“Deus Quer, O Homem Sonha, A Obra Nasce...”.
O Contributo do Desafio Atlântico para a Concretização da Portugalidade
1. Nota introdutória
Depois da hora em que os dinheiros da Europa, chegados a Portugal, pareciam não ter fim, eis que o País tem vindo a despertar ultimamente num quotidiano triste, num dia-a-dia sem alma, numa existência em que parece já não haver forças para questionar a vida e os projectos que nela se tecem. À deriva entre os escolhos do que, ainda há pouco, já foi e a incerteza do que, logo mais, já não será, a nossa Pátria tem vindo a gerir o seu presente como se o seu futuro fosse aquele que se desvela a uma empresa dotada de... massa falida.
A intelligentzia nacional que, ainda há não muito tempo sobrevivia embarcada numa ideia de Europa que não admitia o questionamento, apregoa, num unanimismo perigoso, o desnorte último do projecto nacional. Muitos empresários, grandes, médios e pequenos, reclamam que integrados em Espanha teríamos um porvir mais bonançoso. Os universitários pensam que, com o processo de Bolonha, tudo se resolverá... a contento da manutenção dos empregos.
É o Povo, esse Povo esquecido e hoje já sem voz, que pergunta: é o meu um País com sentido? E os serranos, abrasados pelas sequelas da floresta que, ano após ano, é derrotada pelo fogo misterioso, sabem intuitivamente a resposta àquela questão. O Povo sabe que os maiores são a Luz que alumia o caminho que os filhos, um dia, hão-de trilhar... O Povo sabe...
...Permitam-me que evoque um episódio familiar, ocorrido há alguns anos. Estávamos em dia de Sexta-feira Santa, em S. João de Rei, lá nesse Minho que o general Jean-Andoche Junot, ao retirar humilhado para França, disse ter uma Natureza demasiado esplendorosa para os bárbaros que lá habitavam. Meu primo António Celestino e eu próprio cuidávamos do cognac que iria acalentar o almoço semi-jejuado, quando entrou o caseiro, que trazia uma mensagem.
- Remígio, tu queres?, inquiriu o primo Celestino.
- Não, Senhor Comendador. Logo Cristo morre e eu tenho que cuidar dele!
Atentemos no sentido profundo deste episódio. Enquanto que os da cidade, cosmopolitas e já globalizados, tratavam de remediar o fastio de uma refeição comida por imposição litúrgica, o homem simples lembrou o sentido simultaneamente popular e sagrado da vida, que já encontramos esculpido no Cancioneiro Geral. Estamos, aqui, ante o próprio Menino Jesus, de Guerra Junqueiro que, a certas horas do dia, sobe à Cruz para ajudar o Padre na celebração da missa.
O homem simples, todos os Remígios de Portugal sabem que, enquanto Povo, “nós somos feitos para o impossível”1, almejando, a cada saída de Calecut, a chegada à Ilha dos Amores. Aí, na nossa Ilha de São Borondon ideal, os marinheiros “continuam marinheiros, continuam bichos. Bichos! E ao mesmo tempo ouvem os deuses. Os deuses vêm, cantam coisas, contam coisas, estão no mesmo mundo dos deuses, estão fora do espaço e do tempo”2.
2. O que é Portugal?
Apesar das realizações, porventura sucessivas e grandiosas, de índole material, convém lembrar que este é o plano instrumental para a concretização da Pátria. De acordo com o já referido Guerra Junqueiro, preconizo que o nosso País “não é uma tenda, n[em] um orçamento uma bíblia. Ninguém diz: a pátria do comerciante Araújo, do capitalista Seixas, do banqueiro Burnay. Diz-se a pátria de Herculano, de Camilo, de Antero, de João de Deus. Da mera comunhão de estômagos não resulta uma pátria, resulta uma pia”3. É, pois, de acordo com os anseios da Escola Portuense, que afirmo ser a traditio a base da revolutio. Tradição, de tradere, equivale a “entrega”, é aquilo que se passa de um a outro, trans, um conceito que é irmão dos de transmissão e de transladação. Tenho para mim que não pode ter esperança quem não tem recordações: é o caminho percorrido que nos dá forças para percorrer o que falta. Podemos, contudo, rejeitar a herança; podemos aceitá-la, criticando-a; podemos, ainda, aceitá-la sem qualquer tipo de crítica. Não aceito, contudo, que os povos sejam tábuas rasas que, sem memória de nada, criem tudo a cada momento do seu existir.
