Nº 2481 - Outubro de 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Crise da Superpotência Americana
Tenente-general PilAv
Eduardo Eugénio Silvestre dos Santos
O colapso da URSS e o fim da “guerra-fria” originaram a “coroação” do presidente dos EUA como o primeiro líder global. Este foi um momento histórico, pois o presidente americano não necessitou de firmar nenhum acordo internacional oficial para começar a agir como tal.
 
Um pouco mais de uma década depois, um outro presidente americano proclamava que a missão histórica dos EUA (e a sua própria) era estimular a transformação das culturas e das políticas do todo o mundo islâmico. A característica dos primeiros 15 anos da supremacia americana é a presença das suas forças militares à volta do mundo, e a frequência crescente com que essas forças têm estado envolvidas em confrontos.
 
A questão fundamental com que nos deparamos actualmente é saber se os EUA têm exercido a sua liderança internacional com responsabilidade e eficácia, não só para o bem-estar dos americanos, mas também para o do mundo em geral.
 
Ao emergir como o estado mais poderoso do planeta, os EUA e a sua liderança enfrentaram três missões fundamentais:
 
- gerir, orientar e modelar as relações de poder num mundo onde os equilíbrios geopolíticos se encontravam em mudança rápida;
 
- conter ou acabar com conflitos, prevenir o terrorismo e a proliferação de armas de destruição maciça (ADM);
 
- enfrentar com maior eficácia as crescentes e intoleráveis desigualdades na condição humana.
 
A enormidade desta missão histórica leva obrigatoriamente a colocar outra pergunta: Como interpretaram os três primeiros presidentes “líderes globais” (George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush) a essência desta nova era? Guiaram-se por uma visão histórica pertinente, e seguiram uma estratégia coerente? Que decisões no campo da política externa foram as mais adequadas? Neste momento, o mundo está melhor ou pior, e a posição dos EUA nele está mais forte ou mais fraca? Que lições para o futuro devem ser tiradas do seu desempenho como primeira superpotência global?
 
Mesmo uma superpotência global pode enveredar por mau caminho e colocar em risco a sua própria supremacia, se a sua estratégia for incorrecta e a sua compreensão do mundo defeituosa. Além disso, temos de nos perguntar se a sociedade americana se guia por valores conducentes a uma liderança global de longo prazo, e se o seu governo está convenientemente estruturado para essa tarefa.
 
É nas relações internacionais que os presidentes sentem com mais intensidade a glória, a pompa e o poder que desfrutam. Cada um deles se cativa e encanta a seu modo com a posse destes poderes especiais e pelo seu acesso ímpar e incomparável à informação.
 
George H. W. Bush (Bush I), o primeiro líder global, tinha uma experiência considerável em assuntos internacionais (embaixador informal na China, embaixador na ONU, director da CIA e vice-presidente). Era diplomatica­mente hábil, mas não possuía nenhuma visão arrojada do momento novo que se vivia.
 
Bill Clinton, o segundo, não tinha qualquer experiência em assuntos internacionais e pensava que era tempo do presidente prestar mais atenção aos assuntos internos. Era o mais perspicaz e o mais virado para o futuro, mas faltava-lhe consistência estratégica na utilização do poder dos EUA.
 
George W. Bush (Bush II), o terceiro, delegou inicialmente a política externa numa figura distinta, presidenciável, o General Colin Powell, mas por pouco tempo. Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, ainda no seu primeiro ano de presidência, sacudiram a letargia do presidente para os assuntos internacionais. Possui uma intuição forte, mas não tinha conhecimentos sobre as complexidades do mundo global, e tem um temperamento propenso a raciocínios dogmáticos.
 
Podemos sumarizar as dez alterações e acontecimentos fundamentais que ocorreram no mundo nos primeiros 15 anos da primazia global americana:
 
- a URSS abandonou a Europa Oriental e desintegrou-se;
 
- a vitória militar dos EUA e da coligação na “guerra do Golfo” foi desperdiçada politicamente;
 
- a OTAN e a UE expandiram-se para Leste;
 
- a globalização “institucionalizou-se” com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da agenda anti-corrupção do Banco Mundial;
 
- a crise financeira asiática originou uma nova comunidade regional na Ásia Oriental, liderada pela China (entretanto admitida na OMC) ou pela competição sino-japonesa;
 
- as guerras de secessão na ex-Jugoslávia, as guerras da Tchetchénia, o conflito do Kosovo, e a eleição de Vladimir Putin, contribuiram para o crescimento do nacionalismo e do autoritarismo russos, que vem explorando os seus recursos energéticos fósseis por forma a tentar voltar a ser uma potência mundial;
 
- o 11 de Setembro de 2001 abalou os EUA, fazendo alastrar o medo e levando o país a assumir políticas unilaterais e a declarar guerra ao terror;
 
- a OTAN dividiu-se acerca da invasão do Iraque;
 
- A UE não conseguiu desenvolver a sua identidade política;
 
- a opinião mundial sobre o poder militar americano e as ilusões de Washington sobre a extensão desse poder foram destruídas pelos falhanços após a vitória militar no Iraque; o Médio Oriente tornou-se o teste crucial para a liderança americana.
 
A derrota da URSS foi consequência das acções de muitos presidentes americanos, mas também de outras personalidades, tais como o Papa João Paulo II, Lech Walesa e Mikhail Gorbatchev. Eisenhower criou a OTAN; John Kennedy desafiou as tentativas de Krutschev de alcançar vantagem estratégica durante as crises de Berlim e de Cuba; lançou também a corrida à Lua, que exauriu os recursos soviéticos e lhe retirou um enorme trunfo político e ideológico; Jimmy Carter lançou a campanha de direitos humanos, que complementou o apelo espiritual de João Paulo II; Ronald Reagan prosseguiu estas linhas de acção com iniciativas em muitos domínios (i.e. SDI); etc.
 
Em 1945 já os EUA se apresentavam como a mais importante potência democrática. Em 1991, emergiram como a primeira potência realmente global. A sua oportunidade era de facto muito melhor do que em 1945, apesar de menos clara, pois não tinha rival nem ameaça e a OTAN estava no seu apogeu.
 
Porém, 15 anos após o “muro” ter caído, a América orgulhosa e globalmente respeitada, é vista hoje, em geral, com grande hostilidade, com a sua legitimidade e credibilidade em farrapos, e com os seus militares atolados na “lama” do Grande Médio Oriente, do Suez ao Afeganistão e à Ásia Central. Os seus aliados mais chegados distanciam-se e as sondagens da opinião pública mundial documentam a hostilidade generalizada para com os EUA. Porquê?
 
