“Estas três tendências são como diferentes códigos de leis enraizados profundamente nos seus respectivos domínios e, contudo, variáveis no seu mútuo relacionamento. A teoria que ignore qualquer delas ou que pretenda fixar um arbitrário relacionamento entre elas entrará em conflito com a realidade, e em tal extensão que por esta só razão se tornaria totalmente inútil.” - CLAUSEWITZ1
Introdução
Desde 1960 que o Inter-University Seminar on Armed Force(IUS) 2, fundado por Morris Janowitz3, vem desenvolvendo uma diversificada investigação sociológica sobre as instituições militares. Actualmente, dirigido por David R. Segal, Professor de Sociologia e de Ciência Política da Universidade de Maryland, o IUS reúne cerca de 800 membros, representando mais de 50 países (Portugal ausente), que incluem professores e alunos universitário, oficiais dos três ramos das Forças Armadas, especialistas em diversas disciplinas (tais como sociologia, ciência política, história, psicologia, relações internacionais, direito e economia) e investigadores em diferentes domínios, tanto públicos como privados. A razão de ser original do IUS - “estimular a investigação independente e o ensino sobre as forças armadas e a sociedade num ambiente académico” - é considerada hoje ainda mais importante4. Entre as novas perspectivas em estudo, as relações no âmbito da trindade clausewitziana “a razão da autoridade política, a livre actividade da alma do chefe de guerra e as paixões do povo”5 merecem particular acuidade. O IUS publica uma excelente revista: a “Armed Forces and Society”. Em 1988, surge, finalmente, o European Research Group on Military and Society (ERGOMAS) 6 como uma rede de cooperação entre sociólogos, funcionários superiores e oficiais das Forças Armadas, universidades e institutos de investigação interessados no estudo, investigação e reflexão sobre as relações civis-militares e assuntos com elas relacionados. O ERGOMAS abrange cerca de 20 países europeus (Portugal ausente) e Israel. Os seus actuais trabalhos de grupo incluem, entre outros assuntos, a profissão militar, o controlo democrático das Forças Armadas e a opinião pública, os média e a instituição militar.
Entre nós, o Instituto da Defesa Nacional, sob a direcção do Almirante Leonel Cardoso, incluiu, em 1979, na reformulação do currículo dos seus Cursos de Defesa Nacional, o debate sobre o assunto “As Forças Armadas, o Poder e a Sociedade”, apresentado pela Professora Maria Carrilho do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa. A participação na Universidade na investigação sociológica sobre as Forças Armadas e a Sociedade, se exceptuarmos algumas teses de mestrado e de doutoramento, tem sido muito escassa. Duas obras baseadas em teses de doutoramento merecem particular atenção: “As Forças Armadas e mudança política em Portugal no século XX” (1985) da Professora Maria Carrilho e “A civilinização das Forças Armadas nas sociedades demoliberais” (2002) do Coronel Nuno Mira Vaz.
Neste texto, depois de uma caracterização geral da pós-modernidade militar, proponho-me enunciar algumas questões fundamentais do relacionamento da Instituição Militar com o Poder Político e com a Sociedade, terminando com um breve apontamento sobre as consequências do “novo ambiente de defesa” naquelas relações.
Caracterização da pós-modernidade militar
(PMM)
“As mudanças na organização militar reflectem, e algumas vezes afectam, as mudanças sociais em larga escala na sociedade mais ampla” - CHARLES C. MOSKOS7
O afã das reformas militares que, a partir de 1990, surgiu nas democracias ocidentais, marca, segundo sociólogos e historiadores, a transição acelerada de formas de organização designadas como modernas para formas pós-modernas. Convirá sublinhar que o termo pós-moderno quando aplicado à Instituição Militar implica uma apreciável base de partida de formas modernas de organização. Não se trata aqui, como alguns teimam em proclamar, de “refundar”. Salvo se o pretendido for criar toda uma outra instituição... A organização militar moderna desenvolveu-se estreitamente associada à consolidação do Estado-Nação, desde o levantamento em massa da Revolução Francesa em 1793, quando o conceito de cidadão-soldado surgiu na Europa, até ao final da II GM. Sem nunca ter assumido um tipo puro, o seu formato básico impôs-se com uma combinação de soldados e postos inferiores conscritos (a milícia) com um corpo de oficiais profissionais; orientava-se para a missão de guerra defensiva, face à ameaça de invasão inimiga e, a partir dos meados dos anos 50 do século passado, de guerra nuclear; era masculina na sua constituição e no seus etos; elegia o líder combatente, especialista nas artes da guerra e da liderança, como o traço dominante do profissional militar, ainda que com crescentes funções de técnico e de gestor; mantinha-se, na sua estrutura e cultura, diferenciada da sociedade envolvente.
