1. Introdução
A natureza e formas de fazer a guerra têm estado, ao longo dos séculos, em permanente evolução e é hoje difícil prever como serão os conflitos do futuro. A alta tecnologia permitiu enormes progressos, influenciando em grande medida o pensamento e a acção militar, mas proporcionando também o surgimento de novas ameaças, com eficácia ofensiva e destrutiva acrescida e de mais difícil contenção.
A evolução tecnológica, não sendo o único factor de valorização e de organização das forças armadas, é sem dúvida um dos factores fundamentais para a estruturação dos aparelhos militares, influenciando decisivamente a qualidade do poder militar. É no entanto evidente, que outros factores são igualmente importantes, como o político, que a montante continua a ser o decisor, ou o humano que na prática continua a ser o executor, isto é, o utilizador de uma panóplia de meios, cuja eficácia tem sido proporcional à evolução tecnológica.
Neste último século, fundamentalmente desde a I Guerra Mundial, assistimos ao aparecimento de novas tecnologias que vieram revolucionar as estratégias militares. Nas forças terrestres, o carro de combate foi a grande inovação, combinando aspectos de mobilidade, protecção e poder de fogo, permitiu a passagem de uma guerra de trincheiras como foi a I GM, para um conflito com forças em permanente movimento, como foi a II GM, bem comprovada na blitzkrieg alemã. Nas forças navais os navios de superfície e os submarinos foram sendo cada vez mais eficazes, com maior velocidade e poder de fogo, surgindo os porta-aviões, que passaram a ser a base da organização das marinhas mais poderosas. As forças aéreas vieram adicionar uma terceira dimensão às operações e, cada vez mais integradas nas manobras terrestre e marítima, vieram provar ser um factor altamente influenciador do sucesso.
Este trabalho pretende debruçar-se sobre a evolução tecnológica dos equipamentos militares na Era da Informação e a forma com essa evolução transformou o pensamento militar. Numa análise que será naturalmente virada para os Estados Unidos da América, como a grande potência geradora do maior desenvolvimento, iremos fazer uma viagem pela história dos três grandes conflitos que marcaram o final do século XX e o inicio do século XXI: a I Guerra do Golfo, a Guerra do Afeganistão e a II Guerra do Golfo. No final tentaremos olhar o futuro e retirar algumas conclusões.
2. A Era da Informação
Os finais da década de 30 e inícios da década de 40 marcam o dealbar da Era da Informação, com o nascimento dos primeiros computadores electrónicos digitais nos Estados Unidos da América. O mais famoso era o ENIAC
[1] que pesava 30 toneladas e tinha sido encomendado pelo Exército americano para realizar os cálculos para o tiro de artilharia. Mais tarde, já no anos 70, com o aparecimento do transístor, dos circuitos integrados e do microprocessador, seria possível ir reduzindo as dimensões e melhorando a performance desses equipamentos. Assim, o primeiro computador de secretária apareceu em 1977, utilizando já alguns periféricos, como o monitor, o teclado e um dispositivo de gravação e armazenamento de informação.
[2]
A
internet, oriunda também dos EUA, foi inicialmente desenvolvida para fins civis. Mas o grande incremento foi dado entre 1989 e 91 quando na Suíça foi inventado o HTML e o HTTP
[3] que permitiriam a qualquer pessoa com uma ligação à
internet aceder à informação disponível nos diversos servidores, apenas escrevendo o endereço respectivo URL
[4], dando acesso à
World Wide Web. Desde então, o número de utilizadores e de
Web sites tem crescido exponencialmente e hoje as sociedades minimamente civilizadas já não vivem sem
internet.
Simultaneamente, foi-se desenvolvendo o telefone sem fios, um outro poderoso meio de comunicação. O primeiro telemóvel portátil foi um Motorola fabricado em 1983, que pesava 2,2 quilos e custava 3.500 dólares, enquanto hoje os telemóveis pesam menos de 100 gramas e são muitas vezes oferecidos.
Muitas outras importantes invenções, como a fibra óptica, a micro-electrónica ou os satélites, têm vindo a revolucionar a Era da Informação, revolução essa que se continua a fazer sentir nos nossos dias. O mundo de hoje dispõe de uma poderosa rede de transmissão instantânea de informação, inimaginável há algumas décadas atrás.
