Nº 2493 - Outubro de 2009
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Iraque - Breve reflexão prospectiva
Coronel
Nuno Miguel Pascoal Dias Pereira da Silva

1.  Introdução

Foi-nos pedido, uma vez que estivemos cerca de seis meses no Iraque, para falarmos e reflectirmos um pouco sobre este Teatro de Operações.
 
Não pretendemos efectuar uma análise muito pormenorizada da situação actual do Iraque, uma vez o objecto deste estudo é o de apresentar uma caracterização geopolítica da região, para uma aula de geopolítica do curso de licenciatura em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
 
Vamos tentar identificar os traços principais que caracterizam a região, bem como elencar alguns antecedentes históricos, que possam servir para ajudar a pensar o presente e a reflectir sobre o futuro, tendo em vista evitar que se cometam os mesmos erros cometidos no passado recente e que levaram a que actualmente o país esteja mergulhado numa guerra civil entre etnias e religiões, em que o único objectivo comum (que as une) é o ódio aos americanos.
 
Vamos tentar demonstrar que os problemas que ora se vivem no Iraque, foram consequência do desmembramento do Império Otomano e de algumas decisões apressadas efectuadas pelos britânicos na Conferência do Cairo em 1920.
 
Vamos ainda falar sobre a política actual do Iraque e das eventuais soluções para o conflito, partindo do pressuposto de que a divisão do Iraque em estados independentes e em mais regiões autónomas não parece ser viável.
 
Vamos tentar elencar todos os grupos insurgentes existentes no Iraque e tentar identificar as suas motivações, bem como tentar demonstrar que a solução para o conflito, passa pelo entendimento com os países vizinhos do Iraque, pois é aí que estão as principais bases logísticas dos grupos insurgentes.
 
Vamos acabar a falar da missão da NATO que nos levou ao Iraque, onde muito aprendemos a trabalhar com uma civilização diferente da nossa.
 

2.  Generalidades/Caracterização geral da região

O Médio Oriente assume uma posição central em relação aos Continentes Europeu, Africano e Asiático, sendo daí fácil aceder a estes três continentes, permitindo, por isso, balancear forças duns continentes para outros, facto que faz com que a região tenha uma importância acrescida em termos estratégicos e operacionais.
 
O petróleo é uma das matérias primas que existe em grande abundância no Médio Oriente, muito em especial no Iraque, país que é considerado a terceira maior reserva petrolífera do mundo.
 
O petróleo é fundamental para o bem-estar do Ocidente. Segurança, progresso e bem-estar são, como sabemos, os fins políticos dos Estados e/ou das organizações internacionais e alianças militares. Sem bem-estar não há segurança nem progresso.
 
A título de exemplo, na União Europeia, quando se estavam a desenvolver as capacidades marítimas necessárias para atingir o Objectivo de Força para 2010, entrou-se sempre em linha de conta com a necessidade de navios de guerra para escoltar navios cisterna de petróleo, das suas fontes até à Europa.
 
Na comemoração do sexagésimo aniversário da Aliança Atlântica foi decidido, mais uma vez, reformular o seu conceito estratégico tendo em vista responder às novas necessidades de segurança para fazer face às novas ameaças, nomeadamente as relativas aos estados falhados e ao acesso às fontes energéticas.
 
O Iraque e os países árabes da região do Médio Oriente vivem numa civilização diferente da civilização ocidental, caracterizada por outra cultura, outros usos e costumes e uma religião diferente, o que faz com que os seus valores e princípios sejam distintos dos nossos, embora existam alguns pontos de convergência.
 
A religião islâmica impôs-se, desde a sua génese, pela força, tendo a tribo de Maomé submetido as outras tribos e destruído o local de culto em Meca onde todas as tribos guardavam os respectivos deuses. Este factor é, para nós, relevante pois o uso da força esteve, desde sempre, na base do Islão. Duas correntes importantes do Islão, o xiismo e o sunismo, apareceram logo após a morte do profeta.
 
O profeta Maomé terá dito no seu leito de morte que quem o devia substituir após o seu falecimento era aquele que mais próximo dele estivesse. Esta afirmação dúbia originou duas interpretações distintas das suas palavras, que imediatamente geraram duas correntes distintas do Islamismo, o sunismo e o xiismo.
 
