“Nestas coisas (problema da posição relativa entre o mar e a terra), a nação dos portugueses precedeu todos os antigos e modernos em tanta quantidade que eles, em nosso respeito, não souberam nada.”
Duarte Pacheco Pereira
Introdução
Costuma dizer-se, e é verdade, que a História de Portugal se confunde, ou corre paredes meias, com a história das suas Forças Armadas. E, neste âmbito, se pode dizer que a Marinha está presente nesta história desde o reinado do nosso primeiro rei e pai fundador, Afonso Henriques, de que se comemoraram no ano passado nove séculos do seu nascimento.
Tentarei analisar sucintamente os marcos mais relevantes dessa História à base de uma leitura estratégica e geopolítica da mesma; analisarei mais alargadamente a situação contemporânea e finalizarei com umas conclusões.
Síntese Histórico/Estratégica
“Conter Castela em terra
E batê-la no mar”
D. João II
Com D. Afonso Henriques foi preciso defender o Condado Portucalense contra leoneses e castelhanos e acrescentá-lo à custa de galegos e mouros. As três tentativas feitas a norte fracassaram pelo que a expansão se dirigiu para sul. O grosso do poder militar estava nas tropas dos concelhos, nas mesnasdas dos nobres e das ordens religiosas e na hoste real. Mas já havia pesca costeira e comércio marítimo sobretudo com os portos da Flandres e Inglaterra, mais tarde extensível à costa bretã e ao mediterrâneo norte, que se foi desenvolvendo durante toda a Idade Média.
Nasceu ainda uma marinha de guerra incipiente, cujo primeiro Almirante terá sido D. Fuas Roupinho, se bem que não haja certezas de quem verdadeiramente se tratava. O que é certo é que acabou por se constituir uma esquadra de galés que combatia a pirataria mourisca nas nossas costas, chegando a realizar algumas acções ofensivas em Sevilha, Estreito de Gibraltar e Ceuta, tendo inclusivé o almirante Roupinho falecido em combate, em 1182, junto a esta última praça. As forças navais colaboraram na reconquista e nas lutas com leoneses e castelhanos.
Até ao reinado de D. Afonso III pediu-se ajuda às frotas de cruzados, para a reconquista de algumas cidades, as mais famosas das quais, Lisboa, Alcácer e Silves.
É, porém, com D. Dinis que se cria a Marinha (e também o Exército) em termos permanentes, tendo para isso sido contratado o genovês Manuel Pessanha, em 1317, para a comandar. Passa a haver uma esquadra permanente para defender as nossas costas e a navegação e é instituído o seguro marítimo. Manda plantar pinhais que entre outras funções garantiam a existência de matéria-prima para a construção naval.
De salientar que a nóvel Ordem de Cristo, criada em 1319, que apenas se tratava da Ordem do Templo com outro nome, passou a aumentar a sua actividade naval tendo até mudado a sua sede para Castro Marim - onde permaneceu, até 1356 - para melhor combater a navegação berbere.
É já no reinado seguinte, que o Rei D. Afonso IV patrocina duas expedições às Canárias, provavelmente, em 1336 e 1341, o que representa a primeira tentativa de expansão fora do território nacional. Em 1352, é ainda assinado um acordo de comércio marítimo com Eduardo III de Inglaterra.
D. Fernando quis reforçar a marinha de guerra e estabelecer monopólios sobre o comércio, que lhe servissem as ambições políticas e instituir para isso privilégios, em 1377, para os armadores que possuíssem navios com mais de 100 toneladas. A pesca também teve grande incremento, fazendo-se já no mar alto. Sem embargo as três guerras funestas e escusadas que intentou contra Castela, viram somarem-se revezes, tendo a marinha sofrido grandes perdas, O que resta dela vai porém ajudar a causa do Mestre de Avis, tendo a sua acção mais relevante no cerco de Lisboa, de 1384.
Com a independência do Reino salvaguardada, seguiu-se um período de reflexão estratégica sobre o que fazer, que basicamente tinha duas vias: ou a expansão na Andaluzia em direcção ao reino de Granada, ou a ida par ao Norte de África. O conselho do Rei optou por esta última via e foi assim que se decidiu a empresa de Ceuta.
