Preâmbulo
1. Portugal engloba-se no número de países cuja história, em todas as suas épocas mais determinantes, assenta em grande parte no empenhamento dos seus militares, agindo em formações ou unidades, associados, como sucedeu durante séculos, a navegadores, políticos, missionários, comerciantes e aventureiros ou exercendo por conta própria as actividades inerentes a esse empenhamento. De quando em quando, no andar dos séculos, vimos destacar no areópago das letras, das artes, das ciências, da política, dos negócios, da economia, das finanças e de outros domínios umas tantas figuras nacionais que se projectam com brilho no exterior; todavia, à retaguarda das muitas acções que marcam o percurso histórico da comunidade lusíada, encontram-se dominantes figuras de militares, às quais se entrega a gestão e a realização da “coisa bélica”, como é natural, e, muitas vezes, uma clara e marcante responsabilidade na gestão da “coisa política”.
Geralmente sem riqueza de meios, assim têm singrado os militares desde o Rei Conquistador, com períodos de euforia e de abatimento, de prosperidade e de decadência, de vitórias e derrotas, de melhor ou pior entendimento com os políticos, isto, pode dizer-se, até ao último quartel do recém terminado século XX em que mais uma revolução de imediato triunfante conseguiu apossar-se do Poder e alterar a ordem política estabelecida, mas, embora o tentasse, não derrubou a ordem social atinente. Nesse longo período de muitas centenas de anos, os exércitos existiram e intervieram, de facto, na vida da nação, quer por vontade própria, quer quando mandados ou solicitados, constituindo permanentemente a força, mais forte ou mais fraca, auxiliada ou não do exterior, que garantia a acção do Estado e a segurança da comunidade.
2. No último quartel do século passado, como é conhecido, a acção revolucionária do Movimento de Abril de 1974 e a consequente instabilidade política, social e militar decorrentes, visando a instauração da democracia no País, penetraram mais ou menos profundamente nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança, tornando-as por largos meses focos de descrença nas suas possibilidades pela sua ligação natural ao cerne da missão de sustentação do Estado anterior. Tinham sido até então, de facto, meio de força cumpridor em relação ao regime político estabelecido, haviam assistido ao “enrolar” e “arquivo” das velhas cartas de missão relativas aos territórios do Ultramar, a caminho de proclamarem a sua independência, dispunham de muitos efectivos que não aceitavam a nova situação e, consequentemente, sentiam impor-se-lhe agora a necessidade de reorganizar e redimensionar as organizações, trilhar de novo alianças e relacionamentos bilaterais com as Forças de outros países e incutir o espírito da evolução nascente, o que em boa verdade significava para alguns politizar, quebrar elos de comando, abater o anterior espírito de disciplina e de coesão, igualizar postos e funções, destruir a hierarquia e instaurar a discussão prévia de decisões, mesmo as relativas a problemas comezinhos, em suma, diminuir a autoridade dos comandos e o respeito pelas velhas tradições que uniam chefes e subordinados.
3. Os meses foram decorrendo nesta perspectiva de instabilidade, mas, felizmente, as Forças Armadas foram reencontrando internamente os princípios de disciplina e o espírito militar em que sempre tinham vivido e regressando lentamente, com as adaptações necessárias à democracia crescente e, sem dúvida, com espírito renovado, ao âmbito harmónico interno que tanto ajudaria a ultrapassar os tempos de crise. Não lhes foi fácil, no entanto, reduzir à sua verdade o ápodo de apoiantes da organização política desaparecida, constantemente jogado por gentes e grupos políticos de várias orientações que não cuidaram, pelo contrário, da necessidade de segurança e da realização ponderada das missões ditadas pelo novo Estado, de lhes devolver o respeito granjeado ao longo de séculos e de as dotar de estruturação e meios indispensáveis a afirmação que teria de continuar.
Assistiu-se, na realidade, em parte da classe média, nas gerações mais jovens e nos partidos políticos que as congregavam ao aparecimento de um antimilitarismo primário que tendia para o comodismo e para o desrespeito dos deveres para com a Pátria e para com os outros cidadãos, o qual veio reforçar o relativo “caos militar” que se vivia no interior dos quartéis e o esquecimento da imagem e da afirmação do novo País onde se era agora chamado a actuar. Arredou-se quase totalmente o espírito de defesa e tudo se fez para fugir ao cumprimento das obrigações militares e ao entendimento harmónico entre os pensamentos político e militar que, pelo contrário, devia fortalecer-se no bom sentido com vista à melhor consecução de um mínimo credível de realizações que favorecessem a Instituição Militar e a sua indispensável projecção.
4. É, aliás, neste panorama algo precário que vemos ainda hoje coabitar o trinómio, Pátria - Partidos Políticos - Instituição Militar, em cuja realização assume particular relevância o comportamento dos dois últimos termos, ou seja, os Partidos Políticos, com a política que é exercida pelo grupo que detém o Poder, e a Instituição Militar, com as Forças Armadas, estas ainda não inteiramente refeitas da sua convicção de força natural perante a comunidade, a força que dimana e é origem de virtudes militares, de sã camaradagem e da verticalidade de atitudes que sempre a tem caracterizado.
Um aspecto particular da vida interna actual da Instituição convém, no entanto, salientar: mercê de disposições que as leis exibem, da diminuição natural das exigências do serviço interno e da vontade pessoal de valorização cultural e profissional, está a verificar-se nos nossos dias, desde há alguns anos já, intensificação da frequência de cursos de nível universitário por muitos Quadros de Oficiais e Sargentos o que, além de lhes permitir buscar novas perspectivas e orientações de actividade, contribui para melhor entendimento e ligação entre a Instituição Militar e as Universidade e outras organizações científicas e culturais nacionais e estrangeiras.
5. Tenho, assim, por mim, como remate destas considerações preambulares ao tema que irei a seguir desenvolver, que a organização deste XIII Colóquio pela Comissão Portuguesa de História Militar, embora inserida em caminho periodicamente devotado à História, surge na melhor altura para exaltar a Instituição Militar e as Forças Armadas, surge em período em que infelizmente ainda prosseguem as deficiências da sua reafirmação psicológica e material, mas em que continua a ser indispensável a sua existência e a sua persistência sólidas e permanentes ao serviço da Nação, da Pátria e da política do Estado.
É de elementar justiça, portanto, que todos nos felicitemos pela organização deste Colóquio e pela sua oportunidade, que eu agradeça pessoalmente e penhoradamente o convite para nele participar e que deixe aqui lembrança, com gratíssima e sentida homenagem, de uma enorme e brilhante figura de militar, daquelas que “se vão da lei da morte libertando”, que deu a esta Comissão Portuguesa de História Militar e a estes colóquios muitos dos seus devotados pensamentos, dos seus trabalhos e da sua vida: refiro-me ao insigne, saudoso e sempre lembrado General Manuel Freire Themudo Barata.
Honra, pois, à sua memória.
Introdução
Quando, conjuntamente com conceituados, esclarecidos e ilustres políticos, intelectuais e jornalistas decidiram contribuir para o Movimento da Regeneração, no âmbito de um conservadorismo-autoridade em que eram condicionantes a harmonia e a paz e determinantes o progresso das estruturas do País e o incremento do bem-estar das suas populações, sempre os militares, na sequência da sua histórica missão de devotação à Pátria, tiveram em vista nele empenhar-se com a honestidade e a solidariedade que se exigiam, assumindo-se lado a lado com os detentores do poder político até ao último limite dos seus meios, também eles, no entanto, muito carentes de renovação e de possibilidades.