O indivíduo que estava mais perto de Maomé, por laços familiares, era o profeta Ali, seu genro e primo, que fundou o xiismo, e o que estava mais perto dele, em questões doutrinárias (teológicas), era um dos seus seguidores de nome AbouBaker, fundador do sunismo, tendo tido um primado muito curto foi sucedido por Omaar. Ao longo dos tempos, as posições destas duas correntes foram-se extremando, levando ainda hoje a que, em nome da fé, se digladiem entre si.
 

3.  Antecedentes históricos

A região onde actualmente existe o Iraque é considerada um dos berços da civilização ocidental, a Mesopotâmia, tendo por isso a sido estudada, desde sempre, em profundidade por todos os historiadores.
 
A cidade de Bagdad, actual capital do Iraque, foi sede do império Abássida que controlou o Norte de África, tendo, inclusive, controlado e conquistado a Península Ibérica. Na época, os árabes estavam mais desenvolvidos em termos científicos e tecnológicos que os europeus, que viviam, na Idade Média, um dos períodos mais obscurantistas da História do Continente.
 
Na História recente, o Império Otomano controlou a região do Médio Oriente, tendo sido aliado dos alemães e do império Austro-Húngaro, na I Guerra Mundial que, como sabemos, foram os grandes derrotados do conflito.
 
Durante o período da I Guerra Mundial, houve uma grande revolta das tribos árabes contra os otomanos, patrocinada e incentivada pelo Império Britânico. Na génese dessa revolta teve grande destaque a personagem lendária do coronel dos Serviços Secretos Britânicos, “Sir Lawrence”, que muito contribuiu para a derrota do Império Otomano.
 
Com o fim da I Grande Guerra Mundial deu-se a queda do Império Otomano, toda a região do que é actualmente o território iraquiano, fica sob o domínio do Império Britânico, com um mandato da Sociedade das Nações.
 
Toda a região do Médio Oriente é “dada” aos britânicos e aos franceses: a título de exemplo a Síria e o Líbano são entregues aos franceses.
 
Os britânicos, a exemplo do que faziam na Índia, a sua Jóia da Coroa, pretendiam governar a região do Iraque duma forma semelhante, através da nomeação de uma espécie de “marajás” locais. Para esse efeito, foi escolhido o futuro rei Faiçal, de origem da região actual da Síria. O rei Faiçal foi a solução britânica encontrada para governar o território do Iraque, os “saudis” para governar a Arábia Saudita, e os “hachemitas” para governar a Jordânia.
Sir Winston Churchill, na altura ministro do governo britânico com a pasta dos territórios coloniais, começou a querer cortar despesas visto que estava a haver um dispêndio excessivo de recursos materiais e humanos, com a manutenção do exército britânico no território do que é actualmente o Iraque.
 
O petróleo, embora começasse a ter importância, dado estarmos no início da motorização das tropas, não tinha a importância que tem actualmente, pelo que eram muito menores os eventuais interesses da coroa britânica na região.
 
As tropas britânicas estacionadas no território Iraquiano eram muito numerosas, tendo começado a sofrer alguns revezes militares. A situação que se vivia no território de excessivos gastos de recursos materiais e humanos tem bastantes similitudes com a situação actual, conforme iremos posteriormente constatar.
 
Winston Churchill promove a Conferência do Cairo, em 1920, para resolver os problemas com os territórios do Médio Oriente que estavam sobre protectorado britânico, tendo nessa Conferência sido decidido em grande parte o futuro do Médio Oriente e inventado o Estado do Iraque e o Estado Palestiniano.
 
Na conferência do Cairo, a propósito da região ora denominada por Iraque foi decidido não criar uma região independente para a nação curda, decisão em nosso entender apressada e errónea, que ainda hoje ensombra a paz na região, concomitantemente foi decidido efectuar a junção das tribos xiitas a sul, região de Al-Bassra, com as tribos sunis do norte, formando o actual Estado artificial do Iraque, multi-étnico, multi-cultural e multi-religioso, gerador, desde a sua génese, de conflitos internos de difícil solução, como actualmente podemos constatar.
 
