Nº 2494 - Novembro de 2009
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As Novas e Antigas Ameaças para Portugal e Espanha: Percepções, Realidade e Prospectivas
Major-general
João Jorge Botelho Vieira Borges

“Sem cultura estratégica, povos, sociedades e organizações não podem aspirar a um progresso em bases sólidas ou a assegurar a sua própria sobrevivência.”[1]

 

1.  Introdução

Num momento de mudança do sistema político internacional[2], em que vivemos em simultâneo as crises financeiras, de recursos, de valores, de lideranças, demográfica e ambiental, abordar a questão das ameaças torna-se ainda mais complexo. Efectivamente, se é indiscutível que as ameaças constituem umas das variáveis mais importantes do planeamento estratégico, por outro lado, são hoje mais globais, mais desmilitarizadas, menos territoriais, e inclusivamente mais difíceis de identificar e caracterizar.
 
No sentido de entendermos melhor a diferença entre as antigas e as novas ameaças, começaremos por caracterizar esta variável estratégica de todos os tempos, para depois analisarmos as percepções que hoje os cidadãos (e em particular os portugueses e os espanhóis) têm em relação às ameaças. Compararemos depois estas percepções com a realidade institucional, materializada nos ciclos de planeamento estratégico de Portugal e Espanha, e terminaremos com umas considerações finais em jeito de conclusões, mas também de prospectivas de âmbito estrutural para a Segurança e Defesa nos dois países da Península Ibérica.
 

2.  A Ameaça como Variável Estratégica

Quando abordamos a ameaça como uma variável estratégica, na prática referimo-nos a “todos os acontecimentos ou iniciativas, resultantes da evolução dos factores contextuais ou das opções do inimigo [ou adversário], que colidem frontalmente com os objectivos que constituem o horizonte finalístico da nossa acção estratégica”[3]. Na realidade, qualquer decisão de potenciais adversários (a “dialéctica de vontades” do General Beaufre), que coloque em causa as potencialidades e vulnerabilidades do Estado, constitui uma ameaça no sentido tradicional.
 
No entanto, os planeadores (aos vários níveis) têm consciência que fazer face a todas as ameaças é hoje uma impossibilidade, mesmo para os Estados mais poderosos. Esta impossibilidade pode ser atenuada por um planeamento estratégico rigoroso, por um serviço de informações eficiente e pelo aumento dos graus de prontidão para fazer face aos diferentes cenários (por ordem de prioridade para os mais prováveis). Independentemente de todos os esforços e do reforço de todas as capacidades, há sempre que assumir riscos, em muito dependentes das prioridades assumidas pelos estrategos ou decisores políticos.
 
Com a crescente globalização, de que a mais recente crise económica e financeira tem sido um bom exemplo de incapacidade de controlo estatal e mesmo regional[4], temos assistido ao “domínio das ameaças globais”, e à incapacidade crescente do Estado para, isoladamente, fazer face às diferentes ameaças[5]. As ameaças globais, como o Terrorismo Transnacional ou as Armas de Destruição Maciça, têm hoje mais acuidade devido ao esbater das fronteiras e por consequência ao derrube dos tradicionais limites entre segurança interna e externa dos Estados[6].
 
Deste modo, os Estados vêm cedendo soberania para garantirem mais Segurança Global, Regional e mesmo Local. A Segurança inclui cada vez com maior acuidade as Pessoas, muito mais para além do próprio Estado, num conceito mais abrangente que defende os princípios do Estado de direito, mas também da democracia e dos direitos humanos. Só assim é possível a necessária dinâmica entre Segurança e Desenvolvimento, o que implica, entre outras consequências, a utilização coordenada e integrada de todas as formas de coacção e o estabelecimento de novas missões para as Forças e Serviços de Segurança e para as Forças Armadas. O próprio discurso político tem usado palavras-chave ao nível da segurança, como “mais coordenação”, “mais flexibilidade”, “mais cooperação”, “menos forças e melhores forças”, “melhor integração”, “mais segurança humana”, e “mais segurança colectiva”, no entanto, nem sempre as alterações estruturais têm acompanhado a realidade e as necessidades com novos instrumentos tecnológicos, mas também ultrapassando algumas mentalidades e interesses mais ou menos corporativos.
 