Há quem distinga na modernidade militar um período que, designado por moderno tardio, corresponde à Guerra Fria e é caracterizado por grandes exércitos de massas conscritas e por uma progressiva acentuação do profissionalismo dos quadros.
A organização pós-moderna, por seu turno, caracteriza-se por uma distensão ou afrouxamento dos laços com o Estado-Nação. Face à natureza subnacional da ameaça tida como mais provável, o seu formato básico passa a ser o de uma força voluntária reduzida, mas com um elevado efectivo de pessoal civil e, tendencialmente, com um recrutamento feminino aberto ao desempenho de todas as funções, incluindo as ditas de combate. Uma força orientada para missões muito diversas, para além da guerra. Do militar profissional exige-se agora que se comporte também como um diplomata, isto é, um conciliador-negociador, com sensibilidade política, sociológica e cultural. Enfim, uma organização militar crescentemente andrógena na sua constituição e no seu etos e com uma grande permeabilidade com a sociedade. Sem ameaça de invasão inimiga, os Estados ocidentais consideram não haver necessidade de manter as Forças Armadas tão distintas dos valores sociais da comunidade civil. A pós-modernidade militar surge, assim, fundamentada em cinco mudanças organizacionais principais:
- Crescente “osmose” entre as esferas civil e militar, tanto no domínio estrutural como cultural;
- Esbatimento das diferenças entre os postos hierárquicos e entre funções de combate e de apoio;
- Cumprimento de missões e tarefas que não seriam consideradas militares no sentido tradicional;
- Empenhamento frequente de forças militares em missões internacionais autorizadas (ou, no mínimo, legitimadas) por autoridades acima do Estado-Nação;
- Internacionalização das próprias Forças Armadas.
As missões das Forças Armadas surgem agora estruturadas segundo parâmetros essencialmente diferentes das relativas certezas da Guerra Fria. Uma característica distintiva do período pós-moderno consiste no declínio acentuado das guerras entre Estados e do número cada vez maior das guerras civis que, com frequência, conduzem ao colapso dos próprios Estados. As operações de apoio à paz e humanitárias passaram a ocupar na doutrina militar uma posição privilegiada. Na realidade, como referem os sociólogos, o “humanismo militar” entrou no novo vocabulário. O que não implica, sublinhe-se, que a preparação para o combate seja descurada. A coexistência de duas diferentes dinâmicas gerais, “a linha de guerra real e a simulação de guerra e paz”, na expressão feliz de Chris Hable Gray, gera todo um largo espectro de contradições e tensões. Desde as guerras NBQ (nucleares, bacteriológicas e químicas) à extrema tecnofília da guerra de computadores versus a guerra do povo e os conflitos de baixa intensidade8.
Entretanto, o conceito de soberania nacional vai permanecendo; os factores nacionais continuarão a influenciar as relações civis-militares; os Estados continuarão a respeitar as fronteiras de cada um para muitas finalidades, mas o elenco dos desafios considerados puramente domésticos irão sendo reduzidos; os militares dos diferentes Estados actuarão, cada vez mais, lado a lado, em operações combinadas ou integrados nas mesmas unidades.
A Guerra do Kosovo tem sido, justamente, apontada como a primeira guerra pós-moderna. Foi uma guerra em que, segundo a curiosa apreciação do analista americano David Rieff, “tudo se desenrolou ao contrário do que, até então, era normal: soldados a construírem campos para refugiados; os agentes humanitários a clamarem por segurança armada; forças de guerrilha a procurarem fazer aquilo que a mais poderosa aliança militar do mundo não o podia fazer”9. A Guerra do Kosovo foi também a primeira guerra virtual para aqueles que a desencadearam, uma guerra em que a mestria tecnológica conseguiu, praticamente, remover a morte entre os agressores. De um ponto de vista ético, esta guerra veio alterar as expectativas que modelavam a moral10.
