Nº 2500 - Maio de 2010
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
General Câmara Pina
General
José Alberto Loureiro dos Santos
Senhor Presidente da Academia das Ciências
Caros Confrades
 
O General Luís Maria da Câmara Pina, nas suas funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, que desempenhou durante onze anos, de 1958 a 1969, aparecia por vezes no Instituto de Altos Estudos Militares para assistir a intervenções de alguns especialistas, no decurso de colóquios que ali estavam a decorrer. Foi num desses colóquios que, pela primeira vez, tive oportunidade de o ver e ouvir, era eu aluno do Curso de Estado-Maior, que frequentei de 1966 a 1969. Rodeava o general a fama de ser um militar muito competente e superiormente inteligente e a verdade é que ficávamos fascinados pelo nível e brilho das palavras que a espaços dirigia à audiência, normalmente para falar das personalidades de prestígio que participavam no seminário ou para destacar aspectos-chave dos assuntos que estavam a ser tratados.
 
O general encontrava-se então no centro do maior esforço continuado de projecção de forças militares de Portugal durante toda a sua longa História, de acordo com o Professor António Telo, levando a efeito campanhas de contra-subversão simultâneas em três teatros de operações a milhares de quilómetros de distância, o que exigia um sistema administrativo-logístico gigantesco. Nas funções de comandante do Exército, concebeu e conduziu este esforço na sua quase totalidade e ainda tinha tempo para se dedicar às questões culturais e académicas, não perdendo a qualidade que lhe era reconhecida de brilhante professor que tinha sido no Instituto de Altos Estudos Militares, onde se formavam os oficiais do Exército destinados a essas campanhas e ao estado-maior que as estudava e coordenava. Assim como preparava e desenvolvia a doutrina militar que era aplicada. Neste Instituto servira como professor e Director e dele saíra quando fora escolhido para exercer o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército.
 
Este último facto e ainda a minha eleição para sócio correspondente desta Academia são porventura as duas únicas razões que terão levado o nosso ilustre Presidente, quando me designou para falar sobre Câmara Pina, ter dito que, na prática, eu seria o seu substituto. Sim, aceito que poderei ser o seu substituto em termos físicos, mas estou bem distante da sua elevada inteligência, dos seus profundos conhecimentos militares e culturais, da sua elegância e fineza intelectual, do seu esmerado trato, do seu discurso corrido, insinuante e requintado, enfim do seu savoir faire social que a todos encantava.
 
Os pontos mais salientes da biografia do General Câmara Pina, que honra o Exército, a Instituição Militar, a Academia das Ciências e Portugal, já foram bem expressos durante as sessões evocativas do centenário do seu nascimento, ao longo do ano de 2004, todas constantes de um número especial da Revista Militar, publicado em Dezembro do mesmo ano, onde muitas figuras de relevo nacional, académicos e militares realçam as suas excelsas e múltiplas qualidades, assim como a sua vasta obra, quer de pensamento quer de acção. Como foi o caso do Professor Doutor Adriano Moreira, nosso Presidente.
 
No que diz respeito ao seu pensamento esclarecido e inovador, convém recordar que a sua formação inicial foi na área das Matemáticas, licenciando-se nesta disciplina na Universidade de Coimbra, com vinte e um anos, em 1925. No ano seguinte, matriculou-se no Curso de Engenharia da Escola Militar, sendo promovido a alferes, em 1930. Se esta formação eminentemente científica lhe imprimiu o espírito rigoroso que caracterizam os cultores da ciência, não impediu o seu interesse por tudo quanto era cultura e ainda que se tivesse dedicado à prática da História e das Ciências Sociais, indispensáveis para compreender o fenómeno da guerra e do funcionamento dos aparelhos de coacção de qualquer natureza - política, económica, psicológica, militar, etc.
 
De 1937 a 1940, Câmara Pina frequentou o curso de Estado-Maior com a classificação de Distinto, ficando desde logo a servir como Professor do Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM). Depois do curso de Altos Comandos, onde foi classificado de Muito Apto, também ficou a ensinar neste curso. Em 1957, assumiu as funções de Director do Instituto de Altos Estudos Militares, função que abandona no ano seguinte, quando é nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército. O que significa que, na carreira do general, a vida académica ocupou parte substancial do serviço que prestou ao país, o que iria prolongar-se na situação de reserva, como fundador e Director do Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional (IAEDN), e, mais tarde, na Direcção da Revista Militar e como membro da Academia das Ciências. Para esta Academia foi eleito sócio correspondente da Secção de Ciências Aplicadas em 1967, alcançando a qualidade de sócio efectivo, em 1974. Além disso, pertenceu à Academia Portuguesa de História, à Academia Internacional de Cultura Portuguesa (de que foi um dos fundadores), à Sociedade Histórica da Independência de Portugal e foi sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa.
 
