15º Encontro Nacional de Combatentes
Como bem atesta o presente número da Revista Militar, este ano o Encontro anual que reune antigos combatentes, suas famílias e amigos, incluiu uma inovação de peso: a Conferência que decorreu no dia 9 de Junho, nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian.
Assim começou portanto o Encontro deste ano, cumprindo se no dia 10 o tradicional Encontro, mantido ano após ano desde 1992, sendo este ano a Comissão Executiva do Encontro liderada pelo General Piloto-Aviador Manuel Taveira Martins.
O programa das cerimónias decorreu na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, e em Belém, junto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, o 15º Encontro Nacional de Combatentes concretizou-se no seu formato habitual.
Seguindo-se à missa nos Jerónimos por intenção de Portugal e de sufrágio pelos que tombaram pela Pátria, junto ao Monumento teve lugar uma cerimónia inter-religiosa (católica e muçulmana). Esta cerimónia foi, pela primeira vez, presidida por Dom José Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa.
O orador convidado este ano foi o Professor César das Neves que na ocasião proferiu o discurso que abaixo se transcreve.
Depois do discurso efectuou-se a Homenagem aos Mortos e a tradicional deposição de flores no monumento, a que se seguiu o Hino Nacional cantado por Dany Silva acompanhado por elementos da Selecção Nacional de Râguebi.
Para encerrar a parte cerimonial do encontro, helicópteros AL III da Força Aérea sobrevoaram o local, e efectuaram-se saltos em pára-quedas por militares do Exército.
De assinalar que o Presidente da República, Cavaco Silva, também ele antigo combatente no decurso do cumprimento do seu serviço militar obrigatório em Moçambique, fez chegar à organização do Encontro uma mensagem alusiva a esta comemoração, a qual foi lida pelo presidente da Comissão Executiva:
“Saúdo os nossos antigos combatentes, testemunhos vivos e participantes na nossa História recente, manifestando-lhes o respeito e admiração que nos merecem. Formulo votos para que este Encontro se constitua como um factor de união em torno dos valores que nos animam e nos fazem amar Portugal”.
Transcreve-se na íntegra o discurso do Professor César das Neves, orador convidado do Encontro.
“Estamos aqui reunidos por causa do sangue. É o sangue que aqui nos chama todos os anos. Um sangue longínquo, um sangue de multidão, um sangue de violência. Espalhado por múltiplas terras, ao longo de muitos anos, é este sangue que aqui está reunido neste Monumento. É este sangue que aqui nos reúne neste dia.
Todos os anos vimos aqui falar ao sangue. Todos os anos dizemos palavras a este sangue antigo, distante, múltiplo. Desta vez, em vez de falarmos ao sangue, ouçamos o sangue. Ouçamos o que o sangue tem para nos dizer. Em vez de dizermos os sentimentos que este sangue nos suscita, pensemos no que este sangue diz dele mesmo. O que este sangue nos quer dizer.
1. A grandeza do sangue
Será que o sangue nos fala de coragem? De valor? De heroísmo? Algum, sem dúvida! Mas muito dele, não. A maior parte certamente, não. Algum deste sangue foi derramado em feitos notáveis, actos valorosos, gestos memoráveis. Mas a maior parte não.
Será que o sangue nos fala de colonialismo? Geo-estratégia? Modelos políticos? Algum, sem dúvida! Mas muito dele, não. A maior parte certamente, não. Algum deste sangue foi derramado por razões ideológicas, propósitos tácticos, consciência mundial. Mas a maior parte não.
A maior parte, certamente, foi sangue que não queria ser derramado, que não concordava com aquela guerra, que não compreendia bem porque estava ali, que não desejava estar ali. Grande parte desse sangue jorrou por azar, por engano, sem vontade. É normal o sangue jorrar contra vontade.
Quando falamos de tanto sangue, em tantos locais e em tantos anos, derramado em condições tão diferentes, por pessoas tão distintas, temos de admitir que a maior parte do sangue não era especial. Sangue de multidão dificilmente é especial. Sangue de tão grande multidão tem de ser sangue comum, sangue normal, sangue de gente como nós.
