Nº 2485/2486 - Fevereiro/Março de 2009
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Rússia: A Sombra do Exército Vermelho.
Mestre
Carlos Alberto dos Santos Pereira
Vasos de guerra russos e americanos fitam-se a curta distância nas águas do Mar Negro. Bombardeiros russos fazem jogos de guerra nos céus das Caraíbas. Enviados de Washington correm as capitais europeias pregando a unidade e a resistência à “agressão” russa…
 
Por um momento, nas semanas que se seguiram ao conflito russo-georgiano de Agosto de 2008, o Mundo pareceu regressar aos dias de tensão que marcaram quase meio século de confronto entre o Ocidente e a defunta URSS. O estigma da “guerra fria” assomou de novo às primeiras páginas dos media e aos discursos políticos.
 
Depois, imperativos de ordem económica e geopolítica ditaram uma progressiva normalização das relações entre a Rússia e o Ocidente. União Europeia e Rússia reatam as negociações com vista a uma parceria estratégica interrompidas desde o conflito da Geórgia. A NATO abre de novo as portas ao diálogo com Moscovo. “A Rússia é um factor tão importante em termos geopolíticos que a NATO não tem alternativa - disse Jaap De Hoop Scheffer, o secretário-geral da Aliança na cimeira ministerial de 2 e 3 de Dezembro de 2008.
 
A conjuntura internacional sofreu entretanto mudanças substanciais desde o verão de 2008. Barack Obama, o novo presidente dos EUA, terá pela frente prioridades mais prementes - a crise económica que assola a América e o Mundo, o Afeganistão. Gravemente atingida pelos efeitos da recessão e pela queda dos preços energéticos, a Rússia vê-se também ela a braços com dificuldades crescentes.
 
Ainda assim, a questão russa será um dos dossiers mais delicados com que a administração de Barack Obama terá que se confrontar.
 
A crise russo-ucraniana que cortou os fornecimentos de gás à Europa durante quase três semanas em Janeiro deste ano bastaria para recordar a permanência de factores de tensão - e de interdependência - nas relações entre a Rússia e o Ocidente. As marcas deixadas pela intervenção russa na Geórgia estão ainda muito presentes e dificilmente se apagarão tão depressa.
 
 
Crise anunciada
 
Levado ao poder em Tbilissi pela “revolução rosa” em 2004, o presidente georgiano Mikheil Saakashvili prometera aos georgianos a recuperação da soberania sobre as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia.1
 
Escaramuças com ossetas e abkhazes e provocações e incidentes com a força de interposição russa vinham-se multiplicando nos últimos meses. Tbilissi fazia um forte investimento na modernização do Exército e intensificava a presença militar junto das duas regiões separatistas.2 E a pressão na cimeira de Bucareste, em Abril de 2008, para uma rápida integração da Geórgia (e da Ucrânia) na NATO acirrou ainda mais os ânimos entre Tbilissi e Moscovo.
 
Na madrugada de 8 de Agosto de 2008 tudo se precipitou. A 4ª Brigada (2 000 homens), unidade de elite georgiana, apoiada por artilharia e blindados, lança um assalto a Tskhinvali. Horas depois a capital da Ossétia estava devastada, milhares de pessoas fugiam para Norte e as forças georgianas controlavam o território.
 
A reacção russa é pronta. As unidades de cabeça do 58º exército atravessam a linha que separa as duas Ossétias (a Ossétia do Norte faz parte da Federação Russa) num momento em que as forças georgianas não tinham ainda tido tempo de consolidar as suas posições.3 Logo ao primeiro contacto, a 4ª brigada sofre baixas pesadas.
 
Os acontecimentos precipitam-se no terreno. Horas depois, já a 9 de Agosto é aberta uma segunda frente nas gargantas de Kordori, na Abkhazia. Em Tbilissi o presidente Saakashvili agita a bandeira branca e apela ao cessar-fogo. Vasos da frota russa do Mar Negro entram em acção, o patrulheiro Tbilissi é afundado e impõem o bloqueio dos portos georgianos.
 
As forças russas penetram já profundamente no território georgiano punindo severamente as tropas georgianas em debandada. As bases militares de Senaki e Gori (a pouca distância da linha de demarcação com a Ossétia do Sul, e a 55 km da capital georgiana) são aniquiladas. O porto de Poti (Mar Negro) é ocupado, a via estratégica que atravessa de leste a oeste o território georgiano cortada. A aviação russa bombardeia o aeroporto de Tbilissi e instalações petrolíferas.
 
Os alarmes disparam então nas chancelarias ocidentais. Washington multiplicou advertências a Moscovo para as “sérias consequências” da intervenção russa e insiste na integridade territorial da Geórgia.4 A Rússia responde consolidando a cada dia posições no terreno, enquanto em Moscovo, Vladimir Putin acusa Washington e a NATO de estarem por detrás da iniciativa do líder georgiano.5 Saakashvili multiplica apelos ao Ocidente, garantindo estar iminente um assalto russo à capital georgiana.
 
Mikheil Saakashvili é tido como o mais fiel peão americano na área e a Geórgia representa uma peça mestra na batalha pelos recursos energéticos e pelo controlo estratégico da região que se estende entre o Cáucaso e a Ásia Central. Face à aposta americana na Geórgia, o conflito assume desde logo acentos de um braço de ferro entre Washington e Moscovo.6
 
A frente diplomática mobiliza-se, entretanto. Em nome da União Europeia Nicolas Sarkozy assume a iniciativa e, a 12 de Agosto, uma semana depois do início da crise, arrancava a russos e georgianos um acordo de cessar-fogo.
 
 
As lições do conflito da Geórgia
 
A superioridade numérica e em potência de fogo desequilibrou rapidamente a balança para o lado russo, e a ruptura das linhas de comunicação da 4ª brigada permitirá rapidamente às forças russas cercar e aniquilar a mais apetrechada unidade georgiana. Mikheil Saakashvili terá cometido um sério erro de avaliação quanto à real capacidade militar das forças georgianas, quanto ao apoio do Ocidente e quanto à prontidão da resposta russa.7
 
Ressalvada a desproporção das capacidades militares em confronto, os analistas são praticamente unânimes em sublinhar a preparação cuidada da operação e a eficácia com que a contra-ofensiva russa desbaratou o dispositivo militar georgiano.8
 
O New York Times assinalou, dando eco a análises de peritos e responsáveis do Pentágono, a forma como o blitz russo conjugou ensinamentos da velha escola soviética (uma força esmagadora de infantaria e artilharia) com tácticas mais modernas - operações navais e aéreas conjuntas, infiltração de forças especiais, ataque a sites governamentais do inimigo.
 
Em matéria de Info War, a Rússia revelou progressos notórios. Os sistemas de comando, controlo e informação (C4ISR) georgianos são rapidamente neutralizados através quer da destruição física quer do empastelamento sistemático e saturação das redes informáticas.
 
Também na gestão da frente mediática Moscovo parece ter feito progressos. Responsáveis falando um inglês irrepreensível aparecerem nos ecrãs televisivos a defender a versão russa dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, Moscovo põe em marcha uma vasta manobra apoiada na cadeia de televisão Russia Today e coadjuvada por centenas de blogs, ao mesmo tempo que numerosos blogs e sites georgianos eram alvo de ataques DOS (Denial of Service).
 
A BBC observou ainda assim que as autoridades de Moscovo foram demasiado lentas em proporcionar aos media acesso aos refugiados que fugiram para a Ossétia do Norte, num momento em que os jornalistas estrangeiros espalham já pelo mundo as histórias dos georgianos atingidos pelos ataques russos.9
 
Os ecrãs da CNN oferecem a Saakashvili uma importante tribuna política que o líder georgiano explora à saciedade para multiplicar recriminações ao Ocidente e insistir nas “atrocidades” e na “limpeza étnica” perpetradas pelos russos na Geórgia, procurando assim arrastar a discussão do conflito para o domínio sensível das questões humanitárias.
 
Apesar dos progressos assinalados, as forças russas continuaram ainda assim a revelar debilidades tanto em matéria de equipamento como de organização, e que só a superioridade de fogo terá permitido compensar. As forças georgianas revelaram com efeito vantagens comparativas em áreas como a logística, os meios de visão nocturna e as armas anti-tanque.
 
Desde o início da operação, deficiências na coordenação entre os meios aéreos e terrestres e a eficácia dos grupos de combate georgianos equipadas com mísseis modernos custam danos consideráveis às forças russas, tanto terrestres como aéreas. Tbilissi reivindica a destruição de 10 aparelhos russos, a Rússia reconhece a perda de dois.10
 
A precisão dos ataques aéreos russos (bombas lançadas pelos Su-25 e pelos helicópteros de combate Mi-24 terá deixado muito a desejar, continuando a notar-se a falta de armas de precisão. A aviação russa revelou assim dificuldades a neutralizar as posições de artilharia e meios anti-aéreos (DCA) inimigos.
 