Joseph Nye Jr. considera que a consequência essencial dos avanços tecnológicos nos computadores não é tanto a velocidade de comunicação, mas sim a enorme quebra nos custos reais de transmissão da informação. Em permanente redução, os custos tornaram-se insignificantes e a quantidade de informação que pode ser transmitida por todo o mundo é verdadeiramente infinita.
[5] Esta nova realidade tem um forte impacto na economia, na sociedade e nos governos, sendo até susceptível de alterar significativamente a politica externa dos Estados.
Na actualidade, um dos principais problemas é que esta capacidade estando tão disseminada é dificilmente controlável, podendo ser utilizada para o bem e para o mal. A transmissão instantânea de informação e os avanços na
internet, acabaram por ultrapassar fronteiras, sendo possível hoje que um único individuo dissemine um vírus informático que cause milhões de euros de prejuízos, ou até que piratas informáticos de identidade desconhecida roubem informação ao Pentágono, ou à NASA, ou a grandes empresas como a Microsoft.
[6]
3. A evolução do vector militar
a. I Guerra do Golfo
O maior impacto da Era da Informação fez-se sentir ao nível da economia, mas progressivamente o vector militar foi-se adaptando aos avanços tecnológicos e evoluindo com eles. Tal como refere Max Boot, a noite de 17 para 18 de Janeiro de 1991, marcou o inicio da operação Desert Storm, mais conhecida por I Guerra do Golfo (I GG), mas marcou também o inicio de uma nova Era na forma de fazer a guerra.
Uma das maiores novidades foram os mísseis de cruzeiro
Tomahawk, que lançados de navios no Golfo Pérsico e no Mar Vermelho, conseguiam através de um sofisticado sistema de navegação, atingir alvos em
Bagdad, a centenas de quilómetros de distância. A força aérea também teve um importante papel, nomeadamente com os seus velhos bombardeiros B-52G, partindo e regressando da sua base no
Louisiana, fazendo mais de 22.000 km com reabastecimentos em voo, armados com poderosos mísseis de cruzeiro AGM-86C. Mas o mais revolucionário sistema de armas utilizado em 1991 foi o “
stealth fighter” F-117A, equipado com bombas de guiamento laser, cuja característica principal era a sua invisibilidade aos radares, fruto dos materiais e das linhas aerodinâmicas em que foi construído, absorvendo as emissões radar em vez de as reflectir. Em poucas horas, as forças aéreas da coligação conseguiram fazer o que a
Luftwaffe tinha tentado fazer durante muitos meses na Batalha de Inglaterra, sem sucesso: a neutralização das defesas aéreas iraquianas.
[7]
As forças marítimas contavam também com os caças F-14 Tomcat e F-18 Hornet, submarinos nucleares da classe Los Angeles e porta-aviões nucleares da classe Nimitz. Das novidades nas forças terrestres, destacamos os carros de combate M1 Abrams, os veículos blindados de transporte de pessoal M3 Bradley, os veículos utilitários Humvee, os helicópteros de ataque AH-64 Apache e os sistemas de defesa aérea Patriot, que apoiaram com sucesso a defesa israelita contra os ataques dos mísseis SCUD iraquianos. Outra inovação importante foi a utilização das novas tecnologias de informação ao nível dos sistemas de comando, controlo e reconhecimento, operadas por militares americanos profissionais, altamente treinados.
Do lado iraquiano, estava o quarto maior exército do mundo, um exército de massas, formado por conscrição, contando com mais de 900.000 militares, organizado e equipado com uma panóplia de materiais soviéticos e ocidentais, muito ao modelo dos exércitos da Era Industrial.
[8]
As forças armadas americanas já tinham iniciado a evolução para a Era da Informação e as diferenças abissais tornaram-se visíveis logo no primeiro dia dos combates. Apesar de tudo, as forças aliadas tiveram que recorrer a uma manobra que se pode considerar tradicional, iniciando as operações com bombardeamentos intensivos, que duraram mais de cinco semanas, seguidos de um maciço ataque terrestre com blindados.