Se a Pátria é passado - ela é, no dizer de Maurice Barrès, la terre et les morts - é, fundamentalmente, como declarou Claudel, la mer et les vivants. Melhor: a Pátria é a terra, o mar, os mortos, os vivos e os ainda não nascidos. Em tensão entre o passado e o devir, a Pátria será, no futuro de todos nós, connosco, mas com aqueles que, hoje, ainda não são.
Actualmente, na Europa mergulhada no pensiero debole sem saída, o que é Portugal? Hoje, “somos superlativamente europeus porque já o éramos quando a Europa se definia na História do mundo como continente medianeiro. É para a Europa, talvez, que nós constituímos, se não um desafio, pelo menos um problema”4. Assim, e dilematicamente, diga-se, provámos, ao longo da nossa História, que não podíamos ser digeridos enquanto portugueses, dado que a nossa vocação é a de estar no mundo como estar em nossa própria casa. Paradoxalmente, já o Padre António Vieira nos advertia do nosso complexo maior, do nosso atavismo de sempre: “Todos nos cansamos em guardar Portugal dos Castelhanos, e devêramo-nos cansar mais em o guardar de nós. Guardemos o nosso Reino de nós, que nós somos os que lhe fazemos a maior guerra”5.
3. Para quê Portugal?
É tempo de deixarmos, como tema fulcral das nossas vidas, as questões relacionadas com os critérios de convergência nominal, as quotas de produção de isto e de aquilo, a maçã e o pêssego normalizados a partir das normas emanadas de Bruxelas. Tudo isto, que é importante, só o é num único plano: o material. Talvez hoje, enquanto comunidade, estejamos condenados ao nada. Ainda assim, se é o nada que nos está reservado, como destino último, tanto em termos pessoais quanto em termos colectivos, devemos começar por lutar, brava e rijamente, contra tal fatalidade. Talvez sejamos os Sefarditas de uma Sefarad da qual ninguém nos expulsou; talvez sejamos, contemporaneamente, a bíblica tribo de Issachor6. Ainda assim, ante a tentação do gageiro sinistro da Nau Catrineta, temos o dever de cumprir o destino do seu capitão general:
“Renego de ti, demónio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus;
O meu corpo dou eu ao mar”7
Se, de nós, alguns - talvez não tão poucos quanto isso - querem remover o Espírito e se cada um de nós aquiescer resignado, já vencido pela vida, então talvez os momentos mais pessimistas de Luís de Camões, de Lord Byron, de António Nobre e de Manuel Laranjeira tenham razão. Se, nós, já tolhidos pela circunstância em que nos encontramos mergulhados, não temos capacidade para a criticar, explorando criativamente os rumos que, hoje, se abrem par em par ao nosso Povo, então devemos ouvir o nosso Poema Nacional. Referindo-se a isto, Camões narra a “austera, apagada e vil tristeza”8; o romântico inglês disse dos Portugueses paralisados pelos atavismos decorrentes da Revolução Industrial:
“Poor, paltry slaves! yet born ’midst noblest
scenes -
Why, Nature, waste thy wonders on such men?”9;
o tísico sublime de Oitocentos, esse, clama n’o livro mais triste que se escreveu no nosso País: “[...] Amigos,/ que desgraça nascer em Portugal!”10; Manuel Laranjeira, toldado por uma crise de vontade que o conduziria ao suicídio e que levaria a República ao colapso, escreve sobre a crise da matéria: “A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta, detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha, sobretudo... sem dinheiro. Apesar de isso, em Portugal ainda há muita nobreza moral, ainda há pelo menos nobreza moral bastante para morrer”11.