Mas a própria palavra ameaça, indiscutivelmente carregada de uma conotação negativa, vem sendo substituída, por vezes de modo particularmente incorrecto, ao nível do planeamento estratégico (e nos conceitos estratégicos ou livros brancos da defesa) por outros termos como “riscos”, “desafios”, “efeitos”, “aceleradores da mudança”, etc.
 
O respigar de alguns dos mais recentes discursos dos diferentes Ministros da Defesa da União Europeia, ou de alguns Conceitos Estratégicos de Segurança e Defesa, leva-nos facilmente a uma conclusão: há que normalizar conceitos para que todos nos entendamos!
 
Na nossa perspectiva, a ameaça continua a ser um acto ou acontecimento de cariz ofensivo (traduzida de modo simplificado pelo produto de uma capacidade por uma intenção), que afecte significativamente os objectivos políticos de um Estado, de modo a colocar em causa a sua sobrevivência como unidade política ou, de algum modo, a própria segurança internacional. Para um recente painel das Nações Unidas (www.un.org/secureworld) a ameaça de cariz global é entendida como “qualquer acontecimento ou processo que leva à perda de vida ou a reduções de expectativas de vidas humanas em larga escala e que ponha em causa a unidade do sistema internacional, ameaçando a segurança internacional”. Quaisquer das duas visões associam a ameaça a actos ou acontecimentos que podem colocar em causa a estabilidade e a segurança, variando depois os espaços de intervenção de local, para regional ou global.
 
Hoje em dia, em face das dificuldades assumidas na identificação das ameaças, o próprio planeamento estratégico alterou a sua metodologia, introduzindo, por exemplo, os efeitos, mais ligados aos objectivos que se pretendem alcançar. As próprias capacidades passaram a ser levantadas em função dos efeitos, numa postura mais positiva, mais asséptica, menos conflitual e mais ao encontro das preocupações sociais. Deixa de se lutar contra a ameaça X, mas passa-se a ultrapassar os desafios Y para atingir os efeitos Z, com novas pessoas, novos sistemas, nova organização e nova tecnologia.
 
Os riscos, que têm sido crescentemente associados às ameaças, constituem na realidade ameaças que não se conseguem garantir com os meios de defesa (militar e não militar) e em face de decisões que obrigam ao estabelecimento de prioridades. Os riscos podem incluir, não só as ameaças não salvaguardadas por capacidades, mas também os acontecimentos ou as acções não desencadeados por actores pensantes como as catástrofes naturais. Esta uma das razões porque recentemente a sua utilização tem sido tão generalizada no léxico da segurança e defesa.
 
É corrente a utilização mais genérica da expressão “riscos e ameaças”, num sentido mais global das ameaças como o fez recentemente o Ministro da Defesa Nacional de Portugal quando referiu que “É paradoxal que um continente com a riqueza do continente africano - com os seus recursos naturais, energéticos e humanos - seja, ao mesmo tempo, um palco constante de guerras, de pobreza, de Estados frágeis e falhados, de terrorismo e tráficos ilegais. Estes são riscos e ameaças não só para o continente africano, mas para toda a comunidade internacional. São riscos e ameaças que têm uma dimensão global.”[7]
 
Os desafios, também muito usualmente utilizados no lugar das ameaças, constituem objectivos a alcançar, podendo em alguns casos implicar a neutralização e destruição de algumas ameaças ou a redução de alguns riscos. Podem ser ainda trabalhados por dimensões na construção de futuros, nomeadamente nas dimensões recursos, social, política, económica e militar[8]. Para cada desafio (caso da população e recursos, da identidade e interesse, da governance e ordem e do conhecimento e inovação) podem ser trabalhados os chamados aceleradores da mudança (drivers of change).
 