Liberto do espectro de uma terceira guerra mundial entre dois campos armados até aos dentes com armas nucleares, o mundo deu prioridade a preocupações mais comezinhas e limitadas. Ficou mais susceptível às intensas paixões nacionalistas e aos ódios tribais, mais tentado pela luxúria egoísta da indulgência por antagonismos tradicionais e violência religiosa. O fim da “guerra-fria” mexeu não só com esperanças, mas fez também despoletar novas paixões, menos universais nas suas ambições, mas muito mais primitivas nos seus impulsos.
 
Mas nesta nova realidade, a esperança não era universal. O império da URSS passava por problemas de separatismo nacionalista, que escalou rapidamente para uma dura violência étnica na ex-Jugoslávia em desintegração. Sinal dos tempos, esta violência exercia-se em nome da democracia e da auto-determinação.
 
A seguir à derrota soviética no Afeganistão, os EUA negligenciaram deploravelmente o futuro daquele país, um sintoma de uma indiferença mais lata para com uma região que, dez anos depois, se tornaria num pesadelo para a América.
 
O desaparecimento da URSS teve um impacto imediato nalguns estados árabes, nomeadamente na Síria e no Iraque, que contavam com o seu apoio militar e político na luta contra Israel. Desprovidos desse apoio estratégico, estes estados ficaram à deriva. Mais perto de casa, a Cuba de Fidel Castro estava agora estrategicamente isolada, sem o seu aliado fundamental, que lhe fornecia armamento e subsídios.
 
O fim da “guerra-fria” redefiniu também a segurança global. Com a ameaça nuclear entre os dois blocos afastada, a urgência e o consenso internacionais centrou-se nos perigos da proliferação e como evitá-la. Por outro lado, a manutenção de paz colectiva começou a emergir como uma resposta interna­cional legítima e possível aos conflitos regionais.
 
Finalmente, o chamado “terceiro mundo” perdeu o seu papel político com o desaparecimento do “segundo mundo”. O também chamado “Bloco dos Não-Alinhados” deixou de ter significado estratégico.
 
Dizem os sociólogos que a consciência surge depois da realidade. Por outras palavras, a compreensão das mudanças sócio-políticas só se dá após a referida mudança, nunca antes ou ao mesmo tempo. Assim foi o novo dilema histórico dos EUA.
 
Depois do interlúdio de confusão intelectual que se seguiu à queda do “muro de Berlim”, duas versões do passado e visões do futuro (não se lhes pode chamar ideologias), emergiram como dominantes no modo como os americanos viam os assuntos globais.
 
A primeira visão de como organizar o mundo foi a globalização. A afirmação que a interdependência era a nova realidade da vida internacional foi validando a globalização como a política correcta para o novo século. Esta opção dos EUA fez identificar o interesse nacional americano com o interesse global. A globalização era pois uma doutrina conveniente para o vencedor da “guerra-fria” apenas terminada. Implícita neste conceito de globalização estava a ideia de um núcleo central, de um ponto de origem, e a América, apesar de não explicitamente, era a única candidata plausível.
 
Apesar de ser vista inicialmente apenas numa perspectiva económica, os seus defensores depressa perceberam que o conceito tinha de ter um substracto político que a fortalecesse. Uma das ideias centrais apresentadas era que a globalização conduziria a um nível maior de democracia.
 
A outra doutrina, que veio a florescer sob a presidência de Bush II, era mais completa na sua explanação, mais pessimista na sua visão do mundo, e mais maniqueísta na sua forma. Em contraste com o determinismo económico da globalização, o neoconservadorismo (“neocon”) era mais activista e militante.
 
As raízes desta doutrina remontavam à presidência de Ronald Reagan, tendo como primeiros ideólogos o senador Henry Jackson, Paul Nitze, Eugene Rostow, Richard Perle e Jeane Kirkpatrick, que formaram nos anos 1970’s o Comité do Perigo Presente (Committee of the Present Danger), que defendia uma resposta mais musculada e dura à URSS.
 
Para ter sucesso, a política externa americana tinha de se basear em determinadas certezas morais e prosseguida através de uma avaliação clara do Bem contra o Mal nos inevitáveis e ambiguos imponderáveis históricos. A confusão pública era o luxo das massas, os compromissos os erros dos agnósticos, e a incerteza um castigo intelectual. De então em diante, a força e a clareza tinham de guiar os EUA, tal como tinha acontecido nos tempos de Reagan para vencer a “guerra-fria”. Comungavam da convicção de que o desafio anteriormente colocado pela URSS e pelo comunismo, era agora personificado pelos Estados árabes e pelo Islamismo militante.
 
Descrentes na Aliança Atlântica (os europeus estavam decadentes e auto-indulgentes), a nova doutrina assentava na confiança no poder político e militar dos EUA. Robert Kagan e William Kristol surgiram como os novos ideólogos da doutrina “neocon”, que não era mais do que uma versão actualizada do imperialismo, nada preocupada com as novas realidades globais ou tendências sociais. O medo e a angústia provocadas pelo 11 de Setembro deram aos teóricos “neocons” a oportunidade de se afirmarem. Sem aquela catástrofe, continuaria provavelmente a ser um fenómeno marginal. Em pouco tempo, os “neocons” da administração Bush II colocaram as suas ideias nos documentos políticos e militares oficiais.
 
Esta visão do mundo ganhou indirectamente uma inesperada respeitabilidade intelectual através de dois trabalhos académicos com projecção. Um deles foi “O fim da História e o último homem”, de Francis Fukuyama (1992); o outro foi “O choque de civilizações” de Samuel P. Huntington (1996) que, desde o início, era um crítico das teses “neocon”.
 
No livro de Fukuyama, a tese foi interpretada por muitos como signifi­cando que a democracia era o fim inevitável da humanidade. Esta visão sobre a presumível inevitabilidade da democracia, forneceu um poderoso argu­mento àqueles que defendiam que os EUA deviam propagá-la por quaisquer meios possíveis, como fundamento da política americana no Médio Oriente. Activismo dogmático e determinismo histórico combinavam-se assim de modo conveniente.
 