*
* *
Portugal foi grande, quando, ao longo da sua História, encarou o mar, assumindo-o como desafio estratégico; Portugal tem sido pequeno sempre que, em cada bifurcação civilizacional, se posiciona tendo como horizonte último o continente europeu. Saímos da crise de 1383/1385, rumando para o Norte de África; no século XVI, desenvolvemos as adaptações pertinentes para, uma vez falida a rota do Cabo, iniciarmos o dinamismo da rota do Atlântico; o ouro e os diamantes do Brasil foram, em Setecentos, o aliquid 12 que nos permitiu o delírio do Barroco e, também, os excessos do ministro todo-poderoso de D. José, o marquês de Pombal.
O “para quê” tem sentido se Portugal se assumir como realidade espiritual de feição atlântica. Dar, ao mundo, novos mundos, significa, actualmente, dar a todos o mesmo pão para o corpo e proporcionar a cada um o pão substantivamente diverso para o Espírito. O projecto de uma Civilização Lusíada, norteada pelo Amor, não é novo. Ele teve intérpretes de primeiro plano. Lembremos alguns. O exercício merece bem a pena, embora, hoje mesmo, um velho muito antigo, residente no nosso Restelo mental, diga aos novos Nautas:
“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão fàcilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos? que palmas? que vitórias?”13
Santo António de Lisboa enfatiza o papel do amor gémeo nos seus Sermões, tanto os Dominicais, quanto os Festivos. O franciscano, pregador in universum, não se cansa de falar no amor a Deus e ao Próximo, sentimento total e retributivo que consiste na paga do Amor dispensado aos homens na Criação e na Redenção. Tal Amor é, a um tempo, atitude de doação caritativa entre semelhantes: “Amor, no étimo latino, significa ligar dois entre si. O amor, na verdade, começa por dois: o amor de Deus e o do próximo. O amor só nos bons costuma existir. Amar significa ligar dois”14. Prosseguindo, o Santo escreve, agora no plano dialógico: Deus, “no princípio antes de existires, deu-te a ti, no segundo momento, sendo tu mau, deu-se a ti, para que fosses bom, e quando se te deu, restituiu-te a ti. Dado, portanto, e restituído, deves-te duas vezes e deves-te todo”15.
A doação, atitude extravagante em épocas repletas de hybris e de mundo, como foi a de Santo António e é a nossa, colhem uma advertência que é, ela própria, trans-temporal: “Aquele que não é infundido pela graça da caridade, olha como estranho o seu próximo, ainda que o tenha gerado para Deus”16.
Amor prenhe de modernidade é o Amor antoniano, esse que nos propõe o trânsito de Jericó até à Jerusalém Celeste, abrindo perspectivas - ainda hoje - novíssimas, nos campos da Ética e da Antropologia, para um Povo que, de há muito, do mundo fez a sua casa.
Aproximemo-nos, agora, de D. Duarte. O rei-filósofo faz no a, b, c da lealdade, o Leal Conselheiro, a teorização desse pacto intangível com os do seu reino, pacto esse destinado a preparar intelectualmente a epopeia da Expansão. O travejamento teórico da obra maior do monarca da Ínclita Geração assenta na lealdade, no entendimento e na experiência.
A partir da fidelidade estruturante que manifesta a seu Pai, D. Duarte defende que, para Portugal continuar a ser Portugal depois desse momento telúrico que foi a tomada de Ceuta, teriam os Portugueses que ter presentes os três regimentos subjacentes à prática da lealdade: a da sua pessoa; a da casa e do Reino; a da cidade ou de qualquer julgado17.
Dado que o entendimento é a “nossa virtude mui principal”18, para vivermos bem e virtuosamente, nós que temos a obrigação de alcançar a felicidade, na dignidade, necessitamos do concurso da razão: é ela que permite à vontade escolher bem. Estamos, deste modo, ante o “boo entendimento”19, que D. Duarte identifica com o siso, a prudência e a discrição.