[9]
No final da guerra, ainda se ouviram no ocidente algumas vozes críticas, referindo que os confrontos entre carros de combate fizeram lembrar a II GM, que os mísseis “inteligentes” eram apenas dez por cento do total de mísseis utilizado, que não foi possível atingir
Saddam nem os seus mísseis
SCUD, que faltaram muitos aparelhos de
GPS, que os comandantes ainda tiveram que recorrer aos tradicionais mapas plastificados, que um quarto das 147 baixas americanas foram resultado de “fogo amigo”.
[10] Todos estes aspectos podem ser verdadeiros, mas o que é também indesmentível é que esta guerra trouxe inúmeras inovações tecnológicas e trouxe mudança de mentalidades, marcando o início da Era da Informação, concebida com base em “
smart weapons and smart people”.
[11]
Como disse no final o
General Barry McCaffrey, “
this war didn´t take 100 hours to win, it took 15 years.”
[12] Efectivamente, a superioridade americana foi o resultado de um longo processo de transformação, que se tinha iniciado quinze anos antes, após a Guerra do Vietname, iniciando-se com profundas alterações no recrutamento, passando-se para umas forças armadas de voluntários, melhorando o treino e a qualidade dos militares, actualizando a doutrina e a organização dos comandos e das forças, culminando no desenvolvimento de uma nova geração de armas convencionais, tudo isto com o objectivo prioritário de anular as vantagens numéricas dos exércitos soviéticos. No final, não foram os soviéticos mas sim os iraquianos que comprovaram esta extraordinária máquina de guerra, que ainda só estava a dar os primeiros passos na nova Era.
b. Guerra do Afeganistão
A transformação das forças armadas americanas foi novamente posta à prova no Afeganistão, em 2001. Agora, em vez de se tentar uma acção ofensiva com forças convencionais, cientes de que estavam prestes a entrar na terra que era conhecida como o “cemitério dos impérios”, após as derrotas britânicas e soviéticas, nos séculos XIX e XX, as forças americanas escolheram combater de forma diferente. A opção tomada incluiu a utilização maciça de mísseis de curto e longo alcance, de forças de Operações Especiais, de elementos da CIA e de afegãos da Aliança do Norte, que já combatiam os Talibãs há alguns anos, sem grande sucesso. Após doze dias de intensos bombardeamentos as forças americanas infiltraram-se no norte do Afeganistão e com o apoio da Aliança do Norte, foram expulsando os Talibãs e os terroristas da Al-Qaeda. Dois meses após o início da campanha o regime repressivo dos Talibãs estava deposto, o Afeganistão deixava de ser um local seguro para a Al-Qaeda, mas Osama Bin Laden tinha conseguido escapar.
Nos Estados Unidos, a década anterior tinha sido de contínua transformação, por um lado reduzindo o número de forças, que passaram dos 2 milhões, em 1991, para os 1,4 milhões, em 2001, mas por outro lado continuando a investir no desenvolvimento tecnológico. Na realidade, as forças militares tornaram-se mais pequenas mas muito mais letais, principalmente devido à utilização das tecnologias da Era da Informação.
[13]
Um dos mais importantes avanços desse período foi o desenvolvimento da
Joint Direct Attack Munition - JDAM,
[14] que veio permitir um enorme incremento na precisão dos mísseis.
JDAM foram utilizados, primeiro, na guerra do Kosovo em 1999 e a percentagem de mísseis guiados passou dos 10 por cento, da Guerra do Golfo para os 29 por cento, o que, apesar de tudo, ainda revelou algumas fragilidades. No Afeganistão, a grande vantagem foi que estas “
smart bombs” podiam ser lançadas de qualquer tipo de aeronave incluindo os B-52 e, pela primeira vez, estes bombardeiros puderam realizar missões de apoio aéreo próximo, sem risco excessivo para as tropas amigas.
[15]
Outros equipamentos que tiveram também uma evolução considerável foram os
UAV [16], nomeadamente o
RQ-1 A Predator, que na guerra do Kosovo apenas estava equipado para missões de reconhecimento, mas que no Afeganistão se tornou o primeiro
UAV com capacidades ofensivas, com dois mísseis anti-carro
Hellfire, guiados por
laser. Surgiu também o
RQ-4 Global Hawk que, não sendo ofensivo, estava equipado com câmaras de alta resolução e podia voar mais alto, dando uma perspectiva panorâmica do campo de batalha.
[17]
Mas a maior evolução desde 1991 foi a possibilidade de integração digital da informação proveniente de todos estes meios, que podiam agora ser vistos em directo do posto de comando instalado em Tampa, na Florida, e em muitos outros monitores no terreno. Tinha emergido o conceito de C4ISR
[18], que permitia o comando e controlo em tempo real, reduzindo os tempos de decisão para a destruição de alvos críticos e dando informações valiosas para os meios ofensivos, nomeadamente os aéreos.
[19]
O Afeganistão mostrou como uma “
netwar” pode ter sucesso. Trezentos elementos de Operações Especiais, cem elementos da CIA, juntamente com centenas de aviões e milhares de aliados nativos, apoiados pelas mais modernas tecnologias, demoraram apenas quarenta e nove dias a derrubar o regime Taliban, apenas com doze baixas do lado americano.
[20]
Apesar de esta ter constituído uma importante vitória para os Estados Unidos, os críticos referiram que a opção fundamental pelas Operações Especiais trouxe, como consequência, o limitado número de tropas no terreno, que permitiu a fuga de
Osama Bin Laden e outros dirigentes da
Al-Qaeda, durante a batalha de
Tora Bora, e permitiu também que mesmo com um novo governo em Cabul, muitos “
warlords” continuassem a controlar uma grande parte do país.
[21]
A guerra do Afeganistão deu origem a um discussão acalorada nos EUA, com alguns, como o Secretário da Defesa
Donald Rumsfeld, a pretenderem apostar para o futuro em forças mais ligeiras tipo Operações Especiais, contra outros, mais tradicionalistas, defendendo que o Afeganistão tinha sido um conflito atípico e não se deveriam nunca abandonar as forças pesadas, à base dos carros de combate, pois num futuro conflito poderiam ser necessárias. Acabou por vingar uma solução mista, incrementando o financiamento de forças de Operações Especiais, transformando e aligeirando algumas Brigadas do Exército, as
Stryker Brigades, sem no entanto abandonar por completo as forças pesadas.
[22]
c. II Guerra do Golfo
Como se veio a comprovar em 2003, com a II Guerra do Golfo (II GG), a decisão de não acabar por completo com as forças pesadas, foi uma decisão acertada. Os planos para a II GG reflectiram um misto entre a I GG e a Guerra do Afeganistão, mas como referiu o próprio comandante da coligação, General
Tommy Franks, eram também
a revolutionary concept, way outside the box of conventional thinking.[23]
A II GG teve inicio no dia 19 de Março de 2003, dois dias antes do previsto, com o bombardeamento intensivo por mísseis Tomahawk e bombas guiadas por satélite, lançadas por caças F-117, na tentativa que se revelou infrutífera, de aniquilar Saddam Hussein. Dois dias depois, imagens de um Predator sugeriam que os iraquianos se preparavam para incendiar os poços de petróleo em Rumailah, no sul do Iraque. Franks tomou então uma decisão audaciosa: iniciar a invasão terrestre antes mesmo de “amolecer” com fogos as primeiras defesas inimigas. Os iraquianos foram apanhados completamente de surpresa. Seguiu-se uma verdadeira operação de armas combinadas, com apoio de fogos de todos os meios disponíveis, infiltração das unidades de Operações Especiais e avanço no terreno das unidades blindadas, uma verdadeira blitzkrieg do século XXI. Vinte e seis dias depois, Bagdad estava conquistada e Saddam deposto, mas em parte incerta.
Se compararmos os dados, percebemos bem a evolução desde 1991: na II GG as forças da coligação eram menos de metade das forças da I GG, atingiram um objectivo muito mais ambicioso ao ocupar todo o Iraque e não apenas o Kuwait, demorando cerca de metade do tempo, com um terço das baixas e um quarto dos custos. Se pensarmos na
blitzkrieg alemã na II GM, então as diferenças são avassaladoras, já que os alemães necessitaram de 44 dias para conquistar a França a Holanda e a Bélgica tendo sofrido 27.000 mortos, enquanto os EUA necessitaram agora de 26 dias para conquistar o Iraque, sofrendo 161 baixas mortais.