É na análise desta atitude alargada do pessoal e dos corpos militares, testemunhada por tantos historiadores, historiógrafos e intelectuais que à Regeneração Portuguesa vem dedicando em todos os tempos as suas investigações, os seus pensamentos, os seus louvores e, também as suas críticas, que me proponho desenvolver a tarefa que me foi atribuída e que aceitei muito honrado, mas limitando-me efectivamente à vertente ou área militar do Movimento, a qual vai em âmbito consensual cooperar no encaminhamento do País para o seu desenvolvimento material, social e cultural e para o seu ingresso na Nova Era de ideias que estava a abrir-se na Europa e no Mundo assente nos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade dos primórdios da Revolução Francesa e da sua concretização.
Proponho-me tratar, deste modo, embora sucintamente, os marcos mais salientes da contribuição dos militares na Regeneração, considerando, no entanto, os factores gerais que influenciaram a criação e o fortalecimento do Movimento, os conceitos e objectivos para ele idealizados, as áreas de esforço que houve que trilhar e, reportando-me então mais largamente à área militar, o enunciado e a caracterização possíveis dos aspectos que a envolveram, sem esquecer, como meio muito influente, proeminentes iniciativas literárias e culturais que tanto ajudaram à sua expressão.
Não se me afigura, porém, tarefa simples. O período a que respeita é de febril corrida de pensamentos, ideias e actividades, mesclado, apesar do quadro de paz e harmonia concertado, de alguma instabilidade política ditada pelos anseios de fazer chegar à frente populações atrasadas de Aquém e de Além-Mar, de avançar depressa com carentes e desde há muito aguardadas realizações materiais, de pesar influências externas do domínio das mesmas ideias, da obtenção de fundos financeiros indispensáveis e do recurso a sacrifícios internos de que não se podia também abdicar. Além disso, os dignos historiadores e intelectuais também não auxiliam inteiramente a tarefa, tratando por vezes diversamente os eventos, as gentes e as datas do Movimento nas pilhas de documentos que têm disponibilizado.
Mas, assim terá de ser. Como eloquentemente revela o ilustríssimo Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão na obra em que trata o Movimento Regenerador e em alguns outros dos seus estudos, será cumprir História, “uma das heranças gloriosas do passado, se seguirmos honestamente o caminho do labor, da seriedade e da dedicação como forma exemplar de a servir e de exaltar.” É o que procurarei fazer, ciente, no entanto, de que outros o fariam sem dúvida melhor e com mais notória autoridade.
Fico, de imediato, muito penhoradamente agradecido pela atenção que os estudiosos e os interessados no tema se dignarem dispensar a estas minhas, se bem que ponderadamente trabalhadas, simples e despretensiosas considerações.
1. Conceitos e Factores da Regeneração
1. Movimento histórico da segunda metade do século XIX e primeira década do século XX, a Regeneração é considerada com início em 1851, ano em que o Marechal Duque de Saldanha assume a chefia de um governo liberal após largo convénio de figuras políticas, intelectuais e militares que visava fazer progredir o País na paz e em todos os domínios, progresso de que, em consequência das invasões francesas, das guerras civis que se lhe seguiram e do consequente amontoar de dissidências e atrasos estava muito carenciado. Numa sintética, mas clara, afirmação, José Hermano Saraiva considera o Movimento o “resultado de um armistício ideológico e de consenso tácito assentes no rotativismo político e apoiados num Exército purificado.”
Mas, se o início do Movimento é efectivamente considerado em 1851, a data ou o período do seu termo não se torna, de modo algum, de fácil indiciação, uma vez que o fenómeno da evolução, mais limitada ou mais alargada nos efeitos e no tempo, é sempre preocupação permanente de todos os estados e nações. Poderá, no entanto, admitir-se que as favoráveis condições de ambiente que permitiram lançá-lo se mantiveram firmes até à vigência da chamada “geração de ouro” dos anos 1870 a 1880, estiveram particularmente atribuladas nos anos que se seguiram ao abominável e justamente sentido Ultimato da Inglaterra de 11 de Janeiro de 1890, foram duramente contundidas pelas movimentações políticas, sociais e militares que conduziram ao Regicídio de 1 de Fevereiro de 1907 e à implantação da República em 1910 e pelas que se lhes seguiram, na sua maior parte de sentido monárquico, até 1912, e sofreram os efeitos da não consensual participação do País na Primeira Guerra Mundial. E, ainda que permanecesse considerável atraso do País em muitos domínios, estava também já longe das mesmas caracteríscas o ambiente que se constatava em 1915, aquando do levantamento do General Pimenta de Castro, em 1917 na altura da ditadura de Sidónio Pais, e ainda mais de 1919 a 1933 com o abrir dos caminhos para o Estado Novo.
Permito-me, todavia, expressar neste âmbito uma opinião: as características do ambiente consensual inicial da Regeneração foram sofrendo, de facto, no decurso dos sucessivos governos que a lideraram o esbatimento resultante das dificuldades encontradas para a sua concretização, nomeadamente no capítulo financeiro, e esfumaram-se completamente em 1907 e 1908 com o advento do governo autoritário de João Franco, embora ele também um regenerador, mas liberal, e como se sabe, de outra qualidade.
O nosso Movimento não foi, todavia, fenómeno exclusivamente nacional, ainda que nossas fossem as razões dominantes que o despoletaram. Seguiu na altura os movimentos que estavam já a verificar-se na maior parte dos países europeus na sua necessidade de acalmar a intranquilidade política, estratégica, social e militar localmente decorrente das guerras napoleónicas. E em Portugal, para não se continuar em lutas fratricídas, em violentos debates públicos e à míngua de progresso, havia que, como aponta um historiador, “gerar de novo, reproduzir ou reconstruir o que estava destruído ou menosprezado, dar nova vida a mentes e instituições, entre as quais as militares, desenvolver bens e possibilidades das populações e pacificar os tecidos político e social de acordo com as normas resultantes da ultima guerra civil, a da Patuleia, em 1846 e 1847”. Tratava-se, em suma, de dar nova vida a um país cansado, pobre e desorganizado, o país que em 29 de Junho de 1847, por vontade própria e por influência da Inglaterra, da França e da Espanha conseguira efectivamente apaziguar-se em Gramido. E, embora não definitivamente como se constaria logo a seguir, os acordos da Convenção então assinada tiveram para a vida política, militar e social do país o grande benefício de sepultar ódios e de despertar os valores e as vontades que iriam depois conduzir à Regeneração.
2. Se o rotularmos segundo terminologias político-sociais actuais, o Movimento Regenerador não foi o que possa considerar-se, uma revolução, visto não pretender alterar a ordem política e social estabelecida, como sessenta anos depois sucederia com a implantação da República; e não correspondeu também a uma subversão, uma vez que não se pretendia assumir de outra forma essa mesma ordem, mas, pelo contrário, obter o progresso do País em harmonização interna e com pleno respeito da democracia. E, assim, de facto, se idealizou e procurou gerir a governação na segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, enveredando por um rotativismo partidário geralmente cordato e pacífico ainda que não isento, no entanto, de uma ou outra agitação mais relevante e da manifestação histórica de oportunismos e de interesses de grupos e de pessoas mais aferradas ao passado ou que tentavam já lançar as bases do republicanismo que marcaria nomeadamente a última década do “século das luzes”. Constituíam ambição e sentimento generalizados fazer evoluir o País de modo a elevá-lo a nível próximo, se não igual, do que para lá das fronteiras se verificava.
No seu livro “Três Mundos”, o bispo D. António da Costa vê o Movimento Regenerador um bem indispensável e conceitua-o como “tudo quanto regenere e aperfeiçoe a vida do homem no sentido de obter os bens desejados pela generalidade dos indivíduos a que se dirige”. Porque, acrescenta o prelado, “quando uma parte do conjunto da sociedade se opõe ao homem e lhe destrói a vitalidade e o anseio de uma projecção justa, ele afunda-se em anarquia política, moral e social que apenas termina quando surge e se impõe uma força capaz de o elevar e de lhe regenerar os meios que lhe ditam essa precária situação”.