Os principais dados estatísticos distribuem a população pelos seguintes grupos religiosos: cerca de 60% de xiitas e 40% de sunitas. Os cristãos e turcomanos têm percentagens marginais sendo minorias que somadas não ultrapassam os 4%. No regime de Saddam Hussein os cristãos eram bem tratados, havendo inclusive ministros cristãos, facto que não acontece hoje em dia. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, na fase final do regime do Saddam Hussein, Tarek Aziz, era um cristão.
 
A actual região do Iraque é completamente dominada pelas cerca de setenta tribos. Os chefes das tribos são quem ordena entre as suas gentes, mesmo as que vivem em áreas urbanas fora das suas regiões de origem.
 
Os iraquianos reconhecem primordialmente e por esta ordem a autoridade da família, da tribo, da religião e só, por último, a autoridade do Estado que, neste caso, não coincide com qualquer nação.
 
O primeiro-ministro britânico, no final da conferência do Cairo, felicita Churchill pelo êxito de ter conseguido transformar uma amálgama de tribos numa “nação” e num Estado. Como ora podemos constatar quase passados oitenta anos, o primeiro-ministro britânico não tinha razão alguma para se regozijar, uma vez que o Iraque nunca deixou de ser uma amálgama de tribos, só tendo conseguido afirmar-se como Estado pela força das sucessivas ditaduras.
 
Após a conferência do Cairo, o rei Faiçal, escolhido como atrás vimos pelos ingleses para governar o território do Iraque, é aclamado como soberano pelas diversas tribos do território após um trabalho profícuo dos súbditos de Sua Majestade com os diversos chefes tribais.
 
Imediatamente, após a proclamação de Faiçal, os britânicos começam a treinar o exército iraquiano, pretendendo continuar a controlar o país através dos seus assessores militares colocados no exército e através do poder aéreo da “Royal Air Force”.
 
Como veremos mais à frente, neste artigo, a actual “receita” dos EUA para a resolução do conflito no Iraque é semelhante à receita dos britânicos, cerca de oitenta anos antes.
 
O rei Faiçal começou, imediatamente após a sua aclamação, a surpreender os britânicos pela negativa, conseguindo obrigar a sociedade das nações a modificar o mandato de protectorado britânico para o território iraquiano, contra a vontade da coroa britânica. Este facto deu-lhe grande popularidade na região e legitimou-o perante o seu povo, deu-lhe a legitimidade popular que lhe faltava.
 
O partido “Baath”, o partido do Saddam Hussein, que governou o Iraque, após a era de Faiçal e até á invasão dos USA, tem origem na Síria. Desde a sua génese o partido “Baath” teve duas “cabeças”, uma para o Iraque e outra para a Síria, facto que actualmente justifica o apoio da Síria à insurgência contra os americanos e contra o actual governo iraquiano suportado pelos EUA.
 
O Partido “Baath” pretendia construir um estado forte, tendo para isso combatido o tribalismo, o separatismo e o fundamentalismo religioso, tendo em vista submeter as diversas tribos e nações existentes no território do Iraque pela força e pelo medo.
 
O Iraque, nos tempos da governação de “Saddam Hussein”, foi um regime ditatorial, suportado pelo partido Baath. Na maioria dos países da região do Médio Oriente, actualmente continuam a existir regimes ditatoriais, sendo a Turquia e o Estado de Israel as únicas e honrosas excepções a esta forma autocrática de exercer o poder.
 
Por paradoxal que hoje possa parecer, durante o período da guerra Irão-Iraque, os americanos, futuros invasores do Iraque foram os grandes aliados de Saddam e do seu regime, uma vez que estes, estavam na altura a defender os seus interesses na região.
 

4.  História recente do Iraque

Durante o ano de 1990, dá-se a invasão do Kuwait pelo Iraque, aparentemente, na sequência de umas negociações falhadas entre o Estado iraquiano e o Kuwait. Os iraquianos exigiam do Kuwait compensações pecuniárias, por alegadamente estes não terem respeitado os preços acordados para a venda de crude no mercado internacional, tendo provocado um efeito de “dumping”, facto que dificultava muito o pagamento das dívidas da guerra Irão-Iraque.
 
A “estória” da história, refere que no meio das intermináveis negociações que estavam a decorrer entre os dois países, o emir do Kuwait se terá referido a Saddam Hussein duma forma menos respeitosa, apelidando-o de “filho da...”, o que desagradou muito a Saddam que pelo que se sabe teria alguns problemas em encarar o passado dos seus progenitores.
 