O inesperado impacto político da obra de Huntington foi ainda maior do que a de Fukuyama. Argumentado com mestria e persuasão, este livro parecia ser uma profecia estimulante que não deveria poder cumprir-se. Contudo, alguns anos mais tarde, após o 11 de Setembro, o “choque” tornou-se um diagnóstico largamente aceite de uma realidade que, dez anos antes, parecia remota.
 
O resultado foi uma doutrina maniqueísta que nenhum dos académicos defendia: a democracia propagada apaixonadamente, como um destino histórico inevitável de uma humanidade empenhada num confronto existencial de valores básicos. A ideia de um “fim da História” democrático, como o ponto final de uma grande colisão com o Islão fundamentalista, tornou-se para os “neocons” num raio de luz clarificante que perfurava o nevoeiro pós-“guerra-fria”.
 
Estes dois conceitos - globalização e neo-conservadorismo - passaram a dominar a cena política e ofuscaram as ideias alternativas. Porém, o atormentado desconforto filosófico do Ocidente fazia sentir que nenhuma das duas visões era historicamente suficiente para o desafio - estratégico e filosófico - que os EUA enfrentavam. Em que finalidade maior estava o cidadão ocidental agora empenhado, após a derrota do comunismo? Para as classes superiores, a resposta era fácil: o relativismo dos bens materiais e do preço da gasolina. Mas a resposta real tinha de vir de uma definição moral mais profunda do papel mundial dos EUA. Sem isso, a liderança global americana não teria legitimidade. Um impulso moral motivador que se tornasse num guia para a política, tinha de ter como suporte preocupações humanitárias. Tinha de elevar os direitos humanos a uma prioridade global. Tinha de responder aos desejos dos cidadãos politicamente activos.
 
Resumidamente, a questão que se coloca desde 1990 é a seguinte: Têm os EUA a capacidade para liderar o mundo numa época em que as expectativas políticas e sociais da humanidade já não são passivas e a coexistência das várias religiões e culturas está a ser comprimida pelo impacto das comunicações interactivas?
 
Três presidentes americanos (George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush) tiveram, sucessivamente, a oportunidade de responder a esta pergunta, não numa abstracção filosófica, mas em questões e escolhas políticas da vida real. O primeiro procurou seguir uma política tradicional num ambiente que já não era tradicional. O segundo adoptou uma versão mitológica da globalização como responsável pelo futuro do mundo. O terceiro seguiu um compromisso militante para mandar num mundo dogmaticamente concebido como uma polarização entre o Bem e o Mal.
 
Bush I
 
Apesar da frase não ser originalmente sua (quem a disse primeiro foi Gorbatchev), a “nova ordem mundial” foi a “marca registada” de Bush I. Mostrou os seus pontos fortes e as suas limitações na resposta à sucessão de confrontos que foram surgindo globalmente (retirada russa do Afeganistão, governo do Solidariedade na Polónia, os confrontos de Tiananmen, a queda do “muro de Berlim”, a “guerra do Golfo”, a crise da Jugoslávia, o desmembramento da URSS em vários Estados, etc.). Provou ser um excelente gestor de crises, mas não um homem com visão estratégica. Lidou com o colapso da URSS com grande frieza e liderou uma resposta internacional à agressão de Saddam Hussein com impressionante saber diplomático e vontade militar. Mas não conseguiu traduzir cada triunfo em sucessos históricos duradouros. A influência política e a legitimidade moral únicas dos EUA não foram aplicadas estrategicamente, quer para transformar a Rússia, quer para pacificar o Médio Oriente. Porém, para ser justo, nenhum outro presidente americano, desde o final da 2.ª Guerra Mundial, teve de se confrontar com uma confusão global tão extensa e tão intensa. O mundo com que a sua administração teve de lidar estava em pedaços, com o fim de uma era a terminar.
 
Bush I temeu que Gorbatchev pudesse seduzir a França e o Reino Unido, ambos temendo uma Alemanha reunificada, para um acordo que pudesse sustentar a estrutura soviética, que abria brechas por vários lados. Conseguiu que Gorbatchev aceitasse a unificação alemã e a sua permanência na NATO, em troca de uma parceria global, convencendo ao mesmo tempo franceses e britânicos que uma Alemanha unificada não ameaçaria os seus interesses. Implícita nestes arranjos estava a ideia que a “nova ordem mundial” se basearia na cooperação entre as grandes potências. A URSS ficaria sem o seu império na Europa Oriental, mas seria tratada como um actor global proeminente. Este foi o maior êxito de Bush I.
 
Porém, a sua administração foi apanhada de surpresa pela crise na Jugoslávia, e deixou que esta se arrastasse e empolasse. Com os EUA indiferentes e a Europa impotente, a crise tornou-se sangrenta e fatal.
 
Também no Afeganistão, a administração Bush I foi passiva, não exer­cendo esforços na galvanização da comunidade internacional para ajudar aquele país a estabilizar politicamente e a recuperar economicamente.
 
No Médio Oriente, a acção de Saddam Hussein foi não só um desafio à posição tradicional dos EUA no Golfo Pérsico, mas também - e mais importante - ao novo estatuto de liderança global americana. Qualquer que fosse a legitimidade da reivindicação histórica do Iraque sobre o Kuwait, a invasão foi um acto de desafio. A URSS, em posição pouco confortável para argumentar, juntou-se à condenação geral. Pouco tempo depois, o rei da Arábia Saudita, receoso que Saddam prosseguisse para Sul, tomou a decisão sem precedentes (face às sensibilidades religiosas) de aceitar tropas ameri­canas no seu território.
 
Pode argumentar-se que a resposta de Bush I à agressão de Saddam foi, quer a sua maior vitória militar, quer o seu resultado político mais inconsequente. Saddam foi derrotado e humilhado, mas não ficou sem poder. A ferida da região continuaria a supurar! A vitória não foi explorada estrategicamente, quer no Iraque, quer na região como um todo! Não se pode deixar de reconhecer que existe uma ligação trágica entre o que ocorreu no Inverno de 1991, e o que sucedeu na Primavera de 2003. Se as consequências da “guerra do Golfo” tivessem sido diferentes, talvez Bush II não tivesse invadido o Iraque. Além disso, a coligação criou uma oportunidade aos EUA para enfrentar com grande frontalidade o mais importante conflito da região, o israelo-palestiniano. Se o prestígio e a legitimidade alcançadas pela intervenção tivessem sido utilizados para pressionar um acordo de paz, a região poderia hoje ser bem diferente.
 
