1. O honroso convite para evocar aqui, nesta Academia Portuguesa da História, a nobreza e a elegância do perfil de Luís da Câmara Pina, não me consentiu nem um momento de hesitação. E, contudo, nunca deixei de ter consciência de que me faleciam muitas qualidades e condições para que tal evocação se situasse não nível melhor ajustado à grada personalidade do General Câmara Pina. É bem possível que a generosidade do convite me tenha comunicado, afinal a convicção fugaz de que em mim concorriam méritos bastantes para poder aceitá-lo sem desdouro de maior. Não me acho imunizado contra as tentações e debilidades humanas, que frequentemente me levam a julgar-me, por momentos, dotado de capacidades que, chegado o tempo da reflexão humildosa e contrita, concluo não ter. Mas suponho que o factor decisivo para a minha aceitação o fui buscar ao gosto que sempre me proporciona a oportunidade de reconhecer as minhas dívidas abertamente, se possível publicamente. Sobretudo quando me sinto impotente para saldá-las. Porquanto, Eminentes Académicos, eu sou um grande devedor de Luís da Câmara Pina. Eu conto, Eminentes Académicos. Vou contar-lhes como contraí essas minhas dívidas, como elas se avolumaram, através dos tempos, e como elas formaram, no meu espírito, um vastíssimo lastro de gratidão. E pouparei a VV. Exias. o relato das pequenas dívidas, geradas na natural benevolência, no trato primoroso, de Câmara Pina.
2. Conheci-o em Londres, há já cinquenta e quatro anos, mais mês menos mês. Foi na Sloane Street, transversal de Knightsbridge, a caminho de Belgrave Square, onde, no nº 103, estava instalada a Chancelaria da nossa representação diplomática. Que saudades tenho daquela casa, modesta, projectada em altura, com uma escada estreita a servir o acesso aos sobrepostos “flats”… Lá reencontrei o meu querido e sábio Mestre Ruy Enes Ulrich, com quem aprendera os rudimentos de Economia e que regressara ao seu posto de Embaixador na Corte de Saint James. Lá me liguei de amizade ao José Manuel Fragoso, ao tempo 2º Secretário de Embaixada, fadado para uma carreira brilhante, sabendo já então conciliar as exigências da diplomacia com a estrema singeleza de trato e de posturas. Lá renovei o fraternal afecto que me prendia, desde os bancos do liceu do Carmo, a João de Freitas Cruz, o mais jovem Secretário da representação portuguesa, também destinado aos mais altos postos e missões. Lá conheci Luís Maria da Câmara Pina, que era o Adido Militar e Aeronáutico, oficial de muito prestígio, conquistado pelo trabalho árduo, através da sua Licenciatura em Matemática, cursada em Coimbra com extremo brilho, da sua formação de Engenheiro Militar, obtida na Escola de Guerra, do seu curso do Estado-Maior e de múltiplas missões desempenhadas.
Designadamente em observação das ocorrências militares da Guerra Civil de Espanha, em negociações internacionais respeitantes à defesa de Portugal no decurso da 2ª Grande Guerra, à cedência de bases nos Açores e à reocupação de Timor. Dir-se-ia mesmo que quando se impunha aliar à ciência das coisas castrenses uma penetrante inteligência, uma larga cultura geral, o amplo conhecimento de línguas estrangeiras, os primores do convívio, e uma impecável dignidade de atitudes, o nome daquele oficial era invariavelmente lembrado.
3. Quando o conheci, naquela Chanceleira de Sloane Street, Luís da Câmara Pina era Tenente-Coronel do Estado-Maior e andava na casa dos quarenta anos. Tinha uma agradável presença, era alto, forte, de tronco amplo, largo, mas enxuto de obesidades. Os traços fisionómicos distintos, o nariz levemente alongado, a boca firme, os olhos bem abertos e vivos, eram encimados por uma testa rasgada. A tez era clara e os cabelos, de um castanho-escuro, embora pouco abundantes, permitiam-lhe um penteado composto e sempre impecável. Vestia com notória elegância, tanto à civil como revestido do seu dolman, com o lado esquerdo já coberto de condecorações e insígnias de veneras. A voz era pausada e decidida, levemente pastosa, servindo-se dela para expor com segurança e moderação, ideias e juízos. Vivíamos, naquele tempo, na euforia do recém-celebrado Pacto do Atlântico, que, segundo nos parecia, rasgando perigosos compromissos que vinham da Guerra, assegurava a defesa das pequenas potências e consagrava a política seguida pelo estado português. E sobre aquele incipiente Pacto defensivo Câmara Pina tudo sabia. Suponho mesmo que foi essa sua ciência que no primeiro momento me atraiu especialmente para aquele já prestigioso militar. Porque eu, 3º Secretário de legação, ou coisa assim, tendo sido colocado nos serviços do Pacto do Atlântico, em Lisboa, era aprendiz em tais matérias. E começou aí o longo rol de carinhosos ensinamentos que fiquei a dever a Câmara Pina. Recordo a paciência de que ele usava a tentar preencher as lacunas da minha ignorância. Não apenas no decurso das conversas havidas na Chancelaria da Embaixada, quase sempre interrompidas e truncadas, no vai-vem dos afazeres corriqueiros e na míngua das instalações. Recordo as longas e tranquilas conversas que tivemos, entre Londres e Lisboa, quando a viagem aérea tardava seis horas e, com bom tempo, íamos seguindo, desde os assentos do avião, em pausas das nossas falas, recortes da Costa Sul da Inglaterra, os da Bretanha, os da Galiza e os de Portugal. Foi nesses nossos encontros que se me enraizou no espírito a grande admiração por Câmara Pina.