Por maiores que sejam as mudanças, de teor político e social, sofridas pelo País, é possível que cada um viva sempre virtuosamente, se para tanto se esforçar e trabalhar, contando com “a graça do Senhor Deus”20. Neste sentido, cada um de nós tem que aprofundar o conhecimento que tem, do mundo e da vida, no sentido de evitar os erros, seguindo o exemplo dos discretos e sisudos.
Diacronicamente distanciado de Roma, D. Duarte retoma princípios de governação que nenhum tempo poderá ignorar, sob pena de naufrágio estrutural. Referia-se o rei à gravitas, à simplicitas, à auctoritas que têm que estar presentes na vida de qualquer Estado. D. Duarte ousou criar, por intermédio das suas reflexões morais e políticas, uma plataforma coerente que visa ousar, tendo o passado como base crítica da novidade que irrompia num mundo que já não era medieval, mas que ainda não era o do Renascimento, não hesitando, contudo, em aventurar-se rumo ao ignoto.
Peguemos no Atlas Universal, de Diogo Homem. O original está, hoje, na Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo. Jóia da cartografia europeia de inícios do século XVI, ele é uma leitura atentíssima desse mundo que, inexoravelmente, já não estava no centro do Universo. A obra de “Diegus Homê Cosmographus Lusitanus” é a cúspide do grande segredo Português, já em finais do século XV: os portulanos e as cartas de marear. Dizem, lá para os lados onde vivo, que foram estes segredos magníficos, de matriz Templária e de usum reservatum, que fizeram com que Cristóvão Colombo tivesse viajado até à vila de Alcáçovas para roubar os mapas que o levariam até às Índias Ocidentais.
José Pereira de Sampaio, literariamente conhecido por intermédio do seu pseudónimo, Sampaio Bruno, é claro ao propor como abóbada para a sua teoria messiânico-humanista, a era dos Cavaleiros do Amor. Na sua metafísica da Redenção, Bruno aponta-nos o caminho necessário, a via para consuarmos o porvir: “Dissipe-se a nuvem que encobre o heroe. O heroe não é um principe predestinado. Não é mesmo um povo. É o homem”21. O especulativo portuense prossegue: “A fé será theorema; e o imperio não virá da conquista. Não desanimemos porque não nos illudamos”22; mesmo que, ainda hoje não consigamos desvelar o sentido último d’O Encoberto, um dia, “em todo o mundo, a Paz será”23.
Civilização de Iniciados é, pois, a dos Cavaleiros do Amor, que terá como tarefa o instaurar da Revolução. Segundo Bruno, aquela está concebida como “todo o esforço contra a guerra, a escravatura, a tirania, a exploração do homem pelo homem; a Revolução é toda a doutrina e todo o acto que encaminha para a paz; que dê aos homens a liberdade, a igualdade, a fraternidade”24. Assim, “por curtos momentos sublimes, os mudos (pelo terror político e religioso) readquirirão no recinto sagrado a fala, os cegos (pelo fanatismo e pela superstição) verão a luz (da verdade política e religiosa). Eles constituirão uma irmandade, por degraus sucessivos ascendendo na posse da lenta plenitude da Razão, suavemente obedecendo, suavemente mandando, usufruidores duma liberdade que coexiste com a obediência, crescente segundo avançam os graus de iniciação e consoante cada vez mais cada qual progride na aquisição perfeita dos escondidos mistérios”25.
Não tenhamos medo das palavras, que elas já não levam ninguém para a fogueira. A Civilização do Amor é aquela que, no entender do Padre António Vieira, tem Saudades do Futuro, ou seja, é um Império, o Quinto, que é simultaneamente temporal e espiritual26. É, pois, com os olhos postos na Esperança, muito mais do que na Lembrança, que temos o dever de prospectivar o que queremos ser enquanto Portugueses.