Os aceleradores da mudança têm sido também utilizados incorrectamente no lugar das ameaças. Na nossa perspectiva, constituem meros fenómenos causadores de determinados cenários, que podem dar ênfase (ou não…) a determinadas ameaças e por consequência a determinados riscos. Utilizados recentemente pela NATO/ACT no âmbito do Multiple Futures Project, os aceleradores da mudança (casos dos recursos limitados, da evolução demográfica, das mudanças climáticas, do uso das novas tecnologias, etc.) constituem (e bem) as variáveis base para o levantamento de quatro futuros (escolhidos entre os mais prováveis de múltiplos futuros). De acordo com a metodologia do Allied Command Transformation (ACT), só depois serão levantadas as ameaças e em função destas, para cada futuro, serão identificadas as implicações em termos de defesa e militares.
 
Assistimos assim, a uma tentativa de “branqueamento social” da palavra ameaça, não só devido ao domínio das ameaças globais, mas também a uma maior transparência dos conceitos estratégicos e livros de defesa, apesar de por vezes ser mais importante o que se esconde do que o que se transmite. No entanto, as ameaças continuam a ser uma variável incontornável do planeamento estratégico, independentemente do nível de trabalho ou mesmo da metodologia utilizada para atingir os objectivos que se pretendem.
 

3.  As Novas e Antigas Ameaças

Na nossa perspectiva falar de novas e velhas ameaças em termos absolutos é de todo redutor…
Efectivamente, com a globalização (que não constitui nem uma ameaça nem um risco em si mesma, mas um acelerador da mudança)[9], as tradicionais ameaças militares directas diminuíram o seu espaço, reduzindo-se os riscos de carácter militar e aumentando-se, em contrapartida, os de carácter mais político, social e económico. Apesar desta evolução genérica, não surgiram novas ameaças “construídas” por novos instrumentos que possam colocar em causa a relação de forças entre as partes em confronto (como foi o caso da bomba nuclear nos anos 40).
 
Deste modo, julgamos ser mais correcto afirmar que existem ameaças que terão mais ou menos acuidade em determinadas conjunturas. Foi o caso do terrorismo transnacional logo após o 11 de Setembro, que apesar de constituir uma ameaça à própria comunidade internacional desde há muito (e em particular para a Espanha e para o Reino Unido), só depois de 2001 assumiu proporções que ultrapassaram as fronteiras dos Estados, até então mais preocupados com as discussões de possíveis definições enquadráveis nos seus interesses próprios (as tradicionais questões de terrorismo de Estado versus terrorismo de insurgentes)[10].
 
Assim, compreendemos a utilização da expressão “novas ameaças”, sobretudo quando utilizada em termos relativos e em oposição à expressão “velhas ameaças”, num confronto entre aquelas que mais se destacavam há cerca de 10 ou 20 anos e aquelas que actualmente mais preocupam os cidadãos, os Estados e as Organizações Internacionais. Na perspectiva de um Mundo em mudança, entendemos ainda melhor a perspectiva de novas ameaças, fruto de novos problemas, que podem degenerar em verdadeiras ameaças para os cidadãos, os Estados e mesmo para a comunidade internacional como um todo.
 
A percepção das ameaças pela opinião pública mundial, regional ou mesmo local, construída (por vezes instrumentalizada) em parte significativa pelos órgãos de comunicação social (em particular pela Televisão) e pela internet (e seus instrumentos), constituiu um elemento importante a considerar no estabelecimento das ameaças ao nível do planeamento estratégico. Efectivamente, as percepções dos cidadãos relativamente às ameaças, à sua segurança pessoal, à segurança do seu Estado, de uma Organização Internacional ou mesmo da População Mundial, consolidadas por instrumentos mais ou menos científicos, como os inquéritos de opinião, representam uma “fotografia” muito próxima da realidade, facto que os estrategistas e mesmo os estrategos não podem deixar de considerar. Uma das “fotografias” mais credíveis na União Europeia é o Eurobarómetro, que no seu “The role of the European Union in Justice, Freedom and Security Policy Areas” nos poderá transmitir algumas dessas percepções das ameaças, tão importante pelas consequências das leituras, das prioridades, mas também dos desenhos dos futuros. E estas consequências situam-se a vários níveis, desde o da estratégia genética ao da estratégia operacional, passando naturalmente pela diplomacia e pela economia, devendo muitas vezes ser encaradas como oportunidades, sobretudo num mundo de grande incerteza, com novos actores, alguns dos quais nem sempre claramente identificáveis.
 

