A Proposta de Lei de Defesa Nacional
Seguindo o expresso no seu Programa, o XVII Governo Constitucional apresentou à Assembleia da República a Proposta para uma nova Lei de Defesa Nacional que substituirá a actual Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas).
Na sua forma, a Proposta e a Lei a substituir, ainda que divirjam na designação (Lei de Defesa Nacional ou Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas) não divergem no seu objecto: regular a Defesa Nacional e o papel das Forças Armadas nessa actividade do Estado.
Já no seu conteúdo a Proposta contem orientações e modificações que merecem alguma meditação e crítica. Meditação sobre os princípios que devem orientar tal legislação, começando pela definição clara e precisa sobre o que se entende por Defesa Nacional. Crítica por, na alteração proposta, não se ter atendido às deficiências detectadas na actual Lei, com mais de vinte anos de vigência, apontadas por quem a teve de observar e aplicar, algumas das quais já foram expressas em órgão de comunicação escrita, por um especialista na matéria que também é Sócio Efectivo da Revista Militar.
O que se entende por Defesa Nacional? A Lei nº 29/82, interpretando o contido na Constituição da República Portuguesa (e pela primeira vez no ordenamento constitucional português) sobre o conceito de defesa nacional (Artº 273º, nº 2), definiu Defesa Nacional como “a actividade desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos no sentido de garantir, no respeito das instituições democráticas, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa (s)”.
Antes da revisão constitucional de 1982 tinha havido um grande debate de ideias, conduzidas por e no Instituto de Defesa Nacional, sobre o que deveria entender-se por Segurança Nacional e Defesa Nacional, já que os conceitos, inspirados por diferentes escolas de pensamento (que para simplificação diremos serem a escola anglo-saxónica e a francesa com os conceitos de National Security ou Défense Nationale), levantavam dúvidas conceptuais e de práticas. Definiu-se assim Defesa Nacional: “conjunto de medidas tanto de carácter militar como político, económico, social e cultural que, adequadamente coordenadas e integradas, e desenvolvidas global e sectorialmente, permitem reforçar a potencialidade da Nação e minimizar as suas vulnerabilidades, com vista a torná-la apta a enfrentar todos os tipos de ameaça que, directamente ou indirectamente, possam pôr em causa a Segurança Nacional”.
Embora as Nações Unidas, numa Resolução da sua Assembleia Geral, tenham definido Agressão (a utilização da força armada), o conceito de ameaça externa, que foi evoluindo com novas realidades do panorama estratégico internacional e consequente tipologia, e a sua fronteira com ameaça interna não merecem consenso nos vários regimes constitucionais, e que se traduzem, na prática, pela questão de saber quando devem ser utilizadas as Forças Armadas (força militar da Nação) para fazer face a essa ameaça. A essas reticências da política também se juntam as dúvidas das Forças Armadas sobre quando e como se devem envolver naquilo que no seu código genético se denomina muitas vezes por dirty job (tarefa suja). Na Lei nº 29/82 a definição encontrada para Defesa Nacional, como o referiu o seu apresentador na altura, teve em vista, fundamentalmente, “demarcar a área normal de intervenção das Forças Armadas e das Forças de Segurança e delimitar esferas de atribuições de ministérios diferentes e sublinhar a missão primária e a vocação específica de cada instituição sem prejuízo da necessária articulação e cooperação de todas para a realização integral dos fins do Estado”.
Na Proposta de Lei agora apresentada não se define a Defesa Nacional como actividade do Estado (Artº 273º da Constituição da República). Definem-se objectivos a garantir (poderão ser atingidos fora do Estado?). Elimina-se também a sua natureza global, conforme estava incluído no Artº 6º da Lei Nº 29/82 (cujos números vinculavam o seu âmbito interministerial, a responsabilidade de todos os órgãos e departamentos do Estado e a necessidade de manter todos os cidadãos informados sobre esta actividade). Elimina-se, ainda, um artigo importante da Lei anterior: O Artº 9º que expressava que a defesa da Pátria é dever fundamental de todos os Portugueses (Artº 276º da Constituição da República) e que dizia ser dever individual de cada português a passagem à resistência activa e passiva, nas áreas do território nacional ocupadas por forças estrangeiras.
Conceitos ultrapassados? É preciso discutir para demonstrar.
A Proposta de Lei, seguindo preocupações resultantes da nova realidade estratégica global e do carácter transnacional de ameaças que podem afectar a segurança nacional, avança, ainda que timidamente, no conceito de cometer as Forças Armadas na resposta a essas ameaças. Mas com alguma imprecisão de conceitos. As Forças Armadas quando recebem responsabilidades nesta área assumem o comando, quer nas formas de comando operacional ou de controlo operacional. Colaborar ou cooperar, deixando as formas ao critério do CEMGFA e Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, é abrir a porta a indefinições e diluição da responsabilidade. E também se anota que o Conselho Superior de Defesa Nacional é ignorado nesta importante matéria.
Dois princípios importantes a observar numa Lei da Defesa Nacional, que contem em si o papel das Forças Armadas nessa actividade do Estado, complementando o estabelecido na Constituição da República (Às Forças Armadas compete a defesa militar da República e As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania, nos termos da Constituição e da Lei, Artº 275º da CR, nº 2 e 3), relacionam-se com o Controlo Civil sobre as Forças Armadas, tendo como corolário a co-responsabilização dos órgãos de soberania em relação à direcção das Forças Armadas e o reconhecimento de ampla autonomia interna às Forças Armadas. Traduzem um debate que por vezes se reacende nas sociedades democráticas sob a designação genérica de relações civis-militares e com vasta literatura de variadas escolas de pensamento sobre o assunto, onde prevalece o mundo académico dos EUA. Recentemente retomado a propósito da intervenção no Iraque e das vozes críticas de alguns militares fora do serviço activo sobre o assunto, que até ficaram a ser conhecidas pela “Revolta dos Generais”. Perante quem respondem as Forças Armadas no seu comportamento e missões? Nação (Parlamento ou órgão correspondente), Comandante Supremo ou Executivo?
Na Lei Nº 29/82 a preocupação de assegurar esses princípios, em época de difícil consenso político, foi de alguma forma conseguida. A diminuição das responsabilidades do Presidente da República, como Comandante Supremo das Forças Armadas levou o Presidente de então a vetar a Lei. O Conselho Superior de Defesa Nacional com a sua composição procurou ser um órgão de equilíbrio de co-responsabilização. O Conselho Superior Militar (difícil de instituir) representou alguma autonomia e encontro das Forças Armadas com o Executivo, autonomia acrescentada pela forma como as Chefias Militares e as promoções a Oficial General passaram a ser reguladas. Algumas imprecisões nesse equilíbrio foram-se atenuando com o tempo, mas outras subsistiram. Desejamos sublinhar o facto de o Conceito Estratégico de Defesa Nacional não ser da competência da Assembleia da República (ainda que discuta as grandes linhas) e sim do Executivo. Até em contradição com o que se passa com a Lei da Programação Militar.
A Proposta de Lei apresentada à Assembleia da Republica traz recuos naqueles princípios. Não se entende porque se querem diferenciar as funções de Presidente da República de Comandante Supremo das Forças Armadas. São de facto funções separadas. Mas não são separáveis. E pasma-se quando num preceito legislativo se atribui ao Presidente da República (sob o chapéu de Comandante Supremo das Forças Armadas) o “dever de contribuir, no âmbito das suas competências constitucionais, para assegurar a fidelidade das Forças Armadas à Constituição e às instituições democráticas”. Mas, os cidadãos que integram as Forças Armadas, no seu Juramento de Bandeira ou de Fidelidade não juram defender a Constituição? Não se percebe, também por que é que as promoções a Oficial General ou de Almirantes e Generais, decididas em Conselho de Chefes de Estado-Maior, voltam à aprovação do Ministro da Defesa Nacional, antes de irem a confirmação do Conselho Superior de Defesa Nacional.
Manter o equilíbrio da co-responsabilização dos órgãos de soberania no controlo civil das Forças Armadas é essencial para a Democracia. Conferir às Forças Armadas autonomia no seu funcionamento, naturalmente inseridas na administração central do Estado, preserva as suas características de Instituição da Nação e permitirá manter o estabelecido no Artº 275º da Constituição da República: As Forças Armadas estão ao serviço do povo português e são rigorosamente apartidárias.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.