Convidado a falar sobre a guerra do futuro e as suas implicações para a Estratégia Militar, começo por definir o conteúdo da minha exposição que, por razões de tempo, terá de abordar sucintamente o que as correntes actuais do pensamento elaboram sobre a guerra do futuro, nas suas incertezas e riscos, para dedicar um pouco mais de tempo aos desafios que se colocam à força militar organizada para combater nessa guerra.
Apesar de hoje ser politicamente correcto incluir a guerra no contexto mais amplo do conflito, ela será sempre, como a caracterizou o Padre António Vieira, aquele monstro que só de sangue se alimenta ou o acto de violência destinado a forçar o adversário a submeter se à nossa vontade, como a definiu Clausewitz. Quanto à sua natureza, as Ordenações Afonsinas, a primeira compilação em Portugal sobre as coisas da guerra, datada de meados do século XV, classificava as em justas, injustas e civis. Hoje em dia admite-se que no espectro da guerra se incluem guerras internacionais (com formas que passam pela guerra nuclear, a guerra em larga escala num Teatro de Operações, contingências de menor escala, operações de apoio e estabilização) e guerras internas (com formas que passam pelas insurreições, subversões e guerras civis). Também se admitem como contingências para a aplicação da força militar, e seguindo o pensamento da comunidade internacional materializado nas Nações Unidas, “outras operações para além da guerra”, onde se incluem as acções humanitárias ao abrigo de um dever de ajuda que por vezes colide com o direito de não ingerência.
No início da década de 90 do século passado, coincidindo com o que se costuma designar por fim da primeira guerra fria, estabeleceu-se um debate ainda não terminado sobre a natureza da guerra do futuro que se viu alimentado por fortes argumentos baseados nas denominadas novas ameaças, onde o terrorismo e os seus efeitos globais assumem preocupação dominante. Seguindo o modelo histórico sobre a natureza da guerra noutros períodos da humanidade, onde foram marcantes as guerras com predomínio de massas de combatentes, da manobra terrestre ou do poder de fogo, fala-se de guerras da quarta geração ou da idade da informação, cuja natureza terá a tendência à insurreição generalizada, assumindo em muitos casos a forma de subversão. Alguns autores falam da transformação da guerra, argumentando que o seu modelo clássico, condicionado pelas denominadas trindades de Clausewitz (ambiente de hostilidade, acaso e incerteza e a sua utilização para atingir uma finalidade, numa perspectiva, ou população, força militar e governo, sob outra perspectiva) perderam actualidade. Os racionais a favor desta corrente de pensamento encontram fortes apoios em factos: as guerras entre estados tornaram-se raras, os estados perderam o monopólio da força armada, a violência tende a afectar mais populações do que combatentes, as ameaças assumem um carácter global afectando a segurança, tornando frequentes as acções armadas de segurança e raras as acções de combate, os conflitos violentos que vão proliferando são, na maioria das vezes, considerados como assimétricos dada a desigualdade entre os meios em oposição. Estadistas e militares têm falado de novas formas de conflitos e de novas estratégias militares que vão baptizando de pós-clausewitzianas.
A guerra na sua concepção clássica tornou-se improvável e parece que perdeu a sua finalidade como instrumento para forçar um adversário a submeter-se a uma vontade, como o evidenciam alguns acontecimentos em curso na cena internacional. Estas tendências, onde sobressaem, por um lado, a crescente proliferação de ameaças e conflitos que afectam a segurança global e, por outro lado, a improbabilidade de guerra entendida no seu sentido clássico, têm conduzido estadistas e militares a privilegiarem a utilização das forças armadas dos estados em operações de segurança armadas afectando as suas capacidades para as acções de combate. As Nações Unidas têm recorrido crescentemente à presença da força militar para acções de apoio à paz global e os estados têm aumentado progressivamente as suas forças de segurança, permitindo a proliferação de empresas privadas que se encarregam dessa missão, medidas acompanhadas pela proliferação e diversificação de meios de fogo à sua disposição mais apropriados a operações de combate do que a acções de segurança.
A guerra, qualquer que seja a forma que venha a tomar no futuro, representará pelos seus efeitos o limite da segurança conseguida. Os riscos que as suas várias formas podem representar avaliam-se pela probabilidade de ocorrência e pelos efeitos produzidos.
Contingências de pequena escala e guerras de Teatro são situações consideradas de probabilidade média de ocorrência, enquanto a guerra nuclear se considera improvável até ela acontecer. Os riscos e incertezas a enfrentar pelos decisores no emprego da força militar nestas situações obrigam a tentar diminuí los aumentando as capacidades militares da força e a sua preparação e a ter a percepção de que o opositor pode ser uma força militar fora do controlo de um estado. Situações que alteram o que se considera serem as leis da guerra, acordadas em Convenções internacionais, visando em particular o direito da guerra e o estatuto de combatente.
O sucesso na guerra, perdendo progressivamente a sua relação com vitória, avaliava-se pela forma como se tinham atingido os objectivos pretendidos. Hoje, a essa avaliação, juntam se mais dois factores: a limitação de baixas conseguida e os danos colaterais evitados.
Admitindo os argumentos de alguns autores que consideram como mais provável, num tempo que se pode estender até à segunda década deste milénio, a continuação de um ambiente estratégico onde vão ser dominantes as guerras do tipo insurreição, favorecidas por uma proliferação de armamentos descontrolada, convirá recordar o que o pensamento de algumas forças armadas desenvolveram sobre este tipo de guerra e que agora se vão retirando à pressa das bibliotecas e arquivos.
Será de recordar que os povos se revoltam quando têm razões para tal, que as insurreições ou subversões têm o seu tempo faseado de desenvolvimento, que o seu sucesso depende de alguns pré-requisitos e que a força militar organizada ao seu dispor irá tomando forma com o tempo. A resposta a essas insurreições, que passa inicialmente pelo restabelecimento da lei e ordem e por acções armadas de segurança, deve merecer especial atenção na forma e no tempo, especialmente sobre a decisão de emprego das força militar, isto é, forças armadas naquela resposta.
Qual o futuro da guerra?
Algumas correntes de pensamento actuais também procuram uma terceira via para distinguir a paz da guerra, tentando encontrar soluções de compromisso entre situações de guerra e de paz, encarando alguns conflitos violentos e o emprego da força militar organizada na sua resolução, e cuja missão será sempre a de combater, como situações de apoio à paz. O modelo actualmente difundido e assumido começa a levantar dúvidas sobre a sua eficácia e os efeitos a que tem conduzido na organização, capacidades, prontidão e vontade de combater das forças armadas.
Ainda que os esforços para a procura da paz devam continuar nas áreas do pensamento e das acções, prosseguindo o entendimento da comunidade internacional sobre os valores universais contidos na situação de paz, onde sobressai o de segurança em todas as suas dimensões, as situações de guerra continuarão a existir, quaisquer que sejam as teorias que procurem eliminar as suas causas. Continuará a ser violenta, afectando vidas humanas, tendo como palco a superfície do globo, nos seus 70% de oceanos, 30% de massa terrestre ou no espaço aéreo que o envolve. Os seus actores principais continuarão a ser combatentes, procurando em acções de ataque ou de defesa a sua sobrevivência e os seus espectadores continuarão a ser populações que cada vez mais serão afectadas, sem o desejarem, pelos seus efeitos. Continuarão a ser consideradas justas, injustas e civis e a conterem em si, como exprimiam as Ordenações Afonsinas, já citadas, duas qualidades, uma de mal e a outra de bem …e quando é feita como deve, aduz depois a paz, de que vem assessogamento, e folgura, e amizade.
Sem vontade nem tempo para percorrermos caminhos em constante mudança de direcção, mas que tentam encontrar conceitos sobre o papel e formas de aplicação da força militar pelas sociedades organizadas e seus sistemas constitucionais, iremos abordar os desafios que se colocam a essa força para cumprir a sua missão: combaterem guerras que se adivinham em ambientes operacionais incertos e em permanente mutação. Nações e Alianças, no nosso mundo ocidental ou noutros mundos que desejam viver sem ocidente, continuam a desenvolver frequentes revisões estratégicas de que resultam sucessivos conceitos estratégicos de segurança e de defesa, de curta duração, e mais preocupados com a segurança do que com a defesa, esquecendo muitas vezes a prudência que diz que a ameaça mais provável nem sempre é a mais perigosa.
Conceber, organizar e empregar a força capaz de responder às guerras do futuro, obriga a que os desafios que se prevêem encontrem resposta na estratégia militar a desenvolver, nas suas clássicas componentes genética, estrutural e operacional.