Se este sangue não nos fala de heroísmo e valor, de colonialismo e ideologia, de que é que ele nos fala, então? Por que razão afinal estamos nós aqui? O que torna tão especial este sangue que todos os anos nos reúne neste lugar, a dizer coisas ao sangue? Qual a grandeza extraordinária deste sangue que, afinal, por ser sangue de uma multidão, não pode ser especial?
O sangue que aqui nos reúne nem sempre nos fala de coragem e de heroísmo, ideologia e sistemas. Mas fala-nos sempre de dever. O que este sangue nos diz, o que este sangue tem de grande, é o dever cumprido. O que há de comum em toda essa enorme multidão é que estava lá. Tinha sido enviada, tinha lhe sido ordenado e tinha ido. Foi onde tinha de ir e cumpriu o dever que tinha de cumprir. Cumpriu o dever até ao fim. Cumpriu o dever até ao sangue.
Grande parte desse sangue não queria estar ali. Grande parte desse sangue não concordava com aquela guerra, não apoiava sequer o regime que a declarara. Mas estava ali e combatia. Por ser o seu dever. Sacrificava a sua vida. Não porque quisesse sacrificá-la, não porque apoiasse a causa, porque fizesse feitos notáveis, únicos. Simplesmente porque devia ali ir e tinha de cumprir o seu dever. E foi. E cumpriu. Até ao fim. Até ao sangue.
Esta é a grandeza deste sangue. Esta é notável elevação deste sangue que aqui nos reune todos os anos. Simplesmente estar onde tinha de estar, cumprir aquilo que era o seu dever. Sem querer, sem concordar, sem apoiar, mas cumprindo. A grandeza deste sangue é aquela grandeza extraordinária de que são capazes as multidões. A única grandeza das multidões, a grandeza de estar, a grandeza de cumprir, a grandeza de se dar, mesmo àquilo com que não se concorda. Por ser o seu dever.
2. As razões do sangue
É difícil hoje compreender as razões deste sangue. Num tempo de direitos, este sangue fala-nos de deveres. Num tempo de ambições, este sangue fala-nos de entrega. Num tempo de realização pessoal, este sangue fala-nos de sacrifício. É difícil neste tempo compreender porque o sangue foi derramado. Para o nosso tempo é difícil até compreender porque vimos aqui, todos os anos, honrar o sangue derramado. Este sangue hoje não é compreendido. Este sangue hoje é invocado, é chorado, é lamentado, mas não é compreendido.
O nosso tempo compreende o heroísmo, compreende a coragem, compreende o valor. Aquilo que o nosso tempo tem dificuldade em entender é o silêncio, a entrega. O nosso tempo tem dificuldade em entender o sacrifício. Como é possível dar o sangue por algo com que não se concorda? Como se entende o sangue derramado por uma multidão? Isto hoje não sabemos. Hoje temos de o perguntar a este sangue.
O sangue fala-nos de algo maior que ele. Este sangue de multidão, este sangue comum, sangue normal, sangue de gente como nós, fala-nos de algo maior do que ele. Algo a que se entrega. Algo a que se sacrifica. Porque até o sangue sem feitos notáveis, até o sangue que não quer ser derramado, que não concorda com a guerra, que não quer estar ali, até esse sangue é sempre derramado por algo maior do que ele. É por isso que está ali. Por isso cumpre o seu dever.
Essa razão maior é muito diferente de uns para os outros. Mas existe em todos. A causa maior que inspira o dever é diferente em todos eles. Mas está presente em todos eles. Uns lutavam pela pátria, outros pela família, pelos amigos. Lutavam pela sua aldeia, pela sua terra. Alguns pela Fé e pelo império, outros pelos operários e pela sociedade sem classes, outros ainda pelo progresso e a civilização. Havia os que lutavam pela justiça, pela liberdade, pelo bem comum. Todos sabiam porque estavam ali, cada um com as suas razões. Mesmo os que não queriam estar ali. Mesmo os que não compreendiam bem porque estavam ali. Mas cumpriam o seu dever.
