Nº 2425/2426 - Fevereiro/Março de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
IN MEMORIAM E EVOCAÇÃO
Tenente-General KAÚLZA OLIVEIRA de ARRIAGA
 
O Tenente-General Kaúlza de Arriaga nasceu no Porto em 18 de Janeiro de 1915 e faleceu no Hospital Militar Principal, em Lisboa, em 2 de Fevereiro de 2004. Era Sócio Efectivo da Revista Militar desde 1967, com o nº 192.
 
Depois de ter sido aluno brilhante na Universidade do Porto, ingressou na então Escola Militar em 1935, com destino ao Curso de Engenharia Militar, que concluiu em 1939, com a elevada classificação de 16,6 valores. Após o tirocínio, manteve-se colocado na Escola Prática de Enge­nharia, em Tancos, até fins de 1946. Atento à forma como a Engenharia Militar vinha sendo empregada durante a 2.ª Guerra Mundial, propõe e acaba por ver aprovada a criação de uma nova especialidade, a de Sapadores de Assalto, cujos planos de instrução elabora e da qual se torna o primeiro instrutor. Manifesta, assim, desde o princípio da sua carreira, características que o distinguirão pela vida fora: atenção à modernidade técnico-científica, capacidade de iniciativa e atracção pelas chamadas “tropas de elite”. Na EPE, evidencia-se ainda na área físico-desportiva, nomeadamente nas modalidades do hipismo, participando com regularidade e mérito em concursos nacionais e internacionais, e do corta-mato, então ainda pouco praticado. Afirma-se, pois, desde subalterno como um Oficial de excepção e completo.
 
Concorreu ao Curso de Estado-Maior, que frequenta de 1946 a 1949, concluindo-o, já Capitão, com a classificação de “distinto”. Em fins de 1949, publica a sua primeira obra de vulto, intitulada “Energia Atómica”, a primeira editada em Portugal sobre tema então palpitante, obra de divulgação, mas cientificamente sólida, e que confirma a sua inclinação para o que é novo e condicionador do futuro.
 
É nomeado na mesma altura Ajudante de Campo do Ministro da Defesa Nacional, cargo recém-criado. Promovido a Major em 1952, já no Corpo do Estado-Maior, assume pouco depois as funções de Chefe de Gabinete do MDN, que exerce até 1955, tendo entretanto sido designado, em 1954, Vogal da Junta de Energia Nuclear (JEN), em representação da Defesa Nacional. Neste período de 1949/55, de forte evolução das Forças Armadas no quadro da OTAN, colaborou estreitamente com o Ministro na organização do Ministério e do Secretariado Geral da Defesa Nacional, na elaboração de importante legislação e em várias e delicadas negociações internacionais.
 
Cessa aquelas funções para assumir o cargo de Subsecretário de Estado da Aeronáutica que, embora criado em 1952, quando a Força Aérea se tornou num novo Ramo das Forças Armadas, nunca havia sido provido. Como primeiro Subsecretário e, posteriormente, Secretário de Estado da Aeronáutica, chamou a si a organização geral da Força Aérea, a sua organização técnico-militar em unidades de voo operacionais, adaptadas aos vários tipos de missões e com capacidade de sustentação e de apoio, a concepção e implantação de uma infra-estrutura à escala nacional (Metrópole e Ultramar) e a condução de um esforço de reequipamento atento ao futuro previsível em África. A dimensão e a larga visão da obra realizada em período relativamente curto são reconhecidas como excepcionais e largamente devidas à capacidade de trabalho, dedicação, dinamismo, inteligência e capacidade de impulso do então Tenente-Coronel (e Coronel, desde fins de 1960) Kaúlza de Arriaga. Mantendo a sua atracção pelas tropas de elite e antecipando a futura necessidade de forças de intervenção de grande mobilidade, rusticidade e eficácia operacional, cria o Corpo de Tropas Pára-quedistas. E, em mais uma manifestação de inovação e modernidade, promove a inclusão naquele Corpo de enfermeiras Pára-quedistas, em regime de voluntariado, medida que pode ser considerada revolucionária para a época.
 