Infelizmente, o resultado foi que o triunfo não consumado de Bush I se tornou no pecado original do seu testamento político: o envolvimento crescentemente inconclusivo e mal compreendido dos EUA no Médio Oriente. A colocação de tropas americanas no “chão sagrado” saudita forneceu o estímulo aos fanáticos religiosos para articular uma doutrina de ódio à América. Uma impressionante vitória militar foi reduzida a um sucesso meramente táctico, cujo legado estratégico se veio a tornar gradualmente negativo. A presença americana na região passou a ser considerada não como uma influência benéfica, mas como um regresso ao passado colonial.
 
O legado de Bush I teve ainda outro defeito. Foi muito lento a reagir à crescente evidência de que as restrições à proliferação nuclear começavam a falhar. Então já só preocupada com a reeleição, a administração não quis aplicar o poder e o prestígio nacionais para liderar um esforço internacional de peso, e muito menos um por si só, para conter as aspirações nucleares da Coreia do Norte, da Índia e do Paquistão. Em fins de 1992, a não-proliferação não tinha prioridade na estratégia dos EUA. Os assessores dessa época, surgiriam mais tarde, em 2001, em cargos bastante importantes, nomeada­mente o então Secretário da Defesa, Dick Cheney, hoje vice-presidente.
 
Resumidamente, o maior defeito do mandato de Bush I, não foi o que fez, mas sim o que não fez! Mereceu o respeito generalizado com que se despediu do cargo. Mas como líder global, não agarrou a oportunidade para modelar o futuro do mundo ou deixar um caminho apontado.
 
Bill Clinton
 
Ao contrário do seu antecessor, Bill Clinton tinha uma visão global. Era sua convicção profunda que os EUA, para justificar o epíteto de “nação indispensável do mundo”, deviam renovar-se. Para ele, a política externa era a continuação da política interna. Assim, a renovação da política interna tornou-se na preocupação central do seu primeiro mandato. O seu ênfase na globalização forneceu uma fórmula apropriada para juntar as políticas interna e externa num todo coerente. Deste modo, a globalização tornou-se o tema funda­mental que Clinton defendia com convicção quase religiosa internamente e no estrangeiro. A sua equipa era sensível aos assuntos humanitários e não inclinada à afirmação por meios militares. O segundo mandato sofreu alguns ajustamentos, talvez atrasados, e a sua política externa foi mais activa, principalmente através da Secretária de Estado Madeleine Albright, firme­mente empenhada no alargamento da NATO, e que introduziu um sentido mais bem definido à orientação geopolítica, com ênfase na Europa.
 
A sua juventude, inteligência, eloquência e idealismo, faziam de Clinton um símbolo perfeito da todo-poderosa mas benigna América, o líder aceite pelo mundo. Na sua visão da história conduzida pela “lógica inexorável da globalização”, a corrida aos armamentos seria substituída pelo controlo dos mesmos e pela não-proliferação, as guerras dariam lugar à manutenção de paz e à construção de nações (nation building), e as rivalidades nacionais seriam substituídas pela cooperação global institucionalizada, sujeita a regras de conduta supranacionais. Surgiram assim três excelentes oportunidades para Clinton prosseguir a sua agenda de uma segurança global e de cooperação melhores:
 
- um mais completo conjunto de iniciativas conjuntas com a Rússia para limitar a corrida aos armamentos nos dois países;
 
- a possibilidade de um sistema de segurança partilhada ainda mais global, com destaque com limitações mais eficazes de proliferação para um número elevado de estados;
 
- o fim da divisão da Europa, com relações estreitas com os EUA através da comunidade atlântica, podia agora ser possível.
 
Em 1993, surgiu o acordo START II com a Rússia, seguido pela adesão da Ucrânia ao Tratado de Não-Proliferação (TNP). Contudo, as relações com Rússia foram bastante prejudicadas pela crise jugoslava e pelo apoio americano à independência da Ucrânia.
 
O problema com a Coreia do Norte surgiu poucas semanas depois da posse de Clinton. O regime norte-coreano recusou a ser inspeccionado pela Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA) e anunciou a sua retirada do TNP. A Coreia do Norte não pode ter deixado de notar a esmagadora vitória americana no Iraque, contra um opositor sem dissuasão credível para a impressionante capacidade convencional dos EUA, e o “chapéu-de-chuva” nuclear russo já não podia proteger os restantes estados comunistas. Neste assunto, três inferências podem ser tiradas: em primeiro lugar, a Coreia do Norte nunca foi confrontada com a possibilidade de que os custos da sua decisão e determinação de adquirir capacidade nuclear, poderiam superar os benefícios daí tirados; depois, as hesitações dos EUA deixaram que os norte-coreanos explorassem o desejo crescente de reconciliação por parte da Coreia do Sul, coartando assim o efeito da postura negocial conjunta EUA-Coreia do Sul; finalmente, e mais importante, o desafio colocado pela Coreia do Norte prevaleceu, continuando a prosseguir o seu programa nuclear.
 
A oposição americana quanto às aspirações nucleares da Índia e do Paquistão foi igualmente fútil, e aqueles países sentiram-se à vontade para adquirir os seus arsenais. Estes três sucessos contagiaram certamente o Irão.
 
O falhanço em conter a proliferação na Ásia Meridional deixou uma lição: mesmo a única superpotência do mundo não pode, por si só, dissuadir um país determinado a adquirir armas nucleares. Teria sido necessário um esforço preventivo com sucesso, com uma mobilização coordenada de outras potências interessadas, através da formulação atempada de um programa que incluísse incentivos à auto-contenção e consequências gravosas para os reincidentes.
 
A terceira oportunidade era relativa à Europa. O fim da divisão deste continente permitia que a parceria transatlântica podia agora ser melhorada e alargada. A exploração desta oportunidade requeria uma maior integração económica e política de toda a Europa. O problema complicou-se com o violento conflito na ex-Jugoslávia, nomeadamente na Bósnia-Herzegovina. Foi necessária a intervenção militar da NATO para fazer parar as hostilidades. O facto de a Rússia ter concordado posteriormente em participar no plano de paz, provavelmente à custa do “olhar para o outro lado” ocidental relativamente à Tchetchénia, mostrou também a necessidade de envolver a Rússia numa relação mais formal com a NATO, pese embora a vontade publicamente expressa de Clinton em alargar a Aliança. O alargamento da NATO foi efectivamente a sua realização mais conseguida mas, paradoxalmente, nem este, nem o alargamento da UE estavam inicialmente nas suas prioridades, pois pouco tinham a ver com a sua preocupação central - a globalização.
 