[24]
O que permitiu esta estrondosa vitória, foi a enorme diferença entre os dois exércitos. O iraquiano continuava formado, organizado, equipado e doutrinado à maneira soviética, com poder destrutivo, mas sem flexibilidade nem descentralização. Muitas unidades simplesmente não reagiram porque não perceberam o que estava a acontecer e não tinham ordens para actuar. Ao contrário, o Exército Americano actuou na base da descentralização e das operações conjuntas, aproveitando as tecnologias da informação para incrementar o conceito de C4ISR, transformando-o num conceito mais abrangente e eficaz, designando-o por Network-Centric Warfare - NCW.
Já nos finais dos anos 90 se tinha começado a falar no conceito de
NCW, quando o Almirante
Jay Johnson, Chefe das Operações Navais da marinha dos EUA se referiu a um “
fundamental shift from what we can call platform-centric warfare to something we call network-centric warfare.”
[25] Na prática, assistíamos ao nascimento de um novo conceito de operações, baseado numa robusta rede de informações que ligava os comandantes, os sensores, as armas e as tropas no terreno, dando a todos um mais completo conhecimento do campo de batalha, permitindo decisões mais rápidas e acções mais eficazes. O grande impulsionador foi o Almirante
Arthur Cebrowski, chefe do
Office of Force Transformation do Pentágono, que se referia a este conceito como um novo paradigma da mudança para uma nova maneira de os EUA fazerem a guerra, dizendo “
Now fundamental changes are affecting the very character of war.”
[26]
É inquestionável que, no Iraque, em 2003, se verificou uma grande evolução nos equipamentos militares, com setenta por cento dos mísseis a ter capacidade de guiamento,
[27] com poder de fogo mais preciso e menos destrutivo, com vectores de poder aéreo, terrestre e marítimo cada vez mais eficazes. Mas a
NCW foi a grande inovação, trazendo a superioridade da informação e a possibilidade de uma partilha consciente da situação operacional, que acabou por se traduzir num potencial de combate acrescido. Se em termos numéricos os americanos não dispunham da vantagem de 3 para 1, teoricamente, necessária para a vitória, o facto de combaterem em “vantagem de informação” e em rede, permitiu-lhes aquele extraordinário êxito militar.
4. Um olhar pelo futuro
Como se constata pelo que foi apresentado anteriormente, as últimas duas décadas foram de grande transformação. No entanto, pensamos que essa transformação ainda não está completa e face ao que temos assistido, haverá sempre novos desenvolvimentos. Os avanços na tecnologia não param de nos surpreender, assim como as ameaças são cada vez mais difusas. Este é um jogo de “parada e resposta” que parece estar muito longe da fase final.
Nos nossos dias, principalmente após os acontecimentos do 11 de Setembro, constatamos que os problemas étnicos, religiosos, políticos, energéticos, demográficos e tantos outros, são cada vez mais uma ameaça à paz. O futuro será caracterizado cada vez mais pela incerteza, pela complexidade e pela existência de conflitos permanentes.
Não sendo previsível a existência de conflitos entre as grandes potências, que não se devem no entanto descurar, os grandes problemas serão no interior dos Estados e entre actores não estaduais e os Estados. Se por um lado, as estatísticas comprovam que há hoje menos conflitos que há 20 anos atrás, por outro lado, constata-se que há hoje mais países envolvidos em conflitos próprios ou multinacionais, como no Iraque ou no Afeganistão, do que nas duas décadas precedentes.
[28]
Existem diversas visões sobre o futuro. Na opinião dos peritos da Grã-Bretanha é muito provável que os conflitos tenham lugar em novos ambientes como o espaço, o ciberespaço, os mares, e cada vez mais nas cidades em crescimento acelerado. O desenvolvimento caótico de áreas urbanas, especialmente no mundo subdesenvolvido, com falta de infra-estruturas e segurança mínima, originará “santuários” que criminosos e terroristas poderão aproveitar para utilizar como locais de abrigo e de preparação para o lançamento de acções ofensivas.
