Na celebração de hoje, pertence-me falar em nome da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, pelo facto de ter sido autor do seu projecto institucional, e contado com o General Luís da Câmara Pina entre os fundadores.
Todavia, quero acrescentar algumas recordações pessoais do General ao qual a carreira colocou no posto de Chefe de Estado-Maior do Exército quando Portugal sofreu um dos desafios mais terminais da sua história, e que levou a colocar um ponto final no ciclo imperial iniciado pela Dinastia de Avis.
O facto de a Ordem de Avis continuar intimamente ligada à carreira militar permanece como lembrança de um período que ainda, nesta entrada do 3º. Milénio, apoia a harmonia das gerações vivas.
Deve anotar-se, em primeiro lugar, que o General Câmara Pina era profundamente institucionalista, não apenas pela formação intelectual, também pela prática da vida e de função no Estado. É certamente apropriado relacionar essa formação institucionalista com o desempenho das responsabilidades de chefe de família, apoiado numa mulher admirável que foi Marta Mayer, uma das senhoras que marcaram o perfil da vida oficial do seu tempo, pela invulgar cultura, pelo conhecimento das dificuldades estruturais da sociedade portuguesa, pela militância cristã e enriquecimento das respostas cristãs às exigências crescentes da mudança, pela elegância natural e beleza serena da sua presença e acção.
Na Quinta Velha de Sintra, onde estava uma das raízes da família, a solidariedade criada era exemplar, o ambiente que recebia a corrente de visitantes não podia ser mais aberta e acolhedora, e muitos dos oficiais que vieram a ocupar as mais altas responsabilidades na hierarquia tiveram essa experiência e proveito. Como tive, por razões familiares, oportunidade de acompanhar essa intervenção com poucas referências equivalentes naquela data, julgo poder deixar este testemunho sobre essa intervenção contínua de exercício do civismo, cuja aprendizagem é hoje reclamada por várias instâncias.
Um dos factores importantes do perfil do General Câmara Pina é que tinha uma percepção aguda da dependência de Portugal em relação aos factores exógenos da conjuntura internacional, e por isso desenvolvia uma indagação sem pausas sobre a relação entre o conceito estratégico português e as debilidades derivadas daquela circunstância. Foi atentíssimo às mudanças estruturais e à renovação das propostas teóricas sobre as relações internacionais, seguindo com especial cuidado a alteração do perfil, dos objectivos, e inovação das Forças Armadas, profundamente vinculado aos valores nacionais, realista ponderado quanto à relação entre convicções e capacidades.
Como aconteceu a toda a sua geração de responsáveis militares, foi obrigado a assumir a resposta possível, dentro daquele realismo que cultivava, aos sinais do fim do ciclo, como foram a invasão de Dadrá e Nagar-Aveli, a invasão do Estado da Índia, o início da revolta nos territórios africanos.
A viagem que fez a Angola, acompanhando o General Beleza Ferraz, no início da sublevação, não lhe deixou ilusões sobre a gravidade do processo iniciado a partir da condenação que Portugal sofrera na Assembleia Geral da ONU, ao contrário do que, no regresso, as suas primeiras declarações públicas podiam insinuar, apenas para quem esqueceu que obedecia à talvez errada orientação governamental de apaziguar a opinião pública nacional e estrangeira. Mas não conhecemos falta que lhe tenha sido apontada no exame e avaliação profissional da contingência, na enumeração dos riscos crescentes, e ao mesmo tempo na mobilização da vontade institucional de ultrapassar e suprir com engenho a deficiência de meios.
A própria D. Marta Pina andou por Angola a pregar o ânimo, a filha Leonor fez imediatamente parte de um grupo de jovens raparigas que incluiu Leonor Ameal e Ana Maria Rau, que para ali foram prestar serviço social, o filho Luís incorporou-se às forças expedicionárias. Sem alarde, esta família unida ofereceu-se ao exemplo de sacrifício.
Mas a necessidade de compreender, apoiada em sério estudo, e de mobilizar o interesse, saber e apoio da sociedade civil, sem o que não existe, em qualquer conflito, retaguarda de manutenção, esteve sempre presente na sua actuação. Todos reconhecerão na acção do actual Instituto da Defesa Nacional uma lúcida manifestação desse espírito alertado, informado, e profissional, colhendo inspiração nas melhores iniciativas estrangeiras, e implantando um instrumento científico e cultural que acompanhou as profundas mudanças da vida nacional, antevendo a mudança, e sobrevivendo à mudança.