De qualquer modo, ele conseguiu-o. A última década do século XX marcou o ponto mais alto do papel positivo do Ocidente nos assuntos mundiais. Nada existia que os EUA e a Europa juntas - a superpotência geopolítica e o gigante económico emergente - não pudessem fazer, se o quizessem. Esta influência conjunta permitiu o sucesso do “Uruguay Round” do GATT em 1994 e a criação da OMC em 1995, passos em frente na criação de uma ordem económica global. Mas este estado de coisas durou pouco tempo. Dois acontecimentos tornaram-se mais preocupantes para o papel da comunidade atântica no longo prazo: a crise financeira na Ásia em 1997, e a crescente clivagem entre os EUA e a Europa no respeitante a regras supranacionais.
 
A grave crise de liquidez na Ásia de Sudeste, despoletada por uma profunda crise financeira japonesa, espalhou-se rapidamente à Coreia do Sul e a Taiwan. Muitos culparam as políticas dos EUA, através do FMI, pela sua lentidão a reagir.
 
O segundo desenvolvimento foi decepcionante para aqueles que espe­ravam uma liderança americana eficaz que modelasse as normas mundiais. Os EUA boicotaram acordos politicamente sensíveis como o Tratado de Ottawa que bania as minas terrestres, o estatuto do Tribunal Internacional de Justiça Criminal (Tribunal de Haia) e, ainda mais pernicioso para a reputação de Clinton como um líder com uma visão global, foi a recusa dos EUA em apoiar o esforço internacional para conter a ameaça do aquecimento global, através do Protocolo de Kyoto.
 
No final dos seus mandatos, a única realização duradoura de Clinton tinha sido a expansão e a consolidação da comunidade atlântica. A visão fundamental - a globalização - estava sob crítica intensa. Os sentimentos anti-globalização alimentaram o anti-americanismo e culminaram nas manifestações que boicotaram a reunião da OMC em Seattle, em 1999.
 
Quase imediatamente a seguir a ter assumido funções, a administração Clinton foi confrontada com erupções de violência em várias partes do mundo (Somália, Ruanda, Jugoslávia, Tchetchénia, recuos no processo de paz israelo-palestiniano, etc.) Em quase todos os casos, o primeiro instinto de Clinton foi não se envolver. Os problemas não se enquadravam no seu idealismo, nem nas preferências intelectuais. Apenas no caso da Jugoslávia a sua resposta foi positiva, tendo a conferência de paz e os Acordos de Dayton, Ohio, enfatizado o papel central dos EUA na resolução da crise, tendo a campanha contra o Kosovo, em 1999, reforçado esta posição.
 
A administração Clinton ordenou ataques aéreos limitados periódicos contra alvos militares no Iraque e quase duplicou o número de efectivos militares americanos na Arábia Saudita, fornecendo “cereal para os moínhos” dos fundamentalistas anti-americanos, nomeadamente Osama bin-Laden. Em meados de 1998, Clinton recebeu um pedido de 18 defensores da intervenção militar preventiva, instando-o a “actuar decisivamente” contra Saddam, antes que fosse tarde. Dois terços dos signatários vieram a ser funcionários proeminentes na administração seguinte, nomeadamente Paula Dobriansky, Robert Kagan, William Kristol, Richard Perle, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz.
 
Mas o legado mais desapontante e negativo de Clinton foi talvez o seu falhanço em explorar as fugazes oportunidades que surgiram, pelo menos por duas vezes (após os Acordos de Oslo, em 1993, e nos encontros de Camp David II, em 1999), relativamente ao impasse do conflito israelo-palestiniano. Muitos muçulmanos viram a entrada americana no Médio Oriente após a 2.ª Guerra Mundial como uma força libertadora do domínio colonial anglo-francês. Cinco décadas depois, um número crescente de árabes e iranianos estão cada vez mais receptivos à ideia que a região está de novo sob domínio estrangeiro, contribuindo para a cada vez maior hostilidade política e religiosa da região para com os EUA. Mesmo alguns dos aliados começaram a sentir-se mal com o hiperpoder americano.
 
Clinton era admirado globalmente e olhado com simpatia, mas não conseguiu explorar os seus oito anos de mandato para dar à recém-adquirida liderança global americana um caminho definido que fosse inspirador para outras nações. Nunca desenvolveu um esforço concertado para desenvolver, articular e prosseguir uma estratégia abrangente para o papel dos EUA no mundo volátil com que se enfrentava. Tinha o intelecto e a personalidade para o fazer, mas o seu estilo oportunístico e acidental de tomada de decisão não conduzia à clareza estratégica. Boas intenções não compensaram a falta de uma estratégia clara e determinada.
 
Foi esta herança inconclusiva e vulnerável que Clinton deixou, em 2000, ao seu doutrinalmente oposto sucessor.
 
Bush II
 
George W. Bush via-se a si mesmo trazendo “vontade firme, visão clara e fé profunda” a uma confrontação global entre o Bem e o Mal, uma confrontação que poderia mesmo justificar uma cruzada solitária.
 
Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 foram para Bush II uma manifestação divina. Desse dia em diante, ele seria o líder absoluto de “uma nação em guerra”, lutando contra uma ameaça que era directa e mortal, o comandante-chefe da única superpotência mundial. Os EUA agiriam sózinhos, desprezando as opiniões dos seus aliados. A estratégia que emergiu era uma mistura das formulações imperialistas dos militantes “neocons” de 1991 e com uma preocupação especial com o Médio Oriente. Estrategicamente, a “guerra ao terror” reflectia preocupações imperialistas tradicionais sobre o controlo do Golfo Pérsico, assim como o desejo dos “neocons” para reforçar a segurança de Israel, eliminando o Iraque como ameaça. Os resultados iniciais desta mistura levavam certamente a um excesso de confiança.
 
A arrogância que varria a Casa Branca é bem ilustrada por um dos mais chegados assessores de Bush II quando afirmava: “Esse já não é o modo como o mundo funciona (...) Agora somos um império e, quando agimos, criamos a nossa própria realidade. E enquanto estudam essa realidade, agiremos de novo, criando outras novas realidades, que podem estudar também. Somos actores da história (...) e a todos vós resta apenas estudar o que fizemos”.
 