Não era sábio apenas quanto ao Pacto do Atlântico e ao nível da ciência militar. A sua cultura era a de um erudito formado na disciplina ecuménica do “trivium” e do “quadrivium”, ou no humanismo multifacetado da Renascença. Contudo, Câmara Pina não deixava de ser homem do seu tempo, aberto a todas as questões da actualidade e de uma grande tolerância que, contudo, não toldava a solidez das convicções.
4. Acompanhei, às vezes de longe, ao sabor de trajectórias não inteiramente convergentes, os justos sucessos da carreira de Câmara Pina, promovido a Brigadeiro em 1954 e a General em 1956, quando contava apenas cinquenta e um anos de idade. Foi nomeado, pouco depois, Director do Instituto de Altos Estudos Militares, seguidamente Director do Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional e, em 1958, Chefe do Estado-Maior do Exército, cargo que exerceu durante longos e difíceis anos.
Congratulei-me pela sua ascensão, rápida mas escalonada e sem atropelos de precipitações. Sobre o seu arcaboiço, um pouco alargado por efeito fatal do decorrer dos anos, mas sempre bem lançado, de postura direita e ágil, assentavam bem as folhas douradas de carvalho, apostas sobre as carcelas. Como a mediocridade nem sabe respeitar, nas suas críticas, os dons e as virtudes dos visados, nalguns meios não faltava quem dissesse que Câmara Pina era um General de salão.
Há quem não saiba alargar os horizontes castrenses para além das reminiscências da tarimba, dos picadeiros e dos camuflados de campanha. Ora aquele jovem General alargava os seus interesses e curiosidades intensas a muito variados sectores do saber e da cultura, não tenho renunciado ao convívio social, que trazia dos hábitos da vida familiar. E porque sabia estar, e conversar, também era, indiscutivelmente, um agradável homem de salão, a acrescer a muitos outros méritos. A figura de Câmara Pina era familiar para a gente que andava nas tertúlias do Alto do Chiado, bem próximo da casa onde morou durante muitos anos, à Rua da Chagas. Com sobriedade, mas com simpatia dispensada a grandes e pequenos, ia cumprimentando, para um lado e para o outro, os grupos com que se cruzava, ao passar pela “Havaneza” e pela “Brasileira”. Naquele tempo, eram quase todos mais ou menos conhecidos os habituais frequentadores do Chiado.
No exercício da sua chefia do Estado-Maior do Exercito, Câmara Pina viveu, intensamente, dramaticamente por vezes, períodos árduos e momentos de particulares dificuldades, para a defesa da Pátria, que tanto amou, para as Forças Armadas, que devotadamente serviu, para camaradas e amigos, e para ele próprio. Senti intensamente, com toda a compreensão, alguns dos dramas que, por vezes, lhe impuseram dolorosas opções, as quais assumiu, com a serenidade de sempre, com o seu aprumo, com a sua inabalável cortesia, com uma discreta mas inegável coragem, que todos lhe reconheciam mas de que não fazia alardes. E, no meio de tantas preocupações necessariamente dominantes, absorvente, aquele homem excepcional ainda usava do talento para, em período tão conturbado, proferir lições e conferências notáveis pelo fundo como pelo sóbrio rendilhado formal. Estava nos seus usos expor verbalmente e escrever, oferecendo aos outros alguns retalhos do muito que sabia sobre matérias da especialidade da Engenharia militar como sobre os grandes temas de Estratégia, sobre o Tratado do Atlântico, de que tanto conhecia e bastante me ensinou, mas também sobre a política externa portuguesa e sobre História. Guardo piedosamente nos meus arquivos pessoais esses seus trabalhos, valorizados sobremaneira pelas penhorantes dedicatórias, traçadas com caligrafia inconfundível, em letras grossas e largas.
