1. A permanência do Estado-nação
A realidade política fundamental tem sido e continua a ser o Estado-nação. E quer se queira quer não, é a unidade política à qual os cidadãos se sentem verdadeiramente ligados e da qual esperam protecção e zelo pelo seu bem-estar. É a única unidade soberana em que pode existir uma democracia não falsificada.
Esta é realidade e, no meu modo de ver, a realidade coincide com o que considero ser desejável, principalmente no que se refere a Portugal, uma vez que a diferenciação da nação portuguesa veio a par com a criação de um estado independente e Nação e Estado se reforçaram mutuamente,
Porém, o Estado-nação é actualmente objecto de dois tipos de ataque, diferentes mas convergentes. Por um lado, ao nível ideológico, as teorias individualistas do Estado Mínimo, como as de Nozick (1974) e as concepções económicas ligadas ao neoliberalismo têm cooperado para, sob uma aparência, por vezes, pseudo-científica desacreditarem o Estado como suposto inimigo da liberdade.
Por outro lado, as teorias cosmopolitas adeptas de um super estado universal têm - apesar de tudo com maior, ainda que insuficiente fundamento - chamado a atenção para uma suposta obsolescência do Estado-nação face aos movimentos globalizadores.
Que podemos tirar de positivo deste dois tipos de críticas e ataques ao Estado-nação?
Em minha opinião, de forma nenhuma se pode concluir que o Estado se deva reduzir a um Estado mínimo ou que ele já não tenha cabimento num mundo globalizado. Mas, sim, que o Estado deve rever as suas funções e que, dado o aprofundamento da globalização deve encontrar novas formas de cooperação, de maneira a não defraudar as expectativas dos cidadãos que, como disse acima, nele confiam. É este aspecto que vou abordar, excluindo portanto o primeiro tipo de problemas, ou seja os das funções do Estado.
2. Estado-nação e globalização. A regra de ouro
O avanço da globalização, entendida como um aumento da interdependência das diversas regiões do Globo do ponto de vista económico-financeiro, ambiental, informativo, etc, exige dos estados uma maior cooperação e, em certos domínios auto-limitação, consentida e racional, da sua própria soberania. Falo de auto limitação e não partilha, uma vez que a soberania pode limitar se mas não partilhar-se.
Para vermos como e com que limites deve ser feita essa limitação, pode ser útil uma distinção que introduzi há já alguns anos em Amaral (2002).
Essa distinção tem a ver com a ambiguidade do conceito de interesses comuns dos estados. Podemos considerar que interesses comuns sejam interesses que resultam da vida de relação entre estados, tais como a segurança internacional, a repartição dos encargos no combate, aquecimento da atmosfera, o respeito pelas normas do comércio, etc. A este tipo de interesses damos o nome de interesses comuns colectivos. Uma das suas expressões mais frequentes tem a ver com a necessidade de evitar que um Estado, pela sua acção ou omissão, prejudique indevidamente os outros.
Mas podemos encontrar um outro significado para “interesses comuns”. Podemos considerar que nesta segunda acepção os interesses comuns sejam aqueles que existem em todos ou quase todos os estados, mas que não resultam da vida de relação entre eles. Se houvesse apenas um estado no mundo eles continuariam a existir, como o desenvolvimento económico, o progresso educativo, etc.
Feita esta distinção que, como sempre nas ciências sociais, é algo difusa mas nem por isso menos útil, podemos compreender melhor um dos efeitos da globalização, que é o de, ao aumentar a interdependência, transformar interesses comuns individuais em colectivos.
Dentro deste contexto, podemos enunciar a regra de ouro da adaptação dos estados à globalização. E essa regra é a seguinte: os estados devem aceitar a limitação da sua soberania no que respeita à gestão dos interesses comuns colectivos, a qual deve ter uma forte componente de gestão supranacional.
Por exemplo, na medida em que um país, pelas emissões de CO2 que provoca, está a prejudicar também os outros países e não apenas o seu próprio ambiente, é evidente que interesses ambientais deste tipo devem ter uma gestão supranacional ou de forte componente supranacional que imponha deveres efectivamente obrigatórios para todos.
Claro que nos colocamos, nesta análise, no domínio do dever-ser. Se, na realidade, os estados mais poderosos aceitam e de que forma o aceitam este tipo de limitações é outra questão que aqui não abordaremos. Todos sabemos como, infelizmente, a História mostra muito mais o direito da força em vez da força do Direito. Mas não devemos esquecer, apesar de tudo, que, na actualidade e para estes efeitos, os estados pequenos dispõem de importantes aliados, que são as opiniões públicas dos estados mais poderosos.
Já quanto aos interesses comuns individuais, estes devem ser prosseguidos por cada país individualmente e, quando se justifique, através de cooperação inter governamental de carácter igualitário entre países.
Olhemos agora, com esta grelha de análise, para o caso europeu.
3. O caso europeu. Tratado Constitucional e Tratado de Lisboa
Muitas das dificuldades de acordo político que hoje, a nível europeu, se verificam, resultam, em minha opinião, duma confusão que se estabeleceu desde a aprovação do Tratado de Maastricht (aprovado em 1991, em vigor desde 1992).
Foi com efeito a partir daí que ficou mais clara a tentativa de criar uma União Europeia simultaneamente como uma organização de estados e de povos.
Discordo em absoluto deste duplo carácter a atribuir à União. A União Europeia deve ser, como fundamentalmente era, antes de 1991, a CEE, uma organização de estados que cooperam livremente para atingir certos fins. Uns, que correspondem a interesses comuns colectivos e que devem ser geridos por organizações supranacionais (caso da Comissão) e outros que justificam a cooperação intergovernamental, realizada através da acção do Conselho.
Considerar, também, a União como uma união de povos é um erro. Não existe um povo europeu que seja uma resultante dos povos nacionais e não é possível uma adesão afectiva simultânea dos cidadãos ao seu próprio estado e a um mítico super-estado europeu correspondente à união de povos. Ninguém aceita, a nível de cada um dos estados membros, que os interesses do seu próprio Estado sejam preteridos para beneficiar o conjunto da União. Daí as frequentes queixas dos federalistas europeus em relação ao que chamam os “egoísmos nacionais”.
Esta confusão tem levado, crescentemente, a União a ocupar-se de interesses comuns individuais, como se fossem colectivos, sem qualquer justificação racional e através de tentativas como o defunto Tratado Constitucional e a sua cópia, o moribundo Tratado Reformador, de abrir caminho para a transformação da União, a prazo, num super-estado europeu.
O caso da moeda única, instituição supranacional, mas que não corresponde a nenhum interesse comum colectivo e não tem qualquer justificação económica é o exemplo mais acabado (e que estamos agora a pagar bem caro) de tentativa de criar impulsos conducentes à criação de um super-estado europeu.
É também o exemplo mais acabado de aliança que acima referi entre as doutrinas neoliberais - que influenciaram decisivamente as instituições da moeda única - e o federalismo europeu, ou seja de aliança de forças que combatem o Estado nação (Amaral 2008).
Enquanto se não desfizer esta confusão intencionalmente criada pelas correntes federalistas sobre o carácter da União, a instabilidade será a regra e cada vez será pior a adaptação dos países europeus à globalização (como aliás se está agora a constatar).
A União actual e a que está prevista no Tratado de Lisboa constituem, efectivamente, uma péssima resposta da Europa à globalização.
Não há maior erro que pensar que os estados europeus, para melhor se adaptarem à globalização, devem perder a sua autonomia e diluir-se num super estado europeu, como querem as doutrinas federalistas.
Se tal viesse a suceder, seria, a meu ver o fim da Europa como entidade geográfica abrangendo culturas e economias de relevância mundial e - não há que negá lo - com certas características de identidade própria.
Para se adaptarem à globalização, os países europeus devem manter a União como uma organização de estados, acabando com a intervenção excessiva, que já hoje é uma realidade indesmentível, dos órgãos como a Comissão ou Parlamento Europeu (órgão que, em rigor, considero ser inútil e que é apenas uma cópia dos parlamentos nacionais, com a finalidade de dar carácter mais estatal à União) e limitando-os à gestão dos interesses comuns colectivos. Deixando, assim, a maior margem de manobra e a maior flexibilidade possível aos estados membros para prosseguirem as suas políticas de adaptação à globalização.
Uma organização rígida e centralista como já é a União - e na qual o chamado princípio da subsidiariedade é mais um apoio ao centralismo do que uma defesa contra este6 - e como se quer tornar ainda mais com o Tratado de Lisboa não dará qualquer hipótese de uma adaptação bem sucedida à globalização. Veja-se, repete-se, o que está a suceder com a imposição da política monetária única na zona do euro.
A adaptação à globalização faz-se com estados-nação fortes, mas cooperantes. Não com estados transformados em regiões (pouco) autónomas de um pseudo super-estado europeu, que a realizar-se seria uma união de fraquezas.
O que significa que devemos enterrar definitivamente o Tratado de Lisboa (cujo nome, infelizmente, não honra a nossa capital) e devemos reformar verdadeiramente a União, dentro dos sãos princípios que a deveriam caracterizar como uma organização de estados que, sem abdicarem da sua autonomia; cooperam livremente para gerir certos interesses comuns colectivos e para potenciar os seus interesses comuns individuais.
Se o fizermos ficaremos, provavelmente surpreendidos com o grau de cooperação que conseguiremos na Europa, a contrastar com as desconfianças das populações e as angústias metafísicas dos aparelhos político-burocráticos que caracterizam o momento actual do nosso continente.
REFERÊNCIAS
Amaral, João Ferreira do (2002); Contra o Centralismo Europeu. Grifo.
“ “ “ (2006); União Europeia: o Pós federalismo. Boletim de Ciências Económicas. Faculdade de Direito de Coimbra.
Amaral, João Ferreira do (2008); O Euro e a Economia Portuguesa. Em A Europa e os desafios do século XXI. Paulo de Pitta e Cunha e Luís Morais (org.). Almedina.
Nozick, Robert (1974); Anarchy, State and Utopia. Basic Books.
6- Vide Amaral 2006