As políticas são tão militarizadas, como o demonstrou a última Guerra do Iraque, que todo o acto de guerra necessita de cuidada e pormenorizada preparação e justificação política, havendo apenas o espaço das guerras mais limitadas onde todas as importantes decisões são assumidas nos domínios militares. As guerras, conclui Havel Gray, só podem ser vencidas politicamente - através dos meios militares o melhor que se pode alcançar é não perder11.
Relacionamento Instituição Militar
- Poder Político
“Um diálogo difícil que deve ser assumido como uma das expressões de participação.” - JEAN CALLET12
O lugar da Instituição Militar e a sua função na Sociedade são factores determinantes da estabilidade do Estado, e de tal modo assim acontece que, para serem consideradas organizadas, das sociedades se exige a satisfação de dois requisitos essenciais: a subordinação da Instituição Militar ao Poder Político, democraticamente instituído, e o seu consequente controlo por este Poder.
Em todas sociedades pluralistas aquela subordinação constitui hoje um facto adquirido, com ela se pretendendo garantir um equilíbrio ponderado entre as áreas política e militar, o reconhecimento esclarecido da supremacia da primeira sobre a segunda e uma fraca ou nula influência dos militares na política.
É neste relacionamento que se situam as relações civis-militares de nível estratégico, isto é, as relações entre o Governo e as Chefias Militares Superiores. Em relação ao Governo, a Instituição Militar e os seus membros representam o instrumento destinado a garantir e proteger o Poder Político eficaz e organizado, mantendo-se as Forças Armadas essencialmente obedientes e desprovidas de capacidade deliberativa. Contudo, mesmo neste quadro de rigorosa subordinação, a função das Forças Armadas não é assimilável a qualquer serviço público, também subordinado ao Poder Executivo e agindo de acordo com a Constituição e as restantes leis. Circunstâncias excepcionais, como os estados de guerra e de sítio, conduzem à delegação na autoridade militar de atribuições por norma da competência da autoridade civil. A fórmula consagrada do Presidente da República ser, por inerência, o Comandante Supremo das Forças Armadas marca o facto de as ligações entre o Estado e os militares serem mais fortes do que entre o Governo e os seus serviços.
A neutralização política dos militares pela promulgação de um estatuto jurídico constrangedor e restritivo tem sido a modalidade de acção de que dispõe, num quadro democrático, o Poder Político para assegurar efectivamente a subordinação da Instituição Militar e daqueles que nela servem. Relacionada com esta neutralização, surge, com frequência invocada a postura apolítica dos militares como garantia da sua fidelidade às instituições.
Na realidade a assunção de uma tal atitude, nomeadamente hoje, constituiria factor de despersonalização e resultaria, necessariamente, anacrónica numa Sociedade que se pretende pluralista. Imunes às querelas partidárias, os militares não podem manter-se divorciados dos problemas político e sociais que envolvem os “muros dos quartéis”, tanto no âmbito nacional como internacional, dado que se assim suceder ver-se-ão impedidos de avaliar as implicações políticas das decisões técnicas que lhes competem. Por outro lado, o alheamento político dos militares conduzirá, inexoravelmente, à marginalização da Instituição Militar na sua própria Sociedade.
A formação e esclarecimento políticos conferem aos militares a consciência cívica da responsabilidade da sua função. Há que proceder a uma síntese renovada entre a missão das Forças Armadas e as restrições dos direitos, liberdades e garantias impostas aos cidadãos militares, uma síntese que “deve fazer da participação democrática dos militares o pilar da sua fidelidade”.
A modernização das Forças Armadas, com a consequente introdução de novas técnicas, tem vindo a pôr em causa concepções tradicionais das carreiras militares e, ao mesmo tempo, a permanente e rápida evolução tecnológica passou a exigir dos quadros um esforço de actualização mais acentuado e uma ligação mais estreita com o meio civil. Em paralelo com esta evolução, desenvolve-se a atitude critica e, em consequência, a referência a dados tradicionais já não é automaticamente aceite: a condição militar deixou de estar confinada ao seu espaço institucional, para se ver confrontada com o contexto social geral.