5. Os desastres colectivos vincaram-se-lhe na alma sem lhe quebrar a clareza do entendimento, nem o ânimo para continuar a estudar, a comunicar e a servir. Já em 1967 Câmara Pina ingressara na Academia das Ciências de Lisboa, na sua Secção de Ciências Aplicadas e História da Ciência, na qualidade de Sócio Correspondente. E, em Maio de 1974, foi eleito Sócio Efectivo da mesma Academia. A partir de então, Câmara Pina mostrou-se incansável na colaboração prestada aos trabalhos da velha e prestigiada instituição cultural fundada pelo Duque de Lafões. Aliás, ao ser-lhe comunicado o propósito da eleição para a categoria de Sócio Efectivo, Câmara Pina logo declarou, por escrito, com alguma solenidade, a firme disposição de participar largamente, com assiduidade, quanto em si coubesse, nas tarefas académicas. E cumpriu, plenamente, em termos surpreendentes. Seria muito longo enumerar todas as iniciativas e empreendimentos da Academia das Ciências de Lisboa em que ele tomou parte, quase sempre impulsionando-as, na época compreendida entre 1974 e 1980. Entre todas essas realizações académicas citarei apenas o simpósio respeitante às “Fronteiras do Conhecimento”, de grande nível e de muito larga projecção.
E nem se furtou Câmara Pina às incomodidades das tarefas de administração da Academia. Logo em 1975 passou a exercer as funções de seu Tesoureiro. E, em 1979, foi eleito Presidente da Classe de Ciências, nessa qualidade tendo exercido também, nos termos estatutários, a Presidência da Academia das Ciência de Lisboa. Foi esse, infelizmente, um período breve, mas pleno de novas iniciativas e de excelentes contactos, no país e no estrangeiro, facilitados pelas relações que Câmara Pina soubera estabelecer e manter, com os mais reputados centros culturais, dentro e fora de Portugal.
Em 1975 abriram-se também a Luís da Câmara Pina as portas desta nossa Academia Portuguesa da História, que muito ficou a dever-lhe e onde, tendo ingressado nela como Sócio Correspondente, logo em começo de 1979 passou à categoria de Sócio de número, assim que o tempo de correspondência estatutariamente lho permitiu.
Foi na Academia das Ciências de Lisboa que mais frequentemente me encontrei com Câmara Pina, porquanto, ao tempo, eu ainda não recebera a honra de pertencer a esta Casa Foi ali, nos salões do Convento de Jesus que retomei o hábito das longas e esclarecedoras conversas, iniciadas em Londres, trinta anos atrás. E aí fui, multiplicando os lançamentos a meu débito na conta corrente já aberta em 1950, em que - tenho muito gosto em confessá-lo - o passivo é todo meu e o activo cabe a Luís da Câmara Pina. Aos propósitos carinhosos que dele sempre recebi, acresceram, a par de preciosos ensinamentos e reflexões, inesquecíveis manifestações de apreço, sem dúvida imerecidas, pelos trabalhos que fui produzindo nos quadros de actividades e Academia das Ciências de Lisboa.
Palavras e decisões iniludíveis ficaram a atestar à sua benevolência, à sua magnanimidade. Não as esquecerei. Como não esqueço alguns traços da sua presidência da Academia de Ciências, extremamente dedicada de uma impressionante assiduidade quotidiana. Lembro-me de que Câmara Pina, raramente usando o magnífico gabinete da Presidência, costumava instalar-se numa secretária situada ao topo da sala onde trabalhava alguns, ou quase todos, os funcionários burocráticos que prestavam serviços na Academia. E de lá só se deslocava para receber visitas estranhas à instituição. Era ali mesmo que conversava com os confrades. E suponho que se instalava naquela sala para melhor conviver com os funcionários, que sempre tratava, sem quebranto de hierarquias, com a lhaneza e o respeito inseparáveis da sua requintada boa educação.
6. Nos tempos que correm, nem sei se a grandeza de Luís Maria da Câmara Pina será entendida, na plenitude da sua extensão.
Parece julgar-se que tudo é susceptível de improvisações. Sobretudo através de passagens, mesmo descuidadas, pelos bancos das escolas, de preferência abrilhantadas pelo deslumbramento dum roçar imaturo por “boulevards” e “squares”. Mas a análise serena impõe a conclusão de que os homens excepcionais não se improvisam. Formam-se, como Câmara Pina, na rigorosa, ainda que amorosa, disciplina da infância, nunca quebrada através dos passos curriculares subsequentes. Câmara Pina recebeu, e soube conservar, os ensinamentos de uma família de prestigiosas tradições militares e culturais, beneficiou do fundo intelectual transmitido pelo curso do liceu, que seguiu em Coimbra, e pela frequência, a nível superior e com aproveitamento distinto, da “alma mater” universitária daquele mesmo magnifico centro de ciência reflectida. Depois, a agilidade, física e mental, já adquirida, foi temperada pelo ambiente que se vivia na Escola do Exército, onde conquistou, também com muito brilho, a patente de oficial de Engenharia. Jovem subalterno, iniciou-se nas dificuldades das combinações políticas, sem nelas de envolver, quando, em 1926, sendo secretário do Ministro das Finanças, mais perto acompanhou as dificuldades da vida nacional no convívio de trabalho com seu tio, Filomeno da Câmara, irrequieto mas talentoso e distinto oficial de Marinha, com larga experiência em lides de administração ultramarina. Era inteligente e era aplicado aquele jovem oficial de Engenharia; mas o talento e a capacidade de realização também precisam de estímulos acentuados e prolongados que lhes permitiam continuidade e aperfeiçoamentos.
O resto veio por acréscimo. Os estímulos oportunamente recebidos, e que soube aproveitar, mercê de um persistente amor ao trabalho, levaram-no aos sucessos da sua carreira militar, aos êxitos das negociações diplomáticas relacionadas com assuntos de defesa nacional, ao bom recorde literário dos discursos parlamentares, às avisadas participações na elaboração dos pareceres da Câmara Corporativa, aos assentos e às dignidades que as Academias lhe conferiram.
7. Não cuidarei de folhear livros de linhagens para apurar das origens aristocratas de Luís Maria da Câmara Pina. Até porque do nascimento, como da educação, apenas se podem colher presunções de nobreza e de capacidade, sempre ilidíveis por provas em contrário. E são muitos os que tendo nascido aristocratas pela ascendência, se perdem nos meados dos apetites de massa. Mas não duvido de que Câmara Pina era, por excepcional a vários títulos, um aristocrata, com plena consciência do dever de cumprir e entendendo, com nitidez, que coisa seja a honra e quando deve a honra preceder o proveito. É isso mesmo que caracteriza e define o sentido aristocrático da vida.
Ora Câmara Pina serviu como poucos. Envergando a sua farda como empunhando a sua pena. Sacrificando, por amor e dedicação às missões que lhe foram confiadas, comodidades e interesses pessoais. Viveu servindo e, afinal, a bem dizer, morreu em acto de serviço. Àqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo impõe-se o dever indeclinável de dar testemunho do seu exemplo e da sua obra, da sua vida de cristão, de português, de militar, de estudioso infatigável e de homem de bem.
8. Luís Maria da Câmara Pina, que tanto amou esta Academia e se achava ligado por muito fortes vínculos de afecto e de admiração ao nosso Ilustre Presidente, está, neste momento, entre nós. Vejo-o, com nitidez, na galhardia da sua estatura, na vivacidade do seu olhar penetrante, na bondade do seu leve sorriso, a erguer, ligeiramente, um canto dos lábios. Ele também nos contempla. E não nos vê em desânimos de derrota, mas no firme propósito de, à semelhança dele, mantermos a firme intenção de prosseguir. No culto da verdade, que é timbre de historiadores, na fidelidade aos princípios em cuja subordinação a Pátria se formou e sobreviveu às lufadas dos tempos adversos. Num acto grande da Academia das Ciências de Lisboa, em 1979, Câmara Pina, ao findar o discurso que então proferiu, citou Fernando Pessoa e, lembrando as estrofes terminais da “Mensagem”, o nosso “Portugal a entristecer”, sem “rei nem lei”, sem “conhecer o que é mal nem o que é bem”, estando “tudo disperso”, “nada inteiro”, repetiu o comando do poeta, que tomou por seu: “É a hora”. Não foi por acaso que o fez, estou certo disso. O acaso, que já alguém definiu como a providência dos que nada entendem, nem querem entender, não fazia sentido para o alto espírito de Câmara Pina. Aquele comando, aquele brado, que fez seu, já no declinar na sua fulgurante vida, corresponde ao apelo que quis dirigir aos amigos, aos confrades, a todos quantos, num esperado despertar de virtudes e vontades, continuam a crescer em Portugal, mesmo quando os seus contornos se esfumam, pela densidade do nevoeiro.
Exmo Senhor Presidente
Eminentes Académicos
Minhas Senhoras
Meus Senhores
É a hora. E é a hora também para, sem pôr termo à saudade de Luís Maria da Câmara Pina, agradecer a VV. Exias. a benevolência com que souberam escutar-me. Não a mereceriam os meus méritos, mas mereceu-a por certo, o exemplo que Câmara Pina nos legou generosamente, pelos seus talentos, pelo seu aprumo, pela sua obra, pela sua persistência em cumprir e servir, até aos limites que a sua vida e a morte lhe impuseram, por decisão implacável do destino.
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(**) Académico de Número da Academia Portuguesa da História.