Recordando uma nota significativa, foi nesse Instituto que em Portugal ouvimos a palavra lenda de Toynbee, ainda hoje uma referência para os que não desanimam de conseguir perceber as causas da decadência dos ocidentais, e os ensaios de recuperação.
Foi numa data em que eram legíveis desafios consideráveis à comunidade portuguesa, quer à cosmopolita sociedade civil, quer à enfraquecida estrutura política, que se realizaram em Portugal, por iniciativa da Sociedade de Geografia, à qual eu presidia, os I e II Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, que reuniram, pela primeira vez na história, representantes das comunidades de emigrantes portugueses de todos os continentes, das comunidades de descendentes de portugueses integrados nos seus novos países, e de comunidades filiadas na cultura portuguesa, porque por ali tinham passado a evangelização, a aculturação, a soberania.
Iniciativa rigorosamente fundada nos Estatutos e valores da Sociedade de Geografia, abonada pelo seu passado de grande instituição, esses Congressos ainda esperam leitura histórica autorizada. Os sinais de mudança que transmitiram, em vez de lidos foram treslidos, e percepções dotadas de poder político inutilizaram a então criada União das Comunidades de Cultura Portuguesa, remetida para a dormência, mas não conseguiram igual resultado em relação à Academia.
Criada no seguimento da proposta de um grupo de professores universitários descendentes de portugueses, a exercerem nos respectivos países, a sobrevivência deve-se ao prestígio da Sociedade de Geografia, sua Secretária-Geral Perpétua, e ao grupo de académicos fundadores, que passo a lembrar, e são recordados na Placa que se encontra no anfiteatro da Academia: Professor Padre António Silva Rego, o inesquecível investigador do Padroado Português do Oriente, obra que tardiamente influenciou a meditação de Roma sobre a presença de Portugal na Índia; Prof. Armando Cortesão, mestre da cartografia, e um lutador pelos direitos cívicos; Prof. Armando Gonçalves Pereira, que fez o primeiro levantamento da débil dimensão do ensino colonial no sistema português; Almirante Reboredo e Silva, que assumiu o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada num momento de desafios severos à maritimidade portuguesa; Dr. João da Costa Freitas, o primeiro responsável pela direcção do Gabinete de Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, com uma experiência que vinha de Timor ao Terreiro do Paço; Prof. Jorge Dias, que colocou a sua capacidade científica ao serviço da investigação das culturas das populações ultramarinas; Dr. Azeredo Perdigão, o responsável pelo único projecto alternativo cultural português do século XX, e que por minha proposta viria a ser declarado Benemérito da Pátria pela Assembleia da República; Embaixador José Nosolini, sempre atento à evolução peninsular; General Luís da Câmara Pina, Chefe do Estado-Maior do Exército no decisivo ano de 1961; D. Manuel Trindade Salgueiro, que morreu Arcebispo de Évora, ao qual ouvi dizer, em homenagem pública, que a única boa ambição de um Bispo era deixar lembrança de que - Cristo passou por aqui; Profª. Virgínia Rau, mestre da história pátria.
Estou hoje, no centro desta celebração, apenas pelo facto de ser o único sobrevivente, e não por qualquer mérito pessoal, apenas pela vontade deles todos, que chamaram naquela data, para a liderança, o que se sentava no último lugar da mesa.
Tenho o conforto de imaginar que o Presidente da República, por lei Presidente de Honra da Academia, tem presente os nomes dos que compuseram este grupo excepcional de cidadãos, e que está seguro de que os sucessores, e a Sociedade de Geografia, vão continuar a enriquecer o património que legaram.
Mas não quero terminar esta breve intervenção sem acentuar que o General Luís da Câmara Pina, que os seus pares homenageiam nesta entrada do Milénio, como uma figura integrante do seu património institucional, também merece ser lembrado pelo reconhecimento excepcional que teve, depois da Revolução de 1974, na qualidade de capitão douto como é requerido pelo conceito militar.
Foi, nessa conturbada época de mudanças, eleito Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, uma honra consagradora que tem rara, se alguma, equivalente comparação.
As Forças Armadas certamente se orgulham desta consagração de um homem que consumiu a vida nas fileiras.
Foi dessa perspectiva que usou quando quis, com entusiasmo, intervir no grupo de fundadores, para o qual o convidei, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.
Professor Doutor Adriano José Alves Moreira
Presidente do Conselho Nacional da Avaliação do Ensino Superior e Vice-Presidente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.