E é, digamo-lo também, inspirados por Mestre Agostinho da Silva, uma Esperança bolinante, aquela que tem que mover-nos, enquanto Povo. É essa Esperança, tecida contra a própria desesperança, nessa maré contrária em que “o vento vem e dá/ e vem a sorte e tira”27 que temos que erguer a voz para fazermos ouvir os “cantos de oxalá/ lutando com a mentira”28. Ao falarmos na Civilização do Amor falamos na Civilização do Bem, do Belo e do Verdadeiro. Esta é, verdadeiramente, a Civilização da Raza Cósmica, aquela que, segundo José Vasconcelos, é a raça final, a civilização unicamente possível a partir da mestiçagem gerada no encontro havido entre a casa grande e a senzala.
Apesar de Gilberto Freyre ter alvitrado, com a “teoria do luso-tropicalismo”29, a vocação regionalista e universalista dos portugueses e seus descendentes, bem como a sua tendência para a mestiçagem, que tomou forma no Brasil, a proposta de uma síntese entre a “hispanidad” e a “lusitanidade”, concretizada a partir da Argentina e do Brasil foi levada a cabo pelo mexicano José Vasconcelos, na obra La Raza Cósmica.
Tendo por base reflexiva a verificação da mestiçagem realizada em todo o Centro e Sul do continente americano, o filósofo de Oaxaca propõe-nos “la raza definitiva, la raza síntesis o raza integral, hecha con el genio y con la sangre de todos los pueblos y, por lo mismo, más capaz de verdadera fraternidad y de visión realmente universal”30 que, para lá das raças já conhecidas, teria a capacidade de aplicar “la ley de los tres estados: el material, el intelectual y el estético”31. Seria por seu intermédio que se chegaria, “a la creación de una raza hecha con el tesoro de todas las anteriores, la raza final, la raza cósmica”32.
4. Onde é Portugal?
Sendo, aqui, no canto mais ocidental da Europa, Portugal é em todos os locais onde deixámos marcas, perenes, da nossa passagem. Universalista na sua vocação, o País em que nascemos foi, e continuará a ser, pela dinâmica espiritual que conseguir imprimir aos seus projectos vitais. Não pensemos que foi por um qualquer feitiço histórico que elegemos ao plano de herói nacional um Poeta. Não foi. Quisemos todos honrar, em Luís de Camões, a gesta Lusíada e, a um tempo, a dimensão onírica que cada Português, viajante, aventureiro e troca-tintas, transporta consigo, esteja ele onde estiver, viva ele onde viver. Saibam os governantes dar-nos um ideal utópico suficientemente credível e voaremos, nas asas do sonho, rumo às Índias Espirituais do nosso encantamento! Saibamos explicar, a quantos vivem e convivem connosco, as potencialidades genesíacas de que somos portadores, que seremos, na Europa e no mundo, a feição única de um império humanista sem imperador!
Convém, no entanto, ter presente que “nós somos uma pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação. Contudo, se exceptuarmos talvez a Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou [...] um direito tão claro a ser tido por ‘grande’”33.
Portugal é onde, verdadeiramente, reside uma comunidade de Portugueses. Se o filósofo da alteridade, Emmanuel Lévinas, definiu a Europa como sendo “la Bible et les Grecs”34, nós podemos afirmar, sem receio a sermos tidos por prestidigitadores de vontades terceiras, como sendo a nossa a Pátria da língua Portuguesa. A intencionalidade é pessoana: ouçamos, então, para enfatizar, o que um dos heterónimos do autor da Mensagem assevera: “Minha patria é a lingua portuguesa”35.
5. Últimas considerações
Suum quique tribuere tem que ser a divisa desta Portugalidade renascente. “Dar a cada um o seu” é um grito de Amor; é, também, uma súplica cristã. Impõe-se, actualmente, como exigência moral: que aqueles que tudo possuem dêem algo aos que mendigam a sobrevivência. Se cada ser humano é um Outro idêntico a mim, em dignidade e direitos, rezemos, aqui, essa oração cívica que o hoje tão esquecido Raul Brandão escreveu em tempos:
“Espero pelo dia - mesmo na cova o espero - em que acabe a exploração do homem pelo homem.