4.  A Percepção das Ameaças

De acordo com o Professor Félix Arteaga Martin, “La entrada de las cuestiones de la seguridad y la defensa en los estudios universitarios, en los debates políticos y sociales o en los programas de los medios de comunicación ha trascendido el marco restringido de los expertos de la comunidad estratégica. Cada vez más, el planeamiento debe atender a la cultura estratégica, a la percepción de los riesgos, a las reacciones frente a ellos, y, en definitiva, a la interacción entre la racionalidad estratégica y la percepción social.”[11]
 
Efectivamente, a percepção social que nos é transmitida em termos absolutos e relativos pelo Eurobarómetro, pode dar-nos indicadores importantes para qualquer tipo de planeamento estratégico.
 
Destaquemos então do “Special Eurobarometer 290”[12] alguns dos aspectos mais significativos relacionados com as ameaças:
 
- Tal como em 2006, em 2007 os cidadãos europeus estão a favor do reforço das decisões centralizadas pela UE ao nível do terceiro pilar, nomeadamente no que respeita à luta contra o crime organizado (81% em 2007 e 86% em 2006) e contra o terrorismo (81% em 2007 e 86% em 2006);
- Portugal e Espanha apresentam valores idênticos e acima da média europeia (83% na luta contra o terrorismo e 82% na luta contra o crime organizado);
- Quando questionados para escolherem três entre oito possíveis acções ou políticas, os europeus destacaram a luta contra o terrorismo (50% em 2007 e 55% em 2006), a luta contra o crime organizado (48% em 2007 e 56% em 2006) e a protecção dos direitos humanos, inclusivamente das crianças (35% em 2007 e 24% em 2006) relativamente às demais;
- Apesar da maior percentagem global, a luta contra o terrorismo só foi a primeira escolha de 4 países (destaque para Espanha com 60% e para o Reino Unido com 58% - Portugal com 39%), enquanto que a luta contra o crime organizado foi escolhida como primeira prioridade por 16 dos 27 países membros (entre 75% na Suécia e 29% em Espanha - Portugal com 52%);
- Portugal e Espanha, relativamente a outras prioridades, apresentam valores relativamente próximos (promoção e protecção dos direitos humanos - SP 29% e PO 40%; luta contra o abuso da droga - SP 16% e PO 29%; políticas de emigração - SP 30% e PO 20%; controlo externo das fronteiras - SP 16% e PO 21%).
 
Num recente inquérito realizado pelo Real Instituto Elcano (o Barómetro de Abril de 2008) e em face da questão “Que ameaças considera mais perigosas e importantes?”, o terrorismo foi identificado por 51% dos cidadãos, a que se seguiram o aquecimento global (44%), as armas nucleares no Irão e o abastecimento de energia com o mesmo valor (39%).
 
Num inquérito realizado em Abril de 2009 pela Embaixada Britânica em Portugal e pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica (CESOP)[13], a propósito da opinião dos portugueses sobre diversos temas de política internacional que são prioritários para o Reino Unido, “quase três quartos (74%) consideram as alterações climáticas como um problema “muito grave”, mas apenas 45% consideram Portugal como particularmente vulnerável”.
 
O resultado destes inquéritos no seu conjunto, dão-nos indicações gerais no sentido de que as ameaças de carácter global continuam a ganhar espaço às ameaças de carácter regional ou local. No caso espanhol é compreensível uma percepção de que a maior ameaça continua a ser o terrorismo, enquanto para os portugueses a luta contra o crime organizado constitui a maior preocupação.
 