Em Abril de 1961, contribuiu decisivamente para fazer abortar um movimento militar, que envolvia algumas das mais altas personalidades e chefias militares, mas não tinha a anuência do Presidente da República, e que visava a destituição do Presidente do Conselho e a resolução do problema do Ultramar através duma solução que era pretendida negociada.
 
Exonerado, em fins de 1962, das funções de Secretário de Estado, frequenta, no ano lectivo de 1963/64, o Curso de Altos Comandos, que conclui com a classificação de “Muito Apto”. Promovido a Brigadeiro pouco depois, é nomeado professor daquele Curso, para a área de Estratégia, funções que desempenha até ao final do ano lectivo de 68.
 
Identificado, nas suas linhas gerais, com as concepções teóricas do General Beaufre, recém-publicadas, enriquece-as e desenvolve ideias próprias, tornando-se imediatamente o grande modernizador e dinamizador do estudo da Estratégia em Portugal. Revela-se ainda um notável geopolítico. Além de criar novos conceitos, produziu uma análise geoestratégica a nível mundial em que antevia o fim do comunismo na Rússia, quando a geração do pós-guerra assumisse o poder, e a progressiva e crescentemente acelerada unificação (inclusive nos domínios da política externa e da defesa) de toda a Europa, do Atlântico até ás fronteiras com a Rússia, e admitiu a futura constituição de um Ocidente tripolar, formado pelos EUA, UE e Rússia, reforçado com a Ásia Marítima/Oceânia, em face de um Oriente unipolar, constituído pela China e alguns vizinhos próximos. Admitia ainda a transformação do Brasil e da República da África do Sul em potências estratégicas regionais. No âmbito da teoria estratégica, aprofundou e desenvolveu criativamente os conhecimentos que existiam no domínio das estratégias nuclear e subversiva.
 
Sob a capa de um “Ciclo de Estudos Estratégicos”, e que foi aberto a altas personalidades civis seleccionadas e estranhas ao IAEM, apresentou em 1967, de forma hábil, concepções ousadas sobre o problema estratégico português. Com base na análise geoestratégica já referida e no princípio estratégico de, se necessário, sacrificar o secundário, concentrando os esforços no essencial e, por outro lado, tendo presente que as novas e futuras gerações teriam certamente valores, experiências e mentalidades diferentes das da classe dirigente no momento, admitia que o País devia preparar-se para duas opções, que designava por “pequena” e “grande”. A “pequena opção” traduzia-se no abandono, se necessário, de responsabilidades políticas na Guiné, Macau e Timor. A “grande opção” respeitava aos restantes territórios, estrategicamente relevantes, e podia traduzir-se em três soluções, que salvaguardavam os interesses nacionais, por ordem de preferência: manutenção da integração política em Portugal, ainda que com graus de autonomia política variáveis a definir, inclusive em função do processo de integração europeia; integração no quadro de uma Comunidade luso afro-brasileira ou de uma Comunidade da África Austral (com excepção de Cabo Verde), que garantissem a continuidade das comunidades brancas e de outras raças, sociedades verdadeiramente multirraciais e a língua portuguesa como idioma oficial.
 
Desempenhou ainda, entre 1966/69, as funções de Presidente, eleito, da Comissão Executiva da empresa mista de petróleos Angol e, entre 1967/69, as de Presidente da Junta de Energia Nuclear.
 
Na Angol, definiu e propôs ao Governo uma política nacional de produção de petróleo e liderou as negociações com as mais importantes empresas petrolíferas mundiais, com vista à obtenção das condições mais vantajosas e dos apoios técnicos, financeiros e humanos que permitissem a constituição, em curto prazo, de “joint ventures” favoráveis aos interesses nacionais e de Angola e que incluíam, ainda, a formação técnica de jovens licenciados em engenharia, geologia e geofísica, com benefício para o potencial técnico-científico do País.
 
Na JEN, procedeu em curto prazo à sua reorganização e orientou e impulsionou a investigação nuclear, a prospecção e reconhecimento de jazigos de urânio e os estudos relativos à instalação de centrais de energia nuclear, de que era um convicto defensor, como forma de se suprir uma grave vulnerabilidade nacional e de se colocar o País em áreas de ponta no campo técnico-científico. E com o habitual pragmatismo conseguiu que fossem atri­buídas bolsas de estudo a alunos qualificados da Universidade, que estivessem dispostos a servir na JEN, durante um certo período, concluída a licenciatura.
 
Promovido a General em fins de 1968, foi mobilizado em Julho de 1969, como comandante da Região Militar de Moçambique, passando, em Março de 1970, a Comandante-Chefe das respectivas Forças Armadas.
 
Em virtude de ter sido decidida a construção da barragem de Cabora Bassa, no mínimo subestimando-se as potenciais consequências estratégicas, teve de fazer face a uma nova frente de guerra, excêntrica em relação à que vinha do antecedente, e espoletada por aquela construção, e a um desafio único nos anais da história militar: garantir a segurança da construção de uma das maiores obras de engenharia de África, na qual trabalhavam centenas de operários e quadros de países de todos os continentes, em zona de guerra, inóspita e distante centenas de quilómetros de um núcleo de civilização significativo. Acresce que as condições contratuais eram leoninas para qualquer atraso por razões de segurança e que tal desafio teve de ser enfrentado sem qualquer reforço de meios operacionais pela Metrópole e que, por outro lado, no mínimo haveria que manter a estabilidade nas frentes tradicionais. Confiante na lealdade da larga maioria da população, imprimiu grande impulso às forças militares compostas por naturais de Moçambique, principalmente através da formação de Companhias de Comandos, Grupos Especiais e Grupos Especiais Pára-quedistas e da expansão da autodefesa das popu­lações rurais.
 
Em Dezembro de 1972, o General K. de Arriaga foi fortemente instado pelo Governo a prolongar, por mais dois anos, a comissão que havia já concluído meses antes. Acabou por aceitar o convite, mediante a promessa, pelo MDN, de satisfação das condições que colocara, relativas a novas competências e apoios. Mas, por um lado, as altas chefias militares haviam evoluído num sentido que lhe não era favorável; por outro lado, o caso de Wiriamu, averiguado como um lamentável incidente de guerra que envolveu tropas do recrutamento local, começara a ser explorado politicamente, a nível nacional e internacional. Com base na alegada impossibilidade de o Governo satisfazer as condições que o General havia posto, este foi informado pelo MDN, em fins de Maio, de que a sua comissão de serviço terminaria em fins de Julho de 1973. Não viu reconhecidos os serviços prestados em Moçambique durante quatro anos. Outra teria sido, talvez, a situação se, como era habitual, tivesse regressado em Março de 72, finda a sua comissão normal de serviço. Não voltou à Instituição Militar, reassumindo as funções de presidente da JEN.
 
Desempenhou ainda os cargos de Vogal do Conselho Ultramarino e de Presidente da Federação Equestre Portuguesa e foi membro do Conselho da Ordem Militar de Cristo.
 
Desencontrado com a História, foi passado compulsivamente à reserva, pela Junta de Salvação Nacional, em Maio de 1974. Foi preso arbitrariamente em fins de Setembro do mesmo ano, tendo sido mantido naquela situação, sem culpa formada, até Janeiro de 1976. Na prisão suportou com o habitual optimismo, superior postura e coragem moral a humilhante situação, recu­sando mesmo a liberdade condicional. Combativo e pertinaz, reagiu com os meios legais disponíveis às arbitrariedades a que havia sido sujeito, instau­rando uma acção contra o Estado, acabando por ver reconhecidas, ao fim de 10 anos, as suas razões pelos tribunais.
 
Apesar de convidado a tomar outra atitude, ignorou o diploma entretanto publicado para corrigir os chamados “saneamentos”, por o considerar insu­ficiente em termos de dignidade e de ética.
 
Já na parte final da sua vida, foi alvo de uma campanha insidiosa e infamante, por parte de sectores da comunicação social, que procurava responsa­bilizá-lo pelos incidentes de Wiriamu. Tentou, com a habitual combatividade, reagir à infâmia, mas não encontrou instrumentos legais, já que eventuais crimes, até então não averiguados, se os houve e cometidos por outros, haviam prescrito.
 