As Forças Armadas pós-modernas, segundo Alvin Toffler13, têm necessidade de militares esclarecidos, “com capacidade para se adaptarem à diversidade das gentes e culturas, enfrentarem ambiguidades, tomar iniciativas e fazer perguntas, ao ponto de questionarem a própria autoridade”. E conclui: “A vontade de questionar poderá ser mais marcante nas Forças Armadas do que em qualquer outra instituição”.
O controlo político (ou civil) das Forças Armadas é um desafio particularmente sensível e complexo numa sociedade pluralista, sobretudo em democracias recentes, uma vez que uma intervenção política imponderada ou precipitada poderá ocasionar prejuízos ou efeitos irreversíveis na sua coesão, no seu espírito de corpo, e assim afectar negativamente a eficiência e eficácia pretendidas.
O profissionalismo dos quadros militares, a sua isenção política e a autonomia de que as Forças Armadas devem dispor de modo a que possam conservar a disciplina e as suas características peculiares e, assim, desenvolver a sua capacidade de empenhamento de “última instância” na conduta da política de defesa, caracterizam a modalidade de controlo designado como objectivo por Samuel Huntington14.
Três condições são, como regra, apontadas para que o controlo objectivo resulte:
- Em primeiro lugar, uma perfeita consciência dos militares quanto ao sentido da sua subordinação institucional;
- Em segundo lugar, decisões políticas fundamentadas num conhecimento profundo dos problemas militares e em procedimentos capazes de tornarem efectivas aquelas decisões;
- Em terceiro lugar, uma gestão institucional confiada aos militares sob a orientação e fiscalização dos agentes competentes do Poder Político.
A esta modalidade de controlo, a que corresponde, ainda segundo Samuel Huntington, a maximização do profissionalismo militar e a consequente limitação da sua acção à área objectiva da sua competência, Morris Janowitz15 opõe um tipo de controlo dito subjectivo que, partindo da constatação de uma “civilinização” cada vez mais acentuada dos militares, pretende que estes só podem ser controlados pelo Poder Político desde que efectivamente integrados na sua Sociedade matriz e não apenas enquanto profissionais.
Para Samuel Huntington, só a preocupação de competência profissional pode ser unificadora e constante; só a preocupação de obedecer e de servir eficazmente o Estado pode permitir aceitar o rigor hierárquico, requisito primeiro do êxito operacional. O Poder Político, que decide o emprego da força, deve proporcionar aos militares a possibilidade de permanecerem fiéis a si-mesmos, de procurarem alcançar valores tais como a competência e a obediência, de se autorealizarem na busca do profissionalismo.
Entre nós, Salazar foi um apologista confesso do controlo objectivo, muito antes de Huntington o ter definido. Com efeito, em 1958, confessava ele a Marcelo Caetano ter levado trinta anos a desviar os militares da política encaminhando-os para a sua formação comtínua.
Entre estes dois tipos de controlo político, isto é, entre a “profissionalização” e a “civilinização”, é possível, e recomendável, encontrar soluções ponderadas de compromisso.
Relacionamento Instituição Militar-Sociedade
“No pós-Guerra Fria, a atitude pública em relação às Forças Armadas tornou-se mais de indiferença” - CHARLES C.MOSKOS16
Na realidade, as Sociedades sempre mantiveram relações não racionais com as suas Forças Armadas. Segundo as circunstâncias, os sentimentos por elas manifestados oscilam entre o entusiasmo patriótico e militarista e o antimilitarismo, o pacifismo e a irritação para com uma instituição dispendiosa e de contestável utilidade. Mas, para os povos, como para os indivíduos, a profundidade dos sentimentos não corresponde ao carácter impulsivo das suas manifestações e a informação, divulgada com transparência e oportunidade, torna-se imprescindível para a necessária integração das Forças Armadas na Sociedade. A crescente permeabilidade entre as áreas civil e militar, já aqui referida como uma das principais mudanças organizacionais da pós-modernidade militar, constitui uma via, sem dúvida, favorável para aquela divulgação, ainda que insuficiente.
Se a utilidade da componente militar não for reconhecida para a conduta das políticas de defesa, os cidadãos considerarão injustificados os deveres que lhes são exigidos para manter uma complexa estrutura de defesa militar. Na ausência de consenso, é a própria legitimidade das Forças Armadas que será contestada.