Sem surpresas, o castigo tardou pouco tempo a chegar. Em poucos meses, a política externa da primeira potência mundial ficou dominada pelas consequências de uma guerra num país longínquo, uma guerra que os EUA tinham começado mas que não ia poder terminar. A política externa dos EUA saíu do seu ancoradouro da Aliança Atlântica e, em breve, estava condenada pela maioria da opinião pública mundial. A combinação do maniqueísmo “neocon” com a propensão de Bush II para a decisão catastrófica, fez com que a solidariedade global com os EUA após o 11 de Setembro passasse do máximo para o mínimo.
 
Contudo, existiam muito poucas indicações para esperar uma tal reacção exuberante do novo presidente. A sua campanha eleitoral nada tinha dito de relevante sobre assuntos de política externa. Alguns dos seus comentários demonstravam até alguma ignorância básica dos assuntos mundiais. Mas, após o 11 de Setembro, o segundo nível de assessores do presidente - jovens “neocons” com ideias fortes - veio à tona e tornou-se na sua fonte de inspiração intelectual. Três deles passaram a ter um papel preponderante: Condoleeza Rice, I. L. Libby e Paul Wolfowitz, Secretário Adjunto da Defesa. C. Rice tinha instruído Bush II sobre política externa durante a campanha eleitoral e representava a nova geração na Casa Branca. Tinha uma percepção determinada das complexidades mundiais, que iam de encontro à tendência do presidente para as dicotomias moralistas, reforçando a sua atracção para as retóricas redutoras sobre o Bem e o Mal. A influência ideológica de C. Rice sobre o presidente foi apoiada por Libby e por Wolfowitz.
 
Entre os membros da equipa de política externa, existia uma esmagadora maioria que defendia uma resposta musculada ao Afeganistão. O acordo era total sobre a necessidade e o direito dos EUA em eliminar o regime “taliban”, que tinha abrigado os perpetradores do ultraje de 11 de Setembro. Esta posição tinha também o apoio consensual internacional.
Bush II confirmou posteriormente, em vários comentários, que aqueles acontecimentos foram para ele como um apelo para uma missão especial, uma epifania pessoal com um toque de vocação divina. Esta crença deu-lhe uma auto-confiança tocando a arrogância e inspirou um dogmatismo maniqueísta ingénuo.
 
No respeitante ao Iraque, no início de 2002 o vice-presidente Dick Cheney e o seu chefe de gabinete começaram a pressionar os analistas da CIA. O Departamento de Defesa criou mesmo o seu próprio gabinete em Bagdade, chefiado por um dos “neocons” mais motivados, tendo este gabinete refor­çado as conclusões que o presidente e o vice-presidente sustentavam.
 
Com o presidente apoiando claramente uma intervenção militar, o vice-presidente defendendo a pior hipótese da ameaça vinda do Irão e as suas alegadas ligações à al-Qaeda, e o segundo escalão pressionando sem cessar a sua tese estratégica, criou-se um consenso a favor da acção militar.
 
Os antecedentes históricos, o processo de decisão política, a manipulação deliberadada da ansiedade pública, a estratégia e a execução da campanha militar, o caos e a revolta subsequentes, e o sectarismo da disputa que se seguiu, foram já abundante e detalhadamente descritos em inúmeros artigos. O que resta ao julgamento de cada um é a análise das consequências deste facto histórico controverso relativamente à posição dos EUA no mundo. Em 2006, era claro que os custos da guerra no Iraque tinham ultrapassado largamente o feito positivo da deposição de Saddam que, de qualquer modo, estava já praticamente manietado.
 
Em primeiro lugar, a guerra causou prejuízos calamitosos à posição global dos EUA, porque a desconfiança minou a sua legitimidade interna­cional, a fonte principal do seu “soft power”. A postura moral dos EUA, aspecto importante da legitimidade, foi também comprometida pelas prisões de Abu Ghraib e Guantanamo. Mas, mais importante do que todo o resto, desacre­ditou a sua liderança global. Os EUA deixaram de poder juntar o mundo à volta da sua causa, e de vencer pela força das armas. As suas acções dividiram os seus aliados e uniram os seus inimigos, criando-lhes novas oportunidades. O mundo do Islão movimentou-se em ódio amargo.
 
Em segundo lugar, a guerra do Iraque foi um desastre geopolítico! Desviou recursos e atenção da ameaça terrorista, fazendo com que o sucesso inicial no Afeganistão fosse perdido. As forças política e religiosamente radicais e fundamentalistas estão a ganhar apoio popular e a por em perigo regimes amigos dos EUA. Para o Irão, em termos geopolíticos, a guerra foi um lucro claro e uma derrota auto-infligida pelos EUA.
 
Em terceiro lugar, o ataque ao Iraque aumentou a ameaça terrorista aos EUA! Quando o empolgamento inicial de vitória se desvanesceu, e se tornou evidente que o argumento central para a justificação da guerra era demagógico e falso - não existiam ADM no Iraque - a continuação das hostilidades foi justificada pelo presidente como “a frente central contra o terror”! Esta “guerra contra o terror” sem inimigo claramente definido, mas com conotações fortemente anti-islâmicas, unificou a opinião pública muçulmana e transformou-a numa hostilidade crescente contra os EUA e Israel, criando assim um solo fértil para novos recrutas do terrorismo. Para os muçulmanos, o poder americano na região assemelhava-se cada vez mais à política colonial britânica nos anos 1920’s e 1930’s e à presente política de Israel.
 
Em resumo, os EUA enfrentam, numa escala muito maior, o mesmo dilema que Israel tem relativamente aos seus vizinhos árabes: qualquer deles não tem os meios para impor uma solução unilateral duradoura ditada apenas pelos seus objectivos e interesses. Os britânicos compreenderam isso e abando­naram o Médio Oriente sem um conflito prolongado; os franceses vieram a percebê-lo apenas depois de uma guerra prolongada e debilitante na Argélia; os EUA estão a assimilar com relutância a mesma lição através do seu envolvimento no Afeganistão e no Iraque.
 
A ideia de que a solução para o referido dilema é a imposição rápida da democracia na região é completamente distorcida. Historicamente, a demo­cracia surgiu através de um processo prolongado de melhoria dos direitos humanos, primeiro do ponto de vista económico, e depois do ponto de vista político, entre as classes privilegiadas e, posteriormente, num âmbito mais alargado. Esse processo confere, em troca, a aparição progressiva do primado da lei e a imposição gradual de regras legais e constitucionais sobre as estruturas do poder.
 