A Marinha não deixou mais de se desenvolver e o assalto a Ceuta, em 15 de Agosto de 1415 - possivelmente o primeiro assalto anfíbio da História - é feito com cerca de 20.000 homens transportados em 200 navios.
Estava assim dado o mote da expansão marítima, da procura de apoios fora de Península e da continuação da Cruzada.
O grande impulsionador da gesta marítima foi o Infante D. Henrique, mas tal só foi possível, estamos em crer, depois de ele ter sido nomeado administrador da Ordem de Cristo, Ordem esta que dispunha de muitos conhecimentos científicos, bens materiais e uma doutrina religiosa bem definida e orientada.
Esta expansão marítima manteve-se até 1530, ano em que atingiu o seu auge e orientou-se primeiro para o Norte de África, para a exploração da costa africana para sul, incluindo os rios, a navegação para oeste no Atlântico Central e a recolha de dados e investigação científica de todas as actividades relacionadas com o mar, desde a construção naval, à navegação, do estudo dos ventos, à astronomia, do armamento às correntes marítimas, etc..
Os objectivos mais marcantes vieram a ser a descoberta do Reino do Prestes João e atingir-se a Índia contornando a África. Deste modo conseguir-se-ia atingir a terra das especiarias ligar os cristãos do Ocidente com os cristãos do Oriente (Coptas da Abissínia e cristãos do rito de S. Tomé, na Índia) e, ainda, atacar o império turco pelas “costas”. A partir de D. João III intensificou-se também a navegação e exploração do Brasil.
O esforço nacional foi sobre-humano e a Marinha teve um papel preponderante em toda esta epopeia à escala planetária, que constituiu em manter abertas à navegação linhas de comunicação marítima e de comércio e portos fortificados que iam da Europa até ao Japão e todo o Atlântico Sul.
Os marcos principais (que são muitos) desta saga extraordinária e que não tem paralelo na história de nenhum país do mundo, são conhecidos. Mas é bom recordar a acção desse mais que certo nobre almirante português que enganou os espanhóis levando-os para a América Central, evitando que estes nos acometessem no comércio do Golfo da Guiné e não nos tentassem seguir no verdadeiro caminho da Índia, estratégia superiormente delineada e que culminou no tratado de Tordesilhas; a descoberta oficial do Brasil, quando este segredo já não poderia mais ser escondido, por via da rota de e para a Índia; a acção de D. Francisco de Almeida e a sua vitória na batalha de Diu, em 1509, que assegurou o predominio naval português durante cerca de 50 anos e a brilhante estratégia de domínio do Índico, formulada por Afonso de Albuquerque que até hoje não foi suplantada.
Seria útil um dia tentar contabilizar quantos milhares de navios e suas guarnições, cruzaram estes mares.
A falta de recursos, a extensão do dispositivo e a perda da iniciativa estratégica, haviam de causar uma inevitável redução do mesmo, devendo a isto juntar-se a perseguição e expulsão dos judeus, que não só privou Portugal de grossos cabedais e muito saber, como permitiu enriquecer com esses meios potências nossas concorrentes e, ou, inimigas. Porém a verdadeira causa do desmoronamento português no Oriente teve a ver com a perda da independência, que virou contra Portugal os inimigos de Espanha. A África e o Oriente sofreram com tudo isto devido a duas decisões tomadas em 1585 e 1595, por Filipe V, de apresar os navios holandeses e ingleses e proibir o comércio nos portos nacionais.Ora os europeus do norte privados do lucrativo comércio que faziam na Península viram-se na contingência de irem tentar obter os produtos na origem.
Com a derrota da invencível armada e as perdas nos combates contra os corsários franceses, ingleses e holandeses (só com estes últimos andámos em guerra 80 anos seguidos) bem como a perda da superioridade tecnológica, puseram o poder naval português na defensiva. É desta época também a criação do terço da Armada, em 1618, antepassado do Corpo de Fuzileiros.
