A influência do general alemão Karl Haushofer na formulação da estratégia global do III Reich ainda hoje é causa de polémica.
Se, parafraseando Ortega y Gasset, “o homem é o ser e sua circunstância”, a vida e obra de Haushofer encarna na plenitude esse “espírito do tempo” que a Alemanha viveu com especial intensidade de 1919 a 1945.
Qualquer que seja o prisma de análise adoptado, o pensamento de Haushofer não deixará de, em última instância, procurar moldar a conduta política do Estado tendo por base a sua relação multímoda com o espaço ocupado.
Saber se a praxiologia nacional-socialista desvirtuou ou não os propósitos e conceitos da Geopolitik alemã, é toda uma nova ordem de análise que se abre… Importa, então, e mais que nunca ter presente a génese do pensamento haushoferiano.
Karl Haushofer começa por desempenhar a sua primeira função governamental ao integrar, em 1908, uma missão militar de visita ao Japão com o intuito de estudar a instrução e organização do exército japonês. Nos dois anos seguintes, viria aí a desempenhar funções de Adido Militar1.
Autêntica “estrada de Damasco” na evolução do seu pensamento, a realidade japonesa em muito impressionou Haushofer. O sentimento de unidade nacional sobressaía mesmo aos espíritos menos atentos. O indivíduo era à data pouco menos que insignificante, sendo a sua conduta determinada em função dos interesses da família, da comunidade e do Estado. Mau grado a abertura ao exterior, prevalecia ainda uma forte “tradição samurai”, assente no espírito de sacrifício individual e na lealdade ao Imperador. Longe dos compromissos parlamentares, o Japão orientava a sua estratégia internacional por um “instinto geopolítico” que dava ao Governo toda a liberdade de acção. Fruto desse “instinto” e de uma planeada campanha de sensibilização interna e externa, o Japão pôde destarte expandir-se para as costas asiáticas, nomeadamente, conquistando a Manchúria e a Coreia (esta última presenciada pelo próprio Haushofer aquando da sua estadia...)2.
De regresso à Alemanha, Karl Haushofer doutorar-se-ia em Geografia, Geologia e História na Universidade de Munique com uma tese sobre as potencialidades do Japão e as possibilidades de cooperação germano-nipónica…
Após o deflagrar da I Guerra Mundial, comandou uma brigada de Artilharia do Exército na qualidade de Major-General3.
No final do conflito, o “exemplo japonês” fazia contraste com a estratégia seguida pela Alemanha que a levou à guerra e ao descalabro subsequente.
Tornou-se então claro ao seu espírito que a Alemanha precisava de receber “educação geopolítica”. Pertinaz na defesa de tais propósitos, ocupa a cátedra de Geografia da Universidade de Munique (1919), fundando mais tarde (1924), com Erich Obst, Otto Maull, Hermann Lautensach, entre outros, a Zeitschrift für Geopolitik (revista de geopolítica) em torno da qual se estruturará a denominada “Escola alemã de Geopolítica”. Como elemento agregador, a fragilidade alemã advinda, entre outras causas, do trauma resultante das perdas territoriais estatuídas em Versalhes. Haushofer não deixará, por conseguinte, de exortar os alemães a esquecer os seus particularismos regionais e a unirem-se para lutarem pelo seu Lebensraum ou “espaço vital”.
Brilhante organizador, autor de uma ampla obra literária, participante de inúmeras conferências nas quais procurava publicitar o seu “método geopolítico”, em breve largos sectores da sociedade serão “iniciados a pensar geopoliticamente”, ou por outros termos, a familiarizarem-se com a perspectiva segundo a qual a ultrapassagem do “síndroma de Versalhes” passaria pela conquista desse mesmo espaço vital” pelo povo alemão.
Não admira pois que aquando da ascensão de Hitler ao poder (1933), o conhecimento dos trabalhos de Haushofer na Alemanha (escolas, imprensa) e mesmo no exterior (sobretudo Grã-Bretanha e Estados Unidos), seja directamente proporcional ao empenho que colocou em seus propósitos4.
Visando dotar a “sede do poder” germânica de uma sólida base de conhecimentos que completasse a formação tradicional das elites dirigentes (impregnando-as assim de um “instinto geopolítico”), muitas propostas de Haushofer foram interiorizadas pelo movimento nazi. Mas se tal influência pode ter sido exercida ab initio, o crescente predomínio deste em todas as esferas da sociedade alemã, levaria a que no final fosse a própria Geopolitik ser condicionada pelo “framework” ideológico do dito movimento5.
A relação que se estabelece entre os geopolíticos alemães e o Partido assenta, por conseguinte, em objectivos comuns, caminhando paulatinamente para uma simbiose na qual o regime se irá apossando dos conceitos elaborados, ficando estes condicionados pelo resultado da sua apropriação e tentativa de materialização prática6.
Das principais teses geopolíticas elaboradas, as mais polémicas e as que poderão ter exercido influência na Política Externa e Estratégia nacional-socialista, foram as relativas ao conceito de “Espaço vital”, “Pan-regiões”, “Estados-directores” e “Hegemonia mundial” 7.
A teoria do “espaço vital” (Lebensraum) foi perspectivada pela geopolítica alemã tendo por base organicismo de Kjellén e as “leis do crescimento” de Ratzel. Para o autor, o conceito de “fronteira” situava-se mais além do seu valor jurídico, devendo antes ser perspectivada como confluência de factores históricos, geográficos ou biológicos.
O resultado desta osmose foi a diferenciação produzida entre “Estados satisfeitos” e “Estados sem Espaço”. Pelas perdas territoriais estatuídas em Versalhes, pela “sobrepopulação” que entendia sofrer, pela condição de “sitiada” advinda da sua posição que ocupava no centro da Europa, a Geopolitik alemã situava claramente a Alemanha como “Estado sem espaço” com direito a expandir-se até às suas “fronteiras naturais”.