A Primeira Guerra do Golfo terminou com a retirada iraquiana do Kuwait após a ofensiva americana liderada no terreno pelo General Schwarzkopf.
 
Após o fim da invasão, vários mandatos das Nações Unidas foram emitidos tendo em vista limitar o poder do ditador na região, impedindo-o de chacinar populações e de investigar, tendo em vista impedir a produção de armas de destruição maciça. Para o efeito, foi efectuado um embargo ao Iraque.
 
O território iraquiano foi invadido pelos EUA e, por alguns países com ele coligados, em 2003, após uma orquestrada e bem montada operação de mistificação e manipulação da opinião pública internacional, que pretendia afirmar que o Iraque estava a desenvolver armas de destruição maciça.
 
Como nos recordamos, a primeira fase da campanha de “libertação do Iraque”, a guerra clássica contra as forças armadas iraquianas foi rápida e eficaz, tendo o país sido “libertado” da ditadura de Saddam.
Após o sucesso da campanha clássica dos EUA, em que os americanos foram inicialmente vistos como libertadores, pelo menos pelos xiitas e curdos, os EUA demonstraram uma incapacidade total de gerir o pós-guerra, não apresentando soluções políticas nem administrativas para a solução de problemas básicos, tais como o fornecimento de água e de luz.
 
O desmembramento do exército do regime de Saddam, uma das primeiras medidas de libertação preconizadas pelos EUA, foi um erro crasso, pois imediatamente a maioria dos seus oficiais passou à sublevação, ou como modernamente se diz, à insurgência.
 
Em Portugal, aquando das invasões francesas, os ocupantes erroneamente também destruíram o exército convencional, facto que obrigou a que os seus membros passassem imediatamente a líderes da guerrilha, e da sublevação popular.
 
Os EUA, dada a incapacidade demonstrada na fase posterior à ocupação, passaram rapidamente de libertadores a invasores e a principal “inimigo”, mesmo para a maioria xiita aparentemente a grande beneficiada com a queda do regime de Saddam.
 

5.  A insurgência

Os principais grupos insurgentes existentes no Iraque são:
- Os quadros e membros das antigas forças armadas leais a Saddam, maioritariamente sunitas mas acima de tudo nacionalistas. Estes elementos utilizam o território da Síria como sua Base Logística, (não nos podemos esquecer que o partido Baath aí teve a sua génese conjunta). A Síria, aquando da invasão americana, acolheu uma das filhas de Saddam bem como parte das suas riquezas que ora estão a ser usadas para financiar a insurgência.
- O movimento ou partido liderado por Mokata Al Sadr e seus seguidores, que com a sua tribo lideram os xiitas fundamentalistas do Iraque e um exército que designam por “Al Madi army” (Al Madi foi um dos sucessores de Ali, que segundo consta a história foi tão bom e tão Santo que virá à frente dum exército com Jesus Cristo, no dia do juízo final). Este grupo insurgente tem como base de apoio e logística o Irão.
- As tribos xiitas não fundamentalistas são lideradas espiritualmente pelo iman moderado e pró ocidental Ali Al Sustani. Estas duas facções xiitas lideradas pelo Al Sadr e pelo Ali Al Sustani já estiveram em guerra pelo controlo do Sul do Iraque.
- Os curdos, que após guerra civil interna pelo poder entre as facções lideradas pelo ora Presidente da Républica do Iraque e o Primeiro-Ministro da Região Curda, quiseram inicialmente a independência tendo conseguido somente uma autonomia muito alargada, lutam actualmente por expandir a sua região para outras províncias, que no passado faziam parte da região curda (Região de Kirkuk).
- A Al Qaeda que faz do país um campo de treinos para lutar contra os EUA, sendo notório o apoio que têm das tribos sunitas. Como sabemos este grupo terrorista internacional teve a sua génese na Arábia Saudita país sunita por excelência.
 
Em nossa opinião, o problema do Iraque e das lutas entre facções e grupos de insurgentes só se poderá eventualmente resolver com a colaboração dos países vizinhos, ou seja o problema só se poderá começar a resolver, quando estes deixarem de poder contar com as principais bases logísticas de apoio fora do território Iraquiano.
 