3. Esta força de regeneração necessária sobre que incidem os pensamentos de D. António não podia, porém, ser qualquer. A sua acção teria de ser amplamente positiva para po der criar e expandir efectivamente elos de progresso e de justiça, sendo para isso indispensável que ela própria já se tivesse regenerado,ou seja, que já trilhasse com confiança os caminhos da tolerância, da harmonia, dos interesses da colectividade, do respeito pelas ideias de outras forças e do espirito de solidariedade e de cooperação.
Ora, é conhecido, que mais forte ou mais fragilizada conforme a pressão do oportunismo e dos interesses pessoais e partidários que de momento se lhe sobrepunham, essa força existiu, na realidade, no nosso Movimento de Regeneração, tendo sido garantida e concretizada: inicialmente, pelas reuniões de políticos, intelectuais e militares que decidiram em conjunto erguer o pendão do progresso e da paz social e arredar rapidamente a mediocridade, as desavenças políticas, partidárias e sociais que o País exibia após a Guerra da Patuleia; posteriormente, em 1851, pelo Corpo efectivo armado que, como se recordará a seguir, foi reunido pelo Marechal Saldanha, um dos “conjurados” das citadas reuniões; finalmente, depois dessa data, pela autoridade efectiva do Exército e da Marinha, então já regenerados ou a caminho de franca regeneração.
2. Eclosão e Implantação do Movimento
1. A presença e a influência determinante dos militares no Movimento verificou-se logo, de facto, nas suas eclosão e implantação e na respectiva preparação quando se tornou necessário congregar na primeira força as suas ideias e contar com a sua acção na constituição da segunda, esta a armada, com vista a pressionar D.Maria II e os seus seguidores. Desta segunda força tomaria efectivamente encargo na altura própria o discutido, patriota e ambicioso Marechal João Carlos de Saldanha e Daun.
Mas, sigamos a História:
Encerrada em 29 de Junho de 1847, em Gramido a questão da Guerra da Patuleia, o Marechal liberal foi convidado a formar governo e nele seria mantido até 1849 quando campanhas caluniosas e interesses opostos levaram D. Maria II a substituí-lo pelo autoritário Costa Cabral, Conde de Tomar, que as massas mais conservadoras consideravam déspota e odiavam, passando Saldanha para a Oposição. Encontrava-se assim lançada a primeira pedra para o lançamento do Movimento cuja estrutura, objectivos e sistema de conduta surgiriam logo a seguir. Não se visava través dele um “golpe de estado” mas, tão somente, a montagem de “acção de pressão” que levasse a Raínha a destituir Costa Cabral e a permitir a consolidação da paz interna e o lançamento dinâmico do progresso do País que se desejava. Não era uma acção contra o regime monárquico, mas contra o governo em que ele se apoiava.
Proliferam então, de imediato, as reuniões dos “conjurados”, atribuindo-se especial destaque ás que se realizavam em casa de Alexandre Herculano, ao Bairro Alto, em Lisboa, nas quais participam intelectuais, como Almeida Garrett, Latino Coelho, Rebelo da Silva, António Feliciano de Castilho, políticos como Rodrigo Fontes e José de Ávila (depois Duque) e militares de todas as patentes como, além de Saldanha, que viria a ser a primeira figura do Movimento, o Marechal Duque da Terceira, Major Sá da Bandeira, (depois também Marechal), Mouzinho de Albuquerque, Generais Condes das Antas, do Bonfim e do Casal e diversos outros oficiais que tinham servido sob as ordens destes como comandantes de unidade ou no serviço de estado-maior. De destacar entre estes o Tenente do Corpo de Engos António Maria Fontes Pereira de Mello, que, até á sua morte em 1887, viria a afirmar-se o principal dinamizador do Movimento a ele cabendo no inicio, ao que se afirma, a redacção das conclusões das reuniões e dos objectivos do Movimento que serviriam depois de base à sua proclamação no Porto, por Saldanha, em 27 de Junho de 1851.
Esteve sempre claro nessas reuniões que o Movimento teria de considerar e harmonizar os choques de ideias políticas, a força dos grupos implantados e a pressão da nova burguesia que procurava também tirar proveito das benesses da monarquia e que a sua garantia de sucesso muito dependia da existência de força armada efectiva de regeneração e de uma Imprensa periódica e não periódica que permitisse lançar as suas ideias de base, exaltar o seu conhecimento e informar e educar as populações.
2. Acompanhando os textos elaborados e ponderados sobre a Regeneração por esclarecidos historiadores, antigos e actuais, permito-me imaginar, compulsar e dispor metodicamente as “notas” tomadas por Fontes Pereira de Melo nessas reuniões e que teriam efectivamente conduzido ao enunciado e à definição final dos seus Objectivos.
Poderiam apresentar, porventura, a forma seguinte:
“Há necessidade, que todos sentimos e aceitamos, de ultrapassar o mais rapidamente possível as desavenças a todos os níveis e em todos os domínios que vem caracterizando a vida da Pátria e de enveredar com harmonia e vontade por Regeneração que conduza à morigeração dos costumes políticos, sociais e militares, a práticas políticas que respeitem os direitos de todos os grupos e pessoas e ao seu progresso estrutural, cultural e mental, em pleno consenso com a monarquia constitucional e seus representantes quando ocuparem legitimamente funções de Estado, contando para isso com o apoio e a contribuição das organizações do Exército e da Armada, também elas pacificadas e expurgadas no seu interior de elementos nefastos e de influências civis que as pretendam conduzir. Visa-se, em síntese:
a) Restabelecer e regenerar as ideias de serviço exclusivo da Pátria no sentido da justiça, da liberdade e da fraternidade;
b) Instruir, educar e informar os cidadãos e desenvolver os seus bens materiais, morais e culturais;
c) Regenerar em especial os domínios político e militar, tendo em atenção o respeito das leis em vigor e das que, no âmbito da soberania estabelecida, vierem a ser aprovadas;
d) Respeitar e exaltar os valores nacionais historicamente reconhecidos;
e) Regenerar os costumes da sociedade, prejudicados pelo ódio, desavenças locais e familiares e pela sobreposição nefasta a uma sã mentalidade de interesses pessoais e de grupo;
f) Relegar o exercício da autoridade que sufoca e oprime, adoptando a contemplação livre do que nos rodeia e do que de bom e de mau poderá advir do exterior.”
Em conformidade, duas áreas de esforço principais, interligadas, foram consideradas: uma política e outra militar, congregando-se na primeira todos os factores que serviam a Política ou dela dimanavam, e, na segunda, partindo da pacificação dos comandos e unidades, a revivência do apolitismo dos seus militares, da sua disciplina e do seu espírito de corpo e de coesão e, tratando do seu apetrechamento possível, das suas reorganização, instrução e preparação de forma a criar uma estrutura interna firme, saudável e independente, mas com capacidade de apoio, se necessário, à área de esforço político.
3. Considera o historiador Joel Serrão, seguido, alías, por outros historiadores, que a Regeneração nacional, tendo, de facto, influência marcante no estabelecimento e reforço do liberalismo português e expressando no seu conceito, nos seus objectivos e na sua filosofia “o caminho para a metamorfose ideológica das luzes,” seguiu, no entanto, “nível de desenvolvimento lento nas duas áreas de esforço, como, de resto, sempre sucedeu em Portugal em outros períodos com outras ideias e fenómenos.”. Deveu-se esta lentidão, acrescenta o historiador, “ao comportamento normalmente atávico dos portuguêses e à sua sujeição histórica aos eventos de origem transpirenáica anunciadores de novas ideias e de meios de todos os domínios,” incluindo, refiro eu, os militares.
Efectivamente, o nosso Movimento Regenerador sofreu nas suas duas áreas de esforço a influência do que se verificava além fronteiras, como no âmbito do apoio financeiro, a qual nem sempre se adequava aos seus objectivos. Todavia, tendo sempre em vista a paz democrática e o progresso das populações de Aquém e de Além-Mar, os esforços nas duas áreas puderam afirmar-se desde o seu início, sendo anos depois já outro o panorama estrutural e político do País quanto ao atraso e à instabilidade pacífica ou violenta que haviam caracterizado as três décadas anteriores.