Estas percepções, que podem ser alteradas pela conjuntura (agudização da crise económica e financeira global, catástrofe natural associada ao aquecimento global ou um novo ataque terrorista de grandes dimensões e consequências), também têm relação directa com o nível de desenvolvimento dos europeus, ainda “velhos e ricos” e mais preocupados com a sua segurança pessoal e com questões ambientais, ao contrário da maioria dos africanos (sobretudo dos Estados falhados), naturalmente mais preocupados com a sua sobrevivência, decorrente da falta de recursos ou da acção discricionária dos senhores da guerra.
 

5.  Que “Novas” Ameaças para Portugal e Espanha

Como atrás constatámos, Portugal e Espanha, apesar de serem países vizinhos e ocuparem um mesmo espaço geopolítico, de pertencerem às mesmas Organizações Internacionais e de comungarem os mesmos valores, têm especificidades que levam os cidadãos dos dois países a terem percepções diferentes das ameaças.
 
A Espanha foi e continua a ser alvo de ataques terroristas, seja por parte de organizações de cariz internacionalista, seja por parte de organizações de cariz nacionalista ou regional. Para além deste aspecto importante, existe ainda uma realidade geopolítica muito específica, que coloca acrescidos riscos à Espanha, nomeadamente devido a uma maior proximidade, ligação e fronteira com o sempre instável Norte de África (Ceuta e Melilla), mas também devido à “questão” de Gibraltar.
 
No caso de Portugal, e pelo facto de ter fronteira exclusiva com a Espanha e com o Oceano Atlântico, a realidade é diferente, sendo as ameaças mais prováveis ligadas ao crime organizado, que tem terreno fértil em centenas de quilómetros de fronteira marítima, mas também para os riscos mais associados à descontinuidade territorial, em face da importância estratégica do triângulo Continente-Madeira-Açores.
 
Apesar destas especificidades, Portugal e Espanha fazem parte de um Mundo que muito lhes deve em termos de globalização (sobretudo nos séculos XV e XVI). Os povos que espalharam pelos quatro continentes, e que ainda hoje falam a língua castelhana e portuguesa, olham para Portugal e para Espanha como entidades políticas responsáveis pela Paz e pelo Desenvolvimento Global. Daí frequentemente assumirmos que as nossas responsabilidades são hoje (sem Império) bem superiores às nossas capacidades, o que obriga a um esforço crescente (sobretudo em termos políticos, diplomáticos e económicos) no sentido de criarmos, a nível global, em cooperação com outros povos, um mundo mais seguro e com menos ameaças e riscos.
 
Vejamos então como o Portugal institucional identifica as velhas e as novas ameaças, a partir dos mais recentes documentos estratégicos directamente relacionados com a segurança e a defesa nacional.
 
Na Resolução do Conselho de Ministros Nº 6/2003 (Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2003)[14], as ameaças e os riscos são desenvolvidos com especial ênfase ao longo de todo o documento. No entanto, ao nível do capítulo específico das ameaças (6. as ameaças relevantes), estas são identificadas de modo bem mais objectivo do que no anterior documento de 1994 (Resolução do Conselho de Ministros nº 9/94), a saber:
- A agressão armada ao território nacional, à sua população, às suas forças armadas ou ao seu património;
- O Terrorismo, nas suas variadas formas;
- O desenvolvimento e a proliferação não regulados de Armas de Destruição Maciça, de natureza nuclear, radiológica, biológica ou química;
- O crime organizado transnacional;
- Os atentados ao nosso ecossistema, incluindo a poluição marítima, a utilização abusiva dos recursos marinhos nas águas sob a nossa responsabilidade e a destruição florestal.
 
Com excepção da (pouco provável) agressão armada ao território nacional, todas as restantes ameaças relevantes constituem ameaças de carácter global, em que as novidades do CEDN de 2003, relativamente ao de 1994, se situam ao nível dos atentados ao ecossistema e de um maior ênfase relativamente ao terrorismo. A recente Lei nº 53/2008 de 29 de Agosto (Lei de Segurança Interna) acentua a ênfase no que respeita às ameaças ambientais e às relacionadas com as epidemias (caso da SIDA e mais recentemente da gripe A) tal como disposto n.º 3 do Artigo 1º, a saber: “As medidas previstas na presente lei destinam-se, em especial, a proteger a vida e a integridade das pessoas, a paz pública e a ordem democrática, designadamente contra o terrorismo, a criminalidade violenta ou altamente organizada, a sabotagem e a espionagem, a prevenir e reagir a acidentes graves ou catástrofes, a defender o ambiente e a preservar a saúde pública”.
 
No caso da Espanha, e de acordo com a “Revisión Estratégica de Defensa” (e enquanto não é aprovado um Conceito Estratégico de Segurança e Defesa) de 2004, só o terrorismo foi identificado claramente como uma ameaça à Espanha e aos cidadãos espanhóis. Mais adiante, ao destacar os riscos principais para a segurança da Espanha, o mesmo documento destaca novamente o terrorismo global, mas também a proliferação das armas de destruição maciça, a instabilidade nas cidades de Ceuta e Melilla, o estreito de Gibraltar (que constitui uma linha de comunicação fundamental) e a “presença colonial britânica” em Gibraltar. São depois caracterizados outros riscos menores, de que se destacam as agressões ao meio ambiente e os movimentos migratórios extraordinários e não controlados.
 
Após a leitura cuidada dos documentos institucionais dos dois países, ficamos com uma noção clara de que o terrorismo[15] internacional, o crime organizado transnacional, a proliferação das armas de destruição maciça, e os atentados ao ecossistema, constituem assim, as “novas ameaças”, pelo ênfase que lhes é atribuído como ameaças e riscos. A este nível identificamos assim, uma sintonia total entre as percepções dos cidadãos e as preocupações institucionais.
 
No entanto, existem ainda outras ameaças e riscos de carácter local e regional, que constituem preocupação específica de Portugal e Espanha (caso de Gibraltar), mas que aos olhos dos cidadãos não constituem preocupações prioritárias. Como a identificação dessas ameaças e riscos por Portugal e Espanha estão em sintonia com os objectivos políticos dos dois países, julgamos que deverá haver um esforço maior no sentido de materializar uma verdadeira cultura de segurança e defesa (com sentido informativo, mas também preventivo), através de vários instrumentos hoje disponíveis e que o mundo anglo-saxónico tão bem tem sabido utilizar…
 
Entretanto, outras ameaças têm emergido nos últimos meses, nomeadamente a questão da pirataria, que tem constituído uma ameaça crescente à marinha mercante internacional (e daí ser hoje uma ameaça de âmbito global) e que já levou a marinha portuguesa a um empenhamento considerável na costa da Somália no âmbito da Standing Naval Force of Nato (sob comando português, controlou no inicio de 2009, uma vasta área marítima no Golfo de Aden, entre a Somália e o Iémen). Outra ameaça crescente é a relacionada com a saúde pública mundial, em particular no que respeita às pandemias (em particular à SIDA e mais recentemente à gripe A) agudizadas pela globalização, que ao nível das percepções dos cidadãos têm um impacto imediato e “pessoal”, com inevitáveis repercussões ao nível económico. Por outro lado, poderemos enfrentar em breve uma crise social de dimensão diversificada, associada directamente à crise financeira e económica internacional. Esta crise social em crescimento, poderá levar a conflitos internos mas também a conflitos de âmbito regional, em função do aumento da xenofobia e dos nacionalismos, e a par do desemprego galopante.
 
É assim, cada vez mais necessário o desenvolvimento de políticas de prevenção colectivas e de novas respostas multilaterais, em face dos novos desafios e valores a promover (democracia, justiça e desenvolvimento), num mundo mais global, em que tanto Portugal como Espanha, a UE, a NATO ou a ONU, têm a sua quota-parte de responsabilidade no que respeita à manutenção da segurança nacional, regional e global e à construção de um Mundo melhor.
 

6.  Considerações Finais

Há cerca de 20 anos, em plena guerra-fria, o planeamento estratégico resumia-se à análise das tradicionais ameaças e revelava-se no levantamento das forças necessárias para enfrentarem as capacidades e intenções hostis.
 
Nos últimos anos, com a crescente globalização das ameaças, a indefinição da probabilidade de ocorrência das mesmas, da sua elevada periculosidade e da sua “ultraterritorialidade[16], são consideráveis as dificuldades na sua avaliação, o que vem exigindo e continuará a exigir um esforço maior ao nível dos serviços de informações, mas também ao nível das lideranças. Esta imagem das “novas ameaças”, é perceptível pelos cidadãos (pelo menos dos europeus e dos “ocidentais”), que se preocupam sobretudo com as de carácter mais global, e com a consciência de que as soluções terão de ser sobretudo globais. Entre as percepções das ameaças (reforçadas pelo órgãos de comunicação social e pela internet), têm assumido um papel de maior destaque, o terrorismo transnacional, a proliferação das armas de destruição maciça, o crime organizado transnacional, os atentados ao ecossistema e os movimentos migratórios entre os povos jovens e pobres do Sul e os cidadãos velhos e ricos do Norte.
 
No entanto, com a evolução rápida do Mundo, e com o agudizar de algumas crises (de que só sabemos que já começaram e de que nunca saberemos quando e como acabarão), outras ameaças estão a emergir, como a pirataria ou a instabilidade decorrente das pandemias e das crises sociais. Assim, as soluções para um Mundo mais seguro e desenvolvido passarão menos por discursos políticos com novas palavras de carácter mais asséptico (como “desafios e riscos”), mas mais por uma melhor coordenação e cooperação efectiva entre os Estados (e outros actores), para além de uma criteriosa utilização das novas tecnologias ao serviço da prevenção.
 
Os novos problemas decorrentes das crises financeira, económica, social e política (alguns deles constituem verdadeiros aceleradores das mudanças), implicam uma atenção especial no sentido de preventivamente se poderem identificar as suas possíveis relações (a sua transformação em riscos e ameaças pode ser fruto de circunstâncias muito específicas) com a segurança e defesa a nível local, regional e global. E neste sentido, todos os actores, com especial acuidade para as organizações internacionais, têm responsabilidades na prevenção e na solução dos eventuais conflitos, mas também na transformação das ameaças e riscos em oportunidades, ultrapassando os desafios e indo ao encontro dos objectivos que levem ao Bem-Estar e ao Desenvolvimento.
 
Para fazermos face às “novas ameaças” e aos novos riscos, teremos de nos reorganizar estruturalmente, tendo por referência uma visão integral da Segurança (que contemple as quatro aplicações; Nacional, Pessoal, Humana e Global) e Defesa, que aglutine a diplomacia, a cooperação, os recursos civis e os meios militares. E dessa reorganização poderão e deverão fazer parte novos “Conceitos Estratégicos de Segurança e Defesa”, novos “Ministérios da Segurança e Defesa” (eventualmente com uma secretaria de Estado ligada à componente militar e outra às componentes não militares), novos “Institutos de Segurança e Defesa” (ligados às áreas da Defesa, da Segurança, da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros…), novos “Instrumentos de Coordenação Bilateral (caso de Portugal e Espanha com o Conselho Superior Luso-Espanhol de Segurança e Defesa) e Multilateral” e certamente uma nova “Cultura da Segurança e Defesa”, que cruze todos os actores da sociedade, sem discriminações.
 
No caso de Portugal e Espanha, e num período de “reformas” que incluem novos documentos estruturantes ao nível da Segurança e Defesa, julgamos que é tempo de acompanharmos e de participarmos activamente nos diferentes estudos de prospectiva em curso no âmbito das diferentes Organizações Internacionais de que fazemos parte, nomeadamente da União Europeia e muito especialmente da NATO. No entanto, não nos devemos esquecer dos nossos valores e das nossas especificidades, que devem continuar a estar de acordo com os nossos interesses, motores da nossa sobrevivência enquanto Estados independentes e soberanos.
 

* Texto elaborado pelo autor na sequência da sua participação na mesa redonda sobre o tema “As variáveis estratégicas: as novas e antigas ameaças”, no âmbito do Seminário “El Giro Histórico. Uma Visão Conjunta de Segurança e Defesa”, que teve lugar em Mérida no dia 20 de Outubro de 2008 (Ágora Academia).
 