Espero pelo dia em que a instrução seja realmente gratuita e obrigatória para todos - e o ensino religioso. Quero o culto de Deus vivo nas escolas.
Espero que a terra seja de quem a cultiva. É absurdo possuir a terra como quem tem papéis para receber os juros.
Espero que a herança seja contida em justos limites.
Espero o dia em que o homem compreenda que o supérfluo é um crime.
Mais justiça e mais pão para todos. Mais Deus para todos”36.
Aguarda-nos a reinvenção de um País. Em meu entender, talvez hoje, como em poucas épocas da nossa História, adquiram significado estas palavras daquele poeta falecido no esquecimento dos notáveis, em Lisboa, num dia de Novembro de 1935:
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quiz que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo”37
Os versos de Fernando Pessoa, acabados de pôr em evidência, devem ser a chave para o entendimento da Esfera Armilar que cobre os caixões de quantos, por Portugal, deram a vida. O Infante Santo e o Ferroviário do Corpo Expedicionário Português tombaram para que nós, hoje, estejamos aqui, prontos a entregar o testemunho do que somos às novíssimas gerações. Mas temos que fazer mais. Sejamos generosos. Sejamos interiormente grandes. Vivamos com a austera gravidade dos Romanos da República. Sejamos, a um tempo, irrepetíveis e universalistas. E acreditemos.
Termino, fazendo minhas as palavras lapidares de Teixeira de Pascoaes:
“É preciso rezar, cantar e trabalhar;
Ter esta força de alma e de certeza
Que esculpe em bronze de harmonia
A nossa espiritual fisionomia
E nos leva a encarar, sem, medo, a negra Morte!
Sim: é preciso crer. Acreditai!
O peso bruto, a inércia dominai!
Erguei, cantando e orando, a voz!
Vencei a triste Sorte,
Invisível espectro, além de nós...”38
1 ANTÓNIA DE SOUSA, O Império Acabou. E Agora? Diálogos com Agostinho da Silva, 5.ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 2003, p. 140.
2 Id., ib., p. 215.
3 GUERRA JUNQUEIRO, Pátria, in (Organização e introdução de Amorim de Carvalho), Obras. Poesia, Porto, Lello & Irmão - Editores, s. d., p. 637.
4 EDUARDO LOURENÇO, Nós e a Europa ou as Duas Razões, 3.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 23.
5 Pe. ANTÓNIO VIEIRA (Prefácios e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade), Obras Escolhidas, Lisboa, Livraria Sá da Costa - Editora, 1954, Vol. X (Sermões. I), p. 257.
6 “Issachor é um jumento musculoso, Que se deita sobre as colinas. Saboreou o encanto do repouso, E as delícias do pasto; Entregou os ombros ao Jugo, E tornou-se tributário.”, Gn., 49-15. Vide, sobre as consequências da identificação da tribo de Issachor com Portugal, J. M. DE BARROS DIAS, Miguel de Unamuno e Teixeira de Pascoaes. Compromissos Plenos para a Educação dos Povos Peninsulares, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002, Vol. I, pp. 278-279.
7 ALMEIDA GARRETT, Romanceiro, in Obras, Porto, Lello & Irmão - Editores, s. d., Vol. II, p. 965.
8 LUÍS DE CAMÕES, Os Lusíadas, X, 145.
9 LORD BYRON GEORGE GORDON, The Works of..., Boston, C. H. Simonds Company, 1900, Vol. II (Child Harold’s Pilgrimage), p. 16.