Mas, voltemos à História:
4. Uma vez definidos pelos políticos, intelectuais e militares os objectivos a realizar pelo Movimento, era indispensável preparar acção de pressão que levasse D. Maria II a afastar o governo de Costa Cabral, tendo o grupo de “conjurados” escolhido o Marechal Saldanha para reunir os meios de força e tratar da organização que iria desencadeá-la. O Marechal traça de imediato o seu plano de acção com a cooperação natural dos oficiais que o acompanhavam nas reuniões, o qual visava, agindo de forma discreta, preparar a concentração da força na praça de Santarém conforme a evolução dos acontecimentos e actuar a partir daí sobre a Rainha e sobre o governo estabelecido.
Inicia os seus contactos em 7 de Abril de 1851 e logo verifica que as unidades da guarnição de Lisboa o não apoiariam. Caminha depois para o Sul e logo a seguir para o Norte e apenas consegue a adesão do BCaç 1, de Setúbal, e do BCaç 5, de Leiria. Quanto à guarnição do Porto, que imaginava ser a sua tábua de salvação, também ela se manifestou pela Rainha, obrigando-o mesmo a fugir para a Galiza para evitar ser preso. Mas não se dá por vencido. Dias depois, com a valentia e o espírito afoito e aventureiro que o caracterizavam, regressa secretamente à cidade e obtém na noite de 24 para 25 de Abril, após uma acção simples mas atribulada, a adesão das unidades do Quartel de Santo Ovídio (RI 2, BCaç 9 e DestArt). Abandonando então a clandestinidade, faz a proclamação do Movimento Regenerador e dos seus objectivos, destacando particularmente destes os aspectos que mais caros eram à generalidade das populações:
- Reforma absoluta e completa da Carta Constitucional;
- Queda do governo de Costa Cabral;
- Abolição integral do sistema de patronato e da corrupção.
Dá-se nesse mesmo dia 25 de Abril a adesão das restantes unidades da guarnição da cidade do Porto e Saldanha vê-se assim em condições de cumprir a missão de que fora encarregado. Marcha então de imediato para Santarém e obtém no percurso a aceitação mais ou menos segura das unidades militares ao longo dele localizadas.
Perante a situação, D. Maria II, aconselhada pelo marido, o futuro Rei D. Fernando II e já então comandante-chefe das Forças Armadas, destitui Costa Cabral e nomeia em 26 um governo chefiado pelo Marechal Duque da Terceira que acumula com o cargo de Ministro da Guerra.
Saldanha, no entanto, desejava o poder para levar a efeito a Regeneração que se pretendia. Não aceita, pois, esta solução, o que leva a Rainha a ceder, e marcha em 15 de Maio para Lisboa. Forma então governo e, como Alexandre Herculano e outros intelectuais indigitados não quiseram nele participar, entrega algumas pastas ao partido Setembrista, movimento liberal de esquerda pró-Constituição de 1822 renascido com a Revolução da Maria da Fonte e com a Guerra da Patuleia. Dá-se, porém. logo a seguir cisão com os Setembristas e Saldanha remodela o gabinete em 7 de Junho no qual, por sugestão de Rodrigo da Fonseca, faz entrar o Tenente Eng Fontes Pereira de Mello, primeiro como Ministro da Fazenda e, a seguir, também como Ministro das Obras Públicas, departamento que ele, portanto, fundou e de que foi assim o primeiro titular.
O Movimento encontrava-se finalmente assente em bases sólidas e apto a encetar, com as dificuldades que, apesar do acordo inicial, se previam, a realização dos objectivos enunciados. Aos militares que tinham estado na sua base outros se seguiriam, conjugando-se sempre que aconselhável, mas pacificamente, a reorganização das áreas de esforço política e militar.
3. A Área Política e os Militares
1. Os Quadros do Exército e da Marinha deram efectivamente a contribuição requerida pelo poder político na regeneração da sua área, enquanto procediam à extirpação da intervenção dos políticos no seio das suas unidades e à sua própria pacificação, mentalização e preparação, cooperando intensamente no sentido da viragem que se ansiava para um país cansado de guerras, golpes e revoluções e cujas forças vivas, comerciantes, industriais, banqueiros e, de um modo geral, a pequena e média burguesias em ascensão desejavam também usufruir dos benefícios até então exclusivos da classe monárquica dirigente e dos mais ricos e evoluídos, de modo a minimizar as assimetrias regionais.
Efectivamente, acompanhando o rotativismo partidário que teria início logo em 1856, cinco anos depois da implementação do Movimento, e se prolongaria concretatamente pelas seis décadas a seguir, muitos militares de todas as patentes julgados tecnicamente e éticamente mais preparados seriam chamados a exercer funções de administração e técnicas em departamentos e comissões de serviço, civis e militares, dos sucessivos governos, ainda que sem descurar jamais as realizações atinentes à área militar, a qual continuava a constituir o esteio seguro do ambiente salutar que se exigia para o prosseguimento do Movimento. Verificou-se, assim, participação de maior ou menor número de elementos do Exército e da Armada nos 24 governos, de origem ou remodelados, nomeados entre 1851 e 11 de Janeiro de 1890, data do Ultimato da Inglaterra, nos nove constituídos a seguir, até 1908, e nos seis que preencheram o período subsequente, até 1910, num total de 39.
Concretamente quanto à chefia dos ministérios, constata-se a presença do Marechal Sá da Bandeira em quatro governos, dos Marechal Saldanha e General Fontes Pereira de Mello em três, dos 2º Marquês de Loulé, General de Divisão Nuno Barreto e do General, depois Duque, António José de Ávila em dois, e dos General de Divisão João Crisóstomo de Abreu e Sousa, Comandante de Marinha (depois Almirante) Ferreira do Amaral e General Sebastião Custódio de Sousa Teles, em um. Assumiram ainda funções de chefia de governo Joaquim António de Aguiar, José Braamcamp, António Rodrigues Sampaio, António Lopes Pimentel e José Dias Ferreira que, voluntários ou contratados, haviam permanecido por período mais ou menos limitado no Serviço Militar.
Recorde-se que o governo de Fontes Pereira de Mello de 1870 a 1877 foi o mais longo de século XIX e que todos estes oficiais viveram mais ou menos intensamente no seio dos sucessivos ministérios a rotina política que os caracterizava e os destacados acontecimentos exógenos que então influenciaram mais ou menos intensamente o tecido histórico nacional. É de citar entre estes: o “Iberismo”, que começou a ser mais fortemente trabalhado em 1848 e que teria como figura entusiasta o próprio Marechal Saldanha; um ultimato da França, em Outubro de 1858, motivado pelo confiscação do seu navio negreiro “Charles et Georges” em águas de Moçambique; os primórdios, por 1871, da difusão das ideias republicanas; o ultimato da Inglaterra de Janeiro de 1890 e as acções nas colónias, que se prolongariam até 1906, dele consequentes; a necessidade de ali se afirmar definitivamente a nossa presença; finalmente, a Implantação da República.
Como se verifica, foi alargada no tempo e numerosa e valiosa nas figuras empenhadas também a contribuição dos militares na pacificação, reorganização e acção na área política do País, tornando necessariamente íntimos, sem perderem sensivelmente a respectiva independência, os esforços de regeneração nas duas áreas.
4. A Regeneração na Área Militar
1. Seguindo apreciações dos historiadores Oliveira Martins, General Ferreira Martins e Carlos Selvagem, impunha-se aos militares abandonar e fazer abandonar de vez na sua área o sistema interno de apoio ideológico e de força aos partidos que vinha desde 1820 de modo a conseguir-se que quaisquer acções e revoluções, ao contrário do que vinha sucedendo, deixassem de ser “empresas militares”. Assim, como prévia confirmação desta atitude, a acção da força de 1851, comandada pelo Marechal Saldanha, que conduziu ao apeamento de Costa Cabral, seria a última com tal finalidade, verificando-se daí em diante exercício independente do poder político, apenas com a contribuição de militares nas condições já apontadas.
