Desde há alguns anos que os conceitos de segurança internacional, no conceito da Carta das Nações Unidas, têm prevalecido sobre os conceitos de defesa nacional em termos de planeamento estratégico e consequente desenvolvimento das capacidades militares para o combate, com um nítido desequilíbrio dessas capacidades face ao que se entende por capacidades para a segurança ou outras operações militares que não o combate. É assim nas organizações regionais de segurança e de defesa, como a OTAN, que tem vindo a perder capacidades de combate, ou a UE, que tem vindo a apostar nas capacidades civis para a segurança e gestão de crises. O que se tem traduzido, em muitos dos seus Estados membros, em orçamentos para a defesa decrescentes, em alteração nos conceitos de serviço militar e substancial redução de efectivos, na perda de capacidades logísticas para sustentar tropas em campanha ou prover as denominadas “reservas de guerra”. A que se juntam crescentes vozes das opiniões públicas discordando sobre a opção de empenhar forças nacionais em conflitos de escolha sobre conflitos de necessidade, comentários de descrença de comandantes militares sobre as estratégias seguidas e novas interrogações sobre as relações civis-militares provocadas por este novo tipo de conflitos face ao empenhamento da força militar em missões policiais, de reconstrução e de convivência com empresas privadas no desempenho de funções militares que devem ter um enquadramento institucional do Estado.
Depois do início da última década do século passado, face ao novo panorama estratégico internacional, o empenhamento da Organização das Nações Unidas na resolução de conflitos, fiel aos princípios da Carta, e na procura de uma agenda para a segurança global, tem sido crescente. As Resoluções do seu Conselho de Segurança, relativamente ao tempo dos quarenta anos da denominada Guerra-Fria, cresceram exponencialmente. Novas ameaças e riscos obrigaram a que o conceito de resolução pacífica de conflitos tivesse de ser adaptado. Contrariamente a outros conflitos que a ONU teve de enfrentar, recorrendo a forças militares organizadas sob sua égide e com regras para o empenhamento da força militar ambíguas, surgiram conflitos em que o forçar a paz se apresentou como linha de partida. Foi assim nos Balcãs e no Afeganistão, em que a ONU, face às suas debilidades na organização de uma força militar própria, teve de recorrer a organizações regionais com credibilidade, como a OTAN e, mais recentemente, a UE para cumprirem a tarefa. Resultados?
De avaliação crítica e crescentemente duvidosa. Nas longínquas paragens do Afeganistão, tal como Eça de Queirós descrevia das suas Cartas de Inglaterra, em 1890, e quando ali decorria um conflito que não foi resolvido, o general comandante pedia para Inglaterra homens, chá e açúcar. Hoje os generais continuam a pedir homens, já que outras necessidades vão sendo providas pelas avultadas quantias que resultam do comércio do ópio e das taxas de permanência que os movimentos insurgentes vão cobrando às várias organizações e entidades que ali trabalham na denominada reconstrução para disporem de alguma segurança (fala-se em 40% do investimento feito, quando no Iraque era só de 20%). Quando se discute um novo conceito estratégico para a OTAN, algumas opiniões avisadas e experientes aconselham que a primeira coisa a incluir será uma solução política airosa para a Organização sair daquela missão out of area e também crescentemente reconhecida como out das suas capacidades militares actuais. A actual administração dos EUA, além de problemas internos, está a arranjar uma tremenda dor de dentes com o seu empenhamento crescente naquele conflito. Que está a mudar de características, na extensão, nos actores, nas tácticas utilizadas pela ameaça à força militar internacional e também no end state pretendido. Continuar a enfatizar capacidades militares só para a contra-insurreição vai conduzir a uma degradação das reais capacidades para combater e para ganhar.
Aqui mais próximo de nós, numa Europa que queremos mais unida e, consequentemente, menos conflituosa, a situação nos Balcãs entrou numa nova fase de degradação. Na Bósnia-Herzegovina fala-se na morte dos acordos de Dayton. A OTAN cumpriu a sua tarefa, com dificuldades mas com determinação na utilização das suas capacidades militares de então, pondo termo a uma mortandade que eliminou um milhão de pessoas, entre as quais 48 jornalistas que tentavam mostrar às opiniões públicas o que se passava. Quem viu o território entre 1996 e 2000 (e nós tivemos a oportunidade de ver) sentiu a diferença. No final de 1996, 17 governos estrangeiros, 18 agências da ONU, 27 organizações intergovernamentais, cerca de 200 organizações não-governamentais (ONG) e dezenas de milhares de tropas de todo o globo empenharam-se na reconstrução do país. Com base no investimento per capita, a reconstrução da Bósnia, com menos de 4 milhões de habitantes, faz parecer modestas as reconstruções da Alemanha e do Japão após a II GM. Na Bósnia actual a economia estagnou, o desemprego atinge 27%, cerca de 25% da população vive na pobreza, as tensões étnicas cresceram e a paz não será longa. O Kosovo, a que uma acção militar determinada da OTAN deu autonomia, tem tido dificuldades em afirmar-se como Estado apesar dos esforços actuais, humanos e financeiros, da UE na sua operação Eulex para restabelecer a lei e boa governação.
Um balanço destes anos de empenhamento de forças militares em operações de apoio aos esforços para uma segurança colectiva levanta crescentes reflexões e interrogações, sobre o caminho percorrido e o rumo para o futuro. Quais devem ser as estratégias conceptuais e organizacionais para definir o uso da força, e as capacidades, organização, educação e treino das forças militares nacionais? Mais orientadas pela segurança internacional ou pela defesa nacional, esquecendo, muitas vezes, que forças bem aptas para a defesa nacional se adaptam facilmente a missões de segurança colectiva e o contrário não é tão evidente? Com a utilização de forças militares em missões policiais e, algumas vezes, com forças de segurança em missões militares, não estaremos a percorrer um caminho perigoso de conceitos e indefinição sobre quem deve fazer aquilo para que existe? Forçar a paz significa ter de combater, mesmo naquilo que erradamente se convencionou designar por guerras assimétricas. Manter a paz ou reconstruir são tarefas diferentes. Quais as consequências, a longo prazo, para o envolvimento da força militar em tarefas para que não foi primariamente concebida? O crescente envolvimento dos estadistas na condução dos conflitos, sobrepondo-se algumas vezes à acção de comando, a que se junta a presença crescente de serviços a desempenharem missões que competiriam à força militar (se dispusesse de efectivos…), levanta a questão tradicional das relações civis-militares. Estaremos num novo tipo de relações?
A Constituição da República, no seu Artigo 275º define as Forças Armadas e as suas missões, onde o nº 1 diz que “Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República” e a Revisão de 1997 acrescentou o nº 5 que diz “Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”. As Forças Armadas Portuguesas têm satisfeito os compromissos militares do Estado nas organizações internacionais e, desde 1993, tem desempenhado, com apreço reconhecido e motivação, missões de apoio à paz.
Perante as interrogações que se colocam ao emprego da força militar em recentes conflitos é importante que as Forças Armadas Portuguesas não percam as suas capacidades de combate - aquelas que são fundamentais para a defesa militar da República - caindo na tentação de desenvolver as capacidades para operações que não a guerra ou missões de utilidade pública. É que se houver necessidade de defender Portugal, os portugueses e os seus interesses, serão necessárias capacidades militares, geradas e instruídas por cada Ramo das Forças Armadas e utilizadas em conjunto, que não se improvisam e que exigem ser utilizadas por homens e mulheres que acreditam e juram defender combatendo. Outras capacidades podem ser improvisadas e, crescentemente, alugadas.
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* Presidente da Direcção da Revista Militar.