Como principais produtos do seu labor intelectual, além das primorosas lições e conferência que efectuou, nomeadamente no IAEM, no IAEDN e no Nato Defense College, de que foi o primeiro Ancien Honorário de Portugal, contam-se: quando jovem oficial, como especialista em telegrafia, cujos conhecimentos consolidou no Marconi College do Reino Unido, publicou “Instruções técnicas do pessoal de telegrafistas” (1935) e “a TSF e as Transmissões” (1938); em 1945, na sequência dos trabalhos que desenvolveu no âmbito do reequipamento militar português, Câmara Pina, então major, publicou “O Dever de Portugal para com as Comunidades Lusíadas da América do Norte”, onde expressa o seu pensamento acerca da necessidade de um país neutral ter uma defesa própria; mais tarde, escreveria outros trabalhos que ainda hoje merecem ser lidos - “Jomini-Grande Senhor da Estratégia”, “O Valor da Presença Militar na Difusão da Cultura Portuguesa em África” e “Relances da História”; como membro da Academia das Ciências de Lisboa, são de destacar comunicações, estudos, ensaios e intervenções de elevado nível no decurso das sessões a que assistia, sempre de forma persuasiva, inteligente e num português fluente; são desta época “Alguns aspectos Militares de Lamego” (1976), “Da Personalidade Militar de D. Afonso Henriques” (1977), “Considerações em Torno da Batalha de São Mamede” (1978) e “Camões Soldado” (1979). Também na Academia, dinamizou a publicação do Dicionário Bibliográfico Militar, da autoria de Martins de Carvalho, do qual foram publicados os dois primeiros volumes.
 
No respeitante à sua tão fecunda acção concreta, não posso deixar de referir muito sinteticamente, pela sua importância: a participação em missões de observação na Guerra Civil de Espanha, entre 1936 e 1939, e em missões de observação e cooperação no teatro de operações do Sul do Pacífico no quadro da Segunda Guerra Mundial, em relação à situação de Timor (1943-1945); as actividades de diplomacia militar que desenvolveu nas funções de Adido Militar junto da Embaixada de Portugal em Londres, nomeadamente nas facilidades aéreas concedidas à Inglaterra e aos Estados Unidos e no rearmamento do Exército a seguir à segunda guerra mundial, de 1943 a 1945; exercício do cargo de Chefe de Estado-Maior, onde fez um comando esclarecido e mobilizador de vontades - o dom mais precioso de um chefe militar, que o torna capaz de fazer com que os seus subordinados considerem seus os objectivos de quem os comanda. Nele, incluem-se as reformas no dispositivo do Exército, a criação de unidades e órgãos especiais do Exército e o envio de missões de estudo e observação a escolas de contra-subversão/guerrilha de alguns dos seus oficiais bem como a teatros de operações onde se conduziam operações contra-insurreccionais, na previsão da necessidade de levar a cabo operações de contra-subversão em África; na concepção, criação e direcção do Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional, precursor do actual IDN, de 1969 a 1974; na forma como desempenhou as funções de Director da Revista Militar, de 1969 a 1980; na Presidência da Classe de Ciências e da Academia das Ciências de Lisboa em 1979; nas funções de procurador e vice-presidente da Câmara Corporativa.
 
Ao General Pina devo as lições que com ele aprendi, tanto no respeitante ao modo como desempenhou o cargo de Comandante do Exército, como ao conhecimento a que me deu oportunidade de ter acesso a partir do seu trabalho intelectual e do pensamento que me deslumbrava e contagiava, em muitas das suas obras. Recordo um dos aspectos em que beneficiei de uma das suas linhas de orientação no estudo histórico das operações militares - nunca estudar uma batalha que ocorreu no passado sem conhecer perfeitamente a configuração geográfica à data e as características do equipamento nela utilizado. A propósito do seu trabalho sobre São Mamede, informou-me ter excluído várias hipóteses narradas desde que esta batalha se tinha travado, pela simples razão de que, à luz dos princípios da guerra que todo o chefe militar conhece, constantes ou quase constantes das operações tácticas e estratégicas operacionais, não era possível efectuar as manobras descritas nessas narrativas, muitas delas sobre a forma como as forças antagonistas progrediram para o seu encontro.
 
Foi esta sábia orientação que me fez deslocar à cidade de Ceuta para analisar rigorosamente o terreno, estudando nos documentos geográficos e urbanísticos existentes a sua configuração, com a finalidade de pôr de parte as opções contadas por diversos autores que trataram o tema desde que ele ocorreu, tendo chegado à conclusão que muitas delas eram inexequíveis, dados os condicionamentos geográficos existentes. Estas conclusões são resumidamente descritas na publicação que resultou destas orientações que aprendi do General Câmara Pina. Hoje são correntes estes cuidados que, afinal, nos parecem elementares.
 