**     Coronel de Artilharia, com o Curso de Estado-Maior e Mestre em Estratégia, exerce actualmente as funções de Assessor de Estudos e Director de Edições no IDN.
 
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[1] General Abel Cabral Couto, in Fernandes, António Horta e Abreu Francisco, Pensar a Estratégia, Edições Sílabo, 2004, p. 215.
 
[2]  Ver, Telo, António José, Um Mundo que Mudou, Nação e Defesa, nº 120, Verão 2008, 3ª Série, pp. 9-26.
 
[3]  Abreu, Francisco, Fundamentos de Estratégia Militar e Empresarial, Sílabo, Lisboa, 2002, p. 56.
 
[4]  A análise SWAT (potencialidade, vulnerabilidade, oportunidade, ameaça), muito utilizada na estratégia empresarial depois de o ter sido na estratégia militar, tem hoje especial acuidade na estratégia global dos Estados, pelo elevado número de variáveis, pela incerteza e pelo nebuloso, situações em que o factor tempo assume crescente importância (o que obriga à utilização de mais e melhores instrumentos tecnológicos).
 
[5]  Ver, Nogueira, José Manuel Freire, Pensar a Segurança e Defesa, Edição Cosmos e IDN, Lisboa, 2005.
 
[6]  Ver, Borges, João Vieira, Portugal e as Novas Aplicações da Segurança e Defesa, Revista Negócios Estrangeiros, Instituto Diplomático, Nº 12, 12 Janeiro 2008, Lisboa, pp. 76-92.
 
[7]  Intervenção de Sua Exª o MDN de Portugal no ISPU em Maputo (Moçambique) no dia 27 de Março de 2008.
 
[8]  Ver “The DCDC Global Strategic Trends Programme, 2007-2036”, Third Edition, UK MoD, 2007. Neste estudo de referência no Reino Unido, que serviu de base de trabalho para o ACT/NATO, são considerados como desafios chave, a globalização, as mudanças climáticas, e as desiguldades globais.
 
[9]  Pode acelerar fenómenos transfronteiriços de segurança como o terrorismo, a proliferação, o crime organizado, os tráficos ilícitos, a propagação de crises financeiras com consequências sociais, etc. Pode também constituir um desafio em termos tecnológicos e de bem-estar das populações, sobretudo das mais carenciadas.
 
[10]  Ver, Borges, João Vieira, Terrorismo: razões da ausência de um conceito comum, Newsletter nº 11, IDN, Lisboa, Abril 2006, pp. 1-2.
 
[11]  “El Planeamiento de la Defensa y Seguridad en España”, Instituto Universitario General Gutiérrez Mellado, 2007, p. 43.
 
[12]  “The role of the European Union in Justice, Freedom and Security Policy Areas, June 2008”.
 
[13]  Os resultados foram divulgados numa sessão pública na Embaixada em Lisboa (a 23 de Julho de 2009) e podem ser consultados em http://ukinportugal.fco.gov.uk.
 
[14]  Dividido em: 1.Introdução, 2.Enquadramento internacional, 3.Enquadramento nacional, 4.Valores permanentes da defesa nacional, 5.Espaço estratégico de interesse nacional, 6.Ameaças relevantes, 7.Sistema de alianças e organizações internacionais, 8.Missões e capacidades das forças armadas, 9.Meios necessários e políticas estruturantes.
 
[15]  O seu combate começa logo com a definição clara e objectiva do conceito, que na leitura de Kofi-Annan deveria ser: “qualquer acção que vise matar ou afectar seriamente civis desarmados ou não combatentes, com o objectivo de intimidar a população ou compelir a acção de qualquer Estado ou Organização Internacional”. (tradução do autor)
 
[16]  Segundo Isabel Ferreira Nunes (in Moreira, Adriano (2004). Informações e Segurança: Estudos em honra do General Pedro Cardoso, Lisboa: Prefácio, p. 276), “a desterritorialização e a deslocalização da ameaça reflecte-se na abstracção do discurso da segurança”.
 
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