1. Na Cimeira da NATO, que ocorreu, em 4 de Abril de 2009, nas cidades de Estrasburgo /Kehl, os Chefes de Estado e de Governo dos estados membros encarregaram o Secretário-Geral de desenvolver um Novo Conceito Estratégico para a Aliança (o que vigora data de 1999). A apresentação das linhas gerais de orientação deverá ser apresentada na próxima Cimeira, marcada para Lisboa nos finais do corrente ano.
O Secretário-Geral foi ainda incumbido de reunir e orientar um grupo alargado de especialistas, presidido pela antiga Secretária de Estado dos EUA, a Senhora Madeleine Allbright, que até 10 de Abril, conduzirá uma fase de reflexão e de recolha de sensibilidades nas capitais dos estados-membros para lançar as bases em que assentará o Novo Conceito. A esta fase seguir-se-ão fases de consulta e de redacção do Documento para aprovar em 2011.
Nos sessenta anos da sua existência, a Aliança tem procurado adaptar-se aos sucessivos ambientes estratégicos que se vivem no globo, ditados por novos arranjos geopolíticos, novos riscos e ameaças e novas percepções sobre defesa que, progressivamente, vão sendo substituídos por conceitos mais abrangentes de segurança. Concebida como uma aliança político-militar para defesa colectiva de uma sociedade fundamentada num sistema de valores e num estilo de vida que ao tempo estavam confinados a um espaço próprio, as suas adaptações seguiram, cronologicamente e até ao seu desaparecimento, as alterações que se verificaram na ameaça a que fazia face: a URSS, nas suas intenções e capacidades. No tempo, três transformações foram importantes. Em Dezembro de 1967, a adopção da doutrina Harmel, fundada nas políticas paralelas de manutenção de uma defesa adequada e na procura de uma diminuição na tensão Leste-Oeste. Em 1969, a implementação pelo governo da República Federal da Alemanha, da “Ostpolitik” do Chanceler Willy Brandt que visava tornar mais positivas as relações com os países da Europa de Leste e com a URSS, tentando modificar as limitações impostas pelas políticas internas e externas dos governos daqueles países. Em Agosto de 1975, a assinatura em Helsínquia do Acto final da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia que estabeleceu normas novas para tratamento dos problemas dos direitos humanos e institui medidas destinadas a melhorar a confiança entre o Leste e o Oeste.
Com este marco, iniciou-se uma nova época para a Aliança, implementando-se uma política de détente e passando de um Conceito Estratégico de “defesa avançada e retaliação massiva” para um Conceito de “defesa avançada e resposta flexível”.
A abertura do muro de Berlim, em Novembro de 1989, e os consequentes acontecimentos, rápidos e surpreendentes, que se desenvolveram na URSS e seus países satélites, deixaram o mundo na incerteza estratégica e a Aliança “sem inimigo”. Na Cimeira de Londres, em Julho de 1990, os chefes de estado e de governo fizeram uma Declaração, anunciando uma futura estratégia que visava a segurança, com base no diálogo, cooperação e transformação da Aliança mas que confundiu política com estratégia e, desde então, passando por sucessivos Conceitos Estratégicos (1991,1999), a NATO ainda não encontrou o seu outro ou outros para a formulação de uma estratégia coerente com os seus objectivos. O hard power da Aliança (capacidades militares) deteriorou-se e as suas sucessivas transformações afectaram essas capacidades; o soft power, tão essencial a estratégias de segurança, não encontra espaço para afirmação própria num campo tão preenchido, e bem, pelas Nações Unidas e outras organizações regionais de segurança, existentes ou procurando afirmação, como a União Europeia. Valerá a pena reflectir, para o futuro, que se deve deixar para a segurança o que é da segurança e deixar que a NATO continue no seu “core business” que é a defesa.
2. A utilização da NATO em missões de segurança global ou regional, sob mandato das Nações Unidas, na sua área de aplicação ou fora dessa área, tem levantado problemas no seio dos estados membros e das suas opiniões públicas e criado tensões nas relações transatlânticas. A aplicação da NATO no conflito no Afeganistão, além de levantar problemas de credibilidade à Aliança, já fez cair o governo de um estado membro tradicionalmente fiel ao seu atlantismo. As vozes que em 1991 alertavam para a que a Aliança em missões out of area poderia correr o risco de caminhar para out of business, começam a ser recordadas.
Também os sucessivos alargamentos da Aliança para outros espaços europeus se estão a revelar como “consensos mudos” no seio de alguns estados membros. A Rússia, com quem a Aliança procurou boas relações desde 1991, faz saber que maior segurança nos vizinhos cria em si própria insegurança e na definição da sua nova estratégia continua a apostar no direito de intervenção em espaços próximos e nas armas nucleares como capacidade dissuasora. Os Estados Bálticos, a Geórgia e a Ucrânia (onde o novo regime político já definiu políticas de não alinhamento a Leste ou a Ocidente) são vizinhos da Rússia que na área continua a manter interesses estratégicos e a NATO tem de fazer uma reflexão sobre a sua política de alargamento.