Intimamente ligado ao espaço vital está o conceito de “autarcia económica”. Num contexto em que sistema económico liberal tinha sido posto em causa pela “grande depressão” de 1929, era (quase) unânime a opinião segundo a qual a dependência das importações era factor de vulnerabilidade acrescida para o Estado (sobretudo em tempo de crise).
Também a geopolítica alemã não ficou imune a este ambiente, antes estudou os mecanismos que permitissem dotar a nação (cada vez mais instruída geopoliticamente e consciente da necessidade imediata de espaço vital), de um elevado grau de segurança económica. A conduta política a este nível seria então orientada para a obtenção de recursos e disponibilidades próprias que dessem garantias de sobrevivência ao Estado quer em tempo de paz, quer em períodos de guerra.
Mas se o “espaço vital” e as respectivas fronteiras naturais deveriam ter em atenção as necessidades do Estado, estas só atingiriam a sua consecução mediante constituição efectiva de “pan-regiões”,“ isto é, áreas geograficamente compensadas que o pusessem a cobro de todo o tipo de crises.
O conceito de “pan-regiões” completa o de “lebensraumm”. A formação destas áreas geograficamente compensadas e autárquicas obedeceria a critérios económicos e políticos: estabelecendo-se num sentido dos meridianos terrestres, abarcando dessa forma uma diversidade de condições climáticas, a sua extensão permitiria a esses grandes espaços uma enorme gama de produtos naturais, indústrias e de recursos humanos que os poria em situação de completa autonomia face aos restantes. Por outro lado, a tendencial “fusão” dos interesses estaduais neles existentes eliminaria os antagonismos gerando-se assim uma espécie de “paz regional”8.
Se o “espaço vital” implicava existencialmente uma “pan-Região”, esta por sua vez exigia politicamente um “Estado-Director”. Os grandes espaços concebidos a priori como potenciadores da expansão espacial, visavam a posteriori o estabelecimento de uma “ordem” ditada pelo executor daquela. A paz internacional passaria a depender de um co-domínio aristocrático que Alemanha, União Soviética, Japão e Estados-Unidos concebessem em cada “pan-Região”.
Perante a lógica subjacente às premissas geopolíticas indicadas, a concepção de Ratzel segundo a qual “espaço é poder” adquire um carácter global, aplicando-se doravante à escala planetária. Pensar em “grandes espaços” acabava por significar, em última instância, pensar na Hegemonia Mundial alemã… Na linha de Raymond Aron equivaleria a preconizar que da “paz pela hegemonia” (dentro de cada “pan-região”), e da “paz pelo equilíbrio” (resultante do modus vivendi encetado com as restantes), tenderia no sistema internacional a imperar uma “paz pelo império”, mais estável que as suas formas anteriores… Sendo a geopolítica dinâmica na sua essência, consequentemente a “paz regional” seria sempre provisória pois, como escreveu Aldous Huxley, “o poder é, por si próprio, indefinidamente expansivo não podendo deter-se senão ao chocar com outro poder mais forte”. Todavia, a União Soviética dominava o “heartland” (cuja importância estratégica Mackinder tão bem demonstrara) e no Japão o “instinto geopolítico” continuava a maravilhar Haushofer.
Face a estas realidades geográfico-políticas, a estratégia da Alemanha deveria ser realista e obedecer a esses imperativos, alinhando a sua política externa através de “eixos” (única forma de gerir e optimizar em seu favor a dura realidade político-estratégica originadas pelas condicionantes geográficas).
O “eixo Berlim-Moscovo” traduzia bem esse realismo haushoferiano. Assumindo como verdadeira a tese ratzeliana segundo a qual “o espaço é uma força por si própria”, uma eventual confrontação com a União Soviética é tida como inconcebível. Pelas condições climáticas, pela hiperbólica frente a que obrigaria as forças germânicas, pelas características do terreno (favoráveis à penetração mas também ao inevitável cerco), tudo isso tornava impossível a vitória alemã qualquer que fosse a natureza ideológica da “sede do poder” em Moscovo…
O “eixo” Berlim-Tóquio constituía outro dos pilares básicos da gestão de um equilíbrio favorável às pretensões geopolíticas germânicas. Delineado num período de intensa actividade do “Komintern”, a preocupação principal de Haushofer era a “asiatização” da União Soviética e a subsequente unificação dos Povos do Extremo-Oriente sob o manto ideológico do “Internacionalismo Proletário”.
A sua admiração pelo Japão e a defesa da influência alemã nas costas asiáticas leva-o então a esboçar uma aliança germano-nipónica. Deixa Haushofer contudo um aviso: “da mesma forma que a Alemanha não pode invadir a Rússia, o Japão não pode invadir a China, podendo então a Austrália servir (tal como a Europa Central) de “espaço natural de expansão” nipónica”. Contudo, as aproximações regionais deveriam prevalecer sobre acções hegemónicas individuais.
Desta breve súmula das principais linhas-força estruturantes do pensamento de Haushofer e da “Escola de Munique”, algumas condicionantes que merecem reflexão.
Independentemente das circunstâncias determinantes da progressiva interligação de propósitos entre a Escola Alemã de Geopolítica e o Partido Nacional-Socialista, os geopolitólogos de Munique não deixaram de assumir-se (segundo Maull) como médicos e engenheiros do Estado.9 Na qualidade de “médicos” procuravam manter a saúde do ser político mediante os ensinamentos prescritos pela Escola; no papel de “engenheiros” estudavam as possibilidades práticas resultantes da análise científica dos dados geográficos.