A importância da marinha manteve-se na Restauração, guerra que durou 28 longos anos e foi fundamental na manutenção do Brasil e de muitas possessões em África. E mesmo quando estabelecíamos tréguas ou tratados de paz com potências inimigas na Europa, estas continuavam a atacar-nos no Ultramar. Valeu-nos neste transe a Aliança Inglesa mas como sempre o preço que pagámos foi leonino.
As riquezas brasileiras e o afastamento das contendas europeias, permitiram o reforço do poder naval no século XVIII, que garantiu a protecção da rota entre a metrópole e os portos brasileiros, que nos era fundamental e ainda permitindo manter uma presença na Índia.
A Marinha prestou ainda valiosos serviços na guerra da sucessão de Espanha, na contenção do Império Otomano no Mediterrâneo Ocidental e na Guerra dos Sete Anos e no transporte do Corpo Expedicionário, que combateu no Roussilhão.
Em 1763 foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos e é no último quartel do século XVIII que se dá um notável incremento na Marinha Nacional de que foi obreiro o Secretário Martinho de Melo, que ocupou aquela pasta durante 25 anos.
Em 1779 foi criada a Academia Real de Marinha, a mais antiga antepassada da Escola Naval.
No início do século XIX, Portugal dispunha de um poder naval significativo no âmbito das potências mundiais. A esquadra alinhava 13 naus e 26 fragatas, com um total de 2.200 peças de artilharia. Para além disto possuía ainda uma nau e sete fragatas, com 382 peças, na Índia. Os efectivos totalizavam 800 oficiais e 20.000 homens.
Foi esta marinha que colaborou com a Royal Navy na longa guerra contra Napoleão e permitiu a retirada estratégica da família real e da corte para o Brasil, aquando da invasão de Junot, mantendo-se em operações no Brasil, Uruguai e Guiana Francesa.
Com a independência do Brasil, em 1822, só um dos navios que restavam, regressou a Lisboa. As perdas ocorridas com todos estes eventos e as consequências catastróficas das sucessivas guerras civis, votaram a Armada Nacional a grande decadência.
No fim da Guerra Civil, em 1834, a Marinha apenas contava com duas naus, seis fragatas, oito corvetas, dez brigues, seis charruas e dois vapores. E da Marinha da Índia apenas restavam duas corvetas e uma charrua.
Em 1850 os arsenais portugueses ainda continuavam a usar técnicas de há 50 anos atrás. O desinteresse político a que foi votada a Armada, para além das razões já apontadas pode prender-se com o facto da quase totalidade dos seus efectivos ter lutado pela causa miguelista. Sem embargo de ter sido a vitória liberal na batalha do Cabo de S. Vicente, a contribuir decisivamente para a derrota absolutista, cujos líderes foram incapazes de fazer uso adequado das suas forças.
Portugal falha as duas revoluções industriais do século XIX o que acrescido da sua incapacidade financeira, não permite acompanhar os últimos desenvolvimentos, nomeadamente quanto à tecnologia do vapor, do ferro e artilharia de retrocarga.
A situação foi-se deteriorando com a instabilidade política e social até se tornar catastrófica. A corrida imperialista posta em marcha na Europa a partir de meados do século XIX passou a ameaçar directamente as nossas possessões no Ultramar, nomeadamente em África, cujo desenvolvimento se queria tornar como prioridade a fim de compensar a perda do Brasil, como ficou estabelecido na célebre directiva de Sá da Bandeira, de 1836.
Foi este estadista e também Mendes Leal, como ministros da Marinha, nos anos 60 que incentivaram a construção de um conjunto de navios de pequeno porte, como corvetas e canhoneiras, a vapor e à vela, tanto no nosso arsenal como no estrangeiro. Foram estes meios, também conhecidos como “poeira naval”, que permitiram manter a soberania nacional nos territórios africanos. Em 1870 a Armada dispunha de uns modestos 28 navios. A Armada perdeu qualquer hipótese de manter presença no alto mar e as desavenças políticas permanentes, junto com a bancarrota sempre eminente do tesouro público, iriam mantê-la assim até ao advento do Estado Novo, apesar de muitas reformas tentadas, que nunca chegaram ao fim ou não passavam do papel. E praticamente tudo, tinha de ser importado.