[29]
De acordo com a
Joint Vision 2020 americana, as operações do futuro serão caracterizadas por “
dominant maneuver, precision engagement, focused logistics and full dimensional protection.” Por isso, tal como já se constatou na II GG, as operações serão cada vez mais conjuntas uma vez que, tal como refere o mesmo documento, “
the joint force, because of its flexibility and responseveness, will remain the key to operational sucess in the future.” É este o conceito básico para o futuro, que obrigará a uma mudança de atitudes em termos intelectuais, operacionais, organizacionais, doutrinários e técnicos.
[30]
Por outro lado, os futuros desenvolvimentos tecnológicos e um mercado de armas cada vez mais competitivo, resultarão naturalmente numa panóplia de armamento que será cada vez mais “
cheap, portable, destructive, widely available and easier to use.”
[31] A disseminação do armamento será um dos grandes problemas do futuro. Como refere
Joseph Nye Jr., “os grandes estados ainda possuem enormes superioridades militares, mas a disseminação de tecnologias de destruição maciça cria oportunidade para terroristas e gera vulnerabilidades nas sociedades pós-industriais.”
[32]
Max Boot, considera que a evolução das tecnologias da Era da Informação poderá levar a forma de fazer a guerra para estranhas e inesperadas direcções, em que os avanços e as capacidades existentes possam vir a dar um poder acrescido a pequenos Estados ou a grupos isolados, em detrimento das grandes nações.
[33] Em termos tecnológicos, o mesmo autor considera que os desenvolvimentos mais promissores e simultaneamente mais ameaçadores para o futuro, serão a robótica, a “guerra das estrelas” associada aos satélites, as armas
laser, os “
hackers” informáticos, a nano tecnologia do armamento individual e os avanços biológico e químico com fins agressivos.
No que respeita a armas nucleares, de acordo com o
National Intelligence Council dos EUA, o risco da sua utilização nos próximos 20 anos, apesar de continuar baixo, é possível que seja maior do que hoje, em resultado de diversos factores: Primeiro, a proliferação de tecnologia nuclear poderá fazer emergir novas potências nucleares, como por exemplo o Irão, enquanto o acesso a este tipo de armas por parte de grupos terroristas poderá ser mais fácil; Segundo, conflitos de baixa intensidade entre potências nucleares, como a Índia e o Paquistão, poderão eventualmente escalar para uma maior intensidade; Terceiro, a instabilidade e a possibilidade de colapso violento de regimes como o da Coreia do Norte, coloca a questão de este tipo de regimes fracos não ser capaz de controlar os seus arsenais nucleares.
[34] Na realidade, pensamos que a utilização futura de armas nucleares poderia provocar uma alteração geopolítica global de contornos dificilmente perceptíveis.
David Alberts considera que as guerras do futuro serão de três tipos, todas dependentes dos avanços das tecnologias de informação: primeiro o conflito tradicional, que manterá a sua importância, evoluindo com as capacidades tecnológicas; depois a evolução de missões não tradicionais, como a assistência humanitária, as operações de paz, as operações especiais em baixa intensidade de conflito, o combate à droga e à proliferação de armas, etc., e, por último, as guerras no domínio da informação, no ciberespaço, que terão um enorme incremento e que serão cada vez mais utilizadas para neutralização das forças convencionais.
[35]
Na nossa opinião e face ao que foi exposto, as forças armadas do futuro, terão de estar preparadas para actuar em diferentes tipos de cenários que poderão ir da manutenção da paz à guerra tradicional e terão de dispôr de meios e capacidades, para contribuir para a paz ou para vencer a guerra. Por isso, mesmo com os avanços tecnológicos, pensamos que terão de continuar a existir diferentes tipos de forças, desde as ligeiras às mais pesadas, que permitam cumprir todo o tipo de missões.
Alguns autores defendem que na nova Era, a Informação tem mais poder que a blindagem. Este sentimento parece-nos demasiado redutor, em primeiro lugar porque as novas tecnologias e nomeadamente a NCW têm vulnerabilidades que serão dificilmente ultrapassáveis, em segundo lugar porque o que continua a materializar a vitória é a ocupação efectiva do terreno com o homem, e para isso é necessária a blindagem. É evidente que dependendo da intensidade do conflito, o doseamento entre unidades ligeiras e pesadas terá de ser feito e quanto mais simétrica ou “clauzewitziana” for a guerra, mais necessidade haverá de forças pesadas.