O quadro da situação militar interna até então vigente abrangia corpos militares permanentes (1ª linha), milícias (2ª linha), batalhões nacionais e de voluntários e numerosos grupos de guerrilha, todos mais ou menos politizados e afadigados em colaborar na política, combater as organizações religiosas, muitas delas também politizadas, e obter benesses, honras e cargos de bons proventos financeiros. Impunha-se, portanto, em síntese, clamar por devotação coesa e disciplinar nas fileiras e reorientar e mentalizar os seus componentes para a consecução dos novos objectivos.
2. Os aspectos dominantes da realização do Movimento nesta área foram naturalmente sujeitos, como todas as reorganizações dos diversos domínios, a avanços e recuos nas metodologias seguidas e nos resultados das respectivas experimentações.
Atentemos, primeiro, no ramo Exército, o mais volumoso e historicamente o mais influente na situação.
Já no período de 1837 a 1849 as Cortes tinham autorizado a sua reorganização e difundido para o efeito algumas bases. Decidiu-se, assim, em 1849, três anos depois de Gramido, prosseguir a reorganização em curso, podendo esta ser assim considerada, a partir de 1851, a primeira no período do Movimento de Regeneração.
Por esta reorganização, as novas instrução e mentalização das tropas que se desejavam foram sendo realizadas no quadro dos comandos e grandes unidades já existentes, que seriam, portanto, mantidos, e que eram:
- Três Divisões Territoriais com sede em Lisboa, a 1ª, em Évora, a 2ª, e no Porto, a 3ª, englobando cada uma delas 8 Subdivisões, num total de 24, e sendo 5 com comando independente;
- Dois Comando Militares, um na Madeira e outro nos Açores.
Propriamente em termos de unidades superiores, a reorganização alargava-se a 18 Regimentos na Infantaria; a 2 Regimentos de Lanceiros, 6 Batalhões de Caçadores a Cavalo e 1 Depósito, na Cavalaria; a 3 Regimentos na Artilharia e a 1 Batalhão de Engenheiros, 1 Corpo de Estado-Maior, 1 Corpo de Telegrafistas e 1 Serviço de Saúde, na área dos Serviços. Estas unidades perfaziam em tempo de paz 29 000 homens, 3 312 cavalos e muares e 24 peças de artilharia e seriam elevadas em tempo de guerra, após mobilização, a 58 000 homens (o dobro do tempo de paz), 5 700 solípedes (mais 2 388 que em tempo de paz) e 72 peças de artilharia (o triplo das do tempo de paz).
Esta primeira reorganização foi sendo alterada no desenvolvimento do Movimento pelas que, como mais importantes, se discriminam a seguir:
a) A segunda reorganização teve lugar em 1862 e 1863 sob a direcção do Marquês de Sá da Bandeira, de que tomou o nome, sendo nela reformada e actualizada a vida interna das unidades e dotadas estas de novas espingardas, bocas de fogo e equipamentos adquiridos em Inglaterra ou fabricados no nosso Arsenal do Exército, entretanto também reequipado e reorganizado. As boças de fogo, destinadas à Artilharia, abrangiam obuses de campanha de 12 cm, peças de montanha de 8 cm e peças estriadas para a artilharia de sítio. Fontes Pereira de Melo, novamente no governo, foi o grande impulsionador desta reorganização.
b) Seis anos depois, em 1869 e 1870, surge a terceira reorganização em que se procura de certo modo “prussianizar” o Exército no armamento, equipamento e métodos de instrução, tomando de facto o Exército Prussiano, então em claro ascendente na Europa, como modelo. Alteraram-se os efectivos de tempo de paz para 30 000 homens (mais 1000 do que em 1849) e para 50 000 em tempo de guerra (menos 8000) e é consignado pela primeira vez o princípio da igualdade dos cidadãos perante o tributo de sangue, continuando a vigorar os sistemas de obrigatoriedade e de gratuitidade do Serviço Militar para os incorporados durante 5 anos efectivos, que passavam em seguida à Reserva (2ª linha) e terminavam a obrigação do Serviço aos 50 anos.
Entrámos então no sistema do Exército semi-permanente, já corrente em muitos dos países europeus, com quadros permanentes de oficiais e sargentos e estruturas e aquartelamentos também permanentes para absorver e instruir os incorporados nas fileiras.
c) A quarta reorganização, longa, cinco anos depois, de 1874 a 1878, tendo uma vez mais Fontes Pereira de Melo como mentor directo, procura adaptar ao Serviço os ensinamentos colhidos na Guerra Franco-Prussiana de 1870 que levou os vitoriosos soldados da Prússia até Paris. Actua-se sobre os métodos e sistemas de instrução e, considerando o relevante papel desempenhado naquela guerra pela Artilharia, é mais sobre esta que, em termos de armamento incide a reorganização. São, assim, adquiridas 6 Batarias de retrocarregamento “Kreine” de 7,8 cm e 6 Batarias “Krup” do mesmo calibre, depois generalizado em 1878 a toda a artilharia de campanha.
d) Em 1884 e 1885, sendo Fontes Pereira de Melo chefe do governo, tem lugar a quinta reorganização, a que teve, de facto, o seu nome, cujos efeitos iriam perdurar até 1911, três anos antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, e ter elevada influência nas campanhas ultramarinas que a seguir a 1890 houve que realizar.
São características dominantes desta reorganização, do ponto de vista do pessoal, substancial aumento dos efectivos incorporados, acentuada melhoria da instrução individual do combatente e da preparação das unidades e o estabelecimento de novos quadros de Oficiais e Sargentos; pelo que respeita a armamento e equipamento, entram em uso no Exército as armas individuais de retrocarga, por culatra, de que se adquiriram 20 000 para as adaptar às 20 000 espingardas “Enfield” já existentes, compram-se 20 000 espingardas “Snider” para a Infantaria e 5000 para Cavalaria e, já em 1885, mais 48 000 espingardas “Kropachek” de 8 mm, estas de repetição. que são também distribuídas à Infantaria e ainda à Artilharia.
Resultou destas volumosas, oportunas e efectivamente necessárias aquisições um excesso de espingardas “Snider” que foi aproveitado para armar unidades de Reserva e aumentar as dotações do Ultramar. Ainda em 1884, a Artilharia viu reforçado o seu potencial de fogo com 10 Batarias “Krup”, completas, de 6 peças cada, que utilizavam granadas com balas e espoletas de duplo efeito.
Esta reorganização de Fontes Pereira de Melo, que pode ser considerada a última do período do Movimento de Regeneração, elevou o Exército a nível de modernização, apetrechamento e preparação até então nunca atingido.
3. Relativamente à Marinha Real, vogando nas mesmas preocupações de preparação e de adaptação à Regeneração, quer a nível interno, quer do ponto de vista do acompanhamento e apoio do Movimento no esforço desenvolvido na área política, não foi menor o cômputo da reorganização. Passou-se do sistema de navios de madeira e à vela para o de navios de casco metálico e a vapor, iniciando-se propriamente a reorganização em 185l com a reestruturação do Arsenal de Marinha e do Corpo de Marinheiros e seguindo-se depois, como mais salientes, com as reorganizações seguintes:
a) Em 1859, adopção de novos quadros orgânicos para o Ministério, então da Marinha e Ultramar;
b) Em 1866, reformulação das bases de recrutamento do pessoal destinado à Armada;
c) Em 1868, nova reorganização dos serviços do Ministério e aquisição em Inglaterra de navios novos;
d) Em 1875 e 1876, aquando da quarta reorganização do Exército, Andrade Corvo e Fontes Pereira de Melo, tendo em atenção as necessidades de defesa e de patrulhamento das extensas costas continental e insulares e as de defesa e afirmação da nossa presença no Ultramar, adquirem em Inglaterra o couraçado “Vasco da Gama” e, neste país, ou mandam construir no Arsenal do Alfeite canhoneiras e corvetas de tipo moderno, torpedeiros e outros navios de superfície de menor tonelagem.
e) Sete anos depois, em 1883, Manuel Pinheiro Chagas, Ministro da Marinha, tendo mais uma vez em vista a valorização da defesa dos territórios ultramarinos, cria duas Divisões Navais, a do Atlântico e a do Índico, adquire mais 3 torpedeiros e 3 canhoneiras e ordena a reorganização do Serviço de Torpedos.
4. Pode dizer-se, em síntese, sobre o desenvolvimento da Regeneração na área de esforço militar que, adentro das restrições financeiras com que o Movimento sempre teve de contar, aliás na mesma situação, como já se disse, de todos os domínios da área política, dela se obtiveram resultados altamente positivos, a par do espírito de concórdia, de cooperação e de camaradagem que se instalou entre todos os militares.
Seria em virtude do ingente esforço desenvolvido em termos de reorganização até cerca de 1890 que seria depois possível fazer face às acções de penetração e de ocupação dos territórios ultramarinos tornadas imperiosas na última década do século XIX e na primeira do século XX, reforçar e apoiar a política de manutenção daqueles territórios, historicamente sempre cobiçados pela Alemanha, pela França, pela Espanha e pela nossa velha aliada Inglaterra, e, de certo modo, após decisão política muito contestada, entrar menos pobre em 1917 na Primeira Guerra Mundial. E se o empenhamento ultramarino, em especial, revelou aqui e além falhas, algumas gritantes, quanto a meios operacionais, logísticos e administrativos, tal ficou a dever-se também em parte, como aponta, por exemplo, Carlos Selvagem, “a vícios endémicos dos portugueses, ao desconhecimento de técnicas e práticas então usuais, a desleixo administrativo,” a erros de apreciação e decisão de governantes “e a práticas de favoritismo e de brandura que permitiam manter em funções chefes políticos e militares indecisos e caducos”, tudo isto apesar do espírito de sacrifício e de adaptação, de se fazer forte quando fraco, da solidariedade e da valentia reconhecidas a todos os outros, militares e civis, que ajudaram a sobreviver e continuar.
Haverá heróis a destacar entre os que, no cerne da Epopeia Ultramarina, “se foram por obras valerosas da lei da morte libertando”?....Muitos o foram; na Guiné como em Angola, em Moçambique como em Macau e Timor, na Europa, na África, na Ásia e na Oceânia. O espírito nascido com o Movimento Regenerador firmou-se e, embora com uma ou outra agitação logo desaparecida, foi-se mantendo e realizando até ao fim daqueles tempos, até à primeira década do século XX.
5. Manifestações Literárias e Culturais
1. A afirmação, a consolidação e a projecção do Movimento Regenerador nas áreas de esforço política e militar teve, do mesmo modo que vinha sucedendo noutros países, o esteio de numerosas publicações periódicas ou de ocasião de que se serviam, em colaração construtiva ou simplesmente crítica, muitos dos homens nela empenhados. Esses escritos fizeram parte das “luzes” internas e externas da generalização do Movimento.
Na gama de todas as publicações literárias, técnicas e culturais que anunciaram em tempo, lançaram e contribuíram enormemente para o desenvolvimento do espírito regenerador, há a destacar desde logo a Revista Militar, hoje a primeira do Mundo e a segunda do País em continuidade de edição, idealizada e pensada de 1846 a 1848 e surgida, após contrato assinado em 1 de Dezembro desse último ano, em Janeiro de 1849, dois anos antes, portanto, da implantação efectiva do Movimento.
O destaque da Revista justifica-se e é altamente merecido pelas condições de apreciação dos problemas políticos, religiosos e militares da altura que certamente rodearam a sua gestação, pelo nome do seu fundador número um, o Tenente do Real Corpo de Engenheiros António Maria Fontes Pereira de Mello, entre os outros 24 Oficiais do Exército e 2 da Armada que levaram a bom termo a sua criação, pelo contexto da “Introdução” que Fontes redigiu para o seu primeiro número, em que torna patentes todas as preocupações que assolavam o País, pela larga e entusiástica aceitação que a Revista desde logo mereceu, além dos 690 oficiais superiores e inferiores, por parte das mais altas entidades da Corte, reis e príncípes, e secretários de estado, marechais, almirantes, generais, directores-gerais, escritores, intelectuais, cinco círculos literários e culturais, entre os quais o Grémio Literário, e, fundamentalmente, pela influência dominante e determinante que o seu fundador principal vai logo a seguir desempenhar na criação e na implantação do Movimento.
Efectivamente pensada e idealizada por Fontes Pereira de Melo e por mais um ou dois oficiais na região de Oliveira de Azeméis em 1846 - em plena Guerra da Patuleia, durante a paragem forçada de dois meses a que as tropas de Saldanha foram obrigadas, à espera de reforços e de abastecimentos quando, após a vitória obtida em Torres Vedras, seguiam no encalço das tropas do Conde das Antas em retirada para o Norte - a Revista seria depois elaborada em todo esse ano e nos dois que se seguiram à medida que era aprofundado o estudo da situação política e militar do momento e se afinavam as suas conclusões, estas naturalmente imbuídas da necessidade de revigoração independente das duas áreas política e militar do País e, simultaneamente, da sua interligação, quando aconselhável, à assunção da vida pacífica e de progresso que se ansiava.
Demarcada a sua independência no seio do Movimento e expressando claramente o que verdadeiramente se pretendia realizar no Exército e na Marinha, a Revista adoptou no Contrato da sua Fundação, em 1848, o princípio seguinte, que tem vindo a ser fielmente observado até aos nossos dias:
“A empreza da Revista Militar tem por finalidade a publicação de um periódico militar que se ocupe em promover a discussão e a propagação de conhecimentos e assuntos militares, com especialidade dos que digam respeito ao Exército e à Armada Nacional, com exclusão absoluta de matérias políticas, religiosas e de alusões pessoais”.
Como se constata, este texto de1848 contém normas de acção e de convivência inteiramente opostas às que até então, desde o Vintismo, durante trinta anos, haviam largamente proliferado naquelas duas organizações.
2. Mas, não houve só Revista Militar. Perante as necessidades de formação interna e de informação, aproveitando a implantação da Regeneração e o espírito de evolução construtiva e positiva que dele irradiava e, nalguns casos, renovando ou dando continuidade a publicações que já existiam, surgiram a partir de 1851 jornais e revistas periódicos e não periódicos, dedicados a especialidades militares, cultura geral, técnica ou informação que, além de ajudarem à missão regeneradora das unidades, permitiram criar maior ligação entre as áreas civil e militar e entre esta e maior grau de entendimento mútuo com a sociedade civil.
Segundo o “Catálogo da Biblioteca do Exército” dedicado à Imprensa Militar Portuguesa, recentemente e em boa hora editado sob a direcção do Coronel Alberto Ribeiro Soares, director da Biblioteca, foram em número de 86 as publicações militares ou interessando à área de esforço militar editadas entre 1851 e 1910, com maior incidência nas duas décadas finais da Regeneração, a de noventa e a primeira do século XX, em que surgiram 43.