Só em 1882 a Marinha recebeu o primeiro torpedeiro, as primeiras metralhadoras, canhões de tiro rápido e as espingardas de repetição. Realizaram-se ainda algumas reorganizações, criando-se, por exemplo, o sistema de autoridade marítima e os departamentos marítimo e não sendo possível manter uma presença activa no Ultramar, optou-se por ocupar pontos chaves donde irradiava a nossa acção. A frota contava então com 68 navios.
Em 1887 recebeu-se os primeiros navios de casco de aço e algumas lanchas canhoneiras para utilização nos rios de África que prestaram relevantes serviços até 1908. São já consequências positivas de algumas reformas inspiradas por Fontes Pereira de Melo e Andrade Corvo. Tentou-se ainda obter algumas unidades blindadas (couraçados) para a defesa dos portos, nomeadamente, Lisboa.
Entrou-se então no auge da corrida a África, com a Conferência de Berlim de 1884/5. Na sequência desta tivemos que fazer face a várias disputas com a Inglaterra de que saímos vitoriosos em três (Bolanha, baía de Lourenço Marques e Ambriz) e acabámos por sofrer a humilhação do “ultimatum” em 1890, por causa da questão do Mapa Cor-de-Rosa. A indignação e a impotência para resistir a este acto de força bruta de um Aliado, levaram muitos clamar pelo ressurgimento naval, mas tudo se saldou na aquisição de um cruzador de 1.700 toneladas, e por subscrição pública!
Durante quase todo o século XIX, a Marinha teve ainda que cumprir missões no âmbito da repressão do tráfico de escravos; apoio à diplomacia e ao transporte da família real e ainda a acudir a um sem número de situações de emergência de âmbito civil e militar.
Em 1896 o ministro da Marinha, Jacinto Cândido, dá início à construção de uma nova esquadra, agora já com todos os navios em aço e com propulsão mecânica e que contemplava cinco cruzadores. O arsenal foi adaptado para estas tecnologias.
No início do século XX a Marinha dispõe de 60 unidades e um incremento notável no campo da oceanografia, por acção do Rei D. Carlos I.
As campanhas ultramarinas continuavam a necessitar da presença da Marinha que constitui até destacamentos para actuarem em operações terrestres.
Ainda em 1910, foi assinado o contrato de aquisição do primeiro submarino, o que nos colocou no campo das nações pioneiras neste tipo de navios.
A República proclamada em 5 de Outubro de 1910, herdou 45 navios totalizando 28.000 toneladas, tentou por várias vezes fortalecer a Marinha - que tinha tido uma posição destacada na queda da Monarquia - mas as desgraçadas convulsões políticas e sociais que se sucederam durante 16 anos impediram qualquer resultado positivo.
A I Guerra Mundial, encontrou assim Portugal muito mal preparado para nela participar, tendo a Marinha sido chamada a actuar no Atlântico Central e Sul e ainda em Moçambique, tendo cumprido todas as missões conmecidas às forças navais, agora acrescidas do seu ramo aéreo - a Aviação Naval - criado em 1917. Todas estas missões implicaram pesados sacrifícios.
Foram.ainda, dois marinheiros que efectuaram esse feito extraordinário, que foi a viagem aérea em 1922, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro. Feito infelizmente pouco valorizado entre nós e quase desconhecido no estrangeiro.
O Almirante Pereira da Silva, bem quis, após o conflito mundial reformar a Marinha, aproveitando os ensinamentos daquele conflito. Mas a I Republica caminhava para o abismo e a marinha encontrava-se nas próprias palavras do ministro no “zero naval”. Não foi porém inglório o seu esforço, pois muitas das suas propostas foram retomadas mais tarde, nos anos 30, agora através da figura de Magalhães Correia, que lançou então um plano de renovação que deu frutos, tendo sido recebidos 22 navios, representando 35.000 toneladas e 100 peças de artilharia, com um custo de 3 milhões de libras (isto entre 1933 e 36, pagos a pronto sem leasing e sem empréstimos!)