Contrariamente, quando a democracia é imposta rapidamente em socie­dades tradicionais, sem ser exposta à expansão progressiva de direitos civis e o aparecimento gradual do primado da lei, é provável que resulte em conflito intenso e violento, com intolerância mútua. É exectamente por este motivo que os esforços americanos para promover a democracia, seja no Iraque, seja também na Palestina, são de vistas curtas e não resultaram. O desfecho não melhorou as possibilidades de estabilidade; pelo contrário, intensificou as tensões sociais. Os esforços poderão produzir, na melhor das hipóteses, um populismo forte e intolerante, aparentemente democrático, mas de facto uma tirania da maioria.
 
À medida que o mundo do Islão é levado cada vez mais para uma paixão anti-americana, outros estados que se consideram competidores dos EUA, serão tentados a aproveitar-se dos maus caminhos dos EUA. Os produtores de petróleo do Golfo Pérsico, à procura de estabilidade política e de clientes credíveis, podem virar-se progressivamente para a China. Uma mudança política no Médio Oriente, dos EUA para a China, por exemplo, teria um efeito ondulatório na ligação da Europa com os EUA, pondo em risco a comunidade atlântica. A guerra do Iraque tornou-se numa calamidade, em todos os seus aspectos - no modo como foi decidida internamente, promovida internacionalmente, e como foi conduzida - e já marcou a presidência de Bush II como um monumental erro histórico. Talvez a única vantagem desta guerra foi ter feito do Iraque o cemitério dos sonhos “neocons”! Se ela tivesse tido sucesso, os EUA estariam agora provavelmente em guerra com a Síria e com o Irão, seguindo uma política motivada mais por ideias maniqueístas e motivações dúbias, do que por quaisquer definições lúcidas do interesse nacional.
 
No início do segundo mandato de Bush II, Condoleeza Rice ascendeu a Secretária de Estado. A política quanto ao resto do mundo vagueou de “slogan” para “slogan” sem qualquer objectivo ou estratégia. A política global dos EUA tornou-se enviezada e imobilizada. Ao contrário da “guerra do Golfo” de 1991, a campanha militar de 2003 foi em larga escala uma tarefa solitária e unilateral. Além de desestabilizar o Médio Oriente, a guerra do Iraque teve uma outra consequência, muito mais importante. Fez do sucesso ou da derrota da política dos EUA no Médio Oriente, um teste à sua liderança global. A transformação dos EUA de um mediador entre israelitas e árabes num apoiante de Israel, teve o efeito paradoxal de reduzir a capacidade dos EUA em influenciar decisivamente os acontecimentos e em aumentar a segurança de longo prazo de Israel.
 
Sob a liderança de Bush II, o antagonismo para com o Irão atingiu o nível máximo, sendo o país proclamado um membro do “eixo do mal”, o maior patrocinador do terrorismo e uma ameaça mortal, não só a Israel, mas mesmo aos EUA.
 
A crescente importância da China e a recuperação da Rússia estão a criar um novo alinhamento geopolítico das potências. A dependência da Europa das fontes de energia russas coloca também um risco à solidariedade atlântica.
 
Os interesses de longo prazo dos EUA foram também prejudicados pela sua falta de liderança em assuntos relativos ao bem-estar público. De 2001 a 2006, o desenrolar da tragédia humana no Darfur foi tratado com grande indiferença pelos EUA. Estes, não só acusaram o Tribunal Internacional de Haia como uma ameaça à sua soberania, como também utilizaram a sua influência política para obter isenções para militares americanos. O Protocolo de Kyoto tornou-se um “bode expiatório” para os cépticos do aquecimento global residentes na Casa Branca. Por fim, os EUA traíram a promessa feita em Monterrey em 2002 para “fazer esforços concretos” para aumentar substan­cialmente o nível da sua ajuda humanitária porque, de facto, numa base “per capita”, os EUA são um dos países menos generosos contribuintes para ajudar o desenvolvimento dos países mais pobres do mundo.
 
Como terceiro líder global, Bush II não compreendeu o momento histórico e, em apenas cinco anos, minou perigosamente a posição geopolítica dos EUA. Ao procurar seguir uma política baseada na ilusão de “agora somos um império e quando agimos, criamos a nossa própria realidade”, pôs em perigo os EUA! A Europa está hoje mais perdida, a China e a Rússia mais afirmativas e no ritmo certo. A Ásia está a afastar-se e a organizar-se, e o Japão está calmamente a pensar cada vez mais na sua defesa. O Médio Oriente fragmentou-se e está prestes a explodir. O mundo do Islão está inflamado por paixões religiosas e nacionalismos anti-imperialistas. À volta do mundo, os inquéritos à opinião pública mostram que a política dos EUA é largamente temida e mesmo desprezada.
 
Daqui resulta que o próximo presidente terá de fazer um esforço monumental para recolocar a legitimidade dos EUA como garante da segurança global e identificá-lo de novo para resolver os cada vez maiores dilemas sociais num mundo que é hoje mais disperto politicamente e menos susceptível ao domínio imperial.
 
O futuro
 
O famoso teórico político francês Raymond Aron afirmou no seu livro “A república imperial”: “No século XX, a força de uma grande potência diminui se ela deixar de servir um ideal”! Esta frase é crucial! O exercício da liderança global hoje requer uma compreensão institiva do espírito dos tempos, num mundo que está em agitação, interactivo, e motivado pelo sentimento de injustiça prevalecente na condição humana.
 
Quinze anos após a sua “coroação” como líder global, os EUA está a tor-nar-se num estado democrático temeroso e solitário num mundo politica­mente antagónico. Devido aos seus erros, a liderança americana perdeu grande parte da sua legitimidade e da sua credibilidade, tendo a sua estatura moral sido manchada. Dos três primeiros presidentes, o primeiro não aproveitou a oportunidade oferecida, o segundo foi demasiado complacente a resolvê-la, e o terceiro transformou-a numa ferida auto-infligida e purulenta, ao mesmo tempo que virava a hostilidade global contra os EUA.
 
Bush I deixou que o seu maior sucesso - a derrota de Saddam - se tivesse tornado estrategicamente inconclusiva. Esta vitória deveria ter sido explorada para alcançar um caminho no impasse do Médio Oriente. Em vez disso, as hostilidades israelo-palestinianas foram deixadas ferver em lume brando. A derrota de Saddam não foi explorada para iniciar um diálogo com o Irão e com o Afeganistão, completamente ignorado após o fim da invasão soviética.
 
Clinton, inicialmente pouco interessado nos assuntos mundiais, substituiu a nova ordem mundial pelo conceito de “globalização irreversível”. Após uma longa hesitação, no seu segundo mandato avançou com o alargamento da NATO, abrindo caminho para o subsequente alargamento da UE, e mobilizando uma resposta militar colectiva à brutal limpeza étnica nos Balcãs.
 
Após o 11 de Setembro, face ao sentido de auto-justiça na conduta unilateral da política externa, o símbolo dos EUA aos olhos do mundo deixou de ser a Estátua da Liberdade e passou a ser o campo de prisioneiros de Guantanamo.
 
Nesta altura, podemos perguntar o que poderia (deveria) ter acontecido. O que poderia ter sido feito desde o fim da “guerra-fria”? A política dos EUA perdeu duas grandes oportunidades! A primeira, na qual a culpa tem de ser dividida com uma Europa ingrata, ressentida e rebelde para com a liderança americana, foi a de não ter conseguido capitalizar a vitória na “guerra-fria” para institucionalizar a comunidade atlântica num projecto estratégico global comum. Momentos houve em que isso foi mais possível: a primeira “guerra do Golfo”, as intervenções nos Balcãs e no Afeganistão. Nesses momentos, a cooperação foi intencionalmente estimulada e deu frutos.
 
 
A segunda oportunidade foi o erro de não decidir avançar no problema israelo-palestiniano durante os 15 anos de supremacia.
 
Terão os EUA uma segunda oportunidade? Cremos que sim! Não existe nenhuma potência capaz de desempenhar o papel que os EUA potencialmente podem e deve desempenhar. A Europa ainda não tem a unidade e a vontade políticas necessárias para ser uma potência global. A Rússia não consegue decidir se pretende ser um estado autoritário, imperialista e retrógrado, ou um estado genuinamente moderno. A China está a emergir rapidamente como a potência dominante da Ásia, mas tem de rivalizar com o Japão.
 
Os EUA têm o monopólio do alcançe militar global, uma economia e uma inovação tecnológica sem rival, que lhe dão uma posição política mundial única. Porém, sejamos claros: levará anos de esforços deliberados e um genuíno saber político para repor a credibilidade e a legitimidade americanas.
 
Os EUA têm de reconhecer que os seus padrões de consumo colidirão em breve com as aspirações impacientes de igualdade. Quer seja no âmbito da exploração de recursos naturais, do consumo excessivo de energia, ou da indiferença para com a ecologia global. Para liderar, os EUA devem ser sensíveis, não só às realidades globais, mas também devem ser socialmente atractivos.
 
À volta do mundo, o anseio por dignidade é um desafio fundamental inerente ao fenómeno do despertar político global. Este é historicamente anti-imperialista, politicamente anti-Ocidental e cada vez mais emocionalmente anti-americano. O carácter predominantemente anti-Ocidental do activismo populista tem menos a ver com preconceitos religiosos ou ideológicos do que com experiências históricas.O domínio ocidental (europeu) faz parte da memória viva de centenas de milhões de asiáticos e africanos. Na grande maioria dos estados, a identidade e a emacipação nacionais estão associadoas com o fim do domínio imperial. Os sentimentos anti-ocidentais são pois mais do que uma atitude populista. É, antes do mais, uma parte integral da mudança global dos equilíbrios demográfico, económico e político.
 
No século XXI, a população da maior parte do mundo em vias de desenvolvimento está num tumulto político, e este processo está a originar uma mudança no centro de gravidade global. É uma população consciente da injustiça social sem precedentes e ressentida das privações e da falta de dignidade pessoal que tem sofrido. O despertar político tornou-se geograficamente global, abrangente na escala social, muito jovem no perfil demográfico (e portanto receptivo à rápida mobilização política), e transnacional nas fontes de inspiração, devido ao impacto cumulativo da literacia e das comunicações.
 
A mudança do centro de gravidade do poder é mais evidente no poder económico crescente dos estados asiáticos. Quaisquer que sejam as possibilidades da China, do Japão, da Índia, da Coreia do Sul (e também da Indonésia, do Paquistão e do Irão), muitos deles estarão a par dos estados europeus e das economias mundiais mais dinâmicas. Pense-se ainda no Brasil, na África do Sul e noutros estados não-asiáticos, e não custa muito a prever que as instituições financeiras globais dominadas pelo Ocidente - Banco Mundial, FMI, G8 e OMC - irão estar sob forte pressão para redistribuir os procedi­mentos de tomada de decisão.
 
Os EUA só podem superar o risco do despertal global se virar contra si, se se conseguirem identificar com a ideia da dignidade humana universal, e do seu inerente respeito pelas diferenças culturais, políticas, sociais e religiosas.
 
No passado, era mais fácil e menos custoso governar um milhão de pessoas do que matá-las. Hoje, é o oposto que é verdadeiro: o poder para destruir excede largamente o poder para controlar. A liderança global deve ser acompanhada por uma consciência social, uma disponibilidade para alcançar compromissos quanto a alguns aspectos da soberania de cada um, um apelo cultural com mais do que um conteúdo hedonístico, e um respeito genuíno pelas tradições e valores humanos.
 
“Em nenhum outro lugar além do Médio Oriente, este dilema complexo dos nossos dias entre ordem e instabilidade, liberalismo e democracia, laicidade e radicalismo religioso encontra maior acuidade, em todas as suas facetas mais preocupantes. E em nenhum outro lugar, é mais vital que os EUA façam o seu trabalho bem, quer na teoria, quer na prática.”1
 
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* Este trabalho é uma síntese de “Second chance: Three Presidents and the crisis of american superpower”, último livro (2007) de Zbigniew Brzezinski, conhecida personalidade política americana, ainda não publicado em Portugal. Foi conselheiro do presidente Jimmy Carter para política externa e autor do famoso clássico da Geopolítica “The grand chessboard - American primacy and its geopolitic imperatives” (1998). Pelo seu interesse e actualidade, achou-se oportuna a sua divulgação. O autor fez todos os possíveis para manter a letra e o espírito do original, deixando aqui e acolá, pequenos comentários.
** Mestre em Estratégia pelo ISCSP.
 
 1 ZAKARIA, Fareed - “O futuro da liberdade - A democracia iliberal nos Estados Unidos e no Mundo”, Gradiva, Lisboa, 2004, p. 114.
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2009-02-05
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia