Os Zombo na Tradição, na Colónia e na Independência (IV Parte). Os Zombo na Independência e o "Tempo Escasso do Paraíso".
Antes de nos debruçarmos propriamente sobre a independência de Angola e a guerra pelo poder político, no seio dos zombo, parece conveniente dedicarmos um último apontamento aos europeus ali residentes, sendo alguns filhos dessas mesmas terras. Sabemos que as palavras que proferimos ou escrevemos levam, ainda hoje e, por vezes, a algumas considerações que não são certamente as que estavam, na nossa intenção, quando as proferimos. É o caso da palavra ‘refugiados’, como por exemplo, quando dizemos que os residentes europeus das terras Zombo se refugiaram em Luanda. Não vale a pena divagar sobre o assunto, mas dizia-se ‘baixinho’: “É mentira dela minha senhora, ela não quer que você fique. Sozinha comigo, na cozinha, disse-me: se ela ficar, só fica para ganhar dinheiro para o caixão”. Uma grande maioria desses europeus refugiou-se, em Portugal, acalentando a legítima esperança de voltar.
Todavia, o tempo foi passando e o vento que os levaria de regresso a Angola não soprou. Especialmente a nova ideologia política, o marxismo e o partido único, como ainda novos elementos da jovem estrutura social e política angolana, foram entraves fundamentais que inviabilizaram esse tão desejado regresso. A esmagadora maioria das pessoas ditas ‘retornadas’, com mais de 50 anos, já não tinham a elasticidade mental e vigor físico suficiente, para ver ruir todo o seu labor e recomeçar. A geração dos 30 aos 50 anos, que estava com ‘o sangue na guelra’, não tinha mais nada a perder e necessitava urgentemente de estabilizar as famílias e criar os filhos, aproveitou a circunstância do clima instaurado do célebre PREC - Processo Revolucionário em Curso - que se situou, no tempo, entre a ‘revolução dos cravos’ e a aprovação da Constituição Portuguesa. O PREC criou um profundo mal-estar com o desmantelamento das oligarquias económicas então vigentes. Até mesmo os pequenos proprietários entraram em pânico e muitos também se refugiaram no Brasil, já outros, partiram para o Canadá, EUA, entre outros países. Este período revolucionário foi uma prioridade da política do Partido Comunista Português, com acções típicas, especialmente com a ocupação de casas, terras e fábricas.
O acolhimento que as respectivas famílias lhes proporcionaram à chegada e o apoio do recém-criado organismo denominado IARN - Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais - foram factores essenciais para o necessário auxílio a centenas de milhares de portugueses, que regressaram das ‘províncias ultramarinas’. Tiveram então de apreender o que significava a queda do Estado Novo e a instauração da democracia, que estiveram na base do processo de descolonização. Foram estas, razões suficientes para que os ‘retornados’ comprassem posições agrícolas, comerciais e industriais de que, à pressa, os anteriores proprietários e empresários se estavam a desfazer.
Neste momento, passemos a falar dos zombo e da sua incontida euforia, da sua tão esperada alegria sob o lema de ‘Angola é nossa’, de finalmente entrarem na posse efectiva de bens que estiveram, na base, de tantos prometimentos da UPA e dos grandes chefes da ALLIAZO. Agora, podiam regressar à sua ‘Terra Prometida’. Nada os impediria de ser felizes. Infelizmente, a paz não duraria muito tempo. Desta vez, a luta pela posse do poder político e da terra seria incomensuravelmente mais sangrenta e destruiria decerto uma grande parte do sonho de duas gerações de zombos.
O nosso ângulo de visão e de opinião foi-nos confirmado por muito poucas pessoas que acederam conversar connosco, na cidade do Uije, em 2005.
Desta forma, em primeiro lugar, optámos por expor ao que íamos com a maior clareza, o que se revelou bom, não só porque todos sabiam que estávamos alojados em casa do bispo D. Francisco, ou seja, na Diocese, mas também porque nos viram e ouviram falar frequentemente em kikongo. Este tipo de proximidade linguística, especialmente as expressões zombo e os gestos que acompanham o discurso foram sempre uma mais-valia. A nossa idade (67 anos), os cabelos brancos, o respeito dedicado aos mais velhos e a condescendência com os mais novos completaram a ideia francamente favorável que deixámos ficar das nossas intenções. Não os queremos então desiludir. As informações, embora conseguidas em segmentos, puderam ser acrescentadas por diferentes pessoas. Assim que tínhamos ocasião, íamos adicionando dados ao nosso bloco de apontamentos. Ao fim do dia, passávamos tudo a limpo, recheando-o já com algumas reflexões.
Apesar de sermos visita particular de D. Francisco da Mata Mourisca, entre as centenas senão milhares de zombo que residem na cidade e nas imediações foram poucos os que aceitaram falar abertamente quando tivemos oportunidade (poucas) de os visitarmos em suas casas. De uma das situações, registamos a seguinte ‘confidência’:
“ (…) Assim como os portugueses desapareceram da nossa vista, também o ELNA, que entrou, sem respeito, pelas nossas vidas, (Exército de Libertação Nacional da FNLA) deixou de governar, para dar lugar às gloriosas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola do MPLA). A princípio, ficámos muito contentes, pela forma diferente que eles tinham de actuar. Grande parte eram zombos e tratavam-nos muito bem. Foi sol de pouca dura o daquela bondade. Pouco a pouco, foram-se revelando duros como os anteriores, vaidosos ou ainda piores. A seguir, as FAPLA foram-se embora e vieram as complicações acrescentadas da UNITA. Já tínhamos pouca criação (cabritos e galinhas) mesmo assim, assaltavam os currais e as capoeiras, até acabaram com os porcos. O pior foi quando tomaram as nossas filhas, sem o nosso consentimento. As ameaças e agressões eram constantes e a independência estava a ter um cheiro de amargura.
Em todo o Zombo, especialmente nas terras do Beú, do Kuilo Futa e Sakandika, ‘era o paraíso’. A nossa forma de negociar e viver voltou ao princípio. No tempo da guerra colonial, para lá da ponte do Nzadi, os nossos povos só fugiram, não conheceram a verdadeira guerra. Ficámos sem nada, sim senhor! A FNLA, sem bases logísticas, sem qualquer tipo de comunicação foi aglomerar-se na zona do Béu que ficou superlotada de membros desse grupo. Estavam desiludidos pela derrota política e militar face ao MPLA, muito ajudada pelos mercenários cubanos do general Ochoa. Ainda tentaram criar um Estado-Maior, na zona, como último muro da resistência militar do ELNA, mas isso era uma loucura. O desespero não tardou, pareciam que estavam possuídos pelo ‘N’doki’, a possessão do mal.
O povo, novamente sem qualquer protecção, voltou a refugiar-se nas matas. Felizmente, um comandante chamado Sebastião, que nasceu no Kimbuanzinga, povoação do Beú, defendeu, com grande risco, o seu desgraçado povo. Outro pesadelo real voltou a atingir o povo: na sua fuga, os militares, e pior, os mercenários foram sabotar o muito que já havia nas lojas, foi assim por todo o Zombo. As bombas e obuses fizeram o resto. Ficamos sem nada. O povo espreitou as viaturas carregadas de produtos da terra e ainda materiais de construção, portas, janelas, pias, por cima de camas, produtos roubados, aqui e acolá, sempre a disparar as armas, lá iam em direcção ao Kongo. As casas, as lojas, os hospitais, as casas dos antigos colonos, as nossas lojas, destruíram tudo. Inclusive, deixaram armas espalhadas, a esmo, pelo chão, qualquer pessoa do povo podia apanhá-las e levá-las para casa, isso aconteceu frequentemente.
Finalmente a ponte do Nzadi, construída pelos portugueses foi destruída, o povo, mais uma vez, foi quem voltou a sofrer.
Alguém pode imaginar o que pode passar na cabeça e no corpo de uma pessoa, quando se acorda de noite, e de repente somos encostados à parede de nossa casa, eu num lado a mulher no outro juntamente com os filhos? Eu pessoalmente tive sorte, a minha profissão fazia-lhes falta, por isso estou ainda aqui. Assisti duramente ao passar dos anos. Vi gente boa, gente muito má, massacres, assassinos, muitos, mas muitos raptos de meninas e meninos que foram acompanhando os homens da guerra. Aqueles que queriam a independência, e isso tanto faz FNLA, MPLA ou UNITA, todos eles são responsáveis. Não estavam a resolver a nossa aflição da fome. Deixaram-nos sem ajuda. Essa guerra, fez com que a terra Zombo, que sempre foi auto-suficiente, só dependente do açúcar, do sal e do sabão, obrigasse as gentes ao êxodo das aldeias natais. Partiram novamente para Kinshasa e, depois do fim dos anos 80, para Luanda. (…)”
Tivemos e continuamos a ter o maior cuidado, dentro do limite possível, com a forma como transcrevemos as informações obtidas, durante todo o processo de estudo dos zombo. Fazemos um controlo rigoroso, a fim de não comprometermos quem nos confidenciou as suas amarguras e os seus momentos de felicidade.
O Regresso às Origens
Também nesta secção, convirá, antes do mais, lembrar que parte das populações refugiadas junto das suas famílias e residentes na fronteira política do espaço Zombo, bem como as que se dirigiram às zonas periféricas da cidade de Kinshasa, foram ao longo dos anos, interiorizando o demorado processo de adaptação e integração, facilitado pelo apoio dos seus familiares, residentes de longa data, em todo o chamado ‘Bas Kongo’ (Nsi Kongo) da República Democrática do Congo. Isto significa que o seu regresso não podia ser tão linear como possa parecer, à primeira vista, uma vez que envolve, ainda hoje, no mínimo, a deslocação geográfica de duas gerações.
Passaram-se quarenta e seis anos, desde o primeiro êxodo, as populações estão exaustas, após décadas de luta, sabem simplesmente que estão aliviadas por a guerra ter finalmente acabado. Têm de esquecer frases, como por exemplo: ‘O MPLA decepou o braço do meu pai com uma catana.’, ‘Não nos podemos agarrar às terríveis memórias da guerra, senão não viveremos’.
Não se tratou, como no caso dos portugueses de um grande pesadelo (de quem tinha partido com a ideia generalizada de não voltar, de morrer em Angola) de qualquer forma, o regresso dos zombo foi sendo protelado por causa dos conflitos armados. Foi muito complicado. Foi-o, muito menos, para os oportunistas, para aqueles que lá como cá, nunca fizeram nada. Foi-lhes fácil aproveitar as circunstâncias, arvorarem-se em patriotas de gema e solicitarem, nessa base, os direitos de combatentes do lado vencido. Não foi fácil a opção pelo regresso, para as famílias com filhos jovens, quer dum sexo quer do outro que estudavam em Kinshasa, para não falar em outras cidades ou até pequenos aglomerados populacionais.
No entanto, existem organizações internacionais para dar apoio aos refugiados, que envolvem quantias e recursos humanos impressionantes. Contam com décadas de experiência, como é o caso da ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), em todo o mundo que, neste momento, tem como alto-comissário um português, António Guterres. Um dos problemas levantados para a ajuda às populações é: Como fazer o repatriamento voluntário? Esta nossa dissertação não está dirigida para esta questão, mas deixamos aqui uma breve reflexão.
Durante um dos contactos que tivemos com as comerciantes das praças zombo (são as célebres ‘mamãs’ que, do nada fazem tudo o seu sofrimento pela sobrevivência é tremendo) nos arredores da cidade do Uíje, à pergunta feita a uma mamã - ‘Porque só vendia carvão?’ - a ‘comerciante’ respondeu:
A minha família está no Inkisi (Bas Kongo), o sofrimento era muito, a minha família estava sempre a dizer: ‘quando é que tu voltas na terra? ‘ Então eu viajei para a fronteira e pedi para regressar na minha terra, fui em Makela do Zombo, na ACNUR e pedi para entrar, mas eles falaram que não íamos encontrar comida, tínhamos que fazer casa e que havia muitas minas. Apesar disso tudo, encontrámos algum apoio nas ONG (Organizações não Governamentais) que trataram de mim e dos meus filhos. Estou sozinha com oito filhos, todos ainda crianças (a mais velha ficou em casa a tomar conta dos irmãos, eu trouxe estes dois mais pequenos). Sou viúva, não consigo fazer mais nada, senão ir na mata, apanhar lenha, fazer carvão e vender na porta de casa e no mercado.
Muitos dos que regressaram não possuem, ainda hoje, documentos de identidade. A longa guerra destruiu os arquivos de registo de nascimento da maior parte do país. O estado angolano percebeu que era vital para as pessoas adquirirem a documentação, assim começariam a movimentar-se sem medo. Houve casos em que os livros de registo se esgotaram, houve muitos casos de extorsão, de abuso sexual, por parte dos militares e funcionários encarregados do controlo exigido. Os documentos continuam a ser fornecidos, na base de que a pessoa é de facto angolana, sendo-lhe então fornecido o bilhete de identidade e cédula de identidade às crianças. Os velhos soba Makanda, os mfumu a vata e mfumu a nsi continuam a ser preponderantes nestas situações, especialmente aqueles que têm ainda a prerrogativa de redistribuir as terras ou de as conceder. Em Maquela do Zombo, os militares fizeram (oficialmente desconhecem-se os argumentos) rusgas, com a finalidade de travar o tráfico de diamantes, numa operação que ficou conhecida como Operação Brilhante; expulsou doze mil garimpeiros, especialmente de origem Tutsi e Hutu, famosos pela sua técnica de garimpo e que vinham reivindicando a cidadania angolana. Escusado será dizer que muitos dos diamantes só mudaram de mãos.3
Quantas vezes os pais se teriam interrogado, se retornariam ou não? Como iriam reorganizar a sua vida? Que empregos encontrariam nas terras da sua origem? Como seria possível habituarem-se ao novo sistema marxista?
Como iriam prescindir das suas autoridades tradicionais para se submeterem aos novos comissários políticos? Ouvimos, em 1991, aquando da nossa penúltima estada em Angola, este rosário de perguntas, muitas vezes, feitas de forma angustiante.
O Estado português tinha deixado bases precárias, para os primeiros anos de escola entre os zombo, embora as missões católicas e protestantes se tivessem empenhado na diminuição deste problema. As raparigas sempre sofreram o estigma de serem mulheres. Os rapazes podiam estudar, elas não, eram necessárias, em casa, para tomar conta dos irmãos mais novos.
Agora, as populações instaladas ainda têm que viver o flagelo das minas anti-pessoal espalhadas por toda a parte. As crianças, especialmente, saem de casa de manhã à procura de bananas, mangas, abacates, entre outros frutos. Apesar de já informadas e de verem os vizinhos estropiados, continuam a deambular pela vizinhança da aldeia. De repente, o inevitável acontece e fica física e psicologicamente prejudicada para toda a vida. As organizações internacionais reconhecem o drama, sabem que as minas são uma das principais ameaças à integridade física das pessoas e às suas operações de repatriamento. Todos os refugiados são avisados e treinados acerca dos riscos das minas (e já o tinham sido, quando iniciaram o seu regresso) pelo serviço da ACNUR de Maquela do Zombo. O que hão-de fazer face aos regressados que querem voltar ao seu chão (nsi) perigosamente registado como minado? No final de contas, a necessidade desse chão parece ser mais imperiosa do que o impedimento das minas.
Agora o mais importante não é o regresso, é a reintegração, muito especialmente para as mulheres que, a todo o momento, são vítimas da continuada opressão e brutalidade dos homens.
A Escola do Padre Mariano
A primeira vez que ouvimos falar do padre Mariano Rampazzo, responsável pela missão católica de Maquela do Zombo, na paróquia de Santo António, foi em terras do Negage, em 2005. Foi através de outro padre católico, que não conseguia compreender como era possível estar, há quase trinta anos, em Maquela do Zombo e ainda estar vivo. Como é que, aparentemente, sem nada para dar, tinha ajudado tanta gente? Como tinha ajudado os zombo, a serem umas vezes da FNLA, outras do MPLA e ainda, outras tantas, da UNITA?
Acerca deste assunto, D. Francisco, bispo do Uije, disse-nos, um dia: “Às vezes, para irmos onde Deus quer, temos de ir a cavalo no Diabo”. Por isso, não nos admiramos dos estratagemas operacionais, utilizados, de vez em quando, pelo padre Mariano. Não fomos apanhados de surpresa quando nos disseram que aquele homem, sem nada de seu, a não ser a veste de missionário, sem benefício algum particular, a não ser uma fé imensa para dar pão e paz às populações, chegou a transaccionar os melhores e mais rentáveis bens do mercado zombo (marfins, entre outros). Em boa verdade, sempre ouvi dizer: “Quem não tem cão, caça com gato.” Parece-nos mais útil, empregar a frase deste modo: “Quem não tem cão come o gato.”, pela simples razão, de nunca termos visto ou sequer ouvido dizer, que também se vai à caça com gato. O mais que pode acontecer é que a fome aperte muito e se coma o gato. Teria sido isso que o sacrificado padre Mariano poderá ter feito alguma vez.
A última notícia que tivemos dele foi, já este ano de 2007. Devemos a informação a Tito Osvaldo Baião. Só os que viveram e vivem, por aquelas terras em tempo de guerra, avaliam estes gloriosos malucos que empreenderam uma inconcebível viagem. Vale a pena registar o seu depoimento, no livro Luanda-Porto 2003 (2005: 19).4
“A Missão Católica de Maquela do Zombo tem também actualmente uma escola. «Como professor que sou», diz o Tito, «chocou-me ver aqueles jovens, entre os 7 e os 15 anos, que ali estudavam com um único livro e um quadro negro onde o Padre Mariano e os demais professores diariamente escreviam o conteúdo das aulas e do livro» - exemplar único para seu uso; os alunos vão transcrevendo para o caderno, o que é escrito no quadro. É necessária uma grande vontade e uma grande esperança por parte dos jovens que ali se deslocam, alguns vindos de bem longe, para estudarem nestas condições. Recordamos a nossa estadia em Sosse onde vimos jovens que levavam uma enxada numa mão e na outra o banco e a sacola com caderno e lápis. Às condições deploráveis para estudar junta-se o perigo das minas terrestres ao realizar os trabalhos agrícolas. Os dados referentes ao ano de 2002 registam no território angolano um acidente de dois em dois dias daí o triste recorde deste ser o país do mundo com maior número de amputados.
Estes ‘malucos motoqueiros’ registaram, no seu documento, que o único lugar onde havia protecção e condições para pernoitar era na missão católica (2003), que funcionou como porto de abrigo, ao longo da guerra, desde a independência até ao fim.
“ (…) A região mudou diversas vezes de poder, disputado pelo MPLA e pela UNITA. Nestas mudanças, a Missão conseguiu proteger as populações, que fugiam das suas aldeias correndo todos os perigos, nomeadamente das minas.
O padre Mariano é um herói incógnito. Recordou momentos tenebrosos que viveu. Chegou a ajoelhar-se perante um general da UNITA pedindo que a sua Missão não fosse destruída. Ouviu pelo rádio (que captava as ondas na frequência em que comunicavam as forças do MPLA), as ordens dadas no sentido de bombardearem a missão; os dois pilotos brasileiros, mercenários ao serviço do exército angolano, recusaram obedecer às ordens, dizendo que “foram contratados para fazer a guerra e não para chacinar as populações civis”. Dizia o padre Mariano, na sua grande Fé, que tinha sido um milagre o que tinha acontecido: terem sido poupados”.5
Face às anteriores descrições, imagine-se o que seria procurar água e comida para que, os milhares de refugiados que ali eram acolhidos, sobrevivessem. O padre Mariano ajudava também as equipas de desminagem da ONU a tentar inutilizar as minas escondidas, no solo, especialmente as colocadas entre o aeroporto de Maquela e a estrada que liga o posto fronteiriço (desactivado) de Banza Sosso e a fronteira. É com ele que os técnicos, seja de que área for, contam para prosseguirem no seu trabalho.
Cabe aqui registar que o hospital local está dirigido por duas Irmãs da Misericórdia. Como superiora, a Irmã Annunziatina (Giuseppina) Loro e a Irmã Angelina Sartori, verdadeiras especialistas em ortopedia, para além de outras especialidades médicas. Aliás, convém registar que as irmãs desta congregação estão a ajudar as populações da zona, desde finais do século XIX. Durante o tempo colonial, especialmente nos últimos quinze anos, conhecemo-las muito bem, colaborámos inclusive na satisfação dos seus pedidos de ajuda humanitária face aos dramas das mulheres e meninas zombo.
Agora, compreendemos algumas situações que chegaram ao nosso conhecimento, na cidade do Uíje, no que se refere às tremendas e delicadas situações de confronto. Referimo-nos ao pormenor do padre Mariano poder ouvir, através do seu transmissor-receptor, as notícias, na frequência em que comunicavam as forças do MPLA.
Apesar de tudo o que ficou dito, existe uma vontade de ferro da parte dos missionários das mais variadas confissões religiosas. Grandes sacrifícios estão dispostos a fazer, levados pelos seus ideais de propagação de fé e lutam afincadamente para assegurar o mínimo dos níveis qualitativos, movidos por razões de prestígio para cada congregação, em particular, e pelo desejo de se aproximarem dos padrões europeus equiparados. Estes missionários apenas podem contar com a sua própria dedicação, com diminutas verbas, com subsídios de organismos oficiais e alguns particulares que oferecem o que podem como donativos. Finalmente, resta notar que as contribuições das próprias famílias dos alunos são insignificantes e muito irregulares.
O Aparente Caos Zombo e a sua Camuflada Organização
O que parece uma anarquia, um desastre completo, tem leis muito próprias. Só os actores principais desta secular forma de agir, podem reconhecer, na aparente desordem, a organização do caos e como este funciona. Enquadra-se, neste contexto, a privatização em curso de milhares de pequenas e médias empresas, na área da distribuição e de alimentação, especialmente nas capitais de distrito.
É sabido que as acções de controle rodoviário da UPA, do MPLA ou da UNITA, até 2002 (fim da guerra), eram constituídas, muitas vezes, por barreiras militares que, nunca ou quase nunca, (desde 1961) deixaram de dificultar a penosa e demorada passagem de caravanas de transportes comerciais privados (ou mesmo viaturas isoladas), relativamente à rota Uíje-Kinshassa-Uíje.
Durante os quinze anos de guerra colonial (1961 a 1975), percorremos semanalmente muitas centenas de quilómetros, pelas estradas da fronteira norte de Angola. Nessa altura, os empregados zombo, duma forma muito inteligente, sempre nos informaram dos perigos. Alguns deles são agora abastados comerciantes com casas nos pólos de atracção das cidades do Uíje, Kinshasa e Luanda e as perguntas a que os militares dos postos de controlo sujeitam os transportadores privados são invariavelmente as mesmas: “Para quem trabalhas, donde vens e a que género de negócio te dedicas?” e das respostas, depende a gasosa6 a cobrar. Quase sempre, a livre passagem está condicionada ao "pagamento" com alguma mercadoria. Se houver resistência da parte do transportador, poderá estar certamente iminente a prisão da viatura com a respectiva mercadoria. As mamãs que acompanham estas viaturas, com muita regularidade, têm que se envolver com os militares. É mais ou menos desta forma que funcionam as leis do mercado rodoviário.
As ‘boas maneiras’ zombo têm, neste contexto, uma importância primacial. Permitem aliviar as tensões das negociações dos interesses imediatos dos intervenientes. Este cerimonial de relações institucionais, sociais e comerciais, para outros muito mais embaraçosos, tem para os zombo, normalmente, um desfecho consensual. Pelo que fica dito, poder-se-ão compreender as complexas relações de pequenos a grandes empresários (alguns deles notáveis locais) com os chefes das barreiras militares da UNITA e do MPLA, até 2002.
O que finalmente se pode questionar é: quando é que a paz tão desejada e há tão pouco tempo conseguida, irá permitir a emergência de uma nova política governamental (que tenha em conta os interesses dos notáveis locais) e crie condições para a abolição das ‘fronteiras internas’? Quanto tempo ainda será necessário para se verificar a entrada em vigor de medidas governamentais eficazes que levem à estabilização das comunicações e ao intercâmbio comercial normal, entre as populações do interior de Angola? Verdade seja dita que, pouco a pouco (curiosamente, conforme as estradas principais vão sendo reconstruídas), este tipo de ‘organizações’ vai-se internando pelo meio rural ou, então, migra para o caos dos antigos muceques, como por exemplo, os bairros Rangel ou Palanca de Luanda, passando a exercer forte pressão nos mercados informais.
Quem assistiu, durante algum tempo, à incorporação de crianças na luta armada, sabe que se tornaram perigosamente violentas, nenhuma atitude política é mais mortífera do que a de armar crianças. Os impulsos que as levam a enfurecer-se são muito rápidos e isso já aconteceu, demasiadas vezes, em Angola.
A privatização da violência tem tido, por consequência, em certas localidades, "uma limpeza social e étnica", com lucro, para alguns protagonistas económicos. O mercado de viaturas roubadas continua a movimentar somas enormes, é teatro de repetidos assassinatos. Os compradores são assassinados, logo após terem pago os veículos e, portanto, quando estes ainda não estão inscritos em seu nome. Estes acontecimentos põem em evidência os grupos armados organizados, num sector do mercado informal e altamente lucrativo.
Apesar do nítido abrandamento das hostilidades, após o fim da guerra, o estado caótico das instituições parece ser um instrumento de promoção social e de enriquecimento pessoal.
Num país onde as crianças já aprenderam todos os jogos da guerra dos adultos e vão para as lavras em fila indiana para fugirem às minas, a desconfiança é enorme. O ano de 1992 foi o palco do reinício de uma fase brutal da guerra. Trouxe demasiadas mortes, tornando difícil o restabelecimento do clima de confiança mesmo dentro das pequenas aldeias. Cabe neste momento aos governantes e cúpulas militares a enorme responsabilidade de manterem a paz, caso contrário, o descontrole do tecido social e económico será inevitável.
Planos para o relançamento do desenvolvimento económico de Angola existem e têm custado fortunas abissais. Têm de ser acompanhados, com todo o cuidado e empenho. Portugal terá aqui um papel relevante a desempenhar, especialmente no que concerne à educação, agricultura e saúde. Angola é um país rico/pobre, onde morrem, por dia, cem crianças com menos de cinco anos de idade. Para resgatar as populações é preciso que o mundo rural de Angola recupere os seus habitantes, que os meios de comunicação liguem as suas populações, que as diferentes etnias dialoguem. É necessário que se recomece, nas pequenas povoações e vilas, a construção das tradicionais casas de adobe, mesmo que cobertas a capim e se atenda ao indispensável aprovisionamento de água potável. Muito trabalho ainda será feito a troco de comida, até que, pouco a pouco, o ´mato’ recomece a enviar os seus produtos para as grandes cidades.
As mulheres zombo não podem, ou melhor, não deverão ser subestimadas em toda e qualquer negociação mercantil deste género pois por elas passou sempre o controle do apaziguamento e também o da subversão das barreiras militares, políticas e mercantis dominantes.
A Comerciante das Praças, no Comércio Tradicional Zombo
As mamãs de hoje são o reflexo das ancestrais protagonistas dos nzandu ou praças de mercado e continuam a ser o elemento principal da compra e venda, não só entre os zombo, mas em toda a África negra. Nestes locais, exercitam diariamente o seu pendor ancestral para o ‘negócio’, aproveitando o tempo para colocar em dia as suas relações familiares, económicas, culturais e até políticas, no âmbito da solidariedade da família extensa.
O crescimento económico dos zombo depende fundamentalmente do seu espírito de iniciativa e parece ser a característica da figura familiar das mamãs, ‘mães-galinha’, que contribuirá para tornar mais dependentes e ociosos os homens, dificultando o seu desenvolvimento face à idade adulta, acabando estes por sobrecarregá-las desumanamente. O seu espírito de iniciativa fortemente vincado, influencia o ‘carinho’ que o homem kongo tem pela sua mamã. Pode parecer desajustada a opinião, mas D. Francisco da Mata Mourisca (ainda hoje - 2007 - bispo do Uíje) descreve assim as mulheres comerciantes das praças, face ao seu papel na família zombo e angolana em geral “O papel da mulher no comércio de Angola é de vital relevância…É que em Angola como no resto da África Ocidental, cerca de 80% dos produtos agrícolas são comercializados pelas mulheres7.
A comida sempre pronta que os homens encontram em casa (o lume sempre aceso) é uma constatação. É óptimo, mas a pressão sobre a mulher é demasiado forte para corpos que foram tão fragilizados pela fome e pela guerra, para que tanta gente lhes solicite permanentemente o auxílio alimentar. Presentemente, a pressão é de tal modo violenta que se vê obrigada a usar de um esquema para se desprender dos filhos, designadamente os da parte do marido, os conhecidos meninos feiticeiros. Esta figura é muito frequente em todos os países de África que foram avassalados durante décadas por guerras intensas. Poderíamos entrar nos pormenores desta miséria, mas não cabe aqui alongar a questão. Diremos só que a guerra colocou a mulher angolana de 20, 30, 40 e 50 anos, na infeliz situação de ter repetidamente filhos de combatentes da FNLA UNITA e MPLA. Vê-se então na necessidade trabalhar 12 a 18 horas e na ânsia de sobreviver, muitas vezes como pequena comerciante de biscates, termo que se deverá entender como ‘pequenos serviços prestados’, gasta grande parte do seu tempo diário a correr de lá para cá numa ânsia de resolver os problemas do dia-a-dia.
O sistema tradicional de parentesco ajuda, e muito, à situação. Ou melhor, as vantagens inerentes à integração na sua família extensa, alarga desmedidamente os seus deveres de solidariedade, quantas vezes em detrimento dos seus interesses próprios. Certamente que as mudanças operadas nas últimas décadas, e especialmente as geradas pelos violentos conflitos armados, ocasionaram grandes modificações no sistema familiar que entendia que os bens e o trabalho deviam ser colocados à disposição da linhagem, dando-lhes direito à hospitalidade, a constantes oferendas à prestação de trabalho em regime de reciprocidade, ao auxílio em roupas, alimentos ou dinheiro, a convites para festividades e celebrações, etc..
Tendo-se destruído as estruturas e as técnicas para armazenagem de alimentos por longos períodos, é natural que o sistema dos valores de solidariedade alimentar se tivesse alterado. Embora as obrigações teóricas recaíssem e ainda recaiam sobre o guardião da matrilinhagem, teoricamente, continua a ter o dever moral de velar pelos seus tutelados e tuteladas, em todas e quaisquer circunstâncias, como por exemplo no nascimento e na morte, no casamento e no divórcio, nos êxitos e nos fracassos, na miséria e na abundância, chegando inclusive a sentir-se responsável pelas dívidas dos seus tutelados. Na prática toda a protecção social recai sobre as mamãs que fazem o impossível por manter a paz familiar através da sua incomensurável eficácia de ecónomas, a que acrescentam uma resistência física e psicológica sem paralelo na família.
As mamãs encontram, no comércio familiar e na pequena indústria na fabricação de pão e de outros processos afins da indústria alimentar, tal como na fabricação do carvão, em casa e nos mercados, a parte mais importante do seu mecanismo económico de sobrevivência. Começam por exercer específicas funções subsidiárias no mercado, como negociantes ocasionais, porém, o seu objectivo é criar o seu próprio negócio. Conhecedoras dos produtos sazonais e das suas flutuações de preços, procuram tirar o melhor proveito deste saber. É este saber que as conduz ao sucesso mercantil, acabando muitas, já no fim da vida, com uma pequenina banca a vender um só produto (por exemplo tomates ou bananas) porque não concebem a vida sem o seu pé-de-meia. Outra nota curiosa, contribuem para o fenómeno sociológico do mercado, juntam-se em aglomerados informais mantendo-se afastadas dos homens, o suficiente para os controlarem, e este controle tem a ver com o poderem fazer o seu tal pé-de-meia sem que eles disso se apercebam. Nunca sabem quando eles partem para não voltarem mais. Especializam-se, por exemplo, na produção de refeições que os homens acabam necessariamente por lhas comprar na praça do mercado, escutando assim parte dos seus segredos.
A constatação de uma boa parte se ter confrontado muito cedo com a viuvez e outra parte já não poder contar com possíveis relacionamentos maritais passíveis de dar estabilidade aos filhos, faz com que venham ao de cima forças de que não suspeitavam, conseguindo frequentemente rasgos de liderança para os esquemas mercantis ao seu alcance. O mesmo acontece com as mulheres sós. Estas oferecem a sua ajuda às anteriores viúvas e mulheres casadas.
Além de serem o suporte familiar, constituem-se informalmente em associações informais. Os maridos deixaram, há muito, de ser pedreiros ou carpinteiros (profissões que aprenderam na época colonial). Estão velhos antes do tempo. Enquanto as mulheres trabalham, os homens olham-nas com estranheza e indiferença, recostados em suas cadeiras de braços e pés assentes em pequenos bancos. A forte e violenta formação pragmática que estas mulheres têm, através de uma economia de guerra, há muito as fizeram esquecer os comportamentos femininos tradicionalmente apaziguadores. Com as forças que lhes restam, tratam da família, em casa, e deslocam-se ao mercado, como há séculos o vêm fazendo, tal como nos tempos da colónia, no trabalho compelido como mulheres de contratados.
O processo que as obriga a atingir a idade adulta, sujeita-as a diversos ritos de passagem ao longo da vida. Para uma melhor compreensão do fenómeno, organizámos, operacionalmente, os diferentes patamares do processo vivencial em ritos de passagem por classes etárias e subsequente desempenho mercantil. Este nosso conceito operacional não invalida outro tipo de projecções sobre o mesmo assunto. Trata-se, como referimos, de uma opção operacional do estudo à qual nos adaptámos:
- 1.º A mulher, hoje sexagenária, continua ligada a preceitos do passado colonial e também da independência nacional. Acerca desta realidade, será interessante, lembrar que, tal como aconteceu durante séculos, cumpre os rituais de puberdade e do casamento como preceitos exigidos pelos seus ancestrais familiares. Apesar disso é suficientemente flexível para entender, muito pragmaticamente, os novos tempos, o novo espaço familiar onde se encontra inserida e onde ainda se sente útil para ter ‘sucesso’ na sua banca do nzandu que visita, comprando e vendendo para ajudar ao ‘mealheiro’ da chefe de família. A esmagadora maioria já se esqueceu do vocabulário da língua portuguesa, fala e raciocina em kikongo, lingala, e desde 1975, está atenta ao kimbundo, como língua afim do seu kikongo operacional. Viveu demasiado os tempos difíceis de participação na luta armada ao lado dos seus homens da UPA, do MPLA e da UNITA.
- 2.º A verdadeira chefe da família, (no nosso entender), é aquela que consegue a leitura do passado e dele se serve para consertar o presente precário, ou seja, a mulher que ronda os quarenta anos. A sua maior característica continua a ser a de saber equacionar o problema da instabilidade familiar resultante dos parcos meios de que dispõe e com eles orientar o seu lar. Adapta-se ligeira, às novas realidades. Com o casamento tradicional a que acrescentou por vezes o católico ou protestante, continua sendo, com o seu comércio particular, o suporte da família embora subordinada ao sistema ancestral. A sua idade indicia um breve e infantil passado colonial a que junta a árdua ajuda prestada ao serviço da independência nacional. Depara-se com uma vida vivida na companhia de alguns companheiros. Todos eles inimigos uns dos outros e muitas vezes da mesma família consanguínea. Já foram educadas na cultura do “esquema e da gasosa”, onde vale tudo para conquistar um lugar ao sol. Têm sempre presentes as formas por elas concebidas para fugir ao controlo dos homens, no que se refere aos seus parquíssimos ganhos, uma vez que aqueles se tornaram, não só inúteis como inoperativos, no que concerne à receita familiar.
- 3.º Ela e a mãe (a anterior) viram-se a braços com gravíssimos problemas, como por exemplo em 2005 com o vírus de Marbourg e em 2006 com o surto de cólera no distrito do Uíje. Redobram os cuidados básicos com a saúde, área onde os preceitos tradicionais têm uma grande importância e o problema da água para a alimentação e higiene caseira, surge de uma forma capital, tornando-se então um lucrativo negócio.
Disseram-nos algumas vezes: vai passar depressa, afinal já morremos muitos com a guerra, a doença do Margourg e a cólera não vão matar mais. Enfim, não será esta a forma mais eficaz de aceitar a situação? E dela partir para encarar a realidade de ver os vizinhos a morrer, as suas famílias a ser atingidas e encarar de frente a vida?
São estas duas mamãs, as que trabalham nas lavras, que com maior frequência (quase diária) vendem nas praças, que cuidam dos filhos, alguns ainda de tenra idade que estão mais preparadas para a mudança. Mudança de determinados processos culturais ancestrais e que possibilitam uma nova forma, mais positiva, de encarar o futuro.
Estas mulheres são as mães novas, porque as mães mais velhas são as de sessenta anos (as bisavós). Ambas estranham, e até fazem mau juízo sobre as poucas brancas jovens com quem contactam e lhes dizem não terem filhos, (referem-se às operacionais das ONG), não entendem que estas brancas, só tenham primos e sobrinhos. Não entendem que estas brancas venham para o Uíje solteiras, com a principal razão de obter meios financeiros que as ajudem a ter uma casa e só depois então pensarem em ter filhos. Não entendem que as brancas só queiram ter um ou dois filhos no máximo. Continuam a não entender como é que duas ou três mulheres vivem numa casa com um homem (referem-se aos voluntários das ONG) e não tenham relações sexuais com ele, uma vez que estão na idade e longe de casa com um homem por perto.
Estas mamãs quando começam a ter filhos têm que contar com aqueles que vão morrer. Uma delas, em 2005 disse-nos: sou mãe de nove partos. Na verdade, só sete estavam vivos, mas para ela o importante foi o facto de engravidar nove vezes e não quantos filhos estavam vivos. E isto relaciona-se com as muitas crianças que às vezes vivem com elas e não são filhas do mesmo pai. Acerca desta situação, que algumas não aceitam, uma delas disse-nos: temos que viver mesmo assim, os nossos homens são mesmo assim.
E este viver, subjectivamente ‘mesmo assim’, foi-nos confirmado com as informações que obtivemos (2005) de pessoal de organizações humanitárias, de algumas instituições, órgãos do governo (Ministério da Agricultura) e dos nossos informadores-chave. Acrescentemos que desde o final da guerra (2002) a situação de grande risco das populações tende, visivelmente, a melhorar especialmente porque as vias de comunicação, pouco a pouco, vão permitindo a passagem de camiões de transporte de mercadorias. Infelizmente Maquela do Zombo continua a ter graves problemas no acesso rodoviário. As populações aproveitam então a estação seca para passar de uma cidade para outra apesar do receio das minas colocadas nas estradas e ainda não detectadas.
Estas populações vivem essencialmente da agricultura e das consequentes trocas. A partir de Setembro, com o início das chuvas, já as mamãs procedem regularmente às sementeiras que se estendem a Janeiro com especial relevância para a cultura do amendoim e do feijão por se tratar de culturas tradicionalmente de rendimento, sendo daqui que retiram parte do seu proveito nos mercados. No caso da cultura da mandioca, base do seu sustento, já se notam muitos progressos que aliás estão bem patentes na primeira fotografia. Uma outra cultura e fonte de rendimento das mamãs é a venda de banana, que constitui também uma base da sua alimentação. Em outros contextos que não o de Maquela do Zombo, a banana deixa de ser um recurso precário, para ser um lucrativo negócio.
Os preços dos principais produtos transaccionados começam a estabilizar, como por exemplo a fuba de bombó que provém essencialmente dos mercados do Uíje, Songo, Kangola e Negage8. Se contudo aparece alguma chuva, facto que conduz à quebra do processamento da mandioca, é sabido que as mamãs tratam imediatamente de inflacionar o produto. Esta transformação da mandioca em fuba é realizada semanalmente. Tem a ver especialmente com agregados dos residentes e retornados (da República Democrática do Congo) com mais de duas campanhas agrícolas realizadas.
No espaço do quintal de casa voltaram a criar galináceos em quantidade suficiente. Porém, as famílias estão ainda muito carenciadas da tradicional criação de caprinos e suínos, negócio do foro dos homens. Nas suas frequentes deslocações semanais à procura de alimentos de que carecem, levam geralmente pequenas quantidades da sua auto-produção para venda ou troca, embora estas transacções resultem em receitas muito limitadas. Todavia conseguem produzir o suficiente para a sua alimentação.
Algumas mamãs menos afortunadas, dedicam o seu dia de trabalho àquilo a que chamam biscates, como por exemplo à produção do carvão. Quando se levantam por volta das 05H00 da manhã, mal enxergam um palmo à frente do nariz, devido à cerrada neblina matinal, partem para as suas pequenas lavras (hortas) a fim de tratarem do seu amanho e no regresso trazem lenha que serve, não só para cozinhar os alimentos, mas também para a produção de carvão. Tudo isto coadjuvadas pelas filhas adolescentes que tomam conta dos irmãos mais novos, ajudam a mãe nos afazeres do lar e especialmente na lavagem da roupa da família, fardo bem pesado para estas mulheres ainda meninas.
- 4.º Finalmente, chega-se ao grupo das catorzinhas (leia-se adolescentes). A este grupo vamos dedicar especial atenção. Levantar-se às 5 da manhã, ir com a mãe buscar o seu balde de água à cabeça, todos os dias, sem um ai de lamento é imprescindível. Ir com as mamãs e com elas dividir o trabalho e tudo isto com os homens da casa a conversarem no quintal é muito árduo. As mulheres novas já não aceitam esta indiferença dos homens. Lá porque nasceram com um nome de linhagem reconhecida entre os seus, não trouxeram riqueza que ateste a sua ascendência; afinal e frequentemente, a única herança que o pai lhes deixou foi o nome da família. À luz da cultura kongo estas atitudes dos homens, aparentemente, nada têm de reprovável. Curiosamente, na Europa, especialmente no meio rural, ainda se observam algumas similitudes. Numa conversa a que assistimos em 2005, um alto responsável do Ministério da Cultura angolana ouvia constrangido um seu conterrâneo lamentar-se que a mulher não o amava ao que muito secamente aquele respondeu “não tens vergonha? Quem tem que nos amar são as mulheres, tu não tens que te lastimar”.
Dizíamos então que a catorzinha enfia as suas chinelas de borracha sintética nos dedos dos pés e percebendo as violentas dificuldades da mãe e esforça-se por dar a sua preciosa colaboração. Os bens de sua mãe são às vezes duas ou três bacias que comportam os utensílios da cozinha, a ferramenta que lhe garante o pão do dia-a-dia. No fundo, só transportam o medo da vida que até 2002 viveram. Ainda decorrerão muitos anos a dormirem em sobressalto ouvindo os sons dos tiros das metralhadoras e dos obuses. Por isso, desejam muito um homem por perto, provavelmente não para as proteger (têm muito menos medo deles que dos outros) mas mais para avisar os intrusos que o lugar em casa está ocupado.
Não se lastimam por os verem sentados, mas algumas destas mamãs enchem-se de coragem, rangem os dentes, como fazem os homens e partem, abandonam tudo, umas desesperadas vão sozinhas, outras ainda com forças que vão buscar não se sabe onde, deixam marido que tem patrão e está bem como está. Pegam na filha adolescente e nos filhos pequenos e partem para longe, para os subúrbios das grandes cidades, aceitando qualquer biscate por onde possam recomeçar a viver. São ‘adoptadas’ por outras mulheres do mesmo subgrupo étnico. Muitas vezes começam por transportar água, escondendo que estão a levá-la para outrem. Se questionadas dizem simplesmente que a vida está difícil, que quem tem posses pode pagar a quem as sirva. Começar por ter comida é muito importante. Sonham com a vida e com o tipo de vestuário que algumas mulheres novas usam, passeando-se nos locais mais concorridos pelos homens que ostentam sinais visíveis de riqueza e que mandam os filhos estudar para a Europa. Estas razões de fortuna e de infortúnio, fazem com que as adolescentes comecem a rejeitar vivamente a árdua vida que levam na casa materna e frequentemente o inevitável acontece. Ficam grávidas por esta altura sem disso se aperceberem. Nem sequer se questionam por terem a falta do período menstrual. Passam muito mal, os namorados não aceitam a sua gravidez e até arranjam medicamentos tradicionais para elas abortarem. Esta situação torna-se aflitiva, obriga-as a esconderem o facto, que passa despercebido à mãe mas não à avó. Quando o bebé nasce é entregue àquela (à sua mãe). No dizer de uma jovem mãe Só estou com a criança para lhe dar chucha. Diga-se que os namorados, uma vez passado o susto, acabam por se aproximar do seu filho e gostar da ideia. Então ‘amigam’ e a criança fica em casa da avó materna.
É difícil perceber estas catorzinhas e o seu esquema. O que a seguir dizemos continua a ser o nosso ângulo de visão de observador participante. No Zombo e logo em todo o distrito do Uíje as mulheres são mães muito cedo, engravidam assim que são púberes. Não se pode ajuizar este problema com ligeireza. As catorzinhas aprendem muito cedo a viver de uma forma adulta, sendo frequentemente pressionadas pelos homens e pela família e depois muito simplesmente no seu dizer, aconteceu. Muitas vêem que as relações sexuais servem especialmente como meio de, ao serem mães, terem alguém que no seu dizer ‘me tome conta’. Se umas têm como companheiro o pai da criança, outras nunca mais o vêem e ainda outras nem sequer sabem quem é o pai da criança. Com este cenário o pai acaba por ser o avô, ou seja o Nkaka.
Começa bem cedo o trabalho de casa
As catorzinhas diferenciam-se das outras mulheres apenas pela irresponsabilidade de criar os filhos. Curiosamente, entendem que o normal é serem assim e se não forem são ‘fora de série’. Durante a nossa estada no Uíje visitamos uma paróquia em dia de festa a convite de um padre católico. O ritmo da Kizomba era a dança-base. Dança um pouco parada e fortemente sensual. Os jovens não passam sem ela, disse-nos o pároco, acrescentando que no final da festa ficam somente os jovens. As meninas que na catequese e na escola fogem dos rapazes acabam com alguma frequência por aparecerem grávidas.
É aqui que a falta de uma educação que visa atenuar a grave situação em que vivem os adolescentes se faz sentir. Nas condições que actualmente vivem os zombo, a educação da população feminina, no sentido lato, reveste-se de importância talvez ainda maior do que da própria população masculina. Apesar da solução dos problemas de desenvolvimento depender em larga medida das mulheres, os progressos realizados em prol da sua educação são visivelmente inferiores aos dos alcançados pelos varões. Algo funciona mal.
Todos os grupos etários das mulheres que acabámos de descrever continuam ligados às tradições e costumes ancestrais. Acrescente-se o drama do flagelo das guerras de décadas e as diversas estratégias operacionais encontradas para sobreviverem. Estão encontrados suficientes obstáculos ao desenvolvimento económico e ao bem-estar geral. Haja em vista as inúmeras interdições alimentares (ainda existentes) observadas não só pelas grávidas em relação aos fetos, como também pelas lactantes em relação aos recém-nascidos. Não restam dúvidas que a estas interdições mágico-religiosas se aliam a carência de cuidados higiénicos e a ignorância sobre princípios nutritivos que resultam numa elevada mortalidade infantil.
Muitos pais fazem reais sacrifícios para sustentar os filhos varões durante os seus lentos progressos escolares. Mas poucos estão dispostos a realizar os mesmos sacrifícios a favor das filhas. Ponderam que estas casem cedo e por isso não vale a pena estudarem. Além disso, uma boa parte dos pais estão convencidos de que a instrução das filhas lhes diminuirá as oportunidades de conseguirem maridos satisfatórios. De facto, muitos homens não escondem o receio de casarem com mulheres relativamente instruídas alegando que as suas exigências em matéria de vestuário, ornamentos e confortos e, enfim, a sua menor submissão obediência são suficientes obstáculos à realização de um enlace matrimonial. A elevação da educação da população feminina em escala significativa exigirá, por conseguinte, uma transformação radical da atitude dos varões.
Sem dúvida que a menor escolarização das raparigas zombo contribui para o atraso da população feminina em geral. Todavia não é razoável pretender que a maioria dos problemas sociais e económicos com que se debatem os zombo possam ser compreendidos e medidos pelos espíritos imaturos e sem experiência na vida adulta daquelas. Enquanto as mulheres estagnarem, toda a comunidade se verá profundamente afectada no seu desenvolvimento. Os esforços oficiais em matéria de educação terão que tornar-se muito mais eficazes. Por exemplo, o conhecimento do português no ensino primário é fundamental, é necessário que saibam ler e escrever o suficiente para puderem cumprir com dignidade as duríssimas tarefas que lhes estão designadas.
Conclusão
Olhando retrospectivamente para o que de mais significativo foi transmitido, principalmente àquelas focalizações a que as pessoas são mais sensíveis, pelo contacto directo e participante com os agentes concretos, o mais importante deste processo será, sem dúvida, o esforço que fizemos para compreender, interpretar e analisar dentro do possível, o mundo dos zombo.
Um fio condutor ressalta de todo o discurso: a ideia de que os zombo são comprovadamente um modelo de misto de mercadores e diplomatas. Esta consideração tem sido motivo da nossa maior reflexão e os factos históricos conduziram-nos sempre à mesma conclusão: os zombo foram, são e continuarão a ser, negociadores de primeira água, nas relações internacionais de Angola, não sendo, por acaso, que têm sido escolhidos para este cargo, ao longo dos tempos, como parte integrante da chave da governação dos povos que constituem o agora Estado Angolano.
Uma palavra agora para as mulheres zombo que não podem, ou melhor, não deverão ser subestimadas, em toda e qualquer negociação familiar e mercantil. Por elas, passará sempre o controle da subversão das barreiras políticas, militares e mercantis. Verificamos ao longo da dissertação, que os zombo sempre tiveram (tendo em conta a sua situação geográfica de povo de fronteira política) uma apetência extraordinária para a aprendizagem de línguas afins e estranhas. Presentemente quase todos os adultos falam fluentemente, para além do kikongo (a sua língua materna) o lingala (uma das línguas oficiais da República Democrática do Kongo) e quando estão na zona de influência dos kimbundo, falam esta língua. Finalmente, as línguas veiculares, respectivamente o francês e o português são presença fundamental.
Por esta última língua se têm vindo a esforçar, denodadamente, os missionários católicos e protestantes uma vez que a sua religião está agora fortemente implantada em toda a Angola no ensino recorrente a adultos ministrado especialmente por catequistas, com influência nas suas aldeias de origem, continua a ser uma excelente aposta de divulgação e aperfeiçoamento da língua portuguesa. Saliente-se o pessoal especializado das equipas das ONG portuguesas (Organizações Não Governamentais) que tem dedicado muita atenção ao ensino do português.
Mas não nos iludamos, a tendência dos zombo é para preferirem a língua francesa à portuguesa. E porquê? Porque fazendo constantes peregrinações aos mercados abastecedores de Kinshasa e Luanda (como grandes pólos de atracção política e mercantil) acabam por estender as suas viagens até Paris ou Lisboa. Estão consequentemente a desenvolver os seus conhecimentos face a estas duas culturas. Então, sugere-se aqui, que deverá ser encarada como prioritária a tarefa do constante ataque à velha deficiência que é o ensino do português na iniciação escolar e agora, mais do que nunca. Convêm recordar os grandes sacrifícios feitos pelos professores espalhados pelo interior de Angola, em prol da língua portuguesa durante a colonização, coadjuvados pelos catequistas de então. Sem o ensino básico do português as dificuldades escolares dos jovens zombo serão, no desenvolvimento das suas apetências profissionais e intelectuais muito maiores.
Em nossa opinião, e não somos os únicos a pensar assim, bem pelo contrário, não privilegiamos, para os zombo, o ensino ministrado em bases meramente intelectualizadas, porque ao propagar e defender valores morais e normas de conduta radicalmente diferentes dos seus costumes, fazem-se brotar conflitos entre os estudantes e o seu ambiente social e familiar, conflitos estes que poderão originar graves desajustamentos emocionais. Os modernos métodos de ensino aplicados, sem privilegiarem o ensino tecnológico, redundariam em fracos e contraproducentes resultados face aos esforços dispendidos. Estamos certos que as crianças zombo escassos proveitos poderiam extrair de programas concebidos para populações evoluídas e urbanizadas, já que se encontram actualmente privadas de qualquer acesso ao uso da leitura, da escrita e da aritmética.
Esse ensino em nada contribuiria para uma mais-valia dos conhecimentos dos educandos, incentivando-os a adaptarem-se a novas tecnologias que levem em consideração a agricultura e a pecuária, que continuam a ser a principal fonte de riqueza da população zombo. Um ensino predominantemente técnico, profissionalizante, poderia corresponder suficientemente às suas necessidades reais. Este conhecido modelo conquistaria a colaboração dos estudantes, nos esforços de modernização, interessando-os activamente, numa promoção social e económica global, sem que, com isso, sofressem ainda maiores desajustamentos e perturbações.
Esta nossa posição é suportada, por exemplo, pelo Jornal de Angola online que em notícia assinada por Alexa Sonhi de 14/10/2007 refere o seguinte: “A falta de infra-estruturas como escolas, unidades sanitárias e económicas em perfeitas condições estão a condicionar o desenvolvimento do município de Maquela do Zombo, na província do Uíje…a falta de energia eléctrica e de um sistema de água potável em Maquela do Zombo são outros dos vários problemas que o município enfrenta”. Enfim… é preciso recomeçar tudo de novo.
Na sequência de todo este fio condutor, diremos que os currículos escolares deveriam organizar-se em torno de pequenos projectos de carácter familiar, de ordem comercial, industrial e agro-pecuária, de maneira a facilitar a adaptação dos jovens, tanto à economia de mercado como ao emprego de técnicas cuja eficiência e rentabilidade se encontram plenamente asseguradas entre os zombo.
Não desconhecemos que se podem contrapor argumentações de peso que adiantamos na esperança de que fomentem a discussão e a troca de ideias. Que a educação anteriormente proposta, para ser eventualmente útil, não poderá ser iniciada em idades demasiadamente baixas e, além disso, depara-se com inegáveis dificuldades para se conseguir aplicar na vida prática o que se ensinou.
Presentemente, as instituições escolares do Município de Maquela do Zombo (como de todo interior angolano) não dispõem de capital para adquirir o equipamento moderno, sendo que a solução se encontra estreitamente dependente da eliminação das contrariedades de ordem económica, técnica e social, fora da alçada dos serviços de educação: financiamentos, comercialização, cooperação, investigação, assistência técnica, concessão de terrenos, sobrevivência de tradições e de costumes ancestrais, entre outros aspectos.
Por outro lado, a aplicação deste ensino, com base profissional, além de levantar obstáculos, no respeitante à selecção de alunos para os estudos secundários, poderia minar seriamente as bases de um sistema de educação que deverá ser nacional e integrado. Aumentaria, assim, o fosso já existente entre o mundo rural e o urbano. Finalmente as famílias zombo farão, decerto, algumas reticências a um tipo de ensino que procure deliberadamente "fixar o educando à terra" e que colida frontalmente com os conhecimentos empíricos herdados de gerações anteriores de grandes comerciantes. Será frustrar drasticamente um dos maiores anseios dos zombo: viajar, viajar, (a tal peculiaridade antiga de andar de povo em povo) traindo assim, as suas esperanças e ambições.
O último capítulo da dissertação aponta linhas de orientação para os problemas actuais que poderiam, com muito êxito, ser enfrentados e grandemente diminuídos através de projectos de antropologia aplicada, com o apoio da metodologia de dois autores de projecção internacional. O primeiro, Ernst Friedrich Schumacher (1911-1977) que com a obra Small is Beautifull 9, ainda percorre o mundo académico e profissional, ao propor-nos o fomento das tecnologias intermediárias (ou seja, aquelas que ainda estão em uso, embora não sejam fruto da tecnologia actual) que requerem muito menos aplicação de capital e são, ao mesmo tempo, menos exigentes no consumo de matérias-primas, indo assim ao encontro das possibilidades de aplicação prática às populações zombo. O segundo autor permite-nos aplicar uma excepcional ferramenta: O Princípio de Peter. Trata-se de Laurence J. Peter (1989) e a sua forma de nos fazer entender até onde somos úteis: “Numa hierarquia todo o empregado tende a ser promovido, até ao seu nível de incompetência” 10, e mais com a noção da lei dos rendimentos decrescentes, faz-nos perceber até onde será prudente prosseguir com os nossos intentos de cooperação.
Acrescentaremos que, para o nosso caso concreto, grande parte da nossa atenção deve focalizar as mamãs como pilar básico do desenvolvimento económico zombo. Os homens são, por exemplo, proverbiais especialistas da indústria de vestuário, pois, apesar da sua relutância ancestral de cederem espaço nesta indústria às suas mulheres torna-se urgente que, de forma suave mas decisiva, lhes permitam dividir o seu tempo entre a indústria mercantil familiar e o trabalho de casa. Os rendimentos conseguidos através desta forma de pensar trarão, de certeza, resultados muito importantes para as suas famílias. É urgente dar oportunidade a que as mamãs se realizem criativamente e permitir aos filhos deste povo que pisem o seu chão com firmeza.
Com estas realidades terminamos o nosso estudo, fruto de muito e penoso trabalho, às vezes, com risco da própria vida durante as duas viagens de 1991 e 2005 ao Norte de Angola.
Congratulamo-nos por nos terem permitido e ajudado a avançar com hipóteses de trabalho, capazes de harmonizar a elevação cultural, social e económica das mais novas gerações zombo.
Bibliografia Consultada (IV Parte)
MOURISCA, Francisco da Mata, in prefácio à dissertação de mestrado do autor “O comerciante do Mato”.
PEREIRA, João Pedro e Baião, Tito Osvaldo (2005), Luanda»Porto 2003 - Cidades Geminadas na Aventura da Paz. Edição Na Rota dos Povos.
SCHUMACHER, Ernest Friedrich,1980, Small is Beautiful, Public. D. Quixote Lisboa
PETER, Laurence, 1989, Análise de Peter. Editora Caravela. Lisboa.
Glossário
AFRICANISTA - Dizia-se do europeu que tinha regressado rico à Europa, mas também se diz daquele que se dedica aos assuntos de África.
ALEMBAMENTO - Pode ser considerado uma espécie de tributo com que os pais do noivo contribuem como sinal de compensação pela falta que a noiva fará ao deixar a casa paterna.
ALLIAZO - Associação política zombo que está na base da ideologia do sentimento independentista dos CCCP (chefes costumeiros do Congo Português) com o suporte de Simão Gonçalves Toco através da L’ASSOMIZO (1956) que se agregou à UPA.
BAKULU - os espíritos das pessoas que tenham habitado o lugar físico.
BAMBATA - Referente aos clãs (Kanda) Zombo também conhecidos por Mbata.
BATA - Mbata.
BANZA (M’BANZA) - Considerada a capital.
BAZOMBO - O termo pelo qual os zombo são conhecidos entre os seus.
BUTA NGANGE - Considerado o juiz, ou (homem zangado), ‘o que não deve rir’.
CAÇUTA (ZACUTA) - Primeiro embaixador do reino do Kongo em Roma, séc. XVI.
CAMENI MONGO (CAPITÃO ZOMBO) - Traduzido à letra “O senhor das montanhas” o patriarca do clã uterino mais notável.
CAPITÃO (Velho Conselheiro dos Antigos Reis) - O mesmo que Cameni.
CHEFES COSTUMEIROS DO CONGO PORTUGUÊS - Associação criada nos anos cinquenta do século passado que com o beneplácito das autoridades portuguesas pensava reunificar o reino do Kongo.
CUMBI - Estandartes reais com cerca de 2,5 metros, trabalhados em finos tecidos de mabela, representando o poder real.
DUCADO M’BATA - Os zombo passaram a fazer parte do reino do Kongo com a designação de Ducado de M’Bata.
DUMBA - menina casadoira (13 a 15 anos).
DUQUE DE BATA - Um dos dois personagens que intervinham na entronização do rei do kongo.
ELELO - O rei do kongo conhecido por rei dos panos (pano diz-se lele em kikongo).
ÉMULO - Bracelete fina feita de ráfia e que só o rei podia utilizar.
ENGOMA SIMBO BUSTO - Tambor real todo guarnecido de peles de leopardo.
ESCRAVO - O major Henrique de Carvalho tem um conceito de escravo deveras interessante, porque o escravo começa por ser escravo mercadoria depois escravo carregador e finalmente escravo mercador.
FNLA - Foi a seguinte designação da UPA, Frente Nacional de Libertação de Angola.
FUNANTE - Era uma espécie de comissionista que deambulava pelos matos a trocar mercadorias, pode ser considerado o pré-comerciante do mato.
GRAE - (Governo da República de Angola no Exílio) referente à FNLA.
GUNGA - significado kongo de sino para designar o Kongo dos Sinos (o kongo dos missionários).
IBANGALA - Um dos grupos étnicos do Norte-Centro de Angola.
IARN - Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais.
ITURI - Floresta do Congo.
KAKULO - Notáveis dos Dembos considerados filhos do rei do kongo
KAKULO KAENDA - O mais notável de todos os Dembo.
KALUMBO - Povoação do Icolo e Bengo.
KAMBULADORES - Uma espécie de aliciadores dos comerciantes para induzirem a clientela a comprar.
KAMANBONGO - O mesmo que alembamento.
KANDA - O Clã uterino.
KANDONGA - Mercado paralelo (venda e compra sem pagamento de impostos).
KANHANGULO - Espingarda de carregar pela boca.
KANKITA - Comissionista do comerciante do mato.
KASENGO - Nome de um caçador, significa homem de ferro.
KASONGO - zona de minas de ferro.
KIAMVU (KIAMFU) - Titulo de Grande autoridade Gentílica (potentado).
KIANGANY, MARIA - Irmã de Álvaro Tulante Buta.
KIBOKOLO - povoação comercial do Zombo.
KIBUKA - Caravana de longo curso com bandeira hasteada.
KINGUNDO - termo pejorativo para designar ‘branco ordinário’.
KIKUANGA - É uma refeição feita de mandioca meio cozida e amassada.
KIMBATA - Povoação fronteiriça do Zombo com kimpangu.
KIPANGU (KIMPANGU) - Povoação fronteiriça Congolesa face a Kimbata..
KISOKOLO - Uma das máscaras de iniciação Zombo.
KITANDEIRA - Vendedora ambulante.
KODIA - A celebre concha que simboliza o o reino do kongo.
KONGO A MULEMBA - Os dos cognomes do rei do kongo.
KOTO A LUMBU - significa entrar em casa do ‘papá sogro’ com o maior respeito.
KUAMATO - importante grupo étnico do sul de Angola.
KUANGO - importante rio e região diamantífera do Nordeste de Angola.
KUANZA - Rio e ao mesmo tempo, a moeda Angolanam.
KUSSO - Povoação limite do Município da Damba com a Kandam.
JOJ - Importante firma industrial e comercial de Kibokolo e Maquela do Zombo.
L’ASSOMIZO - Associação semi secreta dos Zombo que se integrou na Alliazo.
LELE - significa pano em kikongo.
LÍNGUA - Embaixador Zombo, também pode ser considerado simplesmente intérprete.
LINGUISTER - “O língua” em Inglês.
LUMBU - O espaço social do rei, ou de qualquer chefe.
MABELA - Fino pano tecido de matebeira e chegou a ser moeda corrente (pagamento de soldados).
MAFUTA - Óleo de palma, palmeira e ainda uma das árvores sagradas dos kongo.
MAMÃS - Termo utilizado pelos kikongo ou kimbundo para designar uma mulher dona de casa e também chefe de família.
MANICONGO (MANIKONGO) - Termo por que era conhecido o rei do kongo.
MANI KAVUNGA - Primeiro lider o ‘Nsaku lau’ do primeiro clã uterino o ‘Mani’.
MANI MUIVI - termo pelo qual era conhecido o herdeiro ao trono do kongo, que traduzido à letra pode querer dizer: ‘o usurpador’.
MAZA TO NWA - Espaço de tempo para reflexão em que uma das partes de uma reunião pede para conferenciar em particular.
MBANZA KONGO - Cidade capital.
MBONGO - O dinheiro mais forte, o tributo mais forte (uma espécie de dólar USA).
MDIA - Movimento Democrático de Independência de Angola (movimento Zombo).
MFUMU - O patriarca (difere de Soba - o pai da povoação).
MINDELE (MUNDELE) - O europeu.
MINKITI - outro nome de Kankita.
MFUTILA, DO ZOMBO - Titulo de nobreza kongo muito importante.
MINKISI - Pode ser considerado o oráculo de Deus.
MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola.
MPANZU - Um dos três ícones míticos do reino do kongo.
MPOVI - Uma espécie de advogado. Aquele que fala em nome de uma das partes.
MUANA KENTO LUKENI - O ícone feminino mítico do reino do kongo.
MWENE - O senhor, mas com significado sagrado.
NDOKY - o poder maléfico.
NGANGA NZAMBI - Termo pelo qual eram conhecidos os missionários cristãos no Congo e Angola.
NGO - Leopardo, essência da força kongo.
NGUDIKAMA - Conselheiro real, e ao mesmo tempo manta fúnebre.
NKANDA - circuncisão.
NKISI - Uma espécie de santo para os kongo (um espírito de um antepassado).
NKOSO - Outro mascarrado zombo, ‘o senhor das penas’.
NKU’U - Simboliza o espírito do fundador kongo.
NTO’BAKO - partido independentista angolano pró-Portugal.
NSAKU - O pai uterino dos kongo.
NSAKU NE VUNDA - Era não só o detentor do poder religioso mas também o principal eleitor dos reis do kongo, sacerdote tradicional da coroação e figura primacial de Nzil’a Bazombo.
NS I - O verdadeiro significado de ‘nação’ no sentido de chão pátrio.
NSONGUILA NZILA - Pisteiros e mais tarde caçadores.
NTOTELA (NTOTILA) - o título pelo qual era conhecido o rei do kongo entre os seus.
NZANDU - praça ou mercado dos zombo, erguido em lugar neutral.
NZIL’A (NZILA) - Caminho.
NZIL’A BAZOMBO - no sentido orientador do futuro dos zombo.
NZO - Casa, mas acima de tudo o espaço físico e espiritual da mãe em sua casa.
NZULU MONGO (ZULU MONGO) - A montanha sagrada.
PEDRO V - O nome pelo qual era conhecido o rei do kongo ‘Katendy’.
PUMBEIRO - Aquele que ia negociar aos Pumbu (zona de compra de escravos).
PUMBU (PUMBO) - Zona de lagos ao norte de Kinshasa.
PUMBEIRO - O que ia negociar aos pumbo.
RELIGIÃO NKISI - A religião zombo (pode ser considerada o culto dos Antepassados).
SALU KIA KIANA - Agricultura da pequena floresta.
SOBA - (diferentes estatutos) - o pai da povoação.
TOCOISMO - Seita religiosa Zombo, hoje considerada uma das religiões Angolanas.
TU SUKULA MUANA - Lavar o recém nascido no sentido de o purificar.
UNITA - Movimento nacionalista, hoje partido político angolano.
UPA - Idem.
VATA - Aldeia.
XINGONGO - O nome pelo qual eram conhecidos ‘os paços do rei do Kongo’ em Banza Kongo.
ZAIRENSES - Termo pejorativo pelo qual são conhecidos os comerciantes zombo em Luanda.
ZEITGEIST - Termo alemão que quer dizer "espírito da época", ou "espírito dos tempos". Este conceito é frequentemente associado à arte, à história, a algo marcante em termos de pensamento e manifestação cultural.
ZIMBU - autêntica moeda pré fiduciária corrente nas terras do Congo, à qual eram atribuídas correspondências cambiais.
ZIMIE - Insígnia real que só o rei do kongo e o duque de Bata (zombo) podiam usar.
____________
* Doutorado em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Coimbra. africaprint@sapo.pt
____________
1 Inserida na obra Luanda/Porto 2003. Nesta altura, o edifício já estava em fase de recuperação.
2 Fotografia cedida por Tito O.D. Baião.
3 A informação é da Human Rights Watch, em Luanda, a 16 de Novembro de 2004. Não se conseguiu, por se estar na estação chuvosa em Maquela do Zombo, confirmar a situação. A ONG, todavia, entrevistou posteriormente uma vítima bem como o pessoal do hospital de Maquela do Zombo que a assistiu.
4 Pereira, João Pedro e Baião, Tito Osvaldo (2005) Luanda-Porto 2003 - Cidades Geminadas na Aventura da Paz. Edição Na Rota dos Povos. Porto.
5 Ibidem.
6 Começou por ser um pequeno suborno, agora "a gasosa", no quotidiano angolano, permite superar obstáculos formais aparentemente incontornáveis.
7 Mourisca, D. Francisco da Mata Mourisca in prefácio à dissertação de mestrado do autor ‘O Comerciante do Mato’.
8 Dados obtidos através do Grupo Provincial de Análise e Vulnerabilidade, Análise de Vulnerabilidade da População à Insegurança Alimentar, Uíje, Maio de 2004.
9 Schumacher, Ernest Friedrich (1980) Small is Beautiful:um estudo de economia em que as pessoas também contam. Publicações D. Quixote. Lisboa.
10 Peter, Laurence J. (1989) Análise de Peter. Editora Caravela. Lisboa, p. 9.