Destas últimas, vamos apontar apenas, como exemplo, os seguintes títulos:
a) Revista das Ciências Militares (1885);
b) Revistas “A Sentinela” (1892) e “Eco Militar” (1897), publicadas em Tavira e Portimão, respectivamente, como órgãos militares independentes, no âmbito de reivindicações profissionais que começavam a surgir no quadro de sargentos e dando já também vazão à propaganda republicana;
c) “Revista de Engenharia Militar” (1896)), “Revista de Infantaria” (1898), “Revista de Artilharia” e “Revista de Cavalaria (ambas em 1904), que ainda hoje se publicam;
d) Por fim, as “Revista do Exército e da Armada” (1893), “Revista de Administração Militar”(1902) e “Portugal Militar”(1903), esta suplemento ilustrado da anterior, que, sendo Ministro da Guerra o General Sebastião Teles e chefe do governo o progressista José Luciano de Castro, dando execução a decisão muito contestada, foram fundidas em 1905 com a já velha de 57 anos, mas sempre de espírito jovem e independente, “Revista Militar”.
Foram razões apontadas para esta fusão a pequenez do Exército e a dispensa de espaço em matéria de jornalismo. Todavia, a arrastada celeuma também então levantada com a presidência da direcção da Revista Militar levam a admitir que se desejava coartar politicamente opiniões divergentes em vários domínios, principalmente por parte dos fundadores e colaboradores da “Revista do Exército e da Armada”, os Capitão Ferreira da Costa, Tenentes Ayres de Ornellas e Vasconcelos e 1ºs Tenentes Teixeira Botelho e Mendonça Galvão, que viriam a revelar-se figuras proeminentes nos Ramos a que pertenciam.
6. O Texto “Introdução” de Fontes Pereira de Mello
1. É de referir como preâmbulo que, uma vez dado corpo à Empresa da Revista Militar e publicada no primeiro número da Revista a sua “Introdução”, jamais Fontes Pereira de Mello voltou a colaborar na Revista ou a fazer parte da sua administração. De facto, desde que em 1851 enveredou claramente pela Política, atendendo aos objectivos do Movimento Regenerador e às finalidades e condicionamentos estatuídos para a Revista, não mais quis dedicar-se simultaneamente a funções políticas e militares, como sucederia também, aliás, com outros oficiais, ainda que sem prejuízo dos relacionamentos de serviço entre as duas áreas atinentes às mesmas funções. Estava verdadeiramente em jogo o “apaziguamento das sociedades civil e militar” e a não interferência, se não fosse requerida, de uma sobre a outra.
A atitude por ele assumida em continuidade, viria a culminar, de resto, com o seu ingresso no Partido Regenerador, de que seria mais tarde o primeiro presidente.
2. No seu contexto geral, a “Introdução” é um repositório subjectivo de ponderada apreciação da situação e de orientações, visando a Regeneração então em estudo que se pretendia implantar e realizar. Especifica logo de inicio o ambiente constatado em 1848 e o decorrente para1849 nos domínios político, militar, literário e cultural resultante dos meses e anos de luta anteriores; exalta o pensamento positivo que se alarga pelo mundo e no qual se destaca o “predomínio da inteligência sobre a força”; clama por uma sociedade capaz de melhorar a sorte de todos os seus componentes pelo uso do progresso, do raciocínio, de ideias elevadas e do acesso a uma Imprensa livre; aponta como metas desta Imprensa a difusão da instrução e a aceitação de interesses legítimos, sem devaneios, oportunismos ou paixões; em síntese, lembra e conduz à reprovação da instabilidade dura e sangrenta das décadas anteriores. Considerando a seguir a primazia da ciência e da arte já constatada noutros países, refere particularmente na área dos transportes os grandes padrões que deverão presidir ao desenvolvimento da sociedade - o barco a vapor, o caminho de ferro e o telégrafo eléctrico - de que o nosso País ainda se encontrava muito arredio; e cita ainda, entre outras afirmações, que há que estudar, seguir em frente, aproveitar ensinamentos, copiar o que for útil, adaptar, afastar os tíbios e os timoratos, convencer os descrentes e difundir ideias às grandes massas para que todos, com esforço acumulado, se tornem elementos positivos da sociedade e nela tenham um papel a desempenhar.
Em continuação, agora de forma mais concreta e objectiva, o texto abrange na segunda parte das suas 15 páginas a regeneração necessária no interior do Exército e da Armada, a indispensabilidade da irmandade pacífica e colaborante com a área política, ainda que agindo sempre em campos separados, a modernização do armamento e do equipamento, a mentalização do pessoal e a técnica e a ciência da guerra. Vê o Exército com elementos devotados e sabedores de todas as Armas e larga utilização de especialistas instruídos e moralizados e a Marinha com particular empenhamento no âmbito das suas reconhecidas aptidão científica e tecnológica e conclui com a afirmação que a Medalha Comemorativa do 150º Aniversário da Revista, editada em 1998, apresenta no seu reverso:
“ O homem precisa do estudo para fortificar a inteligência, da inteligência para dirigir a força e da força para defender a Pátria e a Liberdade”.
Todo o resto do texto expressa os pensamentos, as ideias e as intenções de alguém, ele, que só visa o desenvolvimento da Pátria, das suas gentes e, em especial, dos seus militares. Dele vamos apenas fazer recordar as razões dominantes com que justifica a necessidade da fundação da Revista Militar.
Escreve o seguinte, no seu português de então:
“Muito de propósito nos abstemos d’amontoar exemplos em abono da opinião que sustentamos; não vale a pena gastar erudição para provar o que é evidente de si, para quantos ouvem e vêem; contra a surdez e cegueira obstinadas não há argumentos que prevaleçam. Aos que forem prosélitos da ignorância das letras, aconselhamos-lhes que não lêam. Escrevemos sómente para aqueles que desejam que tenhamos um exército instruído, e para os que, ainda nos pequenos postos, querem alcançar facilmente conhecimentos que contribuam para alcançar algum dia, com honra delles e vantagem pública, a elevada posição a que subirem. Para estes é que vai redigir-se a Revista Militar, fructo das vigilias d‘alguns oficiaes que, desejando ser úteis aos seus camaradas, querem também aprender, escrevendo. Oxalá que esta publicação mereça o acolhimento da maioria do exército e dos homens instruídos do paíz e que este atrevimento dos poucos annos, que só confia em Deus e na sua vontade, desperte em pennas mais hábeis o desejo de se ilustrarem e de serem úteis a uma classe que tanto merece da pátria...”
3. Como sucederia depois continuamente com o acervo de todas as revistas, nesse primeiro número, em seguida à “Introdução”, procurou concretizar-se de imediato o espírito do Movimento na área de esforço militar, tendo nele sido editados mais os seguintes trabalhos: um artigo do Coronel A.J. Costa Salgado sobre a “Artilharia de montanha comparada com a de campanha”, em que se apresenta a metodologia seguida no nosso Exército em comparação com a adoptada, e mais evoluída, no Exército Espanhol; outro artigo do mesmo oficial sobre o “Fogo Oblíquo da Infantaria” conforme instruções de 1841, no qual se metodiza a técnica de tiro de espingarda para a direita e para a esquerda de um atirador posicionado numa linha de atiradores; um texto do Coronel António Xavier Palmeirim intitulado “Inéditos Militares Portugueses”, em que se exalta a figura do conceituado Brigadeiro do Corpo de Engenheiros José Maria Neves da Costa, falecido em 1841, o construtor-chefe das Linhas de Torres Vedras na primeira década do século, e se divulga um seu estudo, até então desconhecido, sobre a “Teoria do Relevo dos Terrenos”, escrito em 1824; ainda uma “Bibliografia”, mencionando tudo o que no País e no estrangeiro vinha sendo publicado em matéria de interesse militar; como remate do acervo, inclui-se uma “Crónica Interna” com aspectos da organização do Exército e das suas actividades, algumas destas sob o hoje pouco usual rótulo do “consta que”, e uma “Crónica Externa” com informações sobre a organização geral das capitanias-gerais do Exército Espanhol e sobre os efectivos totais da Marinha Inglesa nos fins do ano de 1848, anterior.
Estes trabalhos e os seus temas reflectem já, como se disse, teorias e práticas internas e externas implementadoras do espírito da Regeneração e encaminham, de facto, o Exército e a Marinha para nova mentalização, como de resto logo foi reconhecido por políticos, intelectuais, todos os militares e outras figuras conscientes da necessidade do progresso dinâmico, mas pacífico, que se tornara inadiável.
4. Como testemunhos actuais, que muito nos enobrecem, desse esforço na área militar que então passou a viver-se, permito-me recordar algumas das considerações feitas pelo Professor Doutor Aníbal Pinto de Castro, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 2 de Dezembro de 1998, na sessão solene comemorativa do 150º aniversário da Revista Militar, e pela Professora Doutora Maria Filomena Mónica, da Faculdade de Letras da Universidade do Minho, em artigo de colaboração para a Revista.
Escreveu e disse o ilustre Professor: “ Quando em Janeiro de 1849 fizeram sair o número inaugural da Revista Militar, os oficiais seus fundadores e os que constituíam o seu corpo redactorial estavam conscientes de que correspondiam, não apenas a uma necessidade sentida pelos seus camaradas do Exército e da Armada, mas a um real horizonte de expectativa, logo bem patente no nome e na qualidade dos seus assinantes cuja lista de militares, civis, unidades e instituições literárias e científicas, encabeçada pelo Rei D. Fernando II, era expressão de que se procurava enveredar por uma nova vida que fizesse Regressar o País aos seus valores e lhe trouxesse o progresso que por toda a parte era necessário....”. “ Surgia com efeito num momento deveras significativo da História Portuguesa de mil e oitocentos, quando tudo apontava para uma estabilidade social e política cuja necessidade se fazia sentir desde 1820 com crescente entusiasmo e que o desfecho das lutas civis da Patuleia vinham tornar possível e a Regeneração iria concretizar, esperava-se, nos anos seguintes...”.
A proficiente e esclarecida Professora Filomena Mónica, dirigindo principalmente as suas considerações à figura de Fontes Pereira de Melo como fundador da Revista, destaca no seu texto a sua forte personalidade, o seu muito saber, a sua experiência, o seu dinamismo e a sua alta qualidade para seleccionar e ligar a si os colaboradores mais aptos, planeando, decidindo e ordenando numa Pátria ansiosa de medidas que a retirassem da intranquilidade e da pobreza. Na realidade, afirma, a um homem como Saldanha temido pelos seus adversários, quer políticos, quer militares, o apadrinhador entusiasta da Regeneração, com acção dominante de 1849 a 1851 e, mais tarde, regressado do exílio, em 1870, sucede-se um Fontes Pereira de Mello com todas as qualidades de realizador e harmonizador, persistente e ponderado que toma e orienta o andamento do Movimento na via possível ainda que muitos escolhos se levantassem aos seus objectivos.
7. Conclusões
1. Movimento histórico que se estendeu por toda a segunda metade do século XIX e primeira década do século XX, a Regeneração brotou com alta voz da necessidade de pacificar e desenvolver as áreas política e militar do País, fazê-lo caminhar na senda do progresso em todos os domínios, de que estava efectivamente muito carecido, tendo em conta e acompanhando o desenvolvimento e a acção de movimentos semelhantes que então se constatavam por toda a Europa, mais ou menos orientados pelas ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que haviam sido chama da Revolução Francesa que, nas suas duras e longas marchas através do continente, os exércitos de Napoleão muito haviam ajudado a difundir. Pelo estado do País, só a harmonia concertada entre políticos, militares e intelectuais e a vontade da maioria dos portugueses seriam capazes de vencer, na medida do possível, tal situação, entre nós terrivelmente agravada pelas condições nascidas da então recente perda do Brasil e pela existência de outros Territórios Ultramarinos em que pouco ou nada se vinha fazendo para garantir o seu desenvolvimento e a sua defesa face à ambição de muitos países que os pretendiam.
2. Caminhando a par, independentes mas apoiando-se, os partidos políticos e as organizações do Exército e da Armada, imbuídos das mesmas ideias de regeneração e de rejuvenescimento da Pátria em liberdade, consonância e respeito mútuo, empenharam-se a partir de 185l numa tarefa imensa nas duas áreas, em que estiveram presentes, no entanto, em alguns momentos instabilidade política e carências gritantes do ponto de vista financeiro para a levar a bom termo.
O rotativismo político-partidário acordado e seguido, se, por um lado, prejudicou a continuidade governamental, foi, todavia, sistema que permitiu a instauração sucessiva de novos esquemas de governo e a expressão e prática de opiniões que, por vezes discordantes, se acendiam em torno dos muitos problemas nacionais.
Obra de políticos, militares e intelectuais, o Movimento Regenerador desenvolveu efectivamente as estruturas do País e o progresso das suas populações, permitiu que não se atrasasse ainda mais em relação aos restantes países europeus e criou condições, espírito de coesão e mentalidade para, na medida das possibilidades conseguidas, ultrapassar as consequências do doloroso Ultimato da Inglaterra de 1890 e, a par do incremento da sua pacificação e do seu desenvolvimento, garantir a soberania portuguesa sobre os Territórios do Ultramar.
3. Os anos que imediatamente antecederam a Implantação da República e o período muito conturbado que se lhe seguiu até à eclosão da Primeira Guerra Mundial, a contestada participação efectiva nesta a partir de 1917 e as revoluções de 1915, com o General Pimenta de Castro, e de 1917, com Sidónio Pais, já direccionadas, bem como outros movimentos que se lhe seguiram até 1933, para regimes de força ou ditatoriais, alteraram sem dúvida o sentido da já velha Regeneração, que havia sido proclamado, repita-se, “para, agindo com justiça, liberdade e fraternidade, restabelecer as ideias de serviço exclusivo da Pátria, fazê-la progredir em todos os domínios, exaltar os valores nacionais e relegar para longe o exercício tirânico da autoridade”.
8. Nota Final
Cumprindo a tarefa que me propus, procurei nestas considerações transmitir, em síntese, a noção do que foi o período da Regeneração e o comportamento de figuras de militares que contribuíram para a a criação, implantação e realização do Movimento, “dando substância”, como diz um autor, “à passagem para a liberdade pacífica e consciente e para o progresso do País que, cevando ódios e antagonismos de ideias, quase haviam desaparecido.”
Pouco disse, no entanto, estou certo, do muito que da imensa Epopeia de sessenta anos podia ter extraído, do muito que podia ter aflorado de um tempo em que a febre de realizações, pacíficas mas com um ou outro pomo de discórdia, tinha por meta final servir e engrandecer a Pátria, chegar bem e depressa a todo o nosso mundo. Mas, o tempo de reflexão disponível não me tornou possível ir mais longe.
Agradeço, muito penhorado, a atenção que se dignaram dispensar-me.
Súmula Bibliográfica
Principais obras e publicações consultadas:
“Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” - Vol. XXIV e outros.
“Cristianismo-Progresso”, de D. António da Costa.
“Três Mundos”, de D. António da Costa.
“Fontes Pereira de Mello”, de Maria Filomena Mónica.
“História de Portugal”, de Joaquim Veríssimo Serrão.
“História de Portugal”, de A. H. Oliveira Marques.
“Portugal Contemporâneo”, Dir. de António Reis.
“Dicionário da História de Portugal”, Coord. de Joel Serrão.
“Portugal Militar”, de Carlos Selvagem.
“História do Exército Português”, de Gen. Ferreira Martins.
“ História de Portugal”, Dir. de José Hermano Saraiva.
“História de Portugal”, Ed.Barcelos - Vol II.
“Revista Militar” - Nº 1 (1849) e Nº 11-Esp (1998).
“Catálogo da BiIblioteca do Exército” (2003), Dir. Coronel Ribeiro Soares.
* Texto da comunicação feita no XIII Colóquio de História Militar, organizado pela Comissão Portuguesa de História Militar, de 10 a 12 de Novembro de 2003.
** Sócio Efectivo da Revista Militar de que foi Presidente da Direcção (1991-2000).