A I Guerra Mundial prejudicou a II fase do plano Magalhães Correia e viu os seus navios empenhados na defesa da neutralidade portuguesa e no reforço das guarnições das diversas parcelas de Portugal. No fim da guerra adquirem-se mais navios em segunda mão: três submarinos, duas fragatas e quatro caça-minas.
A entrada de Portugal na NATO, como membro fundador, em 1949, vem dar um enorme incremento e modernização à Marinha. Foram aumentados ao efectivo sete fragatas, 14 patrulhas, 16 draga-minas, dois caça-minas e três navios hidrográficos e 24 aviões Helldivers. Construíram-se modernas infra-estruturas e desenvolveram-se a marinha de pesca e mercante. Em 1952, a componente aérea foi integrada na recém criada Força Aérea, conseguindo porém, a Armada, manter o ministro da Marinha, independente das restantes estruturas da Defesa Nacional.
A partir de 1958, os problemas que começaram a surgir em África e no Estado da Índia vieram a preocupar os responsáveis da Armada e a prepará-la para eventuais futuras contendas.
A Marinha mobiliza-se para Angola e o então Ministro Quintanilha e Mendonça Dias apresenta um novo plano faseado de nova construções onde se incluía a reactivação do Corpo de Fuzileiros, a criação de unidades de mergulhadores sapadores e a aquisição de numerosos navios adaptados ao Ultramar e ainda outros que permitiam manter a participação nas actividades da NATO, o que se conseguiu.
A marinha salva a honra da bandeira no Estado da Índia, através dos brilhantes combates do “Afonso de Albuquerque” e da “Vega”, opondo-se à inqualificável agressão indiana. E durante todas as operações de contra guerrilha, afirmação de soberania, protecção das populações e reforço das autoridades locais, que desenvolvemos entre 1961 e 1974, em todo o Ultramar, a “Briosa” mostrou sempre um comportamento que não deslustra dos seus maiores.
A Marinha chega assim a 1974/5 após um esforço intenso em África, com um conjunto de meios (cujo pico tinha sido atingido em 1971), que somavam 190 unidades e 90.000 toneladas, relativamente modernos e que lhe permitiam cumprir razoavelmente as missões atribuídas, embora sem capacidade de rocega de minas e sem ter um único navio equipado com mísseis.
Situação Contemporânea
“As conquistas, que supuz serem acessórios de Portugal, eu as tenho pelo seu principal e ainda garantes da sua conservação”
D. Luís da Cunha
(instruções inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho)
A situação que vivemos actualmente, é ainda, fruto directo dos eventos históricos ocorridos no pós 25 de Abril de 1974, em que é necessário recordar, que Portugal perdeu num curto espaço de tempo, cerca de 95% do seu território e 60% da população, cujas consequencias nos temos recusado a avaliar e refletir. Para o âmbito que estamos a tratar queremos resumi-las em duas grandes linhas de pensamento político que estão profundamente erradas: a negação de quase tudo o que se fez na História de Portugal nos últimos 50 anos - o que destroçou psicologicamente a população e baralhou as bússolas políticas; e o estabelecimento de uma orientação política de costas para o Mar, com nefastas e perigosíssimas consequências no âmbito estratégico, geopolítico, económico, diplomático e psicológico, que pode levar no limite, ao desaparecimento de Portugal como estado independente no concerto das Nações.
Deste modo, praticamente todas as componentes do poder marítimo definharam, lutam com as maiores dificuldades e ficaram aquém do necessário.
Assim:
A marinha mercante, outrora pujante, praticamente desapareceu. Restam 13 navios com pavilhão nacional e os dedos de uma mão chegam para contar as empresas existentes neste âmbito. Duvidamos que o governo português tenha alguma ideia concreta de quantos navios pode fretar numa emergencia...
A marinha de pesca não pára de ser reduzida, muito por causa dos acordos que foram sendo feitos com a UE, por obsoletismo e por estar a ser comprada pelos espanhóis. Os portugueses que pescava na Terra Nova desde o século XV, escrevendo páginas belíssimas de epopeia marítima, trabalho duro e abnegação sem par, hoje não pescam um único bacalhau, peixe aliás que passou a fazer parte da identidade nacional por via da importância que veio a ter na dieta nacional. A indústria conserveira também quase desapareceu ou foi comprada por estranhos.