Dotado de uma inteligência arguta e fulgurante, identificava rapidamente os elementos- chave de qualquer problema, que sintetizava de forma lógica e lapidar. Todavia, era essencialmente um homem de acção, com enorme capacidade de decisão e grande dinamismo. Durante o processo de decisão, incentivava todos os presentes a manifestarem as suas opiniões, desde os colaboradores mais graduados ou próximos ao mais modesto Alferes miliciano eventualmente presente. Sintetizava essas opiniões de maneira primorosa, após o que, tendo em atenção os elementos-chave da situação, decidia rapidamente, de forma lógica, clara, precisa e concisa, deixando os pormenores ao seu Estado-Maior.
 
Muito exigente para com todos os que desempenhavam funções de comando ou chefia, em especial de escalão superior, e insensível a horários de trabalho, era generoso e tolerante para com os subordinados de postos inferiores. Excepto para louvar, desagradava-lhe o despacho dos processos disciplinares, cujos efeitos gostaria de ver reduzidos a uma exoneração de funções ou transferência de unidade. No fundo, considerava que as quebras de disciplina eram, em regra, o subproduto de chefias fracas e não exemplares.
 
Elitista, de esmerada educação e de irradiante presença, movia-se com o mesmo à vontade nos ambientes requintados ou entre os soldados, em pleno mato, com os quais falava com grande naturalidade, atenção e simpatia.
 
Foi um teorizante da chamada estratégia indirecta; mas, impulsivo, aberto e frontal, era-lhe avesso, no plano pessoal.
 
Viveu segundo duas trilogias: Deus, Pátria e Família, no plano dos valores; e, no da acção, coragem, tenacidade e fé - que considerava como que uma divisa pessoal e que escolheu como título da obra em que compilou as principais alocuções, entrevistas e comunicações produzidas como Comandante-Chefe. Homem de princípios e de convicções e de forte personalidade, não abdicou, não tergiversou, não abjurou.
 
Foi, como todos os grandes chefes político-militares, uma personalidade controversa, capaz de gerar as maiores dedicações ou sentimentos de admiração, mas também de suscitar ressentimentos, incompreensões ou mesmo ódios. Mas ficará certamente na História, qualquer que venha a ser o juízo global desta, como um estrénuo servidor da sua Pátria, que desejou engrandecida, e como uma das personalidades militares marcantes do século XX português.
 
Possuía as seguintes condecorações, nacionais e estrangeiras: Medalha de Mérito Militar; Medalha de Prata de Serviços Distintos; Oficial da Ordem Militar de Avis; Grande Oficial e Grã-cruz da Ordem Militar de Cristo; Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique; Medalha de Mérito Aeronáutico de 1ª Classe; Cruz de 2ª classe com distintivo branco de Mérito Militar (Espanha); Grã-cruz de Mérito Aeronáutico (Espanha); Grande Oficial do Mérito Militar (Brasil); Grande Oficial do Mérito Aeronáutico (Brasil); Comendador da Legião de Mérito (EUA); Grande Oficial da Legião de Honra (França).
 
Tenente-General Abel Cabral Couto
Sócio Efectivo da Revista Militar
 
 
A Direcção da Revista Militar reitera à Família enlutada a expressão do seu pesar e curva-se perante a memória do seu ilustre sócio.
 
Tenente-general
Abel Cabral Couto
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2009-06-05
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Tenente-general

Abel Cabral Couto

Nasceu em Mateus, Vila Real, em 11 de Março de 1932, onde fez o curso de liceu que terminou em 1949, com 18 valores.

Cursou Artilharia, na Escola do Exército (1949/1953). Depois fez outros cursos: Geral e Complementar de Estado-Maior, do Instituto de Estudos Militares (IAEM); Emprego de Armas Especiais, na Escola do Exército dos Estados Unidos da América, em Oberamergau e Superior de ­Comando e Direção, do IAEM.

Frequentou o curso de licenciatura em Ciências Físico-Químicas da Faculdade de Ciências de Lisboa.

Atualmente, é general do Exército na situação de reforma.

Professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (desde 1987) e membro do Conselho

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by COM Armando Dias Correia