O General Luís Maria da Câmara Pina agia de modo bem diferente do comportamento predominante da maioria dos militares na sua época. Estava muito próximo do tempo actual. De facto, não era apenas um soldado/combatente; era também e, a partir de muito cedo, um autêntico soldado/diplomata, por ter a percepção das estreitas relações entre a acção militar e a diplomacia nas operações militares, particularmente naquelas que Portugal travou em África na década de sessenta, quando exercia as funções do Chefe de Estado-Maior do Exército. Hoje em dia, essa estreita ligação é reconhecida, numa época de conflitos em que, ao mesmo tempo que se utiliza o combate para coagir o inimigo, lhe é oferecida a negociação nas condições que nos interessam. E também era um soldado/intelectual, figura de guerreiro e pensador com que deparamos ao longo de toda a História Militar. Já alguém disse que a ele se aplicavam como uma luva as palavras de Camões que constituíam a divisa do Instituto de Altos Estudos Militares - “não houve forte capitão que não fosse também douto e ciente”.
 
Quando li, pela primeira vez, o livro de Diogo do Couto, “O Soldado Prático”, a obra que retrata a epopeia dos descobrimentos pela face oposta ao lado luminoso que Camões apresenta nos Lusíadas, já que Diogo do Couto nos descobre a face escura das tristezas e misérias daquele período e os comportamentos injustos e corruptos dos poderosos, muitas vezes cínicos, particularmente daqueles que beneficiavam dos lucros do comércio e desprezavam e maltratavam os soldados que tanto penavam e sofriam para que as riquezas pudessem vir para o reino.
 
A certo passo, na conversa entre o Soldado e o Despachador, já o diálogo ia longo, este, perante as palavras que o Soldado ia proferindo e a sabedoria que ia demonstrando, disse “Essa profissão (de soldado) é já mais que de puro soldado, como vós dissestes que éreis; porque vejo que vos ides mostrando filósofo, humanista, e ainda teólogo, para o que se requer mais quietação que de soldado, que não pode trazer a espingarda às costas e os livros da outra parte; porque sempre, ou a mais das vezes, uma coisa impede a outra”.
 
Ao que o Soldado respondeu: “Nunca a pena embotou a lança. Soldado e capitão era César e, conquistando a Gália, de dia pelejava e de noite escrevia nos seus “Comentários”. Alexandre, conquistando o mundo, sempre comunicava com filósofos e trazia a “Íliada” de Homero à cabeceira. Epaminondas lacedemónio trazia no exército sempre a sua livraria, e não se determinava de qual tinha mais, se de esforçado, se de sabedor; e trezentos outros capitães, a quem as armas não escusaram o engenho. E não digo isto porque haja em mim o que Vossa Mercê diz; porque somente o amor das letras me ficou daquela primeira idade, em que gastei alguns anos nas artes liberais, de que só me ficou a inclinação dos livros, com que comunico as horas que me resta, porque natural é ao homem desejar de saber, como afirma Aristóteles no primeiro da “Metafísica”.
 
Concluindo. O soldado, por ser prático, isto é, por ser activo, dinâmico, corajoso e eficiente a combater, não impede que seja também culto e sabedor, homem do seu tempo, capaz de compreender o seu mundo assim como a realidade que o envolve. Enfim, de ser um combatente capaz de usar com destreza, tanto a força das armas como o poder do espírito.
 
Era assim o General Luís Maria da Câmara Pina. Como os mais ilustres soldados com que este Portugal de tantos séculos sempre contou.
 
___________
 
* Comunicação à Academia das Ciências, apresentada em 25 de Fevereiro de 2010.
**     Sócio Efectivo da Revista Militar.

 

 
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General

José Alberto Loureiro dos Santos

Natural de Vilela do Douro, freguesia de Paços, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, assentou praça na Escola do Exército em 1953, e passou à reserva em 1993. Oficial de Artilharia, habilitado com o Curso de Estado-Maior e o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (doutoramento em Ciências Militares).

Cumpriu duas comissões de serviço em África. Como oficial general, desempenhou várias funções, entre as quais, Diretor do IAEM, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Madeira, Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (Tenente-coronel graduado em General de quatro estrelas) e Chefe do Estado-Maior do Exército.

Foi ainda: Encarregado do Governo e Comandante-Chefe de Cabo Verde, Secretário Permanente do Conselho da Revolução, membro do Conselho da Revolução (por inerência, nas funções de Vice-CEMGFA), Ministro da Defesa Nacional (nos IV e V Governos Constituciona

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