afluentes, unidimensionais, com a liderança dos EUA transferida dos limitados horizontes da NATO para as proclamadas responsabilidades de nação indispensável à gestão do globalismo, avançaram na via de transformar a guerra clássica na utopia da guerra tecnológica levada à realidade dos combates.
 
Tratou-se, logo a partir do início da guerra fria (1948), de organizar forças de laboratório, as quais eliminariam as perdas humanas no seu campo, com a reserva de aumentar exponencialmente as perdas dos adversários. A substituição dos homens pela máquina ganhou avanços técnicos e tácticos evidentes, fez das armas aéreas um instrumento fundamental, mas as necessi­dades de ocupar os territórios deu alguma razão às reservas com que os generais de infantaria e os almirantes viram desenvolver a perspectiva. O conflito do Kosovo foi uma chamada ao realismo, e a questão do Iraque em curso tem sido uma pesada demonstração da necessidade de regressar à realidade, de não ser dispensável a análise histórica e casuística das situações, com a teorização do direito-dever de ingerência a sublinhar que a interposição no terreno, com os riscos e perdas inevitáveis, não se tornou obsoleta.
 
Ao mesmo tempo que estas teorizações dos responsáveis pela estratégia das sociedades da cidade planetária do norte do mundo, pareciam seguros de levar a guerra para o plano da guerra cirúrgica, de facto remeteram para a sua economia de mercado a lucrativa actividade que se traduz no comércio das armas ligeiras, também nas transferências das tecnologias que permitem a construção das armas de destruição maciça, e finalmente um risco, função da lei da reflexividade, isto é, que os fracos possam assumir uma estratégia de retaliação: nesta data, e depois dos enganos do Iraque, o Irão parece o desafio mais determinante das inquietações.
 
São por tudo altamente desafiantes os riscos da proliferação das armas nucleares, das armas químicas, e das armas biológicas, sobretudo evidentes e conhecidos pela opinião pública mundial depois da guerra do Golfo de 1991, não obstante o Tratado de não-proliferação das armas nucleares (1970) ter passado de cento e quarenta signatários para cento e oitenta aderentes até ao fim do século XX.
 
Mas a disseminação das armas ligeiras, que as sociedades ricas produzem e vendem, continua a agravar conflitos que em alguns casos chegam ao genocídio, e o progresso da paz resumiu-se praticamente ao tratado de Ottawa de 1997, sobre as minas, sem colocar um ponto final no comércio de armas ligeiras. As fotografias que divulgam a presença de homens armados nos lugares desses desastres humanos, também revelam que usam armas que a sua comunidade não produz mas paga, enquanto a miséria humana aumenta ao ritmo que os relatórios do PNUD assinalam anualmente.
 
O desafio do fraco ao forte, de que o ataque às Torres Gémeas se tornou o símbolo, para além de aumentar o alarme do crescente poderio de uma internacional islâmica contra os ocidentais, não impede lutas internas em que se destacam o Hamas palestiniano, o Hezbollah libanês, o FIS da Argélia, o Partido da Reforma do Yémen, a Confraria dos Irmãos Muçulmanos do Egipto. Sobretudo, a liderança de Oussama Ben Laden, organizando uma rede de células autónomas, definindo a matança de inocentes como o instrumento indispensável para destruir a sociedade civil de confiança, e a relação de confiança dessa sociedade com os governos, colocou em causa a eficácia defensiva das grandes potências tecnocráticas, fez crescer o receio do acesso generalizado às armas de destruição maciça. Também acentuou as dependências das matérias primas, das energias não-renováveis, e até da mão-de-obra, dos Estados que foram os gestores do extinto Império Euromundista, fazendo nascer no horizonte próximo a eventual desesperada necessidade de aquelas potências recorrerem à guerra para, como que reeditando os discursos que acompanharam a Conferência de Berlim de 1885, e a marcha dos europeus para África, de novo conseguirem o domínio desses recursos.
 
Nesta situação da verdadeira anarquia que sucedeu à destruição da ordem mundial, nem sequer da que foi suposta e proposta pelos fundadores da ONU, mas de que por meio século esteve a cargo dos Pactos Militares - NATO e VARSÓVIA - aparecem ainda assim alguns sinais promissores.
 