Assim vemos a extraordinária grandeza deste sangue. Uma grandeza que, se virmos bem, é ainda maior que a da coragem, do heroísmo, da valentia. É notável alguém entregar a sua vida de forma nobre, num gesto elevado. Mas é mais notável ainda dar o seu sangue no silêncio e no esquecimento, numa guerra com que se discorda. Mas dá-lo por uma causa nobre, por uma razão maior. A sua razão. A razão da sua vida.
Esta é a grandeza das multidões, a grandeza de estar, a grandeza de cumprir, a grandeza de se dar a algo maior.
3. O que o sangue ouve
Isto é o que o sangue nos diz. Que podemos nós dizer-lhe? Que quer o sangue que lhe digamos? Que podemos nós dizer diante de tanto sangue?
Diante deste sangue, diante de tanto sangue, calam-se as retóricas e as figuras de estilo. Diante de um sangue longínquo, um sangue de multidão, um sangue de violência espalhado por múltiplas terras, que podemos nós dizer? Emudecem as ideologias e os discursos, empalidecem as exigências e as irritações.
Diante de tanto sangue a única coisa a dizer é o silêncio. O mesmo silêncio com que o sangue foi derramado. E nesse silêncio, o que há a dizer é o que nós dissemos hoje. A única coisa que há a fazer é rezar. Humildemente baixar a cabeça e rezar.
Rezar a Deus para lhe agradecer o que estas vidas nos deram. Agradecer tudo o que este sangue nos deu. Rezar a Deus para lhe entregar este sangue. Entregar lhe tudo o que este sangue é. Rezar a Deus para lhe pedir que sejamos dignos daquilo que o sangue nos pede. Pedir que sejamos dignos deste sangue.
Rezar é o que o sangue nos pede que digamos.
4. A lição do sangue
É isto que o sangue tem hoje a dizer-nos. A nós que vimos cá todos os anos, é isto que o sangue diz dele mesmo. E isto é algo que devemos ouvir, porque é algo que raramente ouvimos. Algo que mais ninguém nos diz nos dias de hoje.
Hoje, felizmente, não nos pedem o sangue. Hoje já não se vê o sangue. O sangue que hoje existe é sangue escondido. Hoje já não há o sangue que o regime nos pede, pela guerra. O sangue que hoje há é aquele que nós pedimos ao regime, pelo aborto. E esse sangue não nos fala de dever. Fala-nos de prazer, de desespero, de abandono, de solidão, de infâmia. Este é o sangue do nosso tempo. Este é o sangue de um tempo de direitos, de ambições, de realização pessoal. Este é o sangue de quem não se quer dar.
Nos nossos dias a questão já não passa pelo combate, pela luta, pela morte. Por enquanto, não passa pelo combate, pela luta, pela morte. Não nos pedem sangue. Pedem-nos suor. Hoje o nosso dever não é o sangue, mas é o suor. Pedem-nos suor, pedem-nos lágrimas, pedem-nos impostos, pedem-nos regras e regulamentos. O nosso dever não nos exige que partamos para longe e lutemos até à morte. Já não é esse o nosso dever. Mas o dever pede-nos que trabalhemos, que procuremos emprego no desemprego, que paguemos, que cumpramos, que soframos.
Grande parte de nós não quer viver assim. Grande parte de nós não concorda com esta crise, não apoia sequer o regime que a declarou. Discordamos da política, condenamos a crise, criticamos os chefes, acusamos os erros. Regateamos o suor, as lágrimas, os impostos, as regras. Exigimos apoios, promoções, subsídios, aumentos. Não cumprimos o nosso dever.
Vimos diante deste sangue. Vir aqui não é uma memória do passado, uma nostálgica celebração de feitos antigos. É uma presença no presente e um compromisso para o futuro. Um compromisso para o nosso sangue.
Partimos daqui depois de celebrar este sangue. O sangue que, numa guerra muito pior que a nossa crise, estava ali e combatia. Por ser o seu dever. Sacrificava a sua vida. Não porque quisesse sacrificá-la, não porque apoiasse a causa, porque fizesse feitos notáveis, únicos. Simplesmente porque devia ali ir e tinha de cumprir o seu dever. E foi. E cumpriu. Até ao fim. Até ao sangue.”
* Tenente-Coronel SG Pára-quedista. Sócio Efectivo e Secretário da Assembleia Geral da Revista Militar.