As principais pretensões dos diferentes grupos insurgentes são na sua essência muito semelhantes, pretendendo dividir o Iraque em regiões e territórios independentes.
 
A constituição dum estado federal ou, em último ratio, a concessão de autonomias alargadas poderão ser uma solução, muito embora o actual primeiro-ministro do Iraque seja de opinião contrária, uma vez que há muita dificuldade em traçarem-se fronteiras entre estados federais.
 
Qualquer fronteira que eventualmente se trace causará graves perturbações e crispações uma vez que é difícil dividir as riquezas do subsolo, uma das razões pelas quais os insurgentes lutam entre si.
 
Todos os grupos (excepção da Al Qaeda) pretendem, antes que seja efectuada ou intentada qualquer divisão do território Iraquiano controlar/conquistar determinadas cidades e províncias, que no passado pertenciam à sua região, pretensões históricas, a que não são alheias as riquezas pelo controlo das jazidas de petróleo nelas existentes.
 
Todos os grupos insurgentes, sem excepção, pretendem lutar contra os EUA que são um inimigo comum.
 

6.  Política e Governo actual do Iraque

O actual primeiro-ministro Al-Maliki é um xiita moderado da confiança dos EUA e, por eles, colocado no poder. As primeiras eleições legislativas efectuadas democraticamente vão ocorrer no final do corrente ano (2009).
 
Os diversos ministérios do governo actualmente no poder no Iraque, liderados por Maliki, reflectem as diferentes tendências étnicas e religiosas existentes no país. Assim, a título de exemplo, o ministro da defesa é suni e o do interior é xiita. O ministério da Saúde foi muito tempo da corrente fundamentalista xiita liderada por Al Sadr.
 
Em nossa opinião, ganhará as eleições legislativas nacionais quem conseguir fazer vergar os EUA e fazê-los sair do território, a exemplo de Faiçal, não pode por isso haver qualquer cedência por parte do partido do Maliki, ao actual acordo de segurança assinado entre o Iraque e os EUA, assinado pelo Presidente George Bush, em final de mandato.
 
O acordo de segurança assinado pelo Iraque com os EUA, que vigora, desde o dia 1 de Janeiro do corrente ano, é uma vitória política dos iraquianos, peritos na arte milenar dos “negociadores de tapetes”, pois obrigaram os EUA a ceder em quase todos os pontos, sendo por esse facto esse dia unanimemente considerado como o reinício da soberania pelos iraquianos.
 
A cedência americana consistiu essencialmente em quatro pontos que foram incluídos no acordo final e que não constavam dos “drafts” iniciais, nomeadamente:
- Saída impreterível de todas as tropas americanas do território iraquiano até 2011;
- Não colocação de bases militares no território iraquiano;
- Não utilização o território iraquiano para atacar o Irão;
- Não existência de imunidade para as empresas de segurança e uma imunidade limitada para as Forças Armadas dos EUA enquanto se mantiverem no território.
 
Quem, como nós, acompanhou de perto esta negociação, observou a forma magistral como os iraquianos geriram o tempo em seu favor, fazendo com que os americanos cedessem a todas as suas pretensões. Os iraquianos sabiam que os americanos tinham obrigatoriamente que conseguir um acordo até 1 de Janeiro de 2009, sob risco que as suas Forças Armadas ficassem em situação ilegal no território, uma vez que o Mandato das Nações Unidas que autorizava que as Forças da Coligação permanecessem no território expirava nessa data.
 
Os EUA, ao invés dos antigos impérios coloniais europeus, não costumam ocupar o terreno (território), antes, controlam-no política e economicamente. Militarmente controlam-no através de bases militares no território ou nas imediações, prontas para rapidamente poderem ser utilizadas pelas suas forças armadas para eventuais operações.
Não nos esquecendo de Clausewitz que definia que a “Guerra é a continuação da diplomacia por outros meios”, não sendo um fim em si mesma e que com ela se pretendia alcançar uma posição de superioridade para se poder voltar a negociar em vantagem, parece-nos que o acordo de segurança, assinado entre a República do Iraque e os EUA, só pecou por tardio uma vez que a vantagem dos EUA, na altura, já não era tão evidente como no final da fase clássica da campanha.
 