Do modelo clássico de emprego e concepção da força militar, para defender, conquistar e obter vitórias, organizada para a guerra e durando enquanto a guerra, a grande maioria dos sistemas constitucionais dos estados modernos concebem a sua força militar, com níveis permanentes e níveis a mobilizar, para defesa da soberania face a ameaças armadas e funções militares de prevenirem, dissuadirem e combaterem essas ameaças. O seu emprego faz-se de acordo com os princípios constitucionais estabelecidos e as grandes opções que se colocam aos estados na concepção da sua força militar, ou seja na componente genética da estratégia, e face às incertezas no ambiente estratégico, situam-se nas áreas dos recursos humanos e dos que aceitam a condição militar, na prioridade de armamentos e equipamentos com que dotar a força, nos recursos financeiros da Nação possíveis para a aprontar e manter, no apoio da opinião pública à sua manutenção e emprego, que passará pela vontade e educação da população para a defesa. A formulação destas grandes opções é da responsabilidade dos estadistas que representam a Nação e o conselho militar à decisão poderá ajudar a ajustar os objectivos políticos pretendidos com os objectivos militares possíveis. Os desafios que se colocam às opções a tomar relacionam-se com as dificuldades em encontrar quem esteja dispor a combater, na escolha de armamentos e equipamentos face à permanente mutação introduzida pela evolução tecnológica e nos recursos financeiros a atribuir, a que se juntam outros como a imprevisibilidade na duração das missões, nas baixas a sofrer, nas mudanças na opinião pública.
Na componente estrutural ou organizacional da estratégia há mudanças que influenciam as capacidades militares da força mas devem observar-se constantes que mantêm os seus elementos estruturantes. As mudanças tendem a abandonar organizações fixas, simples e ternárias, sucedendo-lhes organizações flexíveis e modulares permitindo que a força seja mais conjunta nas capacidades militares proporcionadas por Ramos diferenciados das Forças Armadas, tentando que a proporção entre combatentes e apoios seja equilibrada e deixando para outras organizações sem o estatuto militar algumas funções de apoio. A força será constituída com base nas funções militares a desempenhar e essas funções ditarão as capacidades militares a desenvolver. As constantes a manter dizem respeito aos conceitos de comando, como autoridade investida, à disciplina como instrumento essencial a esse comando, à Unidade como berço de elementos estruturantes tais como o moral, espírito de corpo e camaradagem, ao conceito ternário de unidade empenhada, unidade disponível, unidade em preparação. Meios humanos ou tecnologias constituíram através dos tempos o dilema para organizar a força, procurando as correntes dominantes que a tecnologia funcione como multiplicador de força, melhorando as capacidades sensoriais e de protecção do combatente ou as funções militares a desempenhar: definir objectivos, capacidade de fogo à distância, mobilidade, protecção da força, apoios e recuperação de baixas, entre outras.
É, talvez, na componente operacional da estratégia, e no seu elo de ligação com a táctica e que constitui a arte operacional, que as guerras do futuro serão mais influenciadas pelos conceitos que actualmente se encontram em desenvolvimento, especialmente depois da primeira campanha no Golfo em 1991 e com as lições aprendidas nos Balcãs, no Líbano, no Iraque, no Afeganistão e outros. Ao mesmo tempo que se estudam experiências passadas na área da contra-insurreição, tentam desenvolver-se novas teorias sobre a guerra centrada nos efeitos a obter, sejam a eliminação ou neutralização do oponente, a reconstrução da sociedade afectada ou a protecção da força militar empenhada. O espaço, naval, terrestre ou aéreo, continuará a desempenhar papel importante na fixação e isolamento do teatro de operações, com meios navais e aéreos especialmente aptos a proporcionar liberdade de acção nas áreas de mobilidade e de bases para a observação e definição de objectivos e fogos à distância. Atrição ou destruição à distância, proporcionada pelo poder de fogo e mobilidade, continuarão a ser capacidades militares essenciais ao combate. As tecnologias existentes ou em desenvolvimento irão permitir observar, definir e atingir objectivos com maior eficácia, melhorar a protecção da força ou aumentar as capacidades de apoio, onde sobressai o apoio médico a feridos. Uma melhor relação entre estadistas e militares permitirá voltar a pôr nos carris certos quem faz o quê, com quê e para quê.
A guerra do futuro não mudará nas suas finalidades e intervenientes. Mudará certamente na forma de a fazer e nos seus efeitos, mas necessitará sempre de combatentes, aqueles que não voam, não flutuam nem provocam fissões, mas que acreditam que a defesa dos seus concidadãos e dos valores que constituem o seu legado cultural pode exigir o sacrifício das suas vidas.