Foi para que este reconhecimento (reconhecimento da globalidade permanente, não improvisada da defesa) se tornasse consciente ou mais esclarecido na Sociedade que surgiram, na maioria das democracias ocidentais, cursos e estágios de defesa nacional, a serem frequentados, não só por militares e civis responsáveis pelas tão diversificadas áreas da defesa, ou a elas de qualquer forma ligados, mas também por jovens quadros de contacto; que foram criados centros de estudo, reflexão e investigação sobre os problemas de defesa, autónomos ou integrados em Universidades de prestígio; que se fizeram publicar Livros Brancos de Defesa Nacional.
As próprias Forças Armadas têm colaborado neste programa de informação pública, através, por exemplo, das chamadas “operações de portões abertos” (em especial, quando da realização das cerimónias de Juramento de Bandeira e de comemorações de efemérides histórico-militares) e da intervenção informativa nos estabelecimentos de ensino civil, de todos os níveis, no âmbito dos seus programas e quando por eles solicitada.
No desenvolvimento destas actividades, de preferência civis-militares, deve ser difundida a idéia da “empresa” ou “obra” que constitui o fundamento institucional das Forças Armadas e que significa, na sua essência, pronta disponibilidade para o combate, tendo sempre em mente que é a paz que importa preservar ou restabelecer.
O actual empenhamento (exagerado, para uns, insuficiente, para outros) de contingentes militares, sob a égide da ONU ou da EU, em missões da apoio à paz e humanitárias de índole diversa, para o desempenho das quais a instrução de combate se revela de primordial importância, tem conduzido, por vezes, a uma pretensão de atribuir a forças militares tarefas susceptíveis de prejudicar a sua prontidão para o combate, procurando-se, desta forma, diz-se, “rentabilizar” os pesados encargos nelas investidos. Assim, a par das tarefas faz circunstanciais e de curta duração que a própria lei consagra como de “interesse público”, tais como trabalhos de engenharia, transportes de emergência e apoio aos serviços de protecção civil em situações de catástrofe ou calamidade, alvitra-se, com frequência, o empenhamento das Forças Armadas em tarefas habituais e prolongadas de assistência social, de segurança (polícia) urbana ou rural e de patrulhamento de florestas, para o desempenho das quais elas não se encontram treinadas, nem equipadas, e que são atribuição de agentes de serviços públicos específicos.
É, sem dúvida, indispensável que as Forças Armadas contem com o estímulo e alento da Nação. A legitimidade e consideração social (a chamada “remuneração simbólica”) suscitadas pelas Forças Armadas no seio da Sociedade, donde provêm os seus membros e onde eles se inserem, devem depender, essencialmente, da eficiência e eficácia reveladas pelos militares, não “para todo o serviço”, mas para a razão da sua existência: a defesa militar que a Constituição lhes atribui.
Para poderem apreciar e compreender o papel das Forças Armadas nas sociedades comtemporâneas haverá que proporcionar a civis e militares, nas famílias, nos sistemas de ensino, nos quartéis, um ambiente favorável ao desenvolvimento de um espírito de cidadania baseado numa História e Cultura próprias, num estatuto cívico de vida comunitária, nun anseio de evoluir, preservando a base dessa evolução.
Em síntese, poder-se-à dizer que a imagem pública favorável das Forças Armadas requer, em linhas gerais, a satisfação de quatro condições:
- Em primeiro lugar, a demonstração inequívoca de prontidão e eficácia no desempenho das missões e tarefas que lhes forem atribuídas pelo Poder Político;
- Em segundo lugar, a representatividade social e cultural dos militares, um imperativo para a sua plena aceitação na Sociedade;
- Em terceiro lugar, a existência de uma política de informação e relações públicas, tanto a nível do Poder Político como das Forças Armadas, desenvolvida por especialistas desta área (civis e militares), atentos às evoluções sociais e culturais do meio a sensibilizar e esclarecer e que saibam a elas adaptar as suas tarefas, com objectividade e oportunidade;
- Em quarto lugar, mas de modo nenhum a menos importante, a assunção plena da responsabilidade que ao Poder Político compete de garantir o suporte orçamental da qualidade das Forças Armadas, tanto no que se refere a estruturas e material, como, sobretudo, a pessoal.