Sabemos, no entanto, que a superioridade material e tecnológica não é suficiente. O factor humano continua a ser de primordial importância pois a tecnologia não substitui o homem como único ser pensante em toda a cadeia. A natureza da guerra será sempre determinada pela interacção entre os combatentes e os meios ao seu dispôr. Será assim fundamental continuar a apostar no treino, na doutrina, na organização, na preparação dos comandantes, na qualidade dos militares, para que todos possam tomar o melhor partido dos avanços tecnológicos. A maior importância do factor humano comprova-se também no cada vez menor número de baixas militares. Nos conflitos que estudámos vimos que a precisão das armas, aliada à maior profissionalização dos militares, originou uma importante redução do número de baixas. Pensamos que no futuro essa tendência será ainda mais marcada, não apenas por factores estritamente militares, mas também por razões políticas e sociais, com o factor media a ter um papel cada vez mais relevante.
Por outro lado, um dos grandes problemas que se colocará no futuro será a interoperabilidade dos sistemas das diversas nações. Numa operação multinacional, para que se possa instalar uma rede com o mínimo de eficácia é necessário que, tecnologias, treino e doutrina sejam idênticos, o que está ainda longe de acontecer. Nos últimos anos, os Estados Unidos comprovaram a sua liderança tecnológica e vão continuar a investir, enquanto os seus aliados naturais, os europeus, mais preocupados com problemas sociais e económicos, têm desinvestido na área da defesa. Este desequilíbrio poderá levar os EUA a um isolamento crescente, com nefastas consequências para as alianças existentes e evidentes vantagens para os adversários.
Neste aspecto, a NATO tem sido ao longo dos anos o grande motor da interoperabilidade e o seu papel continuará a ser de importância fundamental para o futuro. Um dos seus conceitos chave para a transformação denomina-se NATO Network Enabled Capability (NNEC) e a sua implementação permitirá a obtenção, gestão e partilha da informação entre os países membros, dando à Aliança um potencial de combate acrescido. Mas há ainda um longo caminho a percorrer, até se poder considerar que na NATO o problema da interoperabilidade está resolvido.
5. Conclusões
Apoiados pelos extraordinários avanços tecnológicos da Era da Informação, os Estados Unidos adoptaram nas últimas décadas uma nova forma de fazer a guerra, muito mais eficaz e com menor número de baixas de ambos os lados.
A Network-Centric Warfare veio permitir um maior e mais rápido acesso à informação por parte de todos os escalões e unidades intervenientes. Essa informação, quando em tempo real e partilhada, confere maior flexibilidade, descentralização, capacidade de iniciativa e de decisão, originando o aumento do ritmo das operações, maior e mais precisa capacidade de resposta, com menos riscos para as forças amigas, características que no seu todo traduzem um acrescido poder militar.
O nosso estudo focalizou-se nos três maiores conflitos das últimas duas décadas, dando-nos uma ideia da evolução nesse período. Mas as constantes alterações resultantes de um mundo globalizado, fazem com que as nossas sociedades se vejam hoje confrontadas com novas ameaças, por vezes assimétricas, de carácter multifacetado e transnacional, tão distinto daquele que conhecíamos durante o período da Guerra Fria. O terrorismo internacional é talvez a ameaça mais visível, mas não poderemos esquecer os perigos da proliferação de armas de destruição maciça, do crime organizado, do narcotráfico, dos ataques informáticos ou dos estados falhados, mencionando apenas os mais relevantes.
Por isso, as forças armadas do futuro terão de estar preparadas para responder a todo o espectro de ameaças, sendo indispensável acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos. Mas, cada vez, mais constatamos que a tecnologia não substitui o homem, sendo também cada vez mais imprescindível apostar na formação humana. Este é um binómio que continuará incontornável no futuro.
A NCW tem enormes vantagens mas também tem vulnerabilidades e desafios, em vertentes como a segurança e a gestão das informações, os custos de implementação, ou a interoperabilidade dos sistemas para a utilização conjunta ou combinada. Estes são problemas importantes que apenas poderão ser minorados com o contributo de todos.