O que nos pareceu mais inovador foi a criação do Tribunal Penal Internacional. Com estatuto aprovado em 1998, compromisso entre as soberanias com vocação unilateralista e os comunitaristas, abandonou o modelo dos tribunais de vencedores, como foram Nuremberg e Tóquio, para dar um sinal de reorganização da governança mundial começando, com originalidade histórica, pelo poder judicial e não por um executivo de triunfadores. Os responsáveis por genocídios, crimes de guerra, crimes contra a paz ou contra a humanidade (tortura, desaparecimentos e eliminações, deportações de povos), deixam de estar submetidos e protegidos pelas suas jurisdições esta­duais. O Tribunal Penal Internacional para a Jugoslávia (1993), e o Tribunal Penal para o Ruanda (1994) tinham sido criações precursoras devidas ao Conselho de Segurança. Foi talvez a única luz ao fundo do túnel no trajecto para o século XXI.
 
É neste panorama complexo, perturbador, de percepção sempre incom­pleta, e de prospectiva marcada pela incerteza que hoje desenha a moldura de toda a vida social, que o tipo normativo do soldado, a ética das Forças Armadas, se inscrevem desafiantes num quadro de averiguações que todas parecem convergir para a definição razoável de uma pré constituição da governança mundial.
 
Este tema requer uma tentativa de sistematização das várias formas que as forças armadas, isto é, legitimadas e destinadas a usar a força para impor comportamentos e conseguir objectivos, ou não legitimadas, revelam: a guerrilha, que não subscreve as leis internacionais da guerra, e em regra procura evitar a confrontação quando busca causar perdas humanas e materiais; o exército de conscritos que chama todos os cidadãos à prestação do serviço militar ou por tempo limitado em tempo de paz, ou ilimitado em tempo de guerra; o exército permanente, com o contingente sempre pronto para a guerra; o exército profissional, isto é, o quadro permanente dedicado às forças armadas como a uma profissão de fé, no sentido de comunhão de valores que obriga à fidelidade em relação à bandeira, tradicionalmente símbolo do poder do Estado e da identidade nacional, apoiando os objectivos externos com a disciplina da obediência. A regra do Estado de Direito foi a de possuir um exército de conscritos enquadrado pelo quadro permanente, partilhando uma atitude cultural em relação ao poder político, à ordem e disciplina sociais, aos valores do Estado e da comunidade nacional.
 
Esta definição foi, certificada em Valmy pela anotação de Goethe, a realidade social e política que respondeu, entre os ocidentais, à exigência da soberania, e à necessidade de eventualmente se reformular segundo as mudanças relevantes do poder político.
 
No quadro do fenómeno da globalização, não esquecendo que o processo inclui as duas guerras mundiais, este tipo normativo de soldado foi objecto de alterações radicais, designadamente porque alguns dos objectivos de referência, como o sagrado das fronteiras nacionais, a soberania renascentista, os objectivos dos grandes espaços e das grandes alianças, reclamaram articu­lação, e o dever de obediência foi recebendo condicionamentos novos.
 
Uma das condicionantes traduziu-se em reavaliar os padrões do desempenho militar em face da mudança totalitária da ideologia política do Estado. A guerra fortemente ideológica, perdida pelo Estado nazi, colocou os generais vencidos da Alemanha, e do seu aliado Japão, perante a culpa pelos crimes cometidos pelos seus exércitos, sem poderem abrigar-se no dever de obediência aos respectivos governos: a obediência crítica passou a ser aquilo que os juízes da vitória inquiriam, e a evolução posterior, até ao Tribunal Penal Internacional, consagrou este novo conceito.
 
Parece que o velho conceito da cadeia de comando, a partir daqui, tem de ser reformulado. Mas surge neste processo a evidência de que, sem intenção dos novos poderes políticos, declarada e assumida, combatentes que obedeceram a regimes derrubados internamente, por exemplo empenhados nas guerras coloniais, foram objecto de esquecimento, discriminação, silenciamento, como que reprovados pelo dever cumprido, por vezes levados à indisciplina e condenados e exautorados, como aconteceu a alguns dos generais mais condecorados da França que não se resignaram à súbita política gaullista de descolonização. Uma circunstância diferente da que se traduz em chamar à responsabilidade criminal os chefes militares que assumem o poder ditatorial em vários países, designadamente na América Latina, violando as leis internas e o direito internacional, para conseguirem a aquisição, exercício e manutenção do poder político.
 