Os vários fora que a Aliança tem procurado criar para diálogo e cooperação têm tentado sentar à mesa mais a partilha de interesses do que a identidade de valores, o que torna o diálogo difícil e a cooperação forçada.
Também as relações entre a NATO e a União Europeia se arrastam num clima de suspeitas mútuas, emulação e competição que só se compreende por visões políticas diferentes quanto a segurança, defesa e capacidades militares para enfrentar ameaças e riscos comuns para dezanove estados que se sentam e fazem ouvir as suas vozes nas duas organizações.
O Quadro que a seguir se apresenta, retirado de um estudo elaborado pela RAND Corporation, sobre as diferentes percepções, que de um e do outro lado do Atlântico e numa Europa que se quer comum mas que se divide em sistemas de valores, existem sobre prováveis áreas de ameaças e riscos, é curioso.
Sem prejuízo de outras leituras, em primeiro lugar mostra que não há percepção de uma ameaça comum de um e do outro lado do Atlântico (área de ameaça e risco que seja valorizada com o grau 5) e que as áreas em que existe maior aproximação são as relacionadas com o terrorismo patrocinado pela Al-Qaeda, com o acesso do Irão a mísseis com ogivas nucleares e com a proliferação de armas de destruição massiva, que merecem quase a mesma valoração entre os inquiridos. Mostra, em segundo lugar, uma quase idêntica percepção dessas áreas de risco entre os EUA e o Reino Unido (mais forte identificação de valores comuns?). Mostra ainda diferentes percepções nos EUA e na Europa e, nesta, diferenças entre a “Europa Ocidental” e a “Europa de Leste”.
3. Acreditamos que mesmo face a descrenças, diferenças e dificuldades, um novo Conceito Estratégico para a NATO deve merecer o interesse e o empenho dos estados membros na sua definição.
A Aliança, desde a sua fundação, tem proporcionado aos seus membros poder e influência consideráveis nos assuntos mundiais e aos seus cidadãos confiança de que o seu estilo de vida será continuado em paz e segurança. Constitui trave mestra nas relações transatlânticas e é um repositório de uma história partilhada em comum. Por estas razões vale a pena um esforço para manter a Aliança. Os anos recentes viram fracturas dentro de si e desacordos sobre as suas finalidades básicas, pelo que a revisão do seu Conceito Estratégico deve revitalizar a NATO, definindo um conjunto de princípios básicos que servirão no futuro.
No debate que decorre nos estados membros, com variadas intensidades e empenhos, vão surgindo estudos e opiniões, aqueles mais ambiciosos e elaborados e estas mais simples e directas. Do espaço de debate que a OTAN, sobre o assunto, mantém na Internet, retirámos duas questões simples formuladas recentemente por intervenientes. “Gostaria de levantar a questão do papel da NATO no moderno sistema de segurança internacional. Há uma coordenação de autoridade, entre a NATO e as Nações Unidas, sobre as acções levadas a efeito sobre esta Organização na área de influência da Aliança?”. “Julgo que o Novo Conceito estratégico da Aliança deve confirmar o princípio da defesa colectiva, sem prejudicar acordos regionais de segurança que os seus estados membros desejem implementar”.
Nos estudos mais elaborados algumas questões surgem para meditação. Há quem queira materializar no Conceito uma Grande Estratégia para a Aliança, faseada no tempo em prazos curto, médio e longo, fortalecendo as suas dimensões tradicionais: política (relações transatlânticas, relações com a Rússia, relações com a União Europeia), militar (capacidades de dissuasão e de defesa adaptadas a novas ameaças, deixando para as Nações Unidas as capacidades de prevenção e reconstrução pós-conflito), económica (redefinido orçamentos de defesa e orçamentos comuns) e científica (novas fronteiras, novos desafios, energia, espaço e oceanos). Há também quem seja mais ambicioso e que recomende áreas em que o novo Conceito se deve focalizar: Reforço na Europa, Novo peso no Médio Oriente, Enfoque nos estados falhados, Capacidade de defesa face a ameaças não-estatais, Aliança global de democracias liberais.
Nas propostas a formular não pode esquecer-se se o novo Conceito se destina a manter a Aliança nos seus fundamentos (valores comuns partilhados em espaços diferentes, defesa colectiva, relações transatlânticas) ou se destina a uma nova Aliança, que ainda não existe e que se deseja inventar em finalidades e espaço.
Portugal foi fundador e tem-se mostrado um fiel membro da Aliança. Nas propostas que formular não irá esquecer a história comum percorrida e partilhada.
Post-scriptum:
No passado dia 20 de Fevereiro, faleceu, com 85 anos, o General (US-A) Alexander Haig Jr. Citando uma fonte internacional “Desapareceu um dos grandes Generais e Patriotas dos EUA do nosso tempo; um homem nobre de carácter e de vontade forte que dedicou a sua vida ao Serviço da sua Nação e à nobre causa da Liberdade através de uma forte Aliança”. O General Haig, que foi Comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa, foi um bom amigo e aliado das Forças Armadas Portuguesas em momentos difíceis. A Revista Militar recorda-o e presta-lhe a sua homenagem.
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* Presidente da Direcção da Revista Militar.