O avanço tecnológico dos EUA, sem acompanhamento dos restantes países, acabou por provocar uma situação de isolamento contrária ao espírito das operações combinadas. Dos três conflitos que estudámos, apenas o primeiro constituiu uma verdadeira operação combinada, uma vez que os outros dois foram operações americanas com algum apoio exterior, especialmente da Grã-Bretanha. O fosso tecnológico entre EUA e Europa é enorme e dado o desinvestimento europeu na área da defesa, esse fosso poderá pôr em causa futuras operações combinadas.
A NATO será, na nossa opinião, a única hipótese credível de aproximação efectiva dos dois lados do Atlântico e a única ferramenta eficaz para afastar os EUA da tendência isolacionista. Os restantes países, terão que responder aos desafios do futuro, com acções concretas e não apenas com declarações de intenção.
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Telo, António José, Reflexões sobre a Revolução Militar em Curso, Nação e Defesa nº 103, Outono/Inverno 2002.
* Coronel de Cavalaria. Frequenta o Programa de Doutoramento em Relações Internacionais/Segurança e Defesa, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa.
[1] Electronic Numerical Integrator and Computer. [2] Max Boot,
War made new, Gotham Books, New York, 2006, p. 310.
[3] Hypertext markup language e Hypertext transfer protocol. [4] Uniform resource locator. [5] Joseph Nye Jr.,
O paradoxo do poder americano, Gradiva, Lisboa, 2005, p. 65.
[7] Max Boot,
War made new, p. 320 e 321.
[9] Max Boot,
The new American way of war, Foreign Affairs, July/August 2003, p. 41.
[10] Max Boot,
War made new, p. 347.
[14] JDAM é um
Kit que se pode acoplar às tradicionais bombas por gravidade, dando-lhes guiamento por um sistema de
GPS, tornando-se mais eficaz que os sistemas de guiamento por
laser ou infravermelhos, quando operados em condições meteorológicas adversas.
[15] Max Boot,
War made new, p. 361.
[16] Unmanned Aerial Vehicles. [17] Max Boot,
War made new, p. 362.
[18] Command-control-computers-intelligence-surveillance-and-reconnaissance.
[19] Strategic Policy Issues, Counter-terrorism and military transformation: the impact of the Afghan Model, Strategic Survey 2002-2003, p.17.
[20] Max Boot,
War made new, p. 382.
[21] Max Boot,
The new American way of war, p. 43.
[22] Strategic Policy Issues, Counter-terrorism and military transformation: the impact of the Afghan Model, Strategic Survey 2002-2003, pp.18 a 21.
[23] Citado por, Max Boot,
War made new, p. 390.
[24] Max Boot,
The new American way of war, p. 44.
[25] Citado por
Arthur Cebrowski e John Garstka em Network-centric warfare: its origins and future, Jan 1998, disponível em
http://all.net/books/iw/iwarstuff/www.usni.org/Proceedings/Articles98/PROcebrowski.htm, acedido em 27 Mar 09.
[27] Max Boot,
The new American way of war, p. 52.
[28] Center for International Development and Conflict Prevention, Peace and conflict 2008, University of Maryland, 2008, p. 1.
[29] UK MOD, The global Strategic Trends programme 2007-2036, Third edition, Jan 2007, p. 70.
[30] Joint Chiefs of Staff USA, Joint Vision 2020, disponível em
http://www.iwar.org.uk/military/resources/aspc/pubs/jv2020.pdf, acedido em 28 Mar 09.
[31] UK MOD, The global Strategic Trends programme 2007-2036, p. 74.
[32] Joseph Nye Jr.,
O paradoxo do poder americano, p. 96.
[33] Max Boot,
War made new, p. 439.
[34] National Intelligence Council USA, Global Trends 2025: a transformed world, Nov 2008, p. X, disponível em
http://www.dni.gov/nic/PDF_2025/2025_Global_Trends_Final_Report.pdf, acedido em 28 Mar 09.
[35] David S. Alberts, Information Age Transformation, Getting to a 21st century military, CCRP, Jun 2002, pp. 39 a 45.