Numa outra vertente, o “pangermanismo” latente em muitas teses da Escola alemã de geopolítica conduz inexoravelmente à questão da “predestinação do Povo Alemão” e à seguinte proposição (nunca esclarecida na totalidade): à la longue, o “direito natural” ao “espaço vital” seria ou não prerrogativa de uma nação alemã especialmente dotada daquilo que Ratzel definia de Raumsinn ou “sentido de espaço”10? Se sim, como justificar tal discricionariedade? Em caso negativo, como conceber então uma teoria do sistema internacional assente num equilíbrio realista e racional de forças se o objectivo teleológico dos Estados seria a perene expansão das suas fronteiras naturais (desiderato alimentado numa presente insatisfação territorial), levando de facto a uma beligerância permanente?...11
Este “todo” filosófico-político-geográfico acaba por tornar difícil conhecer onde acaba a análise científica e começa uma praxis volitiva subordinada a outros princípios... O processo histórico é entendido como resultado da eterna influência dos factores geográficos sobre a condução política dos Estados (“geografismo”), influência essa somente compreendida por aqueles ensinados a “pensar geopoliticamente”. À luz desta premissa, surgiram destarte um conjunto de teses de índole normativa, indicativa, raiando por vezes a profecia histórica.
Todos estes elementos não deixaram de constituir o núcleo duro do processo acusatório movido a Haushofer pelo Tribunal de Nuremberga…
É provável que Haushofer tenha visto no Nacional-Socialismo um meio para materializar aquilo que pensava útil ao seu país, pois como afirma Pierre Gallois: “il eut en commun avec Hitler le rejet de Versailles et le combat pour la plus grande Allemagne”.
A seu favor pendia o facto de possuir uma personalidade reservada (comparecia em público somente quando estritamente requerido) e de a sua esposa ser de ascendência judaica, ainda hoje causando controvérsia a amplitude da sua ligação ao partido nazi12.
Não obstante, reconheceu perante o Tribunal que era militar e que sempre teve com ele alguma coisa da mentalidade militar, o que implicitamente equivalia a afirmar (como o fez a generalidade dos réus presentes) que apenas tinha obedecido a “ordens”13.
O seu suicídio (juntamente com a sua esposa Martha Meyer-Doss, de origem semita,) a 10 de Março de 1946, põem tragicamente fim a uma existência que desde 1924 se confundiu com a Escola e a revista de geopolítica que fundara. Não deixa de constituir-se profunda ironia histórica, o facto de no final da sua vida ter sido perseguido e deportado por regime político com o qual sentiu afinidade, foi identificado no exterior como inspirador da sua estratégia de guerra e (em maior ou menor grau) acabaria por exercer influência...14
Reacções às teses de Haushofer e da “Escola de Munique”
As críticas à geopolítica alemã fasearam-se em três etapas: a primeira do origem francesa é anterior à eclosão da II Guerra Mundial. A segunda, de matiz anglo-saxónica começou a desenvolver-se desde que os analistas se aperceberam da simbiose programática entre os ensinamentos geopolíticos e a estratégia de guerra nazi. A estas “críticas coevas” podemos ainda acrescentar uma “crítica contemporânea” que, alicerçada no ambiente estruturante do sistema internacional dos últimos 60 anos, fez a depuração conceptual necessária à reabilitação dos objectivos de uma ciência, que a realidade internacional diariamente nos mostra a preeminência dos seus propósitos.
Reacção francesa
Não se apresenta difícil entender as críticas francesas às teses da Geopolitik, visto as mesmas se inserirem na mesma linha das anteriormente feitas pelo “Possibilistas” a Ratzel.
Para o geógrafo Albert Demangeon, a geopolítica alemã é um “instrumento de guerra”, um verdadeiro “empreendimento educativo preparando o povo alemão para dar o assalto à ordem europeia”15. Se esta repulsa se situa no plano dos princípios, Demangeon também a coloca ao nível metodológico. Depois de constatar que os estrategas haushoferianos, na linha de Kjellén, adoptam uma concepção orgânica do Estado como alicerce das suas construções teóricas, vai refutar esta perspectiva “antropomórfica” considerando-a artificial. Entende, então, que subjacente à Geopolitik está o objectivo prático de “restaurar o Estado alemão na sua força e grandeza” 16.
Já para Jacques Ancel era o próprio conceito de “Geopolítica” que estava em causa, sendo esta “um neologismo pedante, um faux-semblant de ciência” 17.
Verificamos, por conseguinte, que subjacente às críticas francesas se encontra, além da questão sensível do expansionismo alemão, uma diferente abordagem da geografia enquanto geratriz de poder. Como preconiza Pierre Gallois: “a Escola francesa difere da alemã no “pathos descritivo”, que não implica nenhuma demárche político-estratégica. Parte da constatação e não invita à acção” 18. Neste sentido, para Paul Claval aquilo a que hoje se poderia apelidar de “geopolítica francesa de entre-guerras”, “(...) não ensaiava dizer que espaço territorial convém à nação, mas precisamente como um país tão diversificado como a França pode constituir uma unidade” 19.
As críticas francesas têm pois de ser entendidas à luz de uma “tradição geográfica” que sempre teve uma conotação socio-económica de cariz empírico, em contraste com o privilégio dado ao enfoque político-sistemático inerente ao pensamento alemão desde Ratzel.
Reacção anglo-saxónica
Os sucessos iniciais do expansionismo hitleriano levaram largos sectores da intelligentsia britânica e sobretudo norte-americana a ver no “Escola de Haushofer” uma ciência que pelos seus ensinamentos conduzia inexoravelmente a Política para a guerra. Haushofer era considerado a “iminência parda” de Hitler e seu mais que provável sucessor20.
Contudo, esta reacção “mediata e caótica” não era sinónimo de desconhecimento dos estudos de Haushofer e colaboradores21. Por consequência, a nova ciência saídas dos laboratórios de Munique se era “obscura” quanto à sua real influência nas campanhas nazis, não o era no que dizia respeita ao prévio conhecimento dos seus propósitos fora da Alemanha22.
Mas, ultrapassado que foi o choque provocado pela possibilidade de os planos expansionistas de Hitler poderem, em parte, basear-se nos estudos “científicos” da geopolítica, cedo se aferiu da validade de muitas premissas que serviram de base aos trabalhos da mesma.
Tornava-se por isso urgente organizar estudos que embora quase nunca se definissem como geopolíticos (conceito ausente durante décadas...), utilizassem o mesmo método, quer dizer, relacionar geografia e poder em ordem à definição de um sistema internacional no qual os Estados Unidos teriam um papel central23.
Esta “geopolítica de defesa” (em contraposição à “geopolítica de agressão” alemã), que servirá de alicerce teórico na definição do sistema de alianças norte-americano no período pós-Ialta, um mérito colateral: contribuiu para o abandono do idealismo da política externa norte-americana, inserindo a nova super-potência nas realidades estratégicas da “guerra-fria” em formação.
Depuração conceptual
Para Pierre Gallois, “la geopolitik est morte avec l’effondrement du III Reich. La géopolitique, maintenant adolescente, est née de l’opposition de la société libérale et de la société à économie planifiée”24. De facto, a “fénix geopolítica” irá renascer décadas depois à luz de uma realidade cujos paradigmas interpretativos diferem dos que moldaram a geopolitik alemã de entre guerras.
Em primeiro lugar, o aparecimento das armas nucleares e sua combinação com múltiplos vectores de utilização (mísseis, bombardeiros estratégicos de longo raio de acção) originou uma dupla capacidade por parte dos seus detentores: não só os centros vitais do inimigo poderiam ser destruídos a longa distância, como também o poderiam ser num curto espaço de tempo.
Esta alteração das tradicionais noções de “espaço”, “tempo” e “distância”, acarreta como consequência uma readaptação de tais conceitos à luz das novas realidades que colocam em causa a invulnerabilidade de qualquer Estado.
Gera-se uma “bipolaridade” assente no “átomo militarizado” (Pierre Gallois), que se evidencia, desde logo, pela impossibilidade de fazer uso dessas armas de destruição maciça (“destruição mútua assegurada”). Esta “guerra improvável paz impossível” (Aron), impõe aos contendores limites objectivos às zonas de interesses de cada um. A ocupação espacial efectiva metamorfoseia-se numa política blocos e de áreas de influência a disputar fora dos “limites santuarizados”.
Essas novas condicionantes puseram, de igual modo, em causa o denominador comum a todas as análises da Escola alemã: necessidade embrionária de expansão do Estado rumo a um “espaço vital”, condição de sobrevivência. A Descolonização exponenciaria, ainda, o número de Unidades Políticas soberanas, cuja “adolescência” as fez afirmar ciosamente a sua independência. O Sistema Internacional ficou, doravante, quase todo definido e compartimentado politicamente. Na prática, as “leis do crescimento” de Ratzel dificilmente seriam passíveis de materialização…
De igual forma, a posse por pequenos e médios Estados de recursos vitais às economias industrializadas potencia a sua afirmação na cena internacional. As sucessivas “crises petrolíferas” demonstram que o espaço deixou de ser o único critério aferidor do poder e prestígio de um grupo humano organizado.
A identificação de interesses Estado/Nação também deixou de ser unânime. As opiniões públicas nacionais têm um papel cada vez mais activo na conduta externa dos seus governos (o caso da guerra do Vietname é demonstrativo a este respeito...), enquanto se formava uma cada vez maior consciência internacional acerca de problemas que, pela sua globalidade, extrapolam o quadro tradicional do Estado-Nação (poluição, esgotamento dos recursos naturais, problemas estruturais do Terceiro-Mundo), a qual, por sua vez, é catalisada na actualidade pela globalização e instantaneidade da comunicação trazida pelos “mass media”.
A Geopolítica vai, pois, viver uma época de transição e mesmo de ostracismo terminológico.
Estigmatizada pela sua ligação inicial à “sede do poder” nacional-socialista, no pós-Guerra o seu quadro conceptual não deixou de, na prática, alargar-se à nova “fenomenologia” subjacente à denominada “complexidade crescente das relações internacionais”, assumindo-se como campo de estudo aspirando a uma cientificidade necessária à compreensão dinâmica das interacções entre as políticas de poder e meio geográfico em que se inserem, bem como das “praxis” político-estratégicas daí decorrentes25. Naturalmente, o Espaço não deixou de continuar a ser uma geratriz fundamental do poder dos Estados, embora noutros moldes e diferentes circunstâncias. Todavia, se até meados dos anos de 1970, se concebiam análises geopolíticas sem a sua designação expressa, a partir da depuração conceptual realizada, começam a (re)surgir os estudos intitulados de geopolíticos, adquirindo cada vez mais um valor operatório específico como método de análise da realidade internacional (com frequência adoptando abordagens interdisciplinares).
O pensamento de Haushofer no séc. XXI
Ao desenvolver o seu conceito de “pan-regiões”, Haushofer prospectivou o surgimento de uma “Idade do Pacífico” idêntica à “Idade Mediterrânica” e “Idade do Atlântico” outrora existentes.
Esta análise prospectiva de Haushofer pode considerar-se, em parte, realizada. Tomemos por exemplo o caso da Ásia.
Situando-se na actualidade o Japão no “planalto” do seu exponencial crescimento posterior a 1945, o sistema internacional em gestação no início do século XXI não deixa de reflectir o cada vez maior peso económico da República Popular da China num cenário mundial dominado por um exponencial fenómeno de interdependência económica.
Atravessando sem “novos Tiannamen” a fase de sobressalto resultante da crise do modelo marxista-leninista de governo ocorrida em finais dos anos de 1980 do século XX, materializando (até à data com êxito) uma estratégia de “dupla face” (liberalização económica versus manutenção do papel dirigente do Partido Comunista), à China do século XXI interessará sobretudo “poder contar com uma zona limite estável” 26.
Em paralelo, desde a segunda parte do século XX que se assiste ao crescimento e afirmação de países de maior (por ex. Indonésia) ou menor (por ex. Singapura) dimensão territorial, os quais dotados de factores de poder díspares, não deixam de moldar novas relações de poder neste sub-subsistema.
Na actualidade, esta estabilidade bi-multipolar asiática (reflectida, por exemplo, no Fórum APEC de Cooperação Ásia-Pacífico), conjugada com os interesses norte-americanos na região, alicerça-se no primado da estratégia económica sobre eventuais conflitualidades históricas, definindo e materializando, por outros meios, a zona de paz e de influência delineado por Haushofer.
De igual modo, a tendência actual para a constituição de grandes blocos económicos regionais (NAFTA, MERCOSUL, União Europeia, ASEAN), parece corroborar mutatis mutandi a ordenação geoestratégica global dos “grandes espaços” preconizado pelo general alemão.
Este fenómeno não deixa de provocar uma especialização territorial à escala planetária (também prospectivado por Haushofer). Para a geopolitóloga Therezinha de Castro, a Nova Ordem Mundial” resultante do fim da guerra fria deu início a uma “guerra tépida”, prevalecendo doravante um neo-colonialismo de base económica, definido em termos de Eixo Norte-Sul no qual os países desenvolvidos, industrializados “transformam” os Estados meridionais subdesenvolvido em simples fornecedores de matérias primas”27.
No tocante aos interesses nacionais de Portugal, o Comandante Virgílio de Carvalho tem vindo a alertar para os perigos eventualmente advindos da “nova invasão de África pela Europa, idêntica à provocada pela Revolução Industrial do século XIX, principalmente por França e Alemanha no âmbito do conceito geopolítico, geocultural e geoeconómico “Euro-África” para assegurarem recursos minerais e económicos naturais de que carecem”. O mesmo autor não deixa, de igual modo, de alertar para “a invasão ianque” do mar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), visando o petróleo de São Tomé e Príncipe e de Angola (possível alternativa - juntamente com a Nigéria e Guiné Equatorial - à extrema dependência dos hidrocarbonetos provenientes do Médio Oriente)28.
O conceito de “Estados-directores” não deixa de impregnar também e numa vertente mais ampla, o “princípio aristocrático” que legitima a composição elitista do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU)29.
As teses de Haushofer devem, por outro lado, ser analisadas com flexibilidade no estudo da pretensão de países como o Brasil, México, Nigéria, República da África do Sul ou Índia, em fazerem parte do “núcleo duro” de um futuro e renovado Conselho de Segurança da ONU. Assumindo o estatuto de membro permanente (com ou sem direito a veto), a materialização desse desiderato conduziria ao surgimento do conceito de “sub Estados Directores”, isto é, aqueles que dentro de uma área geopolítica se elevavam pelo seu poder-prestígio acima dos demais sem, no entanto, a sua “fase de adolescência” lhes permitir ainda assumir o papel de potência principal.
Deduzimos, por consequência, que em moldes diferentes, com novas configurações advindas da adaptação temporal e, sobretudo, depuradas do seu “geografismo normativista”, o pensamento de Karl Haushofer possui capacidade de constituir-se um possível padrão de análise da realidade de poder mundial por diferentes que seja a estrutura e a morfologia do sistema internacional. Tal não deixa de ser sinónimo de importância intelectual na história da Geopolítica, Geoestratégia e das Relações Internacionais.
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* Mestre em Estratégia pelo ISCSP, da Universidade Técnica de Lisboa.
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1 Durante a viagem rumo ao Japão, Haushofer não deixou de ficar impressionado com a verificação de que em todos os mares (Mediterrâneo, Vermelho e Oceano Índico) e locais por que passara (Chipre, Aden, Índia e Singapura) tinha sempre o estandarte britânico a recebê-lo… “Foi com imenso alívio que vimos, finalmente, flutuar a bandeira do Sol Nascente sobre a Formosa”, terá dito anos mais tarde Haushofer. Para o general, a averiguação “in loco” do poder marítimo da Grã-Bretanha apenas confirmava a verdade das premissas formuladas por Halford Mackinder no ensaio “O Pivot geográfico da História”: a potência marítima estava
solidamente presente na região marginal do heartland, visando ora o equilíbrio europeu, ora a defesa da Índia e dos outros domínios… (DORPALEN, Andreas, “Geopolítica en Acción. El Mundo del General Haushofer”, Ed. Pleamar, Buenos Aires, 1982).
2 Acima de tudo o que perturbou Haushofer foi a eficácia do método japonês. Depois dos problemas surgidos em 1906 com a emigração japonesa para os E.U.A, os dois países chegaram, um ano depois, a um “gentlemen agreement” pelo qual o governo imperial suspendia toda a emigração. Garantidas as boas relações com Washington, os estrategas nipónicos voltaram-se então para a Manchúria e Coreia. Propagandeando a inferioridade populacional relativamente aos seus vizinhos, o “programa continental” de Komura impelia a uma “emigração asiática” planificada a qual mantinha os laços com a mãe-patria, formando assim um “espaço vital”. As anexações subsequentes foram então vistas por Haushofer como uma verdadeira proeza: por um lado apaziguaram os receios norte-americanos de expansão japonesa para Leste; por outro eram efectuadas sob a “bandeira” da própria sobrevivência do Estado, levando assim ao facto consumado e à aquiescência da opinião pública mundial e de Washington em particular.
3 Haushofer combateu especialmente na Frente Ocidental (região da Alsácia-Lorena e Picardia).
4 Afirma Haushofer “La principal misión de la geopolítica es de la proporcionar los métodos y términos de una política exterior satisfactoria. Además, debe hacer lo posible por ganar el apoyo del pueblo para los que ha de dirigir esa política”. (Haushofer citado por Dorpalen, op.cit., pg. 41).
5 Altiva Barbosa da Silva exemplifica bem esta ideia salientando a criação de um “Grupo de Trabalho” na Revista de Geopolítica (Arbeitsgemeinschaft für Geopolitik/AfG) sob auspício de Kurt Vowinckel (1931): “Posteriormente esse grupo, composto por membros do Partido Operário Nacional Socialista Alemão (NSDAP), o Partido Nazista, passou a promover uma censura directa dos artigos publicados na revista. Um outro aspecto importante a ser mencionado diz respeito à alteração de enfoque em quase todos os ensaios, a partir de 1933. Se antes predominava um verniz científico em cada argumentação, a partir daí não houve mais essa preocupação, excepto em um ou outro autor. O enfoque central passou a ser a função estratégica do rádio, das estradas, da cartografia, das rotas aéreas, das fronteiras, dos mares, do ensino, além dos ensaios sobre a questão da nacionalidade, que sempre ocupou amplo espaço na revista, e nesse momento assumiu, explicitamente, um teor racista”. Altiva Barbosa da Silva, “A Geopolítica alemã na República de Weimar: o nascimento da Revista de Geopolítica”, [Consult. 29 Maio 2004], disponível na WWW http://www.rc.unesp.br/igce/grad/geografia/revista/numero%202/eg0102as.pdf>, p. 9. Neste artigo a autora faz uma análise aprofundada do modo de funcionamento, ideias e autores ligadas à Revista.
6 Por exemplo Sapper realiza estudos sobre a América Central; Fritz Klute interessa-se pela Patagónia; Polke e Lautensach, perspectivam em estudos regionais a Sibéria e Portugal, respectivamente. Os trabalhos da “Escola” de Munique poderão dividir-se em três períodos: 1923-1933: (subida de Hitler ao poder). É um período marcado por uma produção literária livre das interferências governamentais; 1933-1936: o Partido Nacional-Socialista passa a controlar inexoravelmente as análises efectuadas; 1936-1945: é estabelecido um protocolo com o Partido, tornando-se a “Escola” um instrumento “de facto” da propaganda daquele.”. (ALMEIDA, Políbio Valente de, “Do Poder do Pequeno Estado. Enquadramento Geopolítico da Hierarquia das Potências”, Ed. Instituto de Relações Internacionais, ISCSP/UTL, Lisboa, 1994).
7 De entre as suas obras e artigos publicados na Revista de Geopolítica, destacam-se: “Geopolitik der Selbstbestimmung” (“Geopolítica da Autodeterminação”), 1923; “Geopolitik des Pazifischen Ozeans”, (“Geopolítica do Oceano Pacífico”), 1924; “Grenzen in ihner Geographischen Politischen Bedeutung”, (“As Fronteiras e o seu Significado Geográfico e Político”), 1927; “Geopolitik der Pan-Ideen” (“Geopolítica das Ideias Continentalistas”), 193 1;“Wehrpolitik” (Geoestratégia), 1932; “Weltpolitik von Heute”, (“Política Mundial Actual”) entre 1934-1936; “Der Kontinentalblock”, (“O Bloco Continental”), 1941.
8 Segundo José Teixeira Fernandes, não deixa de ser irónico ter Haushofer sido influenciado por Coudenhove-Kalergi - precursor do Movimento Pan-Europeu - especialmente pelo seu conceito de Pan-Europa. Todavia, se para este, o pan-europeísmo era de índole pacifista e de adesão voluntária individual e colectiva, para o general alemão, “o recurso a uma hegemonia eventualmente violenta da potencia dominante (a Alemanha) era admitido, se necessário, para o controlo da região que lhe estava adstrita (…)”. José Pedro Teixeira Fernandes, “A Geopolítica Clássica Revisitada”, Nação e Defesa, n.º 105, Verão 2003, pp. 221-244, p. 232.
Eram quatro as “pan-regiões” haushoferianas: “Euroafrica” (continente europeu, África e Médio Oriente); “Pan-Rússia” (compreendendo a União Soviética até ao Lena, parte do subcontinente indiano, Afeganistão e leste do Irão); “Área da Co-prosperidade Oriental” (formada pela área bordejante da Índia, Sudeste Asiático, Japão, Filipinas, Indonésia, Ilhas do Pacífico e Lenenalândia (costa asiática fronteira ao Japão no curso inferior do rio Amour); e “Pan-América” (englobando os territórios compreendidos entre o Alasca e a Patagónia, mais ilhas próximas do Atlântico e Pacífico norte). Raúl François Martins “Geopolítica e Geoestratégia. O Que São e Para Que Servem”, Nação e Defesa nº78, Abril-Junho 1996, IDN, pp. 23-78, p. 42).
9 Ideia expressa de forma inequívoca no livro de Otto Maull “Das Wesen der Geopolítik” (“O ser da Geopolítica”) publicado em 1941, (VIVES, Vicens, “Tratado General de Geopolítica”, Ed. Vicens Vives, Barcelona, 1961, pg. 60). Uma das missões que Haushofer atribui à Geopolítica foi, precisamente, constituir-se numa “educação para a arte de governar”.
10 Capacidade específica de um povo poder captar as forças dinamizadoras do espaço que habita. De raiz inteiramente subjectiva, na perspectiva de Ratzel, o povo alemão teria este “dom” em maior quantidade que os demais Estados, facto legitimador da ambição de possuir um espaço em conformidade com as suas necessidades e capacidades, o Lebensraum ou “Espaço Vital.
11 Acerca da noção de “predestinação do Povo alemão” presente nas teses da Geopolitik, Jean Klein interpreta-a como tendo origem no sentimento segundo o qual o Povo Alemão seria o único com um “Eu” metafísico cuja acção dá significado ao devir inteiro da história do mundo. (Prefácio do autor à reedição francesa da obra Karl Haushofer “De la Geopolitique”, Ed. Fayard, 1986. Ligado ao Pangermismo estavam o conceito de “Deutschtum” (germanidade). E de “Mitteleuropa” “(…) que aglutinou o amplo espectro de reivindicações expansionistas, sob alegações absolutamente subjectivas, vinculadas à ideia de destino, harmonia, unidade, totalidade, essência, arte, emoção, alma, ritmo, dentre outras comuns nos ensaios da Revista de Geopolítica.”. Altiva Barbosa da Silva, art. cit.).
12 Esta questão polémica suscita conclusões contraditórias aos analistas e historiadores da obra haushoferiana. Para Andreas Dorpalen essa ligação foi sempre reticente pois segundo Haushofer “(...) los grandes partidos nunca se decidieron a defender su país a qualquier précio”. Além do mais “(...) la conducta pendenciera de Göbbels, Streicher y Himmler no complacía en absoluto, al ilustrado profesor de geografia”. Culminando tudo isto, “al no ser su esposa una aria de pura raza, al él le estaba vedado ser miembro del partido”. Ives Lacoste em “A Geografia Serve Antes de Mais para Fazer a Guerra” afirma, pelo contrário, que Haushofer possuía o cartão nº 3 do partido nacional-socialista. (LACOSTE, Ives “A Geografia Serve Antes de Mais para Fazer a Guerra”, Ed. Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1977, p. 10).
13 “Muito do que disse foi escrito compulsivamente” afirmou em sua defesa no tribunal de Nuremberga, para depois acrescentar: “Vivi sob a espada de Damocles nos últimos sete anos (...); “Fui preso em 1944 e mandado para Dachau”; “a Gestapo matou meu filho Albert em 1945 (...)”. (Almeida, “Do poder do pequeno Estado”, op.cit., p. 124).
14 Sabe-se hoje que desde 1941 Haushofer tinha problemas com a Gestapo. A perda de apoio do seu antigo amigo Hess pode ter sido uma das causas. O argumento de “Hitler não percebia nada de geografia” e de que, por conseguinte, houve uma deturpação no uso prático dado às suas ideias, foi de igual modo usado na sua defesa perante as acusações de que era alvo (nomeadamente a de instigador da guerra).
15 “La géopolitique alemande à renoncé à son esprit scientifique (d’origine) et s’est placé à l’avant-garde de la propagande national-socialiste alemande”, afirmou Demangeon. (citado por Pierre Gallois in “Géopolitique. Les Voies de la Puissance”, Ed. Plon, Paris, 1990, p. 30).
16 A publicação “Annales de Géographie” constituiu um bastião intelectual da luta contra a geopolítica alemã. Os estudos feitos por esta mereceram, como vimos, a classificação de Demangeon (1939) como sendo “parciais”, “grandiloquentes” e “tendenciosos”. (Vide art. citado de André-Louis Sanguin, “Géographie Politique. Géopolitique. Géostratégie: Domaines, Pratiques, Friches”, Stratégique nº 55, Ed. FEDN, 3º Trimestre, 1992, pp. 41-46, p. 42.
17 GALLOIS, Pierre, Idem, pg. 29, tradução nossa. Jacques Ancel procuraria seguir uma espécie de “terceira via” que depurasse os ensinamentos da “Escola Alemã” dos seus excessos e, paralelamente, superasse certas indeterminações próprias do Possibilismo. Acerca dele escreve Políbio Valente de Almeida: “(...) Ancel pretende pôr o acento tónico na “Geo” com vista a afastar a nova teoria, tanto quanto possível, dos desvios que originaram o descrédito dos seus predecessores. Por outro lado, o ponto de vista deste autor é uma forma de ver do geógrafo, resultando daqui que se aproxima tanto da Geografia Política que muitos tratadistas o consideram, realmente como um cultor daquela ciência”. (ALMEIDA, Políbio Valente de, “Geopolítica Chinesa e Sua Incidência em África - Fundamentos de Uma Política de Subversão Africana”, Ed. ISCSPU, Lisboa, 1965, pg. 21).
18 Gallois, idem, pg. 30.
19 Paul Claval “Géographie Politique, Géopolitique et Géostratégie”, Stratégique nº 55, pp. 31-39, p. 34).
20 Afirma Herman Beukema: “En los últimos meses, la misteriosa figura del Mayor General doctor Karl Haushofer ha capturado la imaginación del público norteamericano (...) Escendidas descripciones de sus astutas maquinaciones, muchas de ellas producto de una credulidad entusiasta, han colaborado para rodear la cabeza del Instituto Geopolítico de Munique con un halo de presencia infalible (...) el altisonante y verboso del General y sus secuaces, ha tenido un éxito notable para esconder tras un bien logrado camuflaje sus verdaderas intenciones (...)”. (Dorpalen, op. cit. Prefácio) A forma como a Geopolítica alemã foi perspectivada nos Estados Unidos antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, está pormenorizadamente descrita no artigo de Marco Antonsich, “De la Geopolitik à la Geopolitics. Transformation Idéologique d’une doctrine de Puissance”, Stratégique nº 60 (4/95), pp. 53-87. Para este autor, a existência de um mítico “Institut für Geopolitik fut l’une des impostures historiques véhiculeés par les jornalistes américains du moment. En réalité, un tel Institut n’a jamais existé”.
21 A revista de geopolítica esteve disponível nos Estados Unidos até 1941. Sobre as interpretações norte-americans das teorias geopolíticas alemãs, escreve Marco Antonsich: “Si bien que, dans l’attention de satisfaire la soif de connaissance du public americain, on en vin à lui proposer une vision déformeé de la géopolitique alemande, représentée comme un tout organisé lié au régime nazi et à ses objectifs guérriers”, (idem, p. 54). Para estas interpretações “incorrectas” muito terá contribuído o papel dos jornalistas que, com base num conhecimento aproximativo e indirecto das teses geopolíticas, se exprimiram por vezes em termos alarmistas. O artigo “The Tousand Scientists behind Hitler” publicado na Reader’s Digest do Verão de 1941 ficou célebre a este respeito.
22 Os trabalhos de índole geopolítica realizados nesta altura por Spykman, Renner e Herman Beukema, reflectem esse prévio conhecimento dos postulados da “Escola”. Pode mesmo afirmar-se que a Geopolica alemã era perspectivada num misto de admiração e temor: “(...) la “Geopolitik” était, à la fois, considereé comme très valable, pour la découverte des liens entre la géographie et le comportement politique d’un Etat, mais condamnable et irréalisable du fait du ses aplications par les géopliticiens allemands manquant de sens moral”. (Marco Antonsich, Idem, p. 55).
23 Neste sentido, George Renner foi excepção ao afirmar: “a Geopolítica fornece os fundamentos para construir a paz e a conservar”. Marco Antonsich, art.cit., pg. 76. Se a comunidade de geógrafos norte-americana se encontrava no final da Guerra dividida entre “realistas” e “idealistas”, não deixa de ser verdade, contudo, que (como afirma Antonsich) “(...) il y eut un consensus sur diverses questions: l’impossibilité pour les États-Unis, puissance desormais au centre de la scène internationale, de revenir à une atitude isolationiste, l’urgence d’étudier la Geopolitik et la nécessité de se doter d’une géopolitique americaine pour s’y opposer, la profunde conviction que les idéaux et les valeurs américains (the Americain way of life) devaient être défendus”. (Antonsich, idem, pg. 71).
24 GALLOIS, Pierre in “Géopolitique. Les Voies de la Puissance”, op.cit., pg. 13. Pode falar-se neste caso da existência de uma “Geopolítica malévola” - a Geopolitik alemã - e de uma “Geopolítica benévola” - a Geopolitics anglo-saxónica.
25 André-Louis Sanguin no artigo “Géographie Politique. Géopolitique. Géostrátegie. Domaines, Pratiques, Friches”, (“Stratégique” nº 55) divide em três períodos a evolução da Geopolítica em França desde 1945: entre o final da 2ª Guerra Mundial e 1975 foi “o silêncio total” ao nível do ensino universitário. O “síndroma de Haushofer” levava a que se praticasse a auto-censura e o “tabu intelectual”... Segundo o autor, o aggiornamento dá-se a partir da “Crise de 1968”, mas é desde 1985 que a Geopolítica se torna uma ciência “em moda”. Com alguma ironia escreve Sanguin “A partir de 1985 é a inflação! Todo o mundo se quer geopolítico na geografia francesa e vê-se florescer geopolíticos disto e daquilo”. Tradução nossa.
Para Charles Zorgbibe, a Geopolítica conheceu depois de 1945 uma “evidente desafecção”, sobretudo devido a duas ordens de razões:
• A de ordem moral relevava da identificação da Geopolítica como um dos ramos da “Geopolitik” alemã “(...) expression de la recherche d’un «espace vital» (...)” desvirtuando-se como ela;
• A desafeição de cariz técnico diz respeito à utilização dos bombardeiros estratégicos e dos mísseis balísticos como instrumentos que aboliram as distâncias e, por conseguinte, as considerações sobre a utilização do espaço.
Todavia, o autor reconhece logo de seguida que “(...) les excés de la geopolitik alemande ne doivent paas occulter l’actualité de l’autre geopolitik, anglo-saxone et «democratique» (...)” (ZORGBIBE, Charles, “Géopolitque Contemporaine”, PUF, 1ª edição, Paris, 1986, p. 4).
26 “(…) a estratégia de segurança chinesa não pode ser dissociada da sua estratégia global de desenvolvimento. Continuando a ser assumidamente o desenvolvimento económico a sua principal prioridade, interessa à China poder contar com uma zona limítrofe estável. Com este fim, e tendo também presente o disposto no “Novo Conceito de Segurança” - especialmente o resultante do Princípio da Coexistência Pacífica aí exposto - é previsível que, pelo menos no imediato e no curto prazo, deixe para segundo plano as disputas territoriais com os países vizinhos, em nome da prossecução do objectivo de segurança comum”. (Rui Pereira, “A questão do mar do sul da China no contexto das relações China/Países ASEAN”, ISCSP/UTL, Curso de pós-graduação China Moderna, Lisboa, 2003.
27 Completando a análise, conclui: “o ‘Norte’ não seria mais representado pelas duas Super‑Potências dos Mundos Capitalista e Comunista. A dêbacle da URSS, impunha ao ‘Norte’, os ‘Estados-Directores’, representados pela Alemanha, Japão e Estados Unidos. Os Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, numa reviravolta geopolítica formavam a ‘Nova Ordem Mundial’, a dualidade - uma ao ‘Norte’ e a outra ao ‘Sul’” (CASTRO, Therezinha de, “Amazónia: Geopolítica do Confronto e Geoestratégia da Integração”, Ed. Fundação Educacional Unificada do Campo Grande, (Faculdade de Filosofia do Campo Grande), Campo Grande, Rio de Janeiro, 1995, p. 9.
28 Virgílio de Carvalho, “Política, Estratégia e Defesa Nacional”, Diário de Notícias, 07-06-2004.
29 Numa visão para o futuro, Adriano Moreira entende que, “(…) o reequilíbrio internacional aconselha a olhar mais para os grandes espaços e para os Estados continente do que para o pesado tecido dos Estados soberanos”. Nessa ordem de ideias, sugere uma reformulação do Conselho de Segurança da ONU, sendo a abolição do direito de veto um dos primeiros actos a realizar na materialização de uma nova ordem mundial para o século XXI. Adriano Moreira (cit.) Público, 13 de Julho de 2004.