A abolição do serviço militar obrigatório em tempo de paz, com a sua indiscutível capacidade de socialização, veio derrubar uma “ponte” importante de ligação das Forças Armadas com a Sociedade. Nos EUA, Don M. Snider, Professor na Academia Militar de West Point, apontava, em 1996, funestas consequências daquela abolição, tanto na formação dos governantes na área da defesa, como no voluntariado para o serviço militar profissional. Por seu turno, em França, o Controlador-Geral e Jurista Jean-Claude Roqueplo interroga-se: “Será que os cidadãos dispensados do serviço militar não se irão comportar como meros consumidores dos serviços de defesa nacional, tal como o são já dos serviços públicos de transporte, comunicações, energia ou dos serviços monetários, pouco a pouco desligados da soberania nacional?”
Outras “pontes” podem, e devem, ser lançadas. Algumas foram anteriormente referidas. Convirá não esquecer que “não há vontade de defesa que não assente na consciência de pertencer a uma comunidade que quer garantir a sua existência presente e assegurar o futuro dos seus membros”17.
Consequências do “novo ambiente de defesa”
O final da Guerra Fria fez surgir aquilo que hoje é frequentemente designado como o “novo ambiente de defesa”, uma expressão que pretende ser a resultante de um conjunto de factores em acelerado desenvolvimento, tais como a Revolução nos Assuntos Militares (RAM), a Pós-Modernidade Militar (PMM), a prioridade conferida às operações de apoio à paz e humanitárias, o novo elenco de ameaças e, conseqüentemente, o novo cenário de conflitos dominados por um surto disperso de acções de hiperterrorismo.
Ann Bolin18, num estudo sobre as consequências do “novo ambiente de defesa” sobre a profissão militar e as relações político-militares, conclui pela importância de duas consequências gerais:
- A necessidade de mais liderança política, uma liderança clara e activa, derivada principalmente das acentuadas incerteza, ambiguidade e natureza política dos conflitos, em que as Forças Armadas são chamadas a intervir;
- A necessidade de mais, e mais efectiva, interacção e cooperação das Forças Armadas, política e socialmente mais esclarecidas, com outros actores relevantes, tanto a nível governamental e administrativo, como no ambiente operacional, por forma a garantir mais e melhor coordenação entre os líderes militares e os decisores políticos.
Se este estudo abrangesse as relações das Forças Armadas com a Sociedade, de certo concluiria pela necessidade de mais e melhor ligação, uma ligação cada vez mais determinante para a manutenção de um espírito de defesa esclarecido e, assim, empenhado.
* Sócio Efectivo da Revista Militar.
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1 “Da Guerra”, Livro I, Cap 1.
2 http://www.bsos.umd.edu./ius/
3 Obras clássicas: “The professional soldier” (1960/1971 e “The new military” (1964). Estudos publicados na revista “Armed Forces and Society” do IUS.
4 “The postmodern military - Armed Forces after Cold War”, Oxford University Press, 2000.
5 Raymond Aron, “Sur Clausewitz”, Edition Complexe/Historiques, Bruxelas, 1987.
6 http://www.ergomas.ch//
7 Obra referida em 4.
8 “Postmodern war - The new politics of conflict”, Routlege, Londres, 1997.
9 “Slaughterhouse: Bosnia and the failure of the West”, Oxford University Press, 1995.
10 Michael Ignatieff, “Virtual war - Kosovo and beyond”, Chatto & Windus, Londres, 2000.
11 Obra referida em 4.
12 General da Força Aérea ex-Director do Institut des Hautes-Etudes de Défense Nationale, “Légitime défense”, Lavauzelle, Paris, 1976.
13 “War and anti-war - survival at the dawn of 21st century”, Little Brown and Company, Nova Iorque, 1993.
14 “The soldier and the state: The theory and politics of civil-military relations”, Howard University, Cambridge,Mass., 1957.
15 Obras referidas em 3.
16 Obra referida em 4.
17 Bernard de Borishéraud e Pierre Dufourcq, “La defense”, Larousse, Paris, 1976.
18 Do National Defense College of Sweden, “A new defense environment - Some consequences For military profession and political-military relations”, Lisboa, 2000.