Justiça Militar: uma reflexão
Dando execução a princípios estabelecidos na Constituição da República, foram recentemente extintos o Supremo Tribunal Militar e os Tribunais Militares. Por coincidência, ou acaso, a medida coincide com o final do Sistema de Conscrição para o Serviço Militar. Em tempos de tremendas dúvidas sobre o funcionamento da Justiça e de crise de alguns dos contratos sociais expressos na Lei Fundamental (família, trabalho, educação, saúde e segurança social), com que a Nação se defronta, julgamos dever e direito do exercício de Cidadania perguntar: Por quê agora?
Será por já estarem definidos o conjunto de Diplomas que devem constituir a trave-mestra da Condição Militar - agora com novos e diferentes parâmetros do universo dos sujeitos - e que há tempos aguardavam definição (Lei de Bases da Disciplina Militar, Código da Justiça Militar, Regulamento da Disciplina Militar, entre outros)? Dizem-nos que não e que nos encontramos num vazio da Justiça Militar, isto é, extinguiu-se o que funcionava bem sem cuidar da regulamentação do novo que se quis criar. Sem remédio, mas não abdicando do direito e dever de denunciar, tentemos encontrar o que não se cuidou.
O Artigo da Constituição da República que trata a questão dos Tribunais Militares (actualmente o 213º - Revisão Constitucional de 1997 - primitivamente o 218º e depois o 215º, com a Revisão Constitucional de 1989), tem actualmente a seguinte redacção: “Durante a vigência do estado de guerra serão constituídos tribunais militares com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar”. Esta redacção alterou a que vigorava desde a Revisão Constitucional de 1982, que se lia: “1. Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares; 2. A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no nº 1.3. A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de medidas disciplinares”.
Porque a matéria envolve questões importantes relacionadas com o Comando - que escapam à sensibilidade da Administração - desde o início das adaptações necessárias que os Comandos militares se empenharam em vincular uma ideia fundamental para a decisão política: as reformas nesta matéria deveriam englobar um conjunto de legislação, cujo alicerce seria a Lei de Bases da Disciplina Militar, a aprovar simultaneamente e tendo em atenção a Lei nº 11/89 (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar), de 1 de Junho de 1989. A que junta outra consideração ainda não assumida. No actual panorama estratégico mundial não faz sentido falar de paz e guerra, face à multiplicidade de crises em que a comunidade internacional se vê envolvido. As Forças Armadas, sob mandatos legais dos órgãos de soberania próprios são empenhadas em missões sem haver declarações de guerra. Assim acontecia com as Forças Armadas Portuguesas à data, envolvidas em missões na República de Moçambique (Batalhão de Transmissões Nº 4).
Na VI Legislatura, em 27 de Janeiro de 1994, foi presente à Assembleia da República a Proposta de Lei Nº 88/VI (Lei de Bases da Justiça Militar e da Disciplina das Forças). Valerá a pena reler parte da Exposição de Motivos que a introduziu para se perceber o que estava em causa (Diário da Assembleia da República, II Série - A Número 222, de 10 de Fevereiro de 1994):
“Vem a presente lei de bases, que o Governo agora propõe à Assembleia da República e é referida na alínea d) do artigo 167º da Constituição, enquadrar um conjunto de diplomas legais a publicar, através dos quais se deseja proceder à reforma do direito penal militar e do direito da disciplina militar, em ambos os casos nas suas vertentes substantivas e adjectivas.
Trata-se, pois, por agora de erigir a cúpula que dá cobertura e sentido orientador à aprovação de um novo Código de Justiça Militar, da Lei Orgânica dos Tribunais Militares, de uma nova Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar, diplomas estes que protagonizarão uma profunda reforma legislativa que agora se inicia”.
A proposta de Lei, apreciada em Conselho Superior de Defesa Nacional, em Sessão de 30 de Junho de 1994 (Acta Nº64), obteve parecer favorável, foi apreciada em Comissão da Defesa Nacional da Assembleia, mas nunca foi discutida e por isso… ficou para outra oportunidade.
Com a Revisão Constitucional de 1997, e apesar do conselho militar emitido e conhecido, insistiu-se na questão e a redacção do artigo da Constituição sobre Tribunais Militares ficou como foi acima referido.
A Administração das Forças Armadas iniciou estudos para adaptação da Legislação sobre Justiça e Disciplina Militares, englobando projectos do Código de Justiça Militar; Regulamento de Disciplina Militar, Estatuto Judiciário Militar, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e Polícia Judiciária Militar. Mas desta vez sem a participação do comando das Forças Armadas, o que levou o então General CEMGFA a comunicar à Administração, em 22 de Março de 1999, dando execução ao mandato recebido do Conselho de Chefes de Estado-Maior, na sua reunião de quatro dias antes, o seguinte:
“Sucede mesmo não terem sido ainda definidos os vectores fundamentais da disciplina militar que seriam desenvolvidos pelo Regulamento de Disciplina Militar e pelo Código de Justiça Militar, já que tanto a Constituição da República (Artº 164º, alínea d)), como a lei ordinária (Artº 40º, alínea d), da Lei nº29/82, de 11 de Dezembro, e (Artº 17º, nº1, da Lei nº11/89), de 1 de Junho, apontam para a necessidade prévia da definição das “ bases gerais da disciplina militar”.
O assunto foi incluído em Agenda do Conselho Superior Militar, de 11 de Junho de 2000, solicitando Parecer sobre Projectos de Documentos elaborados pela Administração. O Parecer do General CEMGFA foi o seguinte:
“Dir-se-á que, na fase avançada em que eles se acham, praticamente acabados, e divulgada como já foi pela comunicação social a sua próxima aprovação pelo Governo, esta declaração é flagrantemente inoportuna e porventura incómoda, mas não quero deixar de reiterar perante este Conselho a discordância do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas pela forma apressada e ligeira como todo este assunto foi tratado, esquecendo que a disciplina militar é o mais forte esteio da coesão e da eficácia das Forças Armadas”.
Perante isto deliberou-se procurar acelerar a aprovação da Lei de Bases da Disciplina das Forças Armadas, até hoje não conseguido.
O tempo passou e as mudanças sucedem-se. Foi aprovado um novo Código de Justiça Militar (Lei Nº 100/2003) e Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 105/2003), mas continuam por definir as bases gerais da disciplina militar. Defendemos que a sociedade está em mudança, que as Forças Armadas receberam novas missões e que a sua aplicação cobre um espectro alargado de conflitos, além da defesa do solo pátrio. As adaptações exigidas e necessárias obrigam a que não se tratem como mais uma empresa para a segurança. O seu carácter de Instituição da Nação merece a atenção dos Portugueses, pelo que se devem salvaguardar valores essenciais para o seu funcionamento. Esperemos que ligeirezas no seu tratamento não tenham reflexos irremediáveis.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.