Nº 2435 - Dezembro de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
General Câmara Pina - O Chefe Militar; Seu Apego ao Universalismo Português
Coronel
Carlos Gomes Bessa

A Academia Portuguesa da História foi das primeiras e mais empenhados das muitas Instituições que quiseram associar-se à ideia lançada pelo Presidente da Direcção da “Revista Militar”, General Espírito Santo, de celebrar o Centenário do General Luís Maria da Câmara Pina, que brilhantemente o antecedera nessas funções.

Uma razão especial avultava para o fazer. Foi a ela que o General Pina prestou o seu último serviço pouco antes de a vida se lhe extinguir.
 
Há mais de vinte e quatro anos, embora bastante combalido, como registam as Actas, aceitou o convite para responder ao recipiendário no Elogio Histórico de Luís de Bivar Guerra.
 
Ao chamá-lo a subir à tribuna, o Presidente da Academia, Professor Veríssimo Serrão, disse das razões da escolha. Tratava-se de figura nacional de alta craveira, apoiada no prestígio de brilhante carreira militar e numa cultura histórica que se impusera cada vez mais no convívio académico, a que trouxera primorosos dons de um espírito verdadeiramente superior.
 
O Académico Luíz da Câmara Pina lembrou o Confrade falecido havia um ano “com uma recordação que fez doer”. E “ao vê-lo uma vez mais quase se não acreditava no desaparecimento do companheiro, do amigo, do historiador, que de facto não desaparecera, pois ao entrar na vida eterna continuara presente na Academia, no meio dos estudiosos, embora num misterioso convívio de sombras”.
 
O mesmo sentem hoje, em relação ao General Câmara Pina, familiares, confrades, amigos e camaradas aqui vindos a render-lhe preito.
 
Creio não gostaria que neste momento esquecêssemos referência aos riscos e desconfortos de Dona Martha, grande Senhora, de sua filha Dona Leonor e de seu filho Luís Filipe, Alferes Comando, ao seguirem para Angola no início do terrorismo, compartilhando e acrescendo o exemplo em que o General Pina apoiava o cumprimento da espinhosa missão que o destino lhe reservara.
 
Pensando nisso também, respeitosamente cumprimento Dona Leonor da Câmara Pina de Sousa Mendes e seu marido, a Senhora de Luís Filipe da Câmara Pina, seus netos e demais familiares e amigos.
 
Durante oito anos servi no seu Gabinete de Chefe do Estado-Maior do Exército e durante mais quatro na Direcção da “Revista Militar”, de que era Presidente. Por essa circunstância lhe fiquei devendo inúmeros ensinamentos, atenções, estima e a confiança de me ter como colaborador directo, o que de modo algum esqueço.
 
Eis porque muito agradeço ao Presidente da Academia e ao Conselho Académico a honra de ser chamado a falar nesta sessão, efectivamente extraordinária a muitos títulos.
 
Saúdo-os e cumprimento-os também, assim como aos numerosos confrades, amigos, altas entidades civis e militares e a todos os convidados presentes, mas seja-me permitida uma palavra especial para o Chefe do Estado-Maior do Exército, o Sócio da Revista Militar, General Valença Pinto, aos seus prestigiados Presidentes da Direcção actual e da anterior, Generais Espírito Santo e Lopes Alves, bem como aos seus Chefes de Gabinete, Generais Bethencourt Rodrigues, que exerceu tais funções por largo tempo, e por quem o General Pina mantinha particular estima e consideração, por ver nele - o que é de geral consenso - um dos mais valorosos militares, de sua geração, que veio a suceder-lhe na Presidência da Direcção da “Revista Militar”, e Alberty Correia que, por seus méritos, foi escolhido para Governador de Timor e os seus Ajudantes de Campo Major Ruy Pereira Coutinho e Dr Victor Sousa e Melo.
 
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O General Luís Maria da Câmara Pina, como foi dito no IAEM, formou-se muito novo em Matemáticas, antes de decidir enveredar pela carreira das armas. Em 1959, já General e Chefe do Estado-Maior do Exército, numa conferência sobre a NATO na sua Universidade de Coimbra, afirmou continuar a ver-se mais uma vez um estudante chamado à lição. De facto, passou a vida estudando, a granjear saber e cultura invulgares a permitirem-lhe cumprir com brilho as missões que lhe foram sendo atribuídas, quer de carácter operacional, técnico, organizacional, diplomático, ou de magistério. A ele se aplicava com rigor o conceito camoniano: as armas não lhe impediram a ciência.
 
Foi chefe de invulgar mérito. Trabalhava muito, mas, impulsionador, não considerava seu principal papel o de fazer, mas o de fazer fazer. Mandava sem vergar vontades, antes convencendo, incutindo espírito de equipa, procu­rando conhecer os méritos e limitações dos que com ele serviam para os colocar no lugar onde melhor rendiam. Respeitava-os como pessoas e pretendia alcançar o objectivo, realizar obras e cumprir missões, não de modo a que parecesse só seu o mérito, mas compartilhando judiciosamente os esforços e contributos. Os seus subordinados não eram apenas alguém a quem dava ordens, mas companheiros respeitados. As colocações tinha-as, por isso, como tarefa pessoal. Para se executarem por escala, afirmava, bastaria o contínuo Esteves, o tão estimável “Pinguinhas”, a quem prodigalizou trato tão amistoso que fez com que ele se lhe tornasse de tal modo fiel e indefectivelmente dedicado que coleccionava tudo quanto visse escrito sobre o “seu” General.
 
Possuidor de invulgares qualificações elas tornaram-no indispensável para funções técnicas ou diplomáticas. Mas não lhe minguava capacidade para actividades operacionais, como pude verificar.
 
Em 1937, criada a Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha, logo em Março o Tenente de Telegrafistas Câmara Pina, partiu com o primeiro Chefe da Missão, o General Raul Esteves, e como referiu no IAEM o Tenente-Coronel Vale do Couto, seguiu para zonas operacionais assaz expostas.
 
Andam muito esquecidos os riscos corridos durante a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial e alguns deles foram arrepiantes. Em 30 de Maio de 1941 o War Cabinet inglês informou o nosso Governo da incapacidade de prestar apoio suficiente e oportuno contra uma invasão alemã. Sugeriu a transferência do Governo para os Açores. Na Metrópole oferecer-se-ia uma resistência simbólica, destruindo-se tudo quanto pudesse servir ao inimigo e não fosse transferível.
 
Chegaram a escolher-se os Ministros que ficariam na Metrópole, os que seguiriam para os Açores e o que iria para Angola.
 
 Mas o Governo Português não aceitava, nem a destruição indiscriminada das comunicações, nem a criação de um serviço de centralização e coordenação das destruições com a vinda de ingleses para Portugal, o que deveria ser objecto de negociações militares. Haveria que escolher para elas quem possuísse elevada competência técnica, capacidade para distinguir o que tinha efectivo interesse destruir, e firmeza e habilidade para conduzir as árduas negociações. Foi escolhido o Capitão Pina.
 
A 11 de Dezembro recebeu instruções do Embaixador em Londres, Armindo Monteiro, iniciou o seu trabalho e as duas pretensões aliadas foram abolidas. O Embaixador informou o Doutor Salazar que o Capitão Pina pusera todo o cuidado e esforço no bom desempenho da sua missão técnica. Mas a transferência do Governo para os Açores pairou como terrível ameaça sobre Portugal, embora sem disso quase ninguém se aperceber, até Outubro de 1943.
 
Um pouco antes, a 5 de Junho, desembarcaram em Lisboa os últimos elementos da Missão inglesa, destinada a tratar do desembarque nos Açores com a Missão chefiada pelo Almirante Botelho de Sousa, da qual fazia parte o Capitão Pina.
 
A cidade encontrava-se inundada de espiões de todas as proveniências, sendo o belo Avenida Palace e o Hotel Internacional muito frequentados por eles. Havia que actuar em sigilo e, num seu livro, o Tenente-Coronel Vintras, um dos elementos da Missão inglesa, narra que a primeira reunião se efectuou nessa noite no apartamento do Capitão Pina. Diz mais que a árdua tarefa do anfitrião em traduzir todos os documentos ingleses e a sua útil maneira profissional de encarar os assuntos se revelaram verdadeiro bálsamo durante todas as sessões, o que atesta ter sido sua casa afinal usada como sede de tão importantes negociações.
 
Vintras atribui mais um mérito a essa contribuição. Apesar de as nego­ciações se terem iniciado a 5 de Junho, o Acordo Militar assinado a 17 de Agosto, e o desembarque inglês efectuado a 8 de Outubro, portanto quatro meses depois, conseguiu-se colher de surpresa o Embaixador e a espionagem alemã nas condições vividas em Lisboa. Esta se deveria ter como uma das mais notáveis operações de segurança da História, em boa parte devida à forma como o Capitão Pina acolheu a Missão inglesa em sua casa.
 
Além disto, como ele pertencia também à delegação portuguesa que, em Londres, planeava as operações de desembarque nos Açores, ali se encontrava no dia em que o mesmo se efectuou. Essa ausência serviu de argumento ao Presidente do Conselho para impedir a concretização da ideia fixa dos ingleses quanto a efectuarem as destruições, para as quais dispunham até de serviços clandestinos no nosso país, evitando-se terríveis danos, sem qualquer benefício sequer para eles. Mas só desistiram quando se verificou a não reacção da Alemanha aos seus desembarques ainda antes de o Capitão Pina regressar a Lisboa.
 
O que acabo de referir não constitui ficção, mas História, e à intervenção que nela teve o então Capitão Câmara Pina ficámos devendo serem os portugueses poupados a violentas perdas e danos, o que é justo lembrar com enorme gratidão.
 
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Exerceu as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército de 1958 a 1969. As ameaças contra Portugal e os seus territórios ultramarinos agravaram-se sensivelmente a partir de 1958. Colocado na Guiné, como Chefe de Estado-Maior do Comando Militar desde 1956, pude verificar o aumento de interesse e da adopção de crescente número de providências havido a partir daí, com vista a melhorar a eficiência operacional naquele Comando por parte do Ministério e do Estado-Maior do Exército.
 
Em 1959, o Governo decretou uma fundamental reforma, a constituir um dos principais sustentáculos para se aguentar a luta anti-subversiva apenas com quadros nacionais e efectivos muito elevados repartidos por numerosos e distantes territórios, em termos de que a nossa História não regista paralelo.
 
Tendo eclodido o terrorismo em Angola a 15 de Março de 1961, também com o apoio do Consulado-geral e das missões protestantes americanas, estes fizeram correr ali que os portugueses não se aguentariam seis meses. Mas a resistência veio a durar treze anos, o que muito se ficou devendo ao notável esforço de organização e orientação do General Câmara Pina até 1969.
 
Quando em 1964 o acompanhei na Missão à Guiné pude avaliar de muito perto o seu à vontade nas actividades operacionais em tempo de guerra. Escolheu para visitar os lugares mais expostos e as unidades mais precariamente instaladas. Estivemos numa companhia na ilha de Como onde se travavam duros combates: as instalações de campanha estavam longe de ser confortáveis e ali permaneceu a Missão cerca de duas horas, para estímulo do pessoal e estudo de medidas susceptíveis de melhorar as suas condições de vida e a sua capacidade operacional.
 
Pouco depois da partida da Missão a companhia foi bombardeada, mas só houve conhecimento disso à noite na sede do Batalhão de Catió, onde dormiríamos. Manhã cedo, o General Pina voltou à companhia de avião, por não o poder fazer de noite, indo apenas acompanhado pelo Comandante Militar, pois a lotação não permitia a ida de mais ninguém, para se inteirar das consequências e decidir sobre as medidas a tomar.
 
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Das actividades do Gabinete devo salientar mais uma, por me parecer notável e nela ter colaborado.
 
Os desafios eram muito duros para o nosso país e, em 1967, o General Câmara Pina, entendendo que o estilo de vida próprio de Portugal e do Brasil, o luso-tropicalismo, a sua extensão pelos vários continentes, a economia em expansão, e uma população impregnada de espírito de missão e crença firme poderiam criar um novo tipo de vida e uma nova civilização luso-brasileira. E que os militares eram os que mais imediatamente contactavam e conviviam com as populações e lhes davam o primeiro choque da nova cultura de que eram portadores. A harmonia entre africanos e não africanos, tornados “companheiros” por comerem o mesmo pão, não se havia perdido. Houvera por certo abusos de poder e injustiças, mas onde os não havia, infelizmente? Todavia, a violência como politica não estivera nunca no espírito nem no coração dos nossos soldados que, mesmo na terrível crise a atravessar, combatiam com energia e determinação, mas sem ódio.
 
Pensou em grande, e logo passou aos actos, como lhe era habitual. Decidiu realizar em Moçambique um curso intensivo de ensino da língua portuguesa para soldados macúas e seus familiares. Eles habitavam o distrito mais rico de Moçambique, eram 2 milhões e duzentos mil, fiéis e trabalhadores. Haviam repelido a rebelião e incorporaram-se em unidades ao lado das nossas. A subversão já assim fazia a norte do Rovuma com fortes apoios estrangeiros em relação a outras etnias para as preparar com vista a actuarem em Moçambique. Obteve apoio do Ministro do Exército, Luz Cunha e da Educação Nacional, Galvão Teles, que destacou para o efeito o Professor Herculano de Carvalho de Coimbra, e encarregou o Instituto dos Meios Áudio-Visuais do Ensino para montar o curso, segundo técnicas que o General Pina classificava de produção industrial, pois até incluíam o uso da televisão.
 
O entusiasmo venceu as dificuldades, e a 1ª tentativa experimental iniciou-se em Setembro de 1968, com 28 soldados que não entendiam uma palavra de português. O Professor Herculano de Carvalho foi lá fazer a montagem e, após o seu regresso, ficou a dirigir o curso o então Major Freitas Lopes, meu companheiro de turma no Liceu e velho amigo, que, a meio da 1ª parte, escrevia àquele que, era tal o interesse dos alunos, que “bebiam” os ensinamentos e a partir da 3ª semana, o intérprete macúa passara a ser progressivamente dispensado. Atrasos irremovíveis de material impediram que a 2ª parte corresse tão bem.
 
Em Fevereiro de 1969 iniciou-se o 2º curso mais aperfeiçoado, mas o General Pina passou à reserva em Junho, e a experiência parou. Omitirei as críticas do Professor Herculano de Carvalho aos responsáveis por isso, acrescentando, porém, que ele continuou a lutar pela ideia, inclusivamente no Brasil, enquanto viveu até final da década de 90. O General Pina também não parou de lutar por ela, mesmo depois de 1974 e até ao fim da vida, como veremos.
 
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Em meados de 1976 recebi em casa um telefonema do General Pina. Pretendia falar comigo. Prontifiquei-me logo a procurá-lo, pois tempo livre não me faltava. Não aceitou. Queria ser ele a ir a Caxias. Rendi-me, e nessa tarde a conversa ocorreu. Vinha convidar-me para ser eleito Sócio Efectivo da “Revista Militar” e seu colaborador na Direcção de que era Presidente. Informou-me do privilégio de passar a ser co-proprietário vitalício, como ainda hoje acontece com todos os Sócios, mas avisou-me, gracejando, não retirar dele nem um tostão e, pelo contrário, me ir envolver nas dificuldades que ela atravessava.
 
Aceitei logo, grato pelo convite e pela deferência, que me permitiria continuar a servir o país e não me desligar das Forças Armadas.
 
A Revista estava, realmente, a refazerse do vendaval hostil a que fora sujeita. Alguns regressavam de prisões arbitrárias, outros haviam saído por imperativos de serviço ou por abandono. Três estrénuos defensores haviam, todavia, aguentado firmes: os Generais Câmara Pina, Buceta Martins, e Louro de Sousa. A mais antiga publicação militar do mundo fora por eles salva de desaparecer. E, felizmente, iria renascer e viver de novo uma época assaz prestigiante. Não mais se recorreria a traduções de emergência de artigos estrangeiros para a poder fazer sair. O caminho seria o oposto: incentivar a colaboração nela de militares e civis prestigiados.
 
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Gostaria, mas não me é possível, tocar em mais alguns aspectos da vida da Revista naqueles quatro anos. Limitar-me-ei a breves comentários sobre quatro números especiais publicados durante o período.
 
Março de 1977 - 1ª travessia aérea nocturna do Atlântico Sul, de Beires, Castilho e Gouveia, 1927-1977. Durou mais de um ano a preparar, pois o General Pina quis e conseguiu obter notáveis colaborações nacionais e estrangeiras. O célebre aviador Closterman classificou-a, e à de Cabral e Gago Coutinho, como “duas grandes estreias mundiais”.
 
O General Pina exprimiu nele a preocupação de não deixar morrer o patriotismo, por estiolamento, assassínio, ou até por suicídio, lembrando que as primeiras ligações marítimas e aéreas Portugal - Brasil haviam sido feitas por portugueses e eram sinal de um chamamento interior, de uma vocação, voltando-se mais para o futuro do que para o passado. Exprimia a esperança de também não virmos a falhar na obra de gigantes que nos desafiava e desafia.
 
Março de 1978 - Evocação do 175º Aniversário do Colégio Militar - Excelente monografia histó­rica, com quase exclusiva colaboração de antigos “Meninos da Luz”, sobre aquela “oficina de almas”, como lhe chamou o General Pina, “tendo como mais alto objectivo de ensino a ambição de entregar ao País homens capazes de o servirem com a totalidade das suas forças e dos seus dons. Homens de carácter. Portugueses”.
 
Outubro de 1979 - Congresso Histórico de Guimarães e a sua Colegiada. A Revista compa­receu “em obediência à sua missão e à sua obrigação de procurar difundir o valor das instituições militares no nosso meio social”, como afirma o seu Presi­dente. Constituem a sua delegação, alem dele, mais três elementos: o General Paiva Brandão, o Major Ernesto Leal e eu. Todos apresentaram comunicações, eu, além da individual, tive o gosto e a honra da co-autoria com o General Pina duma sobre as Unidades Militares de Guimarães; este dirigiu, além disso, um importante Simpósio sobre castelos e torres fortificadas.
 
O Congresso constituiu um sucesso, retemperador a muitos títulos.
 
Viéramos de longe ou de perto, animados pelo mesmo e profundo ideal, até junto do glorioso Castelo para retemperar a alma na fonte de vida que é o amor da Pátria, como anunciou na Sessão Inaugural o Professor Veríssimo Serrão.
 
Regressámos reconfortados e sintonizados com a afirmação vibrante de Pedro Calmon na Sessão de Encerramento: Tenhamos confiança. A Pátria portuguesa, nascida há mais de oito séculos, não morrerá. E o General Câmara Pina concluía, feliz, que déramos uma boa imagem da actividade cultural do nosso Exército.
 
Dezembro de 1980 - Evocação do 2º Centenário da Academia das Ciências de Lisboa. Planeado com ele, veio a redigi-lo o General Louro de Sousa. Resultou excelente obra de leitura obrigatória sobre as relações mantidas durante tantos anos pelas duas Instituições e pela acção dos militares que pertenceram a ambas. Encontra-se esgotada há muito tempo.
 
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1975. A tempestade varre Portugal e investe feroz sobre o universalismo marcante da nossa História, e sobre a Academia, que quer cumprir o seu dever de o respeitar. Reconhece esta a necessidade de se dar um Presidente corajoso e sabedor. Elege Joaquim Veríssimo Serrão, que logo terá de enfrentar e deter ameaças vitais. Na Assembleia da República deputados há que defendem a sua extinção. Não têm êxito, mas é indispensável reforçar a hoste. O Presidente chama um soldado para onde havia muitos anos eles não tinham tido assento. Foi o General Câmara Pina. “Douto e ciente”, possui coragem serena e a força do prestígio conquistado. Não é dos de desertar. Aceita o convite. E passa a subir semanalmente ao Palácio da Rosa, às sextas-feiras, pois era então esse o dia das sessões.
 
À assiduidade junta dedicação e valoriza o estudo da História aplicando-lhe o método do rigor de pensamento característico do Estado-Maior do Exército para estudar as situações.
 
De que se trata? Quais os elementos essenciais de informação sobre o facto histórico a estudar? Quais as missões de cada um? Que inimigo ou interesses em confronto há que ter em conta? Qual o terreno, e como tirar dele o melhor proveito? Quais os meios disponíveis para cumprir a missão? E, a partir desta lógica, investiga, julga e conclui.
 
Com base nela as suas comunicações revestem-se de rigor e verosimi­lhança, impondo-se e impondo o Autor.
 
Passado o tempo mínimo de três anos, o General Luís da Câmara Pina ascende a Académico de Número e, caso inédito, não só por unanimidade, mas por aclamação.
 
Tornada reduto de verdade histórica, sem se esconderem sombras, nem rejeitarem a priori dúvidas ou discordâncias, mas com respeito e fervor admirativo, quando é caso disso, a Academia abre as suas portas ao público em geral, e muitos passaram a acorrer às suas sessões para retemperar o amor pátrio e repelir com fundamento o culto da descrença.
 
Por sugestão do General Pina vim pela primeira vez à Academia. O reconforto sentido fez-me voltar sempre que podia, sem faltar nunca à apresentação dos seus trabalhos. Infelizmente tal não aconteceu durante muito tempo.
 
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São conhecidas as marcas que as prolongadas passagens por Inglaterra deixaram no modo de ser e agir do General Pina. Por isso não o ouvi nunca queixar-se da gravidade da doença e da contingência a que estava sujeita a sua vida.
 
Nos primeiros dias de Março de 1980, convidou-me para tomar chá com ele na Marques do Chiado, na sexta-feira que antecedeu a minha entrada na Casa de Saúde Militar. Para lá seguimos, conversando, terminada a sessão da Academia. Operado na 2ª feira, ainda passou duas vezes a ver-me durante a semana. Na 5ª feira falou-me que, no dia seguinte, interviria no Elogio de Luís de Bívar Guerra para responder ao seu sucessor na Cadeira. Exprimi-lhe a pena que tinha por não o poder ir ouvir, mas só me seria dada alta nessa tarde. Assim nos despedimos. Na manhã de domingo recebi, por telefonema do General Bethencourt Rodrigues, a notícia brutal. Na sessão a que não pude ir à Academia, o General Câmara Pina vibrara ao exortar o novo Académico de Número Luís de Albuquerque a fazer rutilar uma verdade, prestando a homenagem ainda em dívida que os portugueses de antanho, e até os de hoje, irrefragavelmente mereciam. E, sob o primado do espiritual e da cultura, impulsionar um projecto, também verdadeiramente nacional, e em escala não inferior à dos Descobrimentos do Século XVI: a difusão, sobretudo em África, da língua portuguesa e da nossa maneira de estar no Mundo. Todos unidos com o Brasil seríamos bastantes! Tão importante foi para ele esta ideia - força da preservação do universalismo de Portugal - que dela, não só nunca abdicou por a ter como fundamental, como lhe imprimiu a marca de uma última vontade.
 
Neste nosso reencontro com o General Câmara Pina, a que compareceram tantos, para um diálogo, que afinal não foi só de sombras, pelas luzes intensas irradiadas do seu espírito, essa ideia-força surge como essencial para não nos esfumarmos como povo numa Europa tão problemática e de futuro tão pouco previsível.
 
Mercê dela revigora-se a Prece de Pessoa a demandar-nos que o nosso esforço se renove para “outra vez conquistarmos a Distância - do mar ou outra mas que seja nossa”!
 
E nessa outra se inclui o culto e expansão da língua portuguesa e da nossa maneira de estar no Mundo, bem como do nosso renovado luso-tropicalismo, assentes nos direitos que nos advêm pelo muito que Portugal deu à Humanidade Mundo, e que uma História isenta deve reconhecer, e aos portugueses cabe valorizar, em vez de suicidariamente a denegrirem ou ignorarem.
 
O esforço de vontade e de talento terá de ser grande e, sem dúvida difícil, mas constitui, parece-me, a mais adequada homenagem a prestar a quem acreditou até ao fim de que eles não haveriam de faltar nunca aos portugueses.
 
 
 
 
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(*)    Sócio Efectivo da Revista Militar, de que foi Secretário (1976) e Director-Gerente da Direcção (1977-1995).
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2009-06-29
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