Os blindados russos provocaram baixas pesadas aos georgianos, mas as blindagens dos T-80 e sobretudo dos T-62 e T-72 mostrar-se-ão vulneráveis aos mísseis anti-carro modernos georgianos (que causarão aliás uma crise diplomática entre Moscovo e Tel Avive). As unidades continuam a não estar apetrechadas para o combate nocturno.
 
O equilíbrio das forças navais em breve se virará contra a Rússia com o empenhamento de navios americanos e de vários países da NATO no Mar Negro. E a situação é tanto mais grave quanto a tensão em torno da frota russa do Mar Negro e as ameaças de Kiev de bloquear o regresso dos vasos de guerra ao porto de Sebastopol ameaça abrir uma nova e perigosa frente na crise.
 
Em suma, na opinião dos analistas, a condução das operações na Geórgia revelou progressos, mas esteve longe de representar uma viragem significativa em termos de doutrina e de eficácia operacional. A fase inicial das operações parece ter sido cuidadosamente planeada, mas a logística russa (reabastecimento em homens e material) rapidamente se revelaria incapaz de acompanhar a progressão na Ossétia do Sul. E as forças russas russos continuam a revelar dificuldades em reconfigurar rapidamente o seu dispositivo no decorrer da acção operacional. Continuam igualmente a verificar-se falhas de coordenação a nível das unidades no terreno.
 
A operação georgiana não deixa ainda assim de marcar um contraste notório com o desastre das forças soviéticas no Afeganistão ou o desaire da intervenção na Tchetchénia em 1994. E testemunha sobretudo uma nova atitude de Moscovo em matéria de emprego da força militar. “É a primeira vez desde o colapso da União Soviética que os russos lançam uma acção decidida e impuseram uma situação militar” - observou George Friedman, director do observatório Stratfor. “Fizeram-no de forma unilateral e os países que olhavam para o Ocidente para intimidar a Rússia vêm-se agora obrigados a ter em conta o que aconteceu”.
 
 
O “efeito Kosovo”
 
A “lua-de-mel” vivida nas relações russo-americanas na era Gorbatchov (1985-1991) e sobretudo nos primeiros anos da era Ielstin (1991-1999), há muito se esgotara, e a partir de 1992 acumulam-se os contenciosos entre as duas partes.
 
A Rússia assistiu, impotente, à expansão da NATO a Leste e viu-se desalojada pela influência americana de áreas da antiga URSS e que Moscovo continua a reclamar como esfera dos seus interesses - casos do Cáucaso e da Ásia Central. O velho “complexo de cerco” assedia de novo a Rússia. Muitos russos voltam a olhar o Ocidente como uma ameaça potencial.
 
A crise do Kosovo e o ataque da NATO à Jugoslávia (Sérvia e Montenegro) na Primavera de 1999 vem agravar de forma dramática a crescente crispação nas relações entre a Rússia e o Ocidente.
 
A acção da NATO constitui uma “humilhação” e uma “bofetada” para a Rússia, mostrando a forma como o Ocidente ignora os interesses russos sempre que divergem dos seus” - escreveu Aleksei Arbatov, uma das vozes mais conceituadas em matéria de Defesa e política externa da Rússia, traduzindo o sentimento de muitos russos.11
 
Acordos de desarmamento foram congelados ou viram a sua ratificação suspensa. As ilusões de uma verdadeira parceria entre a Rússia e a NATO em matéria de segurança foram rapidamente enterradas e o “Acto Fundador”, assinado a 27 de Maio de 1997, “passou a representar para Moscovo um papel esvaziado de qualquer substância”.12
 
Três meses depois da ocupação do Kosovo pela NATO, a Rússia lança uma ofensiva em larga escala na Tchetchénia, contando desde vez - e ao contrário do que acontecera cinco anos antes - com um forte apoio entre a população.13 E nas legislativas de Dezembro os russos deram maciçamente o voto aos partidos nacionalistas e da “linha dura”.
 
Os debates no seio do Estado-Maior das Forças Armadas, do Conselho de Segurança Nacional e do Ministério da Defesa evocam abertamente o cenário de um ataque da NATO do “tipo Balcãs” e um conflito em larga escala com o Ocidente - cenários que pareciam definitivamente arredados desde o fim da guerra-fria.” Depois de uma década de desarmamento, de detargeting de mísseis nucleares e de transparência em matéria de segurança e defesa entre a Rússia e os EUA, a crise do Kosovo “despertou de novo os piores instintos e estereótipos da guerra fria” - assinala Arbatov.
 
A nova versão do Conceito de Segurança e da Doutrina Militar da Rússia, aprovada no início de 2000, recupera o dissuasor nuclear como elemento fulcral da segurança do país e admite o recurso ao armamento não convencional a nível táctico em caso de conflito em larga escala.
 
Com uma imagem de “duro” e um passado de KGBista, Vladimir Putin mostra-se decidido a pôr ordem no país e a lavar as humilhações sofridas pela Rússia sob a liderança de Boris Ieltsin.14 Monta um sólido aparelho de poder, colocando fiéis, na maioria seus camaradas dos serviços secretos (os famosos silovki) em postos-chave no Kremlin e recupera o controlo do sector estratégico dos hidrocarbonetos, parcialmente retomado aos oligarcas que o haviam adquirido a “preços de amigo” nas privatizações da era Ieltsin. Conta ademais com um largo assentimento na população - 70 a 80 por cento de aprovação, ao que testemunham sucessivas sondagens.
 
Os alarmes no Ocidente multiplicam-se. Fala-se de um “endurecimento” do regime, ou mesmo de um “regresso ao sovietismo”. O vice-presidente Americano Dick Cheney fala de uma “deriva autoritária” na Rússia. Os métodos utilizados por Putin são denunciados como brutais. A imprensa ocidental aponta o dedo às medidas de intimidação contra quantos desafiam a linha do Kremlin, às medidas contra a livre expressão dos media.15
 
Mas os resultados da estratégia de Putin começaram a surgir. Beneficiando de uma situação excepcionalmente favorável no mercado dos hidrocarbonetos, o novo senhor do Kremlin recompôs os cofres do Estado, restabeleceu o crescimento, libertou a Rússia do fardo da dívida externa, relançou vários programas de investimento.16
 
 
Pragmatismo e realpolitik
 
“O que os russos têm procurado, por vezes de forma desajeitada, é uma aceitação do seu papel como iguais no novo sistema internacional e não como derrotados da guerra fria a quem podem ser ditadas condições” assinalaram Henry Kissinger and George Shultz, dois antigos chefes da diplomacia norte-americana, numa análise aos efeitos da acção russa na Geórgia.17
 
Ciente dos seus limites, a Rússia vai adoptar no plano externo uma atitude fundamentalmente pragmática, mobilizando as últimas armas que lhe restam - nuclear, recursos energéticos, capacidades na produção de armamentos e dissuasor nuclear.
 
A diplomacia russa revela uma nova agressividade. Moscovo lança uma série de iniciativas com vista a recuperar o espaço ocupado pela influência ocidental naquilo que a Rússia percebe como a sua esfera do seu interesse directo no Leste europeu e no espaço da antiga União Soviética.18
 
“O resultado - observa Dmitri Trenin, é uma política de potência típica do século XX nas condições da globalização do sec. XXI - uma actuação que nem sempre é bem acolhida pelos Estados do Ocidente ou da periferia russa”.19
 
O alargamento da NATO às antigas repúblicas do Báltico (2004) e as revoluções “coloridas” de 2004-2005, os movimentos que catapultaram para a presidência da Geórgia, do Kirguistão e da Ucrânia líderes pró-ocidentais - e em que Moscovo denunciou “mão” americana - azedaram ainda mais os ânimos.
 
A 24 de Dezembro de 2004, em plena “revolução laranja” em Kiev, e que levaria pouco depois ao poder Viktor Iuchtchenko, Putin acusou o Ocidente de estar apostado em “isolar a Rússia”. O espectro da “guerra fria” aflorou de novo as páginas dos jornais.
 
“É tempo de o Mundo levar a Rússia a sério, e os anos em que os russos andavam de mão estendida nos grandes fora internacionais, gratos por os deixarem participar, já lá vão” - proclamou Vladimir Putin numa conferência sobre política de segurança em Munique, a 10 de Fevereiro de 2007. O presidente russo criticou ainda as “acções unilaterais e frequentemente ilegítimas” dos EUA e acusou a América de “querer impor a sua vontade ao Mundo”.
 