10 ANTÓNIO NOBRE, “Em Certo Reino, à Esquina do Planeta”, Só, 15.ª ed., Porto, Livraria Tavares Martins, 1971, p. 148.
11 Carta de Manuel Laranjeira a Miguel de Unamuno, Espinho, 28.X.1908, in MANUEL LARANJEIRA (Prefácio de Miguel de Unamuno), Cartas, Lisboa, Portugália Editora, 1943, p. 146.
12 Fazemos uso deste conceito a partir do entendimento que dele faz Santo Anselmo, apropriando-o para o plano da reflexão política: “Nós realmente acreditamos que tu és - alguma coisa [aliquid] maior do que a qual nada se pode pensar -.”, S. ANSELMO, Próslogion, in (Prefácio de José Gama), TERTULIANO; S. AGOSTINHO; S. TOMÁS DE AQUINO; PEDRO HISPANO, Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval, 3.ª ed. revista, Braga, Faculdade de Filosofia, 1991, trad. do original latino por António Soares Pinheiro, p. 137.
13 LUÍS DE CAMÕES, Os Lusíadas, IV, 97.
14 SANTO ANTÓNIO DE LISBOA (Introdução, tradução e notas de Henrique Pinto Rema), Obras Completas, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1987, Vol. II (Sermões Dominicais), p. 20.
15 Id., ib., p. 22.
16 Id., ib., p. 55.
17 Cf. D. DUARTE (Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro; Prefácio de António Botelho), Leal Conselheiro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998, p. 373.
18 Id., ib., p. 8.
19 Id., ib., p. 39.
20 Id., ib., p. 350.
21 SAMPAIO BRUNO, O Encoberto, Porto, Livraria Moreira - Editora, 1904, p. 378.
22 Ibidem.
23 Id., ib., p. 381.
24 SAMPAIO BRUNO, A Voz Pública, Porto, 22.IX.1904, in (Introdução de Joel Serrão), Os Cavaleiros do Amor. Plano de Um Livro a Fazer. Dispersos e Inéditos, Lisoba, Guimarães Editores, 1960, p. 53.
25 SAMPAIO BRUNO, “O Emprego da Noite”, A Águia, Porto, n.º 38, II.1915, in Id., ib., p. 118.
26 Cf. Pe. ANTÓNIO VIEIRA (Introdução, actualização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu), História do Futuro, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992, pp. 363-366.
27 PEDRO BARROSO, “Cantos d’Oxalá”, in Cantos d’Oxalá, Edição CDTOP, 1996.
28 Ibidem.
29 Cf. GILBERTO FREYRE, Casa-Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., 524 (3) pp.; (Prefácio de António Sérgio), O Mundo que o Português Criou. Aspectos das Relações Sociais e de Cultura do Brasil com Portugal e as Colónias Portuguesas, 2.ª ed., Lisboa, Livros do Brasil, s. d., 221 (2) pp.
30 JOSÉ VASCONCELOS, La Raza Cósmica. Misión de la Raza Iberoamericana. Argentina y Brasil, 4.ª ed., México, Espasa-Calpe Mexicana, 1976, p. 30.
31 Id., ib., pp. 52-53.
32 Id., ib., p. 53.
33 EDUARDO LOURENÇO, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português, 3.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988, p. 19.
34 Cf. EMMANUEL LÉVINAS, “La Bible et les Grecs”, in À L’heure des Nations, Paris, Les Éditions de Minuit, 1988, pp. 155-157.
35 FERNANDO PESSOA (Recolha e transcrição dos textos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; Prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho), Livro do Desassossego por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982, p 17.
36 RAUL BRANDÃO, “Balanço à Vida”, in Memórias, Lisboa, Seara Nova, 1933, Vol. III (Vale de Josafat), p. 31.
37 FERNANDO PESSOA, Mensagem, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1934, p. 51.
38 TEIXEIRA DE PASCOAES, in (Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho), Obras Completas, Venda Nova, Livraria Bertrand, s. d., Vol. I (Belo. À Minha Alma. Sempre), pp. 214-215.
_____________________
* Doutorado em Filosofia da Educação. Professor Associado da Universidade de Évora.