A assinatura do acordo de segurança também é favorável aos EUA pois, a exemplo do Reino Unido, há cerca de oitenta anos atrás, só em termos financeiros estes já despenderam cerca de seiscentos biliões de dólares, facto que, aliado às perdas humanas faz com que o esforço de guerra se comece a reflectir internamente.
 
Parece-nos no entanto, pelos motivos enunciados nas alíneas supra, que as negociações estabelecidas no acordo de segurança entre os EUA e o Iraque embora tardias ainda vieram, a tempo pois os EUA tem concomitantemente com a pacificação e reconstrução do território, investido na formação e treino dumas forças armadas modernas e credíveis de forma a preparar o país para dele poderem sair.
 
O Parlamento iraquiano, após a assinatura do acordo de segurança com os EUA, determinou que as outras forças da actual Coligação Militar que se encontram no Iraque bem como a NATO TRAINING MISSION IRAQ, deveriam obrigatoriamente sair do território iraquiano até ao fim de Julho do corrente ano, tendo para este efeito delegado competências no actual governo para estabelecer MOU com os países e organizações em causa.
 
Como estamos a ver passados oitenta anos os EUA e os iraquianos parecem estar a ler a mesma pauta de música já lida pelos britânicos e iraquianos cerca de oitenta anos antes, que obrigou na altura à mudança do texto da Sociedade das Nações que designava o território iraquiano como protectorado britânico.
 

7.  Soluções para o conflito

Partindo dos pressupostos:
- Que se deve impedir a divisão do território iraquiano em três estados independentes;
- Que se deve evitar a todo o custo a independência do Curdistão, pois tal facto teria inevitavelmente uma veemente oposição da Turquia, o aliado por excelência dos EUA e da NATO na Região, bem como a oposição de três outros países da região, nomeadamente a Turquia, a Síria, o Irão e Iraque, países onde está localizada a nação curda;
- Que se deve favorecer a estabilidade no país e na Região do Médio Oriente, para isso o Iraque deve possuir capacidades militares suficientes e credíveis para contribuir para que haja um equilíbrio regional;
- Que os EUA não pretendem gastar muito mais recursos financeiros materiais e humanos no Iraque, pois pretendem controlar o país através de bases militares eventualmente no interior e ou no exterior do território, assim como através da colocação de assessores militares e civis.
 
Parece-nos:
- Que não se deverá apoiar uma solução federal para o país, devido à oposição firme da Turquia com receio de que essa divisão venha no futuro se criar uma cisão do Iraque em Estados Independentes.
- Que qualquer divisão do Iraque será internamente “dolorosa”, pois será difícil dividir irmãmente as riquezas do petróleo entre os eventuais estados federais a criar, embora tal distribuição equitativa esteja consignada na constituição iraquiana e, por ser muito difícil definir claramente as fronteiras entre os Estados e mesmo dentro de Bagdad. Este facto a ocorrer poderia agravar ainda mais a guerra civil que grassa no território entre etnias pelo acesso e controlo a essas riquezas.
- Ser de apoiar o actual primeiro-ministro do país Al Maliki, líder moderado posto a chefiar o Iraque pelos EUA, que pretende não dividir o país nem apoiar ou favorecer o aparecimento de mais autonomias regionais que levem à cisão do actual território Iraquiano. Al Maliki tem de ser eleito nas eleições legislativas em Dezembro do corrente ano com o apoio das suas gentes, xiitas moderados e concomitantemente conseguir ter o apoio de algumas tribos curdas (xiitas) e sunitas, para após as eleições, poder governar o país democraticamente. Maliki foi o grande vencedor no estabelecimento dos acordos de segurança com os EUA, pelo que poderá catalisar esse sucesso nacionalmente se o conseguir fazer cumprir na íntegra.
- Que caso Maliki não ganhe as eleições do final do ano em curso se deva apoiar o novo líder emergente, de forma a poder contar com o seu apoio (espera-se que um eventual um novo líder a sair dumas eleições legislativas seja um moderado não fundamentalista).
- Continuar a formar umas forças armadas e de segurança modernas e credíveis, comandadas por sistemas de C3I eficientes, capazes de garantirem a segurança e integridade do território, tendo em vista estabelecer um equilíbrio regional no país.
 
As soluções por nós preconizadas, baseadas nos pressupostos que estabelecemos não são muito diferentes das encontradas pelos ingleses oitenta anos atrás, veremos se estas se conseguirão aguentar também por igual período de tempo, cerca de oitenta anos.
 

8.  NATO/NATO Training Mission Iraq (Ntm-i)

a.  Generalidades
A presença da NATO no Iraque, muito embora com uma missão de não combate a incidir só no domínio da formação e treino das novas forças armadas iraquianas, foi muito importante para os EUA pois em conjunto com as forças da coligação foram o garante da presença de várias bandeiras no território e da consequente multi-nacionalidade necessária neste tipo de intervenções militares, legitimando aparentemente uma intervenção militar dos EUA e da coligação de duvidosa legitimidade.
Muito embora a missão da NATO seja exclusivamente no domínio de formação e treino das forças armadas e de segurança iraquianas, o governo liderado por Maliki parece ter pouca ou nenhuma margem de manobra para autorizar que a missão continue no território iraquiano, uma vez que o Conselho de Representantes (Parlamento) o não autorizou, por não pretenderem estabelecer qualquer outro acordo de segurança com nenhum outro país ou organização. Este facto deixou a missão da NATO desde Janeiro do corrente ano sem qualquer estatuto no território e numa situação de ilegitimidade à luz do Direito Internacional.
 
b.  Principais “outputs” da actual missão da NATO
A NATO Training Mission Iraq (NTM-I) é um Quartel-General com todas as capacidades e valências normais e com a consequente organização em J, do J1 ao J8, a que se juntam duas outras capacidades e valências com as respectivas estruturas nomeadamente, uma que coordena as equipas de assessoria dos centros de comando e controlo nacionais e outra que coordena a área da formação e treino das forças armadas e de segurança.
Os principais “outputs” da missão são:
- Auxiliar e formar as estruturas de Comando e Controlo das três estruturas de Comando e Controlo existentes, respectivamente o Centro de operações nacional, o Centro de Operações Conjunto das Forças Armadas e o Centro de Operações das Forças de Segurança. Esta missão em princípio findará em Julho do corrente ano com a declaração formal de que estas estruturas atingiram o “Final Operational Capability” (FOC).
- Dar formação a todos os níveis, respectivamente a oficiais, sargentos e praças das Forças Armadas e das Forças de Segurança, desde os cursos mais básicos até aos mais avançados.
 
c.  Principais problemas que se põem à Missão da NTM-I
Um dos principais problemas que se põem ao NTM-I tem a ver com a dependência da Missão em termos de comando e controlo, muito embora a missão esteja dependente em termos formais da sua estrutura normal de comandos NATO, no terreno a situação é dúbia uma vez que o general que comanda a NTM-I é o mesmo que comanda o Comando de Transição das Forças da Coligação no Iraque.
Não raras vezes as reuniões destes comandos são feitas em conjunto, sendo muita vez referido pelo general comandante que não lhe interessava qual das estruturas fazia o quê, o que lhe interessava é que concretizassem na prática os objectivos traçados pela coligação, facto que originava com que se trabalhasse concorrentemente, ou seja a mesma missão era atribuída às duas Organizações.
A maioria das nações representadas no NTM-I são relativamente “novas” na Organização, com manifesta falta de falta de formação, denotando lacunas graves em termos doutrinários (total ausência de conhecimento de STANAG e dos AJP).
O russo é a língua mais falada no QG, havendo alguns dos elementos com graves dificuldades em falar a língua inglesa.
A maioria dos oficiais e sargentos a trabalhar no NTM-I, por serem oriundos, como vimos, de novos países, não são ainda “NATO minded”. A NATO é para eles uma organização estranha que não conseguem compreender.
A maioria das nações tem agendas próprias, que muitas vezes se sobrepõem à agenda da NATO.
Sem acordo de segurança ou outro qualquer acordo a estabelecer com o Estado iraquiano, os militares presentes no NTM-I não têm qualquer estatuto legal, podendo inclusive ser julgados e condenados num Estado que não é actualmente um Estado de Direito.
 
d.  Futuro da NTM-I
Uma vez que algumas das actuais missões da NTM-I parecem estar brevemente a terminar é necessário redefinir novas missões, e acordá-las com o Estado iraquiano.
Caso seja do interesse das duas partes é necessário renegociar-se um acordo legal que permita que a NTM-I e os seus elementos tenham um estatuto legal.
Qualquer nova cooperação com a NATO deverá, em nossa opinião, ser feita ao abrigo dos acordos Istambul, devendo o Estado iraquiano como Estado soberano que já é, solicitar formalmente a colaboração da Organização.
Parece-nos que a NTM-I, nas actuais condições impostas pelo Parlamento iraquiano que se opõem à manutenção da NATO no território, só poderá eventualmente permanecer no Iraque se lhe for reconhecido que executa uma missão diplomática e não militar podendo, por isso, serem-lhe aplicados os estatutos consignados nos acordos de Roma.
 
Para os EUA a manutenção da NTM-I no território Iraquiano já não é tão importante pois já têm um acordo legal até 2011, facto que faz com que a presença de outras bandeiras no território não seja ora tão relevante.
Não deixa de ser curioso que quando Portugal abandonou a missão em Março deste ano, por ausência de estatuto legal, a Espanha se tenha oferecido para cooperar no âmbito da guarda das fronteiras.
 
e.  Participação Portuguesa na NTM-I
Portugal liderou o ”Mobile Advisor and Mentoring Team” (MAMT) a actuar no Centro de Comando e Controlo Nacional, centro de decisão inter-ministerial dependente do primeiro-ministro, através da Agência Nacional de Segurança, e participou com pessoal na área da formação das forças armadas, tendo ainda guarnecido com pessoal o QG, nomeadamente, no J4 e J8.
A qualidade da prestação portuguesa foi alvo de reconhecimento público pelas autoridades do Iraque tendo a nossa saída sido alvo de consternação, no entanto parece-nos que esta foi efectuada na altura certa, pela actual ausência de estatuto legal e pela necessidade da reformulação das actuais missões.
A eventual participação de Portugal no NTM-I, no futuro dependerá da eventual permanência da NATO no território, bem como da vontade política nacional.
 

9.  Conclusões

A invenção do Iraque, atribuída a Churchill na Conferência do Cairo, e as decisões que nela foram tomadas reflectem-se hoje em dia em toda a região sendo hoje de muito mais difícil solução.
 
Os problemas financeiros que se puseram aos britânicos na década de 20 do século passado, repetem-se hoje em dia sendo muito difícil para os EUA manterem o esforço de guerra no Iraque.
 
O Iraque, actualmente, encontra-se numa guerra civil em que os grupos que designámos como insurgentes estão em guerra uns contra os outros e também, contra o exército ocupante dos EUA.
 
Os grupos insurgentes possuem bases logísticas nos territórios vizinhos, razão pela qual é necessário que se inicie uma negociação séria com este países, tendo em vista terminar a guerra.
 
As soluções preconizadas para que os EUA possam sair do território são a aposta na formação e treino dumas forças armadas e de segurança credíveis e modernas e concomitantemente controlar o país através de assessores militares da força aérea e do espaço. Esta solução é semelhante à que foi preconizada pelos britânicos, cerca de oitenta anos atrás, aquando da sua retirada do território.
 
O apoio a Al-Maliki e ao seu governo é uma aposta dos EUA para que o país não se divida, confiando na habilidade deste para fazer as alianças necessárias com as tribos, impedindo assim a divisão do Iraque.
 
O problema curdo é um problema de difícil solução uma vez que os turcos, grandes aliados do Ocidente, não querem sequer ouvir falar.
 
Uma eventual divisão do Iraque é de difícil consenso uma vez que é difícil dividir irmãmente as riquezas em hidrocarbonetos existentes no subsolo.
 
A assinatura do acordo de segurança com os EUA foi uma vitória política dos iraquianos que souberam negociar, obrigando os EUA a sair do deu território até 2011 e a ceder em todos os pontos importantes para a soberania do Iraque.
 
A Missão da NATO no Iraque tem que ser renegociada e repensada pois actualmente está ilegal no território.
 
A saída dos portugueses da Missão da NATO no Iraque, no final do mês de Março do corrente ano, foi uma solução, em nosso entender, muito acertada uma vez que não nos parece ser possível mantermo-nos no território sem qualquer Estatuto legal.
 
 
*      Coronel de Infantaria. Sócio Efectivo da Revista Militar.
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2010-02-26
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by COM Armando Dias Correia