Vladimir Putin multiplica discursos alarmantes sobre a situação internacional. Em Abril de 2005, perante a Assembleia Federal, Vladimir Putin considerou o colapso da URSS “a maior catástrofe geopolítica do século” - uma tirada que deu brado no Ocidente, e que foi apontada como a manifestação mais gritante de um “espírito de potência” (derjavnost).20
 
O recurso à arma energética, que tantos alarmes provocou no Ocidente, inscreve-se na mesma reacção àquilo que o Kremlin percebe como uma manobra de cerco do Ocidente e à política de “contenção”da potência russa posta em prática pelos EUA desde 1991.21 O petróleo e o gás representam com efeito para a Rússia um recurso vital rendendo de algum modo o papel que o poderio militar desempenhava no estatuto de superpotência da antiga URSS.
 
Os recursos energéticos da Ásia Central e do Cáspio, e em particular das condutas de escoamento para os mercados internacionais, desencadeiam uma acesa disputa. É o novo “Grande Jogo” em torno do petróleo e do gás e, ao mesmo tempo, do controlo estratégico do coração do continente eurasiático, e em que, a par de russos e americanos, se empenham a China, o Irão e Europa.22
 
 
As guerras do gás
 
A ilusão da “opção europeia” que seduziu por um momento as elites da Rússia já tinha cedido lugar a uma atitude de pragmatismo.23 Os processos de alargamento da NATO e da UE agravam os problemas no relacionamento entre a Rússia e a Europa, e os países do antigo bloco soviético que aderiram às instituições ocidentais vão estar no centro de vários contenciosos com Moscovo.24
 
Mas é ainda a questão da energia que alimenta os equívocos nas relações entre a Rússia e a Europa. A questão surge sobretudo a partir da Primavera de 2006 quando um corte de gás russo à Ucrânia se repercutiu numa séria crise no abastecimento a vários países europeus.25
 
A “guerra do gás” regressou em força a 1 de Janeiro do ano em curso quando Moscovo cortou de novo o gás à Ucrânia depois de as duas partes não terem conseguido chegar a acordo sobre o preço do gás russo a pagar por Kiev. A Rússia acusa ainda a Ucrânia de roubar o gás destinado à Europa. O braço de ferro entre Moscovo e Kiev resultaria num corte dos fornecimentos de gás russo à Europa.
 
Recorde-se que a Europa recebe um quarto dos seus abastecimentos em gás da Rússia, dos quais 80 % passam através da Ucrânia, e vários países na Europa Central foram duramente atingidos pela interrupção dos fornecimentos russos.
 
Face ao arrastar da situação, num Inverno particularmente frio, e à irredutibilidade de russos e ucranianos, a questão do gás russo em breve se transformaria numa crise diplomática.
 
Para além das questões de ordem técnica e financeira, no braço de ferro entre Moscovo e Kiev assume insofismáveis contornos políticos em que se cruzam as incidências da “revolução laranja”, o namoro de Kiev à NATO e a própria animosidade pessoal entre Vladimir Putin e Viktor Iuchtchenko - animosidade agravada no conflito georgiano quando Moscovo acusou Kiev de dar apoio político e mesmo militar a Saakashvili.
 
No duelo de propagandas entre Moscovo e Kiev um alto responsável da Gazprom afirmou mesmo que a Ucrânia estava a receber ordens de Washington depois de os EUA e a Ucrânia assinarem um acordo de parceria que inclui uma estreita cooperação energética.
 
Moscovo procura claramente explorar a rivalidade entre o presidente Viktor Iuchtchenko e a primeira-ministra Iulia Timochenko (dois antigos heróis da revolução laranja divididos desde então por uma rivalidade que tem envenenado a cena política ucraniana) jogando com a grave crise económica que atinge a Ucrânia e com um calendário político marcado por eleições legislativas e presidenciais.26
 
A questão da base de Sebastopol, na Crimeia, não será também ela alheia ao mal-estar entre Moscovo e Kiev. O acordo de arrendamento da base de Sebastopol à Rússia expira em 2017, daqui a oito anos, e a liderança de Viktor Iuchtchenko disse já que não tenciona renovar o acordo. A base de Sebastopol, sede da frota do Mar Negro, tem uma importância crucial para a Rússia, que já está a expandir o porto de Novorossiisk como medida de contingência.27
 
O episódio accionou uma vez mais os alarmes para a tentação do Kremlin de utilizar a arma energética como instrumento de pressão política e para os riscos de uma excessiva dependência europeia do gás russo.
 
O esforço de modernização e reequipamento das Forças Armadas a que se vem assistindo nos últimos anos representa outro instrumento crucial neste esforço de reafirmação estratégica da Rússia. E muitos peritos ocidentais viram na acção russa na Geórgia Agosto de 2008 um sinal claro de uma nova atitude de Moscovo no que toca ao emprego da força.
 
 
A sombra do “Exército Vermelho”
 
Apesar das insuficiências apontadas, a performance militar russa veio juntar-se a outros sinais de que, após um longo declínio, a capacidade militar russa merece de novo respeito e que um longo esforço de reforma e reequipamento das Forças Armadas começa a produzir resultados.
 
A questão da reforma das Forças Armadas russas arrasta-se, entre promessas e recuos, desde 1991. O descalabro militar da Tchetchénia (1994-96) viria ilustrar de forma dramática o descalabro do exército russo e accionar os alarmes. “A não ser feito nada (até ao ano 2003) o Exército terá perdido completamente a sua capacidade de defesa do país” - alertou o então ministro da Defesa Igor Rodionov.
 
Ainda presidente em exercício, Vladimir Putin elege a Defesa como uma das suas prioridades. As reformas lançadas pelo novo senhor do Kremlin estiveram porém longe de alcançar os resultados almejados. Os problemas são múltiplos. Desde a resistência dos generais a mudanças substanciais, à eventual hesitação em impor reformas impopulares a uma base de apoio institucional chave, à própria disputa de competências entre o ministério da Defesa e o Estado-Maior das Forças Armadas. A tudo isto juntam-se a corrupção endémica que se instalou nas Forças Armadas, a penúria de recursos financeiros e as chagas da própria sociedade russa.28
 
O recrutamento representa uma dor de cabeça para as chefias militares russas. A carreira das armas, muito prestigiada no tempo da URSS, atrai hoje cada vez menos mancebos. Os salários dos militares, mesmo várias vezes aumentados por Putin, continuam a ser muito baixos. A estrutura dos quadros continua distorcida. O exército russo conta mais de 800 generais e com uma percentagem desproporcionada de oficiais. Em contrapartida, estão por preencher vagas de dezenas de milhares de sargentos, que deviam ser a espinha dorsal do Exército.
 
Apenas uma pequena fracção (9 a 11 por cento) dos mancebos russos respondem efectivamente à chamada do Exército. Ou seja, cerca de 40 mil jovens escapam à incorporação recorrendo a inúmeros expedientes, entre eles corromper os oficiais no lugar certo. Dados das diversas incorporações mostram que são afinal os mais incapazes a responder, entre eles os menos aptos fisicamente, com menor escolaridade, desempregados, alcoólicos, drogados ou cadastrados.29
 
Depois, são as condições precárias dos recrutas e sobretudo o problema crónico da dedovchtchina, as violentas praxes que acolhem os novos recrutas - e que levam muitos à deserção, ao suicídio ou ao crime violento.30
 
O problema agrava-se ainda com a gravíssima crise demográfica que afecta a Rússia, com reflexos muito directos na área da segurança, na medida em que vai reduzindo de forma dramática a base de recrutamento.
 
A população russa está a diminuir a uma taxa de 800 mil almas por ano e a taxa de natalidade é tão baixa que torna impossível manter os efectivos das Forças Armadas ao seu nível actual.31
 
Na campanha para as presidenciais de 1996 Boris Ieltsin prometeu abolir o serviço militar obrigatório e que a Rússia teria um exército profissional até 2000. Doze anos depois, e face aos problemas de recrutamento, o cumprimento da promessa parece cada vez mais longínquo. Em 2003 o Ministério da Defesa aprovou uma proposta de reforma que reduzia drasticamente o número de razões para a isenção do serviço militar ao mesmo tempo que alargava o período de serviço obrigatório.
 
A única saída parece estar nos kontraktniki, os voluntários que cumprem serviço por contrato (de três anos), uma experiência iniciada nos anos 1990 ainda no reinado de Boris Ieltsin. Mas também essa solução tarda em produzir os resultados almejados. Em Junho de 2007 havia cerca de 60 mil profissionais nas Forças Armadas russas.32
 
O problema é que os salários e as condições de vida oferecidas aos kontratniki não são suficientemente atraentes para atrair muitos mancebos. E a qualidade e disciplina dos contratados deixa muito a desejar. Calcula-se que um terço dos kontratniki enviados para a Tchetchénia abandonam as fileiras a meio do contrato.
 
Outro domínio crítico, o da preparação dos militares. A falta de pessoal e problemas de disciplina e de organização condicionam muito a qualidade da instrução e do treino dos soldados russos. Num momento em que a preparação dos militares é cada vez mais sofisticada, o escasso tempo do serviço obrigatório dificilmente uma preparação adequada.33
 
 
Armamento de parada
 
A revisão do conceito estratégico militar russo operada em 2000 sob o impacto do ataque da NATO à Sérvia seria confirmada em 2003 e depois em Março de 2007 quando o Conselho de Segurança da Rússia decidiu que a principal ameaça à segurança da Rússia era, já não o “terrorismo global” mas antes de estruturas internacionais e “em particular da NATO”.34
 
Este sentimento do aumento das ameaças à segurança do país traduziu-se num aumento significativos das despesas militares russas, sobretudo a partir do ano 2000. Entre 2000 e 2007 o orçamento militar russo aumentou entre 25 e 30 por cento ao ano. Ainda assim, o orçamento para 2007 (22,7 biliões de dólares) representava menos de um décimo das despesas americanas com a Defesa.35 Este esforço era em boa medida dirigido à modernização dos equipamentos do antigo arsenal soviético. Mas esse equipamento foi “apodrecendo” ao longo dos anos de estagnação que se seguiu ao colapso da URSS. Em 2006 Vladimir Putin anunciou com grande eco mediático um vasto programa de reequipamento das Forças Armadas orçado em mais de 4 900 biliões de rublos (189 biliões de dólares) para o período de 2007 a 2015.
 
A aposta foi em boa medida dirigida à melhoria das capacidades nucleares russas. A tríade nuclear russa estava virtualmente em ruínas. A força de bombardeiros está à beira do colapso. A frota de submarinos está atacada pela corrosão e pela falta de manutenção - daí os desastres como o ocorrido com o Kursk, em Agosto de 2000.36
 
O grosso do armamento russo é considerado pelos peritos ocidentais obsoleto e com manutenção deficiente. A maior parte do inventário de tanques e aviões data ainda da guerra do Afeganistão. No momento em que as forças americanas apostam cada vez mais em veículos e aviões não pilotados e em robots preparados para o combate sem contacto, a Rússia continua a apostar em versões melhoradas de armas desenvolvidas nos anos 1970 e 80.37
 
O programa representa um avanço importante, mas que se afigura assim modesto e insuficiente para inverter a situação. Coloca-se ainda a questão da racionalidade destas opções e da eficácia na utilização dos novos equipamentos. Trata-se em muitos casos - dizem os peritos - de “programas de prestígio, de “equipamentos de parada” que absorvem recursos desproporcionados e de utilidade discutível em termos de credibilidade estratégica.38
 
O problema prende-se no fundo com a formulação de uma doutrina estratégica e de defesa coerente e actualizada. A ideia subjacente ao novo programa é que a Rússia deve ser capaz de fazer simultaneamente frente a um conflito em larga escala, uma guerra regional e vários conflitos locais, mas, à luz dos limitados recursos disponíveis, continua a reinar alguma confusão quanto ao tipo de unidades e de armamento para fazer face a conflitos tão diferentes.39
 
Em Setembro de 2008, na sequência do conflito da Geórgia, o presidente Dmitri Medvedev anunciou um projecto de renovação do dissuasor nuclear russo a desenvolver nos próximos 12 anos (até 2020) alicerçado num sistema de defesa aeroespacial e numa nova frota de submarinos nucleares - no que se anuncia desde já como a maior iniciativa da Rússia em matéria de defesa na última década. O primeiro-ministro Vladimir Putin tinha já anunciado um aumento de 28 por cento no orçamento militar russo para 2009.
 
Para já, e à luz dos dados disponíveis muitos analistas consideram exagerados os alarmes quanto ao potencial militar russo. “As notícias (relatórios) sobre o ressurgimento iminente do exército russo foram largamente exage­rados” - observa Zoltan Barany. “As forças armadas russas não serão capazes de desafiar a supremacia militar americana durante décadas”.40
 
Ainda assim, o Military Balance de 2008 do IISS considera que “as Forças Armadas russas estão a tornar-se mais capazes numa série de áreas-chave (…) com a melhoria do treino num vasto espectro de actividades, particularmente em interoperabilidade interforças, com foco na prontidão, mobilidade e interoperabilidade”, mesmo se esse processo se encontra “ainda numa fase inicial”. Rod Thornton vai mais longe e admite que as renovadas capacidades militares da Rússia podem afinal conformar uma “ameaça para os interesses políticos e militares ocidentais no futuro próximo”.41
 
As comparações com as forças da NATO, e em particular dos EUA, arriscam-se a cair num vício de análise. O potencial russo é, quantitativa e qualitativamente, incapaz de fazer face aos recursos bélicos dos EUA ou da NATO. Mas a agenda de compromissos militares dos Estados Unidos é bem mais vasta. E a crise da Geórgia parece mostrar que a Rússia recuperou de algum modo a capacidade e a vontade de exercer o seu poder bélico quando necessário…
 
 
Ainda a “guerra das estrelas”
 
Os projectos americanos de instalação na Europa Central de um escudo anti-mísseis (National Missile Defense - NMD), capaz de imunizar a América e os seus aliados contra um ataque nuclear, vieram criar um novo e pesado contencioso nas relações entre Washington e Moscovo.42
 
No início de 2007, a Casa Branca anunciou um entendimento prévio com Praga e Varsóvia (ratificado depois no Verão de 2008) para a instalação de um sistema de detecção na República Checa e de uma bateria de mísseis anti-míssil na Polónia.
 
A Rússia reagiu fortemente, denunciando o projecto como uma ameaça ao equilíbrio de forças vigente no teatro continental e agitando a ameaça de uma nova corrida aos armamentos.
 
Os EUA alegam que o sistema é crucial para a defesa do país e dos seus aliados no Velho Continente e se destina, não a afrontar a Rússia, mas a prevenir um eventual disparo nuclear da Coreia do Norte ou do Irão. Os responsáveis do Kremlin insistem que o sistema visa de facto manietar o arsenal estratégico russo e insistem que o “escudo” pode ser facilmente transformado numa plataforma ofensiva. Para Moscovo, a escolha da Polónia e da República Checa prolonga uma manobra de cerco da Rússia, com o pretexto inconsistente da ameaça iraniana.
 
Por outro lado, o escudo anti-mísseis (e desde logo a denúncia unilateral do ABM) põe exactamente em causa um ingrediente fundamental do estatuto de grande potência que a Rússia tanto tem feito para reassumir - a paridade nuclear com os EUA.
 
É certo que os russos exageram a dimensão dos desafios imediatos resultantes desses projectos. Reduzido desde a época da guerra fria mas sensivelmente melhorado e modernizado o arsenal não convencional russo dificilmente poderia ser neutralizado pelo escudo anti-míssil americano. Além disso, a Rússia dispõe já de um sistema anti-míssil mais ou menos operacional em particular na área de Moscovo.43
 
Mas a ameaça do escudo anti-míssil perturba tanto mais a Rússia quanto - tal como aconteceu em 1983 com a SDI (Strategic Defense Initiative - a “guerra das estrelas”) - os projectos de defesa anti-míssil ameaçam cavar ainda mais o fosso entre as capacidades militares dos dois países.44
 
Putin e o seu sucessor, Dmitri Medvedev, multiplicam alertas para as consequências do projecto, repetindo ameaças de retaliação sobre os eventuais parceiros da manobra americana e procurando mobilizar as reticências de vários países europeus.45
 
No discurso sobre o estado da nação, pronunciado horas depois da eleição de Barack Obama, a 5 de Novembro de 2008, Medvedev ameaçou instalar mísseis Iskander em Kalininegrado (enclave situado entre a Polónia e a Lituânia) “para neutralizar - se necessário - o sistema anti-mísseis” dos EUA.46
 
Ao mesmo tempo Moscovo tomou no final de 2007 a decisão de suspender os constrangimentos que a Rússia se impunha até então a título do tratado das forças convencionais na Europa (CFE), considerando que o tratado original, negociado bloco a bloco entre o defunto Pacto de Varsóvia e a NATO, estava ultrapassado. Moscovo rejeita nomeadamente qualquer linkage entre a ratificação do CFE e os compromissos russos de retirar os seus contingentes militares da Geórgia e da Moldova.47
 
O CFE está longe de ser caso único. A Rússia parece com efeito decidida a exigir a revisão de acordos assinados no pós-guerra fria e considerados hoje fortemente lesivos dos interesses russos.48
 
 
Os limites da “potência russa”
 
Ao mesmo tempo a Rússia multiplica acções de projecção estratégica. Vasos de guerra russos marcam de novo presença no oceano planetário, são reto­madas as patrulhas aéreas estratégicas sobre os céus do Atlântico e no Pacífico descontinuadas desde 1992. A romagem de Dmitri Medvedev por vários países da América Latina, em Novembro do ano findo, foi engalanada pela presença do cruzador Pedro o Grande e do contratorpedeiro Almirante Tchabernenko nas águas do Atlântico Sul.
 
O alcance real destas acções - prontamente desvalorizadas pelos analistas do Pentágono e do Departamento de Estado - parece muito limitado. Iniciativas como o regresso da frota de guerra russa às águas do Mediterrâneo ou o “regresso da Rússia à América Latina” não deixam, ainda assim, de assumir um alcance importante nos esforços do Kremlin para reassumir, ainda que a nível do simbólico, um estatuto de grande potência, capaz de desafiar a hegemonia americana no Mundo.
 
Os esforços de projecção estratégica empreendidos por Moscovo não escondem, por outro lado, vulnerabilidades de fundo que a actual crise económica veio pôr a nu. O efeito conjugado da crise financeira e económica em que o Mundo mergulhou neste final de 2008, conjugado com as sequelas da crise georgiana e com a queda dos preços do petróleo está a atingir severamente a Rússia. As reservas monetárias russas encolheram de um quarto desde Agosto e o rublo perdeu 19 por cento do seu valor face ao dólar. Fortemente dependente de factores como a oscilações do mercado energético e o investimento estrangeiro, a economia russa é particularmente vulnerável num cenário de recessão.
 
Sinal da gravidade da crise, Vladimir Putin sentiu-se obrigado a vir a público, a 20 de Novembro último, para prometer aos russos que tudo seria feito para evitar uma nova derrocada financeira como as que traumatizaram o país em 1991, com o colapso da URSS, e em 1998.
 
A Rússia carece de investimentos, debate-se com a fuga de capitais e de cérebros, com infra-estruturas obsoletas, com um acentuado atraso tecnológico em relação aos países industrializados. Os níveis de produção de petróleo e de gás poderão estar em risco se as infra-estruturas não forem modernizadas.49
 
E se as condições de vida melhoraram nos últimos anos na Rússia, a verdade é que a sociedade russa continua a braços com uma pobreza endémica (mais de um terço da população, segundo as estatísticas oficiais) e as desigualdades são cada vez mais cavadas, tanto mais que lógica de mercado desalojou as protecções sociais soviéticas. Daí alguns surtos de manifestações dos estratos mais desfavorecidos da população, sobretudo a partir de 2005.50 Mas a grave crise demográfica será ainda o desafio mais grave que a Rússia enfrenta. Segundo as Nações Unidas, a população russa poderá decrescer de 142 milhões de almas em 2002 para 120 a 135 em 2025 menos de 100 milhões em 2050.
 
A crise demográfica coloca uma série de problemas, desde questões de ordem económica até à alteração dos equilíbrios étnicos dentro do país e aos reflexos em matéria de Defesa. A situação é particularmente alarmante em áreas específicas. A diminuição da taxa de natalidade e a emigração estão também a provocar um acentuado declínio na população russa no Extremo Oriente - uma quebra de 18 por cento entre 1990 e 2004 - ao mesmo tempo que se assiste a uma forte imigração chinesa para a região. Dado o potencial económico e estratégico da região, e tendo em conta as reivindicações históricas da China sobre a mesma, Moscovo receia que a China acabe por assegurar uma influência dominante na área.
 
Mas é ainda no Sul - Cáucaso, área entre o Mar Negro e o Cáspio, e bacia do Volga - que o problema se afigura mais grave, dada a desproporção crescente nas taxas de nascimento das populações eslavas e muçulmanas. Os mais pessimistas alertam já que o Islão poderá tornar-se a primeira religião do país em 2050.
 
 
A armadilha georgiana
 
Ao tomar a decisão de reconhecer a Ossétia do Sul e a Abkházia como países independentes em 26 de Agosto de 2008, o Kremlin não terá medido exactamente os riscos desse precedente - que poderá mesmo vir a reflectir-se dentro das fronteiras da própria Federação Russa, e em particular no Cáucaso.51
 
A situação na Tchetchénia, no Daguestão e na Inguchétia está longe de controlada por Moscovo. Mesmo marginalizada, a resistência tchetchena mantém-se activa, mobilizando ainda vários milhares de membros nas montanhas do sul e alguns lideres proeminentes no exílio.
 
A política de mobilizar chefes dos clãs para manter uma relativa estabilidade política e social comporta sérios riscos. Trata-se de elementos que são ao mesmo tempo muitas vezes patrões dos tráficos ilegais na zona e cujo controlo é instável e problemático.
 
O presidente Ramzan Kadyrov tem cumprido o objectivo de manter a estabilidade na Tchetchénia. Mas em Moscovo há já quem se alarme com a crescente autonomia do número um de Grozny cujo poder depende em boa medida do controlo de milícias locais e de clientelismos diversos.
 
Moscovo tem permitido a líderes locais como Kadyrov a promoção de um significativo renascimento religioso, mas nem por isso a questão islâmica é menos preocupante no Cáucaso. À acção de grupos radicais islâmicos, com influência crescente no Cáucaso do Norte, particularmente entre os jovens, junta-se uma grave crise social, marcada por protestos populares contra a violência, corrupção e más condições económicas.52
 
Tudo isto obriga enfim a Rússia a um alerta permanente e a manter uma forte presença militar e policial na região - cerca de 80 mil homens.
 
A acção russa na Geórgia “significa que a Rússia emerge como uma grande potência” - observou George Friedman em plena intervenção russa na Geórgia. “Não um poder global como era antes, mas um poder que tem que ser tomado muito a sério.”
 
O êxito militar na Geórgia teve porém um preço elevado para Moscovo. A Rússia arrisca-se a um isolamento que ameaça mesmo pôr em causa alguns dos avanços diplomáticos dos últimos anos, e a um relacionamento cada vez mais tenso com os vizinhos.
 
A acção russa foi recebida com reservas no espaço da CEI. E o encontro do Grupo de Xangai a 29 de Agosto, no auge da escalada de recriminações entre a Rússia e o Ocidente, representou um sério revés para Moscovo.53 Os parceiros da Rússia na organização limitaram-se a um apoio vago e a insistir no diálogo como via para ultrapassar a crise.54 Como observou o analista russo Dmitri Trenin, talvez tenha sido afinal Putin, mais do que Sakashvili, a cair numa armadilha na Geórgia.
 
Putin, Medvedev e seus pares estão conscientes de que não dispõem de meios para fazer a História andar para trás por meios militares. A Rússia cumpriu escrupulosamente o prazo acordado para a retirada das suas forças da Geórgia (8 de Outubro). Absorvido o primeiro impacto do conflito com a Geórgia e das reacções do Ocidente, Moscovo tem alternado atitudes de intransigência e gestos de apaziguamento. Dmitri Medvedev fez aliás questão de lamentar em diversas ocasiões que a Rússia estava a ser “empurrada” para uma “via de confronto” que não escolhera nem desejava.
 
A progressiva normalização das relações com a União Europeia e a NATO e a proximidade com Berlim premeiam de algum modo a estratégia russa.55 E apesar da escalada retórica entre Washington e Moscovo e de um virtual congelamento no diálogo entre as duas partes vão surgindo pequenos gestos de reaproximação, mesmo no plano militar.56
 
 
Novos protagonistas
 
A escalada retórica propiciada pelo confronto eleitoral (e pelo fim de mandato na Casa Branca) mobilizou mesmo apelos públicos à prudência de figuras gradas da política externa americana. Figuras como Henry Kissinger e George Shultz vieram a público alertar que qualquer política de marginalização ou de demonização da Rússia é “a prazo insustentável”.57
 
“Não é nem praticável nem desejável isolar um país que se estende por um oitavo da superfície terrestre, com fronteiras com a Europa, a Ásia e o Médio Oriente, e que dispõe de um arsenal de armas nucleares comparável ao dos Estados Unidos” - sublinham os dois antigos secretários de Estado, alertando por outro lado para o facto de boa parte dos países da Europa Ocidental se sentirem pouco à vontade com essa política.
 
Kissinger e Shultz questionam, por outro lado, a urgência de integrar a Geórgia e a Ucrânia na NATO defendendo antes uma rápida integração europeia, sobretudo da Ucrânia.
 
A candidatura georgiana (tal como a da Ucrânia), fortemente apoiada por Washington, dividiu os aliados europeus na cimeira euro-atlântica de Bucareste, em Abril último. E as reticências de franceses e alemães, que preferem clara- mente evitar confrontar a Rússia, viram-se reforçadas pela aventura militar lançada por Saakashvili na Ossétia do Sul.
 
Anatol Lieven sublinhou no Financial Times que o Ocidente: “não deve fazer promessas que não pode nem quer cumprir, empurrando os outros para a frente”. E o conservador Bruce Anderson, colunista do Independent. O analista sublinha ainda que “a questão da NATO incentivou o aventureirismo georgiano e os russos concluíram que era altura de lhes dar, aos georgianos e ao Ocidente, uma lição”. 58
 
Mais, a Geórgia poderá mesmo ter o efeito de obrigar a Aliança Atlântica a uma revisão global da sua política de expansão a Leste.59 Vozes autorizadas como Henry Kissinger e George Shultz têm ademais defendido a perspectiva de se atribuir cada vez mais à União Europeia a gestão da periferia russa - um pouco à imagem do que aconteceu durante a crise da Geórgia.
 
Resta enfim avaliar os efeitos das mudanças políticas no Kremlin e da tomada de posse de uma nova Administração na Casa Branca sobre as relações russo-americanas. Para já, nem a substituição de Vladimir Putin por Dmitri Medvedev na chefia do Kremlin nem os efeitos da crise económica parecem ter provocado qualquer inflexão substancial nos objectivos estratégicos de Moscovo.
 
O tom das intervenções de Dmitri Medvedev será talvez menos belicoso do que o do seu antecessor, mas nem por isso menos ambicioso e inflexível.
 
Em Berlim o presidente russo insistiu, no início de Junho de 2008, que “o atlantismo já teve os seus dias” e advogou uma nova troika em que Rússia, a União Europeia e os EUA estabeleceriam como parceiros da mesma igualha a agenda da segurança europeia e das questões económicas. E no Fórum Económico de S. Petersburgo, defendeu o reforço do papel da Rússia na economia mundial.
 
As posições assumidas por Medvedev na crise da Geórgia parecem enfim confirmar uma ideia virtualmente unânime entre os peritos: o novo presidente russo limitar-se-á a seguir as pisadas do seu antecessor, e é nas mãos de Putin que continuarão em grande medida os destinos da Rússia. Foi de Pequim e pela boca do agora primeiro-ministro Vladimir Putin que chegou a primeira reacção russa oficial ao ataque georgiano à Ossétia do Sul. Dmitri Medvedev “não substituiu Putin como presidente - diz Stephen R. Sestanovitch. Limitou-se a assumir o título”.60
 
 
“Semi-guerra fria”
 
Os sinais emitidos por Moscovo nas primeiras semanas da era Obama parecem traduzir uma atitude de expectativa reservada. Fiel aos seus pergaminhos, e depois do acolhimento frio à eleição de Barack Obama, o Kremlin não tardaria a regressar ao jogo do cravo e a ferradura.61
Moscovo saudou as primeiras iniciativas do novo presidente americano, classificando de “sinais encorajadores” as promessas de diálogo com o Irão e de “um sinal fresco” as propostas de Washington em matéria de controlo de armamentos.62
 
Dias antes Moscovo emitira sinais de que estaria disposta a desbloquear as vias de reabastecimento das forças da NATO no Afeganistão através da Rússia. E a agência Interfax garantia, invocando uma fonte anónima do M. Defesa, que tinha sido abandonado o plano para instalar uma bateria de mísseis Iskander em Kalininegrado.63
 
E é neste clima encorajador que, a 4 de Fevereiro, surge a notícia de que o presidente kirguiz Kurmanbek Bakiyev ordenara o encerramento da última base permanente americana na Ásia Central - uma via vital para o reabastecimento do Afeganistão. Um verdadeiro balde de água fria para a Casa Branca, no momento em que a Administração Obama projecta duplicar o contingente militar americano no Afeganistão, e quando as vias de abastecimento por Sul, através do Paquistão e do célebre Khyber Pass, estão cada vez mais ameaçadas pelos talibã.
 
A intervenção de Joe Biden na Conferência de Segurança de Munique (7-8 de Fevereiro) forneceu as primeiras indicações da política de Barack Obama face à Rússia, adiando de algum modo as expectativas de uma viragem significativa.
 
O vice-presidente americano disse que “era tempo de carregar no botão nas relações com a Rússia” para “travar uma perigosa viragem” nas relações entre os dois países. Mas não emitiu qualquer sinal de reorientação da política americana no que toca aos pomos de discórdia a que Moscovo se mostra mais sensível.
 
Contrariando as previsões dos mais optimistas, Biden disse que o projecto do escudo anti-mísseis se iria manter e lançou um aviso velado a Moscovo garantindo que a América não toleraria um mundo dividido em “esferas de influência”.64 Logo depois de se ter avistado com o vice-primeiro ministro russo Serguei Ivanov, Biden recebeu o presidente georgiano Mikheil Saakashvili a quem repetiu que a Geórgia (tal como a Ucrânia) era livre para aderir à NATO assim que o entendesse…
 
A dar fé à tese da “mão” de Moscovo, o anúncio do encerramento da base de Manas surge sobretudo como um importante trunfo negocial de Moscovo à luz do papel-charneira que caberá cada vez mais à Rússia no que toca às vias de reabastecimento das forças da coligação ocidental no Afeganistão.
 
A fase difícil que a economia russa atravessa não impede a Rússia de jogar, oferecendo auxílio financeiro a vizinhos em dificuldades ou mesmo arriscando algumas perdas como as envolvidas na “guerra do gás” com a Ucrânia
 
E as iniciativas, amiúde desconcertantes e aparentemente contraditórias tanto de Moscovo como de Washington surgem como as primeiras salvas do que se anuncia com uma longa e complexa negociação entre russos e americanos, envolvendo dossiers tão delicados como o Afeganistão, o Irão, o controlo de armamentos, a expansão da NATO a Leste e sobretudo o mal-estar de Moscovo perante a influência americana no espaço pós-soviético.
 
Trata-se, no fundo, de rever a “herança de Bush” e de tentar emendar o estado de “semi-guerra fria” a que chegaram as relações russos americanas, para retomar a expressão de Sergei Rogov, director do Instituto para os EUA e Canadá de Moscovo.65
 
 
*      Mestre em História Contemporânea - século XX, Universidade Nova de Lisboa. Jornalista. Actualmente, é docente no Instituto Politécnico de Tomar (Curso de Comunicação Social - ESTA) e no ISCTE (pós-licenciatura em “Comunicação e Gestão de Crises”).
 1 As duas regiões escapavam ao controlo de Tbilissi desde os confrontos do início dos anos 1990 e o acordo de cessar-fogo patrocinado 1992 em por Boris Ieltsin e o presidente georgiano Eduard Chevarnadze congelou desde então a situação no terreno.
 2 A modernização do Exército georgiano conta com a assistência de países europeus, da Turquia, de Israel, e sobretudo dos EUA. O produto mais visível desse apoio é a 1ª Brigada, de (cerca de dois mil homens), formada nos padrões da NATO. Empenhada no Iraque, a 1ª Brigada será repatriada por aparelhos americanos logo no início das hostilidades com a Rússia.
 3 As forças russas incluíam dois batalhões de infantaria motorizada, reforçadas por unidades de carros de combate e tropas pára-quedistas, num total de cerca de 10 mil homens, com apoio aéreo e de artilharia.
 4 Washington prestou um apoio pronto ao líder georgiano desde o início do conflito. Logo a 2 de Setembro o presidente Bush propôs um bilião de dólares de auxílio humanitário e apoio económico à Geórgia e duas semanas mais tarde uma delegação de 26 embaixadores da Aliança Atlântica marca ostensiva presença em Tbilissi a assinalar o primeiro Conselho NATO-Geórgia.
 5 Meses mais tarde, no discurso de 5 de Novembro sobre o Estado da Nação, o presidente russo Dmitri Medvedev diria que o conflito da Geórgia fora “uma consequência da política arrogante da administração norte-americana” e que a crise foi manipulada como “pretexto para introduzir no Mar Negro navios de guerra da NATO” e para “impor ainda mais depressa à Europa o sistema de defesas anti-míssil americano”.
 6 O braço de ferro russo-americano em torno da Geórgia assumiria aliás outras dimensões com a chegada ao aeroporto de Tbilissi de dois C-17 americanos com medicamentos e equipamentos de apoio aos refugiados georgianos desalojados pelo conflito, a 27 de Agosto - primeiro passo de uma operação de auxílio humanitário “musculado” através uma força naval e de um dispositivo armado.
 7 Vários analistas observaram que dificilmente Saakashvili poderia ter lançado a ofensiva contra Tskhinvali sem conhecimento do Pentágono. Na ocasião encontravam-se em território georgiano 125 conselheiros militares americanos, bem como uma força de cerca de mil homens que participaram num exercício bilateral. Dados vindos posteriormente a lume na BBC e nas páginas do New York Times e do Financial Times e relatórios da OSCE e de outras organizações internacionais viriam confirmar as suspeitas de que Washington teria caucionado a aventura militar georgiana.
 8 A Rússia tinha realizado em Junho a Norte da fronteira da Geórgia importantes exercícios militares (“Cáucaso 2008”), e o analista Pavel Felgenhauer observou que as forças russas tinham realizado manobras na região poucos dias antes do ataque georgiano, o que poderá confirmar a ideia de que a acção russa teria sido planificada com antecedência.
 9 A narrativa dirigida à própria opinião pública russa revelou-se em contrapartida mais eficaz, colocando a Rússia no papel de vítima, e insistindo em comparar a acção da Rússia às “intervenções humanitárias” ocidentais, e com as televisões a passarem vezes sem conta as imagens de Vladimir Putin em jeans e blusão desportivo no lado russo das montanhas do Cáucaso a ouvir as histórias aterradoras dos refugiados.
10 “Les premières leçons d’ une guerre do XXI siècle”, Defense et securité internationale, nº 41, Octobre 2008.
11 Alexei G. Arbatov,”The Kosovo Crisis: The End of the Post Cold War Era”, Occasional Paper, the Atlantic Council of the United States, Washington, DC, Março 2000.
12 Ver Arnaud Dubien, La Russie et la crise du Kosovo, in Pascal Boniface (sous la dir. de) Kosovo: bilan et perspectives, La Revue internationale et stratégique, Inverno de 1999-2000.
13 A ofensiva russa é anunciada como uma acção “anti-terrorista” depois de uma série de atentados em Moscovo e no Daguestão atribuídos aos separatistas tchetchenos. O ataque, iniciado com uma semana de bombardeamentos aéreos, devastará a Tchetchénia e deixará pesadas baixas entre a população civil.
14 Vladimir Putin assume a pasta de presidência interina a 31 de Dezembro de 1999 e verá o seu cargo ratificado pelas eleições de Março do ano seguinte.
15 A vaga de assassinatos de jornalistas em 2005 e 2006, e em particular o caso de Anna Politovskaia, morta a 7 de Outubro de 2006, alimenta os piores receios. Não há quaisquer provas do envolvimento directo das autoridades, mas, aos olhos dos media ocidentais, o Kremlin não se livra de responsabilidades.
16 Jacques Sapir, “La situation économique de la Rússia en 2006” in “Tableau de bord dês pays d’Europe centrale et Orientale”, Études du CERI, 132, Décembre 2006, citado por Jean-Marie Chauvier (op. cit.)
17 International Herald Tribune, 30 de Setembro de 2008.
18 Moscovo respondeu procurando cerrar cumplicidades com países da área: tratado de paz e amizade com o Irão, acordos com o Iraque em 1995 no domínio do nuclear e da exploração petrolífera, reforço de cooperação com a Índia e sobretudo a aproximação à China. Ver, de Richard Weitz, “Russia’s institutional offensive in Central Asian security”, Jane’s Intelligence Review, Vol. 18, Nº 5, Maio de 2006.
19 Dmitri Trenin, “Russia redefines itself and its relations with the West”, The Washington Quarterly, Center for Strategic and International Studies, Washington, Vol. 30, Nº 2, Primavera de 2007. Com o 11 de Setembro de 2001 Washington e Moscovo viveriam por um momento de novo um clima de cooperação. Vladimir Putin apoiou a “cruzada” anti-terrorista de George Bush. Ainda assim, Moscovo nunca deixou de olhar com desconfiança a implantação militar dos americanos na Ásia Central e depois no Cáucaso.
20 Dmitri Trenin, “Pragmatic power: Russia’s assertive foreign policy”, Jane’s Intelligence Review, Jane’s Information Group, Surrey, Vol. 20, Nº 1, Janeiro de 2008.
21 Chauvier, Jean-Marie, La “nouvelle Russie” de Vladimir Poutine: nostalgie de puissance rêve d’autonomie, Le Monde Diplomatique, Fevereiro de 2007.
22 Ver, de Subodh Atal, “The New Great Game”, The National Interest, nº 81, Outono de 2005 e, de Richard Weitz, “Averting new Great Game in Central Ásia”, The Washington Quarterly, Center for Strategic and International Studies, Washington, Vol. 29, Nº 3, Verão de 2006 Ver ainda, de Larisa Homarac e Roger E. Kanet, “O desafio dos Estados Unidos à influência russa na Ásia Central e no Cáucaso”, Relações Internacionais, Nº 12, Dezembro de 2006).
23 O ano de 2007 seria marcado por sucessivas crises, em particular com a Grã-Bretanha. Moscovo não escondeu a sua irritação perante o asilo concedido por Londres a figuras como o oligarca Boris Berezovski ou lideres separatistas tchetchenos como Ahmed Zakayev. E o caso da morte do exilado russo Andrei Litvinenko em Novembro de 2006 gerou uma grave crise diplomática entre Moscovo e Londres.
24 As difíceis relações a Polónia, a Estónia e a Lituânia com Moscovo geraram embaraços diplomáticos nas relações entre a Rússia e a Europa entre 2006 e 2008, incluindo repetidas ameaças de veto ou de boicote às negociações em curso entre Moscovo e Bruxelas. Ver, para a questão das relações entre a Rússia e a Europa, de Averre, Derek, “Russia and the European Union: convergence or divergence?”, European security, Vol.14, Nº 2, Junho de 2005 e, de Yves Pozzo di Borgo,”Union Europénne-Russie: quelles relations”? Défense Nationale, Nº 8-9, Agosto-Setembro de 2007.
25 Kenneth Murphy, “Gasoduto ou armadilha: a Europa e a disputa de gás entre a Rússia e a Ucrânia”, O Mundo em Português, EEIINº 61 (Fevereiro-Março de 2006.
26 Ver, de James Sher, “La révolution orange: un défi pour l’Ukraine, la Russie et l’Europe”, Politique Étrangère, IFRI, Nº 1, Primavera de 2005, e de Stephen Larrabee, “Ukraine at the crossroads”, The Washington Quarterly, CSIS, Vol. 30, Nº 4, Outono de 2007.
27 A questão da Crimeia e da base de Sebastopol esteve na origem de uma crise grave nas relações russo-ucranianas em 1995-96. A Rússia reconhecerá formalmente as fronteiras com a Ucrânia, incluindo a península da Crimeia e os dois Estados chegavam a acordo quanto à partilha da antiga esquadra soviética do Mar Negro e às condições de arrendamento da base de Sebastopol à frota russa (acordo de Sotchi, de Junho de 1996). Ver: James Sheer, “Russia-Ukraine Rapprochement?: The Black Sea Fleet Accords”, Survival, Outono 1997.
28 Barany, Zoltan, The politics of Russia’s elusive defense reform, Political Science Quarterly, Academy of Political Science, Vol. 121, Nº 4, Inverno de 2006-2007.
29 Declarações de Janeiro de 2006 do general Igor Pusanov, vice-ministro da Defesa, citadas por Alexis Bautzmann in “Armée russe. L’ illusion de la puissance”, Diplomatie, nº 34, Setembro 2008.
30 Segundo o Ministério da Defesa na primeira metade de 2007 morreram 262 militares, dos quais 37 em combate (na Tchetchénia), sete em resultados de praxes violentas, e 147 vítimas de suicídio.
31 Mark Galeotti, op. cit.
32 Note-se ainda assim que as forças russas que intervieram na Geórgia eram inteiramente profissionais.
33 O número de disparos de espingarda de assalto feito por cada recruta é reduzido ao mínimo, o que põe em causa o domínio da arma individual. Os pilotos voavam em 2003 menos de um décimo do número de horas de treino segundo os padrões ocidentais - o que não será alheio ao elevado número de acidentes.
34 O próprio processo de reestruturação das forças russas sofreu recuos. A aposta em unidades mais pequenas e flexíveis destinadas a fazer frente a actores como grupos terroristas e rebeldes armados deu lugar à reabilitação de uma força mais maciça destinadas a travar um conflito em larga escala.
35 Segundo os dados do SIPRI Yearbook 2008, em 2007 os países com despesas militares mais elevadas eram encabeçados pelos EUA com 547 biliões de dólares, ou seja 45 por cento das despesas mundiais. A Rússia vinha em sétimo lugar (continuando atrás de Grã-Bretanha, China, França, Japão e Alemanha) com 35,4 biliões, ou seja três por cento.
36 Segundo estatísticas de 2006 do Ministério russo da Defesa 60 por cento dos ICBMs instalados tinham já ultrapassado o prazo-limite, apenas 30 por cento dos caças estavam minimamente operacionais, cerca de metade dos tanques esperava reparações de fundo. Ver Fedotov, Yury, “Les forces nucléaires russes: évolution et perspectives”, Politique Étrangère, IFRI, Nº 2, Paris, 2005.
37 Barany, op. cit. O programa inclui a aquisição de 36 mísseis SS-27 (Topol-M2) para as forças de mísseis estratégicas, 50 bombardeiros, o SS- 400, considerado o mais capaz sistema de mísseis anti-aéreos do mundo, um novo sistema de mísseis tácticos Iskander para o exército, o novo helicóptero Mi-28Ni (Night Hunter) 31 tanques T-90,100 mil veículos e 31 navios de superfície e submarinos. Está ainda a ser concebida toda uma nova classe de navios, incluindo, um porta-aviões, bem como sistemas de mísseis balísticos SS NX-30 (Bulava).
38 Alexis Bautzmann, “Armée russe. L’ illusion de la puissance” (op. cit.)
39 Barany, Zoltan, Resurgent Russia? A still-faltering military, Policy Review, Washington, Nº 147, Fevereiro-Março 2008. Ver ainda Galeotti, Mark, Russian military reform seeks advances on all fronts, Mark Galeotti, Jane’s Intelligence Review, Jane’s Information Group, Surrey, Vol. 18,
Nº 4, Abril de 2006.
40 Ibidem.
41 Thornton, Rod, Russian military: toothless bear? The World Today, The Royal Institute of International Affairs, Vol. 63, Nº 6, Junho de 2007.
42 Dois meses depois do 11 de Setembro George Bush denunciou o tratado ABM (Anti-Ballistic Missile), de modo a ficarem com as mãos livres para desenvolverem dispositivos que os tornassem invulneráveis a ataques com mísseis balísticos nucleares, nomeadamente a ataques nucleares limitados de estados “pária”. O projecto do National Missile Defense (NMD) seria anunciado oficialmente a 17 de Setembro de 2002.
43 Em Agosto de 2007 Putin anunciou que a Rússia lançara um programa para aumentar as suas próprias defesas estratégicas. Foi colocado em alerta na oblast de Moscovo um novo sistema, o S-400 Triomf designado para derrubar bombardeiros furtivos e instalado um novo radar de alerta prévio na área de S. Petersburgo em Dez/06, primeiro estágio de um programa de alerta prévio a ser instalado até 2015.
44 Os dirigentes do Kremlin não esquecerão decerto a forma como o desafio da SDI contribuiu para o colapso da defunta URSS. Para já, e um pouco como aconteceu nos anos Reagan, os EUA pressionam assim os orçamentos e a estratégia de desenvolvimento da Rússia, obrigando o Kremlin a desviar para a Defesa uma importante fatia de recursos.
45 Vários países europeus alertaram para a necessidade de negociar com Moscovo. A Hungria recusou qualquer instalação para evitar hostilizar a Rússia que é a fonte dos seus abastecimentos de energia. E Angela Merkel invocou a necessidade de um acordo político prévio no seio da NATO.
46 O Iskander, míssil táctico de elevada precisão, tem uma raio de acção de 400 kms.
47 O CFE, assinado em 1990 pela NATO e pelo defunto Pacto de Varsóvia, previa a eliminação ou o reposicionamento de grande parte do potencial bélico convencional (tanques, peças de artilharia, veículos blindados e aviação de ataque) ao longo das antigas linhas leste-oeste. Em 1999 o acordo seria renegociado, tendo em conta os novos dados da dissolução do Pacto de Varsóvia e do colapso da própria URSS.
48 O START II foi sempre contestado por vários estrategos russos, que consideram o acordo largamente desfavorável à Rússia. O START II estabelece um limite de 3 000 a 3 500 ogivas nucleares para cada parte. Mas pune sobretudo os ICBM (mísseis baseados em terra), em que a Rússia tem certa vantagem, e deixa maior margem ao SLBM (mísseis baseados em submarinos), em que os EUA têm larga supremacia.
49 A braços com graves problemas de investimento, a Gazprom carece de meios para desenvolver novos campos com a rapidez necessária, quando os antigos começam a ficar esgotados e teve já de importar gás da Ásia Central para cumprir os contratos de entrega aos seus clientes.
50 No Inverno de 2007 dezenas de milhares de pessoas vieram para a rua em várias cidades russas para exigir transportes e medicamentos gratuitos, bolsas de estudo, redução das tarifas da água e da electricidade.
51 Os receios de uma nova escalada no Cáucaso pareceram aliás confirmar-se quando, a 18 de Outubro, dezenas de soldados russos teriam sido mortos numa série de três emboscadas na Inguchétia, perto da fronteira com a Tchetchénia. A Inguchétia, pequena república situada entre a Ossétia do norte a Tchetchénia, representa hoje um dos territórios mais instáveis de todo o Cáucaso russo.
52 Grupos como a Sharia Jammat têm vindo a aumentar as actividades na Inguchétia e ao longo de 2008 multiplicou emboscadas a forças policiais e comboios militares, provocando a morte a vários altos oficiais.
53 A Organização de Cooperação de Xangai, criada em 1996 com o nome de “grupo de Xangai”, integra a Rússia, a China, o Cazaquistão, o Kirguistão, o Tadjiquistão e o Uzbequistão. A Índia, o Irão, a Mongólia e o Paquistão têm o estatuto de observadores.
54 A atitude de reserva da China e a insistência de Pequim no princípio da integridade das fronteiras foram sublinhadas pelos observadores, que viram mesmo nessa atitude um ponto de viragem e um sinal claro de distanciamento da China em relação a Moscovo.
55 O encontro de 3 de Outubro entre Dmitri Medvedev e Angela Merkel reforçou a parceria russo-germânica em matéria de cooperação económica, reiterou o apoio ao controverso gasoduto North Stream) e confirmou as reticências germânicas ao alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia. Sobre as opções da Alemanha face à Rússia e à NATO, ver a análise de George Friedman, “The German Question”, Stratfor Today, de 6 de Outubro de 2008.
56 A 20 de Outubro de 2008 altos responsáveis militares russos e americanos encontraram-se discretamente em Helsínquia para tentar um relançamento do diálogo entre os dois países.
57 International Herald Tribune, 30 de Setembro de 2008.
58 A NATO anunciou na cimeira ministerial de 2 e 3 de Dezembro de 2008 um mecanismo para promover reformas políticas e militares na Geórgia e na Ucrânia com vista a uma eventual adesão à aliança, mas sem assumir qualquer compromisso ou horizontes definidos.
59 Ver Asmus, Ronald D. Europe’s eastern promise: rethinking NATO and EU enlargement Foreign Affairs, Council on Foreign Relations, New York - Vol. 87, Nº 1, Janeiro-Fevereiro de 2008.
60 “Medvedev Trying to Carve Out a New Role as President to help modernize Nations”, Foreign Affairs, Verão de 2008. Uma proposta de emenda constitucional que alargaria o mandato do presidente de quatro para seis anos relançou aliás, em Novembro último, especulações sobre um eventual regresso de Vladimir Putin ao Kremlin.
61 No momento em que o Mundo inteiro saudava a vitória de Barack Obama nas presidenciais americanas de 5 de Novembro, em Moscovo o sucessor de Putin, Dmitri Medvedev pronunciava um discurso em tom particularmente duro e de desafio face a Washington. O discurso de Medvedev, centrado uma vez mais na questão do escudo anti-mísseis, chocou os observadores e mereceu reparos de vários líderes europeus.
62 O Times de Londres noticiou no início de Fevereiro que Washington estaria a analisar um conjunto de propostas que poderiam ir até a uma redução de 80 por cento dos arsenais nucleares das duas partes. Parecem assim confirmar-se as especulações dos analistas de que o mandato Obama poderia relançar as negociações sobre desarmamento nuclear - um dossier que teve um destaque permanente nas relações americano-soviéticas nos anos 1980 e 1990, mas mais ou menos abandonado desde então.
63 Dois dias depois da tomada de posse de Barack Obama, Moscovo ameaçou instalar mísseis Iskander no enclave de Kalininegrado a fim de “neutralizar” o “escudo” americano na Polónia e na República Checa.
64 “Continuaremos a desenvolver as defesas anti-mísseis para fazer face a uma crescente capacidade iraniana, desde que a tecnologia dê provas e os custos se justifiquem” - disse Joe Biden em Munique. Qualquer recuo americano na matéria seria aliás problemático, depois dos acordos com a Polónia e a República Checa, já que poderá aparecer como um recuo face às pressões russas.
65 Citado pelo International Herald Tribune de 5 de Fevereiro de 2009.
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2009-07-01
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia