O quadro histórico
O Estado Soberano foi uma criação europeia depois projectada, por via dos processos de colonização e descolonização a outros continentes - às Américas, à África e a parte da Ásia.
A criação, a consolidação e o triunfo do Estado Soberano como forma política canónica globalizada derivaram do monopólio da força legítima, do monopólio do imposto e da centralização da lealdade política, nesse Estado Soberano que, inicialmente, foi um Estado dinástico.
A época áurea do Estado como comunidade política por excelência vai dos meados do século XVII (1648), fim da Guerra dos Trinta Anos e secularização do poder até aos finais da Segunda Guerra Mundial.
A partir do século XIX, o movimento do reforço da representação nacional e constitucional e da democratização das instituições acelerou a formação dos Estados nacionais, com o serviço militar obrigatório, a alfabetização e o alargamento do direito de voto. É o retomar na Europa da ideia romana do cidadão soldado, da cidadania com o complexo de direitos e deveres.
No curso deste período há constância na ordem e na hierarquia internacionais, que gira em torno da uma pentarquia de grandes poderes - Grã Bretanha, França, Império Austro-Húngaro, Prússia-Alemanha e Rússia. A expressão do poder nacional é essencialmente militar e económico-militar. As guerras têm ainda causas dinásticas e mecanismos de alianças, mas passam progressivamente a ter uma base económica - territórios, espaços ultramarinos, rotas comerciais e mercado, como o longo conflito anglo-francês ao longo do século XVIII. Com a Revolução Francesa inicia-se o período moderno de guerras ideológicas. E personalidades fora do baralho, como Napoleão Bonaparte querem alterar a lógica dos equilíbrios e acabam por ser vencidos por grandes coligações. Perturbam todos e sofrem as respectivas consequências, quando todos contra eles se coligam.
As grandes guerras do século passado - a “Grande Guerra” e a II Guerra Mundial - resultam de uma combinação de cumprimento de alianças e competição geopolítica, mas terminam numa guerra civil europeia - usando a expressão de Ernst Nolte. Num conflito de ideias e poderes totalitários - o Comunismo soviético e o Nacional-socialismo hitleriano - que se defrontam num duelo sem limites, no curso do qual, o laborioso quadro do direito público europeu, que entre outras coisas jurisdicizara a própria guerra, cai em pedaços.
Estas guerras mundiais tiveram consequências radicais. No plano internacional, dos equilíbrios e das hierarquias dos Estados, significaram o fim do mundo eurocêntrico. Os grandes poderes passaram a ser os Estados Unidos e a Rússia Soviética - ambos de matriz histórica europeia, mas geograficamente fora da velha Europa e com classes políticas dirigentes orientadas por valores, tradições e objectivos diferentes.
Mas as guerras mundiais fizeram despontar e acelerar os processos de descolonização nas áreas imperiais europeias. Os movimentos independentistas - geralmente radicados em minorias intelectuais e activistas de vanguarda - encontraram a partir de Bandung, voz própria. E receberam o aplauso, numa lógica de competição por novos espaços e sobretudo pelas cabeças e corações dos povos desses espaços, da URSS e dos Estados Unidos.
As raízes dos valores
No plano dos valores políticos de orientação as forças ideologicamente vencedoras da guerra - o comunismo de Leste e o democratismo ocidental - convergiram ideologicamente num processo de culpabilização e diabolização dos valores nacionais numa amálgama intencional, com os excessos ideológicos e existenciais do hitlerismo e do nacionalismo imperial japonês.
Resultou daqui, no plano teórico, uma competição entre os valores “ocidentais” - reduzidos à democracia e ao mercado e “orientais” - o socialismo de direcção central governado pelo partido único.
Com a Guerra-Fria e o seu desfecho - a derrota por implosão provocada da União Soviética entre 1989 e 1991 - a URSS, que fora a depositária e agente da ideologia comunista - o modelo do socialismo estatal e igualitário programático - passou para o caixote do lixo da História. A República Popular da China evoluíra a partir a partir das reformas de Deng Tsiau-Ping para um socialismo nacional dirigista, com elementos de economia de mercado.
Daqui resultou como dominante um pensamento único - que se tornou oficialmente vigente - e que tem raízes do individualismo iluminista com os seus pólos entre a versão liberal político-económica dos anglo-saxões e o racionalismo igualitário francês do século XVIII.
Na realidade as suas raízes eram anteriores e o seu fundador fora um pensador ateu ou pelo menos agnóstico, e que baseara o Estado na finalidade de garantir a segurança para o usufruto pacífico do maior número de bens materiais ao maior número de cidadãos. Thomas Hobbes, autor do Leviathan.
Sem entrar numa genealogia político-filosófica mais longa, convém sublinhar que estes valores - dos dois iluminismos - partilham a ideia central de um progresso possível e desejável da própria natureza humana, uma mudança qualitativa da espécie. Isto é, um optimismo antropológico. Acreditavam na imanente racionalidade do homem que graças à ciência e à técnica, se libertaria, progressivamente das cadeias da religião e da tradição.
Os chamados “valores tradicionais” são contrapostos a estes, mas são tão modernos e tão tradicionais como eles. O nacionalismo é mais recente que o liberalismo, que também já é tradicional, desde que Montesquieu estabeleceu os seus postulados.
A guerra político-ideológica contemporânea - todos o sabemos pelos malabarismos terminológicos, intencionais ou de simples e absoluta ignorância que andam por aí - tem uma forte zona armadilhada, na semântica. A linha de valores ou do pensamento único triunfante tornou-se universal ou universalista devido a estas circunstâncias históricas. Na verdade, essa concepção do homem e do mundo é pelo menos tão válida - em termos teóricos e experimentais - com qualquer outra. E é curioso que sejam os grandes partidários do relativismo ético e político, que sustentem a unicidade e superioridade destes valores ditos “universais”. Como é também uma circunstância histórico geográfica muito especial - a da construção europeia - que nos transmite a ideia da decadência e perda de sentido do Estado soberano. Como o fracasso do Estado em áreas como a África subsahariana aonde foi imposto como solução de recurso do próprio poder colonial. O que não é estranho se nos lembrarmos que o Estado e a representação democrática, instituições que levaram séculos a criar-se e consolidar se na Europa e nas Américas, deveriam consolidar se ali em 50 anos!
Nas grandes áreas geopolíticas da Euroásia, da Ásia-Pacífico e nas Américas, continuam os grandes Estados governados por valores nacionais e de prioridade do bem público, com uma forte relação e coordenação entre o poder político e os poderes económicos, com culto das tradições e dos interesses nacionais. Alguns destes Estados são democracias, outros não: mas dos Estados Unidos à Índia, do Brasil à China, as grandes potências actuais ou emergentes todas cultivam os seus valores nacionais, todas levam a sério a defesa e as Forças Armadas, todas praticam um realismo funcional nas relações internacionais.
Uma falsa oposição
Não há uma contraposição entre valores universais - que seriam os do individualismo com o homem com o centro, o fim, o princípio de tudo - e valores nacionais. O respeito pela pátria, pela família e pela religião são tão universais como os valores individualistas, ou seja eles existem e perduram nos espíritos e nas instituições de muitos homens e países.
E não podem e devem confundir-se com modelos históricos precisos, que os adoptaram também, mas de modo racista e exclusivista. Quem respeita os valores nacionais, quem ama e valoriza a sua pátria, respeita também as outras pátrias. A ideia de imperialismo rácico territorial, de domínio e conquista de espaços vitais, que marcou determinados nacionalismos históricos, é tão própria do nacionalismo como sua característica essencial como o genocídio praticado na Vendeia pela França revolucionária, é característico da democracia. Ou, de modo mais brando, como o modelo a Primeira República portuguesa e o seu poder da rua podem ser apontados como modelos democráticos por excelência.
A realidade impõe-se, em última instância, às ideologias que a tentam esconder e espartilhar. No Ocidente euro-americano, sobretudo na Europa, meio do século de propaganda pacifista, sobre a não necessidade de defesa, de Forças Armadas, e sobretudo a ideia de total desvinculação dos cidadãos em relação a um bem público que possa exigir-lhes o risco da própria vida criou, mesmo com a adopção das forças armadas voluntárias, a ideia de que não pode haver baixas em combate ou em operações. Excluindo talvez a defesa do território.
Mudam os tempos, mudam as formas
Esta ideia atinge em todos os governos e, com excepções dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, democracias militares de longa data e que mantêm uma reserva moral e uma disponibilidade para a guerra em sectores significativos da população, o resto tem que viver com esse problema.
Por isso estamos a assistir ao renascimento dos fenómenos antigos, com as companhias militares privadas - que florescem nas operações do Iraque e em África.
E estas soluções no plano militar existiram desde a Antiguidade, depois que os romanos deixaram de ser cidadãos-soldados, com o fim da República e passaram ao exército profissional com o Império. Ainda no século XVII, Wallenstein comandava e alugava um exército de várias dezenas de milhar de homens.
E durante séculos de História da Europa, o ofício das armas, era exercido pelos “nobres e pelos pobres”, excluídos para cima e para baixo os que se ocupavam das actividades da economia produtiva.
Não nos admiremos se a pressão cultural do pacifismo militante e da correcção política das opiniões públicas ou publicadas, ao inviabilizarem a eficácia das Forças Armadas (já que uma força que não pode ter baixas em combate, não serve para nada) não acabarão por forçar ao recurso às companhias militares privadas. Assim deixará de haver mortos pela pátria e só haverá mortos pela economia que parece ser a única realidade com idoneidade para justificar, hoje, sacrifícios…
E no campo político-institucional há outras novidades como o renascimento das cidades-Estado - Singapura, Hong Kong, Macau, no Extremo-Oriente - e este OPNI - Objecto Político Não Identificado - que é a União Europeia. Assim a par do Estado soberano estão a surgir e consolidar se, paulatinamente, outras realidades e formas de comunidade política.
Devemos estar abertos e atentos a estas mudanças, preparando-nos para as entender e integrar em termos de pensamento e acção. E, no nosso caso, pensarmos que Portugal é um Estado nacional com oito séculos e meio de vida o que, nos tempos que correm é uma vantagem comparativa muito importante que não se deve nem pode esquecer ou perder.