A ética da mudança exige uma casuística que distinga as situações à luz da justiça e da moral. De facto, se o conceito de obediência crítica encaminha para a condenação das chefias responsáveis pela execução de crimes de guerra, exigindo uma reformulação da natureza da obediência da cadeia de comando desde o Topo, as circunstâncias são inassimiláveis quando os que se bateram o fizeram pela indescutida lealdade à Pátria, à Nação, aos valores que integram aquelas referências: não podem, não devem, ser esquecidas, ainda quando a vitória não recompensou o sacrifício.
 
Mas também a eliminação do serviço militar obrigatório tem como consequência a reformulação, talvez por fazer, da cadeia de comando. Prestar esse serviço militar obrigatório por dever cívico, ou alimentar as fileiras com um modelo contratual, origina tecidos culturais diferenciados. O contrato é um modelo que fundamenta derivas sindicalistas, que podem semanticamente chamar se modelos de associação, mas que inevitavelmente afectam a relação do contingente com o quadro permanente, este obrigado à ética da função, já corrigida pelo critério da obediência responsável.
 
Não faltam incidentes a evidenciar que o processo de reformulação do tecido cultural ainda espera consolidação, com as exigências mais severas a recair sobre o quadro permanente. Em todo o caso com uma perda de função, resultante da extinção do serviço militar obrigatório, que era a função da integração social, aliada do sistema educativo. Neste tempo de crescimento acelerado do pluralismo étnico e cultural das sociedades europeias, que deixaram descontrolar as migrações, essa função, hoje politicamente irrecuperável, poderia certamente contribuir para evitar a crescente conflitualidade de uma composição social que lembra a época dos Reis das Três Religiões, em circunstâncias que agravam severamente as discriminações e a estabilidade da sociedade de confiança de que depende em muito a credibilidade do Estado.
 
Finalmente, a relação de pertença do Estado a organizações supranacionais, também exige alterações no tecido ético das forças armadas.
 
Nas alianças, como se passou durante meio século da NATO, a fidelidade aos objectivos implica alguma articulação de valores que o comando orienta, enquanto a contingência da aliança se mantém.
 
Mas nas intervenções em grandes espaços institucionalizados, como é o caso da União Europeia, a realidade das duas fidelidades está no horizonte, aproxima-se com o pilar da defesa e segurança comum do Tratado chamado não constitucional de Lisboa, e exige coordenação com a obediência crítica que decorre da ética internacional.
 
Alguns dos conflitos em curso, designadamente no Iraque, evidenciam uma saída inquietante para estas exigências, que é o regresso aos cães de guerra, assalariados de empresas privadas que trazem aos governos a vantagem de não poluírem as estatísticas das mortes que desmentem o conceito da guerra cirúrgica. Todavia, os valores ainda inscritos na Carta da ONU, a pregação da UNESCO no sentido de que a guerra começa no coração dos homens, de que o ensino para o exercício da cidadania do Milénio é inadiável, o facto de a integração em espaços como o da União Europeia manter todavia o juramento militar às bandeiras nacionais, tudo é exigente no sentido de salvaguardar, nesta viragem estrutural, a dignidade e capacidade das Forças Armadas e sobretudo do seu corpo permanente, sem as quais a Europa não organizará a força tranquila que lhe restituirá a autoridade necessária para assegurar a integridade da sua concepção do mundo e da vida, e a harmonia do pluralismo que a habita.
 
Sem uma definição clara dos conceitos de governo, apoiados num conceito estratégico nacional assumido com lúcida atenção às mudanças do tempo, o exercício exigido ao corpo permanente vem seguramente rodeado de uma tensão não aceitável, porque a falta dessa referência torna mais problemática e inquietante a capacidade de os responsáveis militares conseguirem harmonizar as redefinições do tecido cultural do contingente com os interesses e valores permanentes da comunidade obrigada à reestruturação do Estado.
 
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2009-01-16
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Professor Doutor

Adriano José Alves Moreira

Nasceu em Grijó, Macedo de Cavaleiros, a 6 de Setembro de 1922.

Doutor pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, do qual foi Professor Catedrático, Diretor e Presidente do Conselho Científico.

Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madrid.

Professor da Universidade Católica Portuguesa.

Professor do Instituto Superior Naval de Guerra – Lisboa.

Professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Professor da Universidade Aberta.

Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa.

Doutor Honoris Causa pelas Universidades da Beira Interior, Aberta, Manaus, S. Paulo, Bahía, Brasília, Rio de Janeiro, do Recife, e de S. Vicente de Cabo Verde.

Professor Honorário da Universidade de Santa Maria – Brasil.

Curador da Univer

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by COM Armando Dias Correia