A aquacultura só agora começa a deixar de ser incipiente;
Sendo o turismo uma das maiores indústrias nacionais - senão mesmo a maior - Portugal não dispõe de um único navio de cruzeiro; só há poucos anos começaram a ser construidas marinas em número e qualidade apreciável e não existem especiais medidas para atrair turistas vindos por mar.
Deixou-se assorear barras e rios e quase não existe cabotagem. A ligação de ferry entre Portimão e o Funchal é feita por uma empresa... espanhola!
Os portos por via das greves selvagens de 1974/5, exorbitância de salários, diminuição de tráfego e falta de investimento, tornaram-se caros e pouco competitivos, atrasando o seu desenvolvimento por décadas. O investimento entretanto efectuado também não tem dado os resultados devidos. Além disso, os portos, precisam de se articular melhor com as restantes infra-estruturas de transportes existentes ou a construir.
A construção naval que foi expoente no mundo nos séculos XV e XVI, e que nos anos 50, 60 e 70 do século passado era uma das principais indústrias nacionais, gerando mais-valias e dando emprego a milhares de pessoas, diminuiu consideravelmente e luta pela sobrevivência;
No campo dos recursos energéticos o envolvimento do MAR também deixa muito a desejar, num país como Portugal que é dependente do exterior em 80% ou mais das suas necessidades. Deste modo não existem navios nacionais para transporte de crude, gás natural ou carvão; o pipeline inicial para transporte de gás entrava em Portugal pela Andaluzia, tornando-nos dependentes de Espanha, dependência agora atenuada pela construção do terminal de gás liquefeito em Sines e das cavernas de armazenamento, em Pombal; as sondagens para encontrar petróleo na costa portuguesa, continuam com resultados negativos e a investigação sobre energia limpa a partir das ondas, que poderia constituir um nicho de inovação tecnológica, entrou num impasse.
Felizmente que a investigação científica tem conhecido algum desenvolvimento através da acção do Instituto Hidrográfico e de algumas universidades, nomeadamente nos Açores, mas muito há a fazer neste campo.
Por outro lado, as actividades desportivas ligadas ao mar e a ligação da juventude à prática de desportos náuticos sofreu uma recessão grande estando em lenta recuperação nos últimos anos, nomeadamente na vela e no surf. A parte cultural dedicada ao coberto marítimo sofre também inúmeras lacunas: o património arqueológico subaquático está longe de estar estudado, levantado e protegido; o Museu da Marinha deveria ter núcleos pelo menos em Angra do Heroísmo, Funchal, Lagos e Porto; não existe um submarino ou uma fragata conservada como museu; existem duas caravelas réplicas do séc. XV: uma da Aporvela e outra em Portimão. Existe uma outra no Funchal mas é da propriedade de um holandês e tenta ser a réplica da espanhola Santa Maria … Para ver uma nau portuguesa do século XVI na escala 1:1, tive que ir a Malaca! A reconstrução da fragata D. Fernando II e Glória foi um autêntico milagre que só a perseverança do Almirante Andrade e Silva tornou possível, mas não me parece que o que se conseguiu depois disso se tenha ajustado ao investimento feito.
Enfim, todas as actividades no âmbito do espectáculo, discografia, actividade editorial e artes plásticas, fica muito aquém relativamente à importância que o Mar representa para Portugal. Fica uma nota muito positiva para o novo aquário da Expo e o notável fluviário de Mora.
Deixa, todavia, muito a desejar a defesa dos nossos pergaminhos no campo da História dos Descobrimentos: não defendemos interna e internacionalmente a gesta e o pioneirismo das nossas navegações; ignoramos a mais que provável hipótese de Cristovam Cólon ser português e estar ao serviço do Rei de Portugal; desprezamos com patético provincianismo a chegada dos nossos antepassados ao Japão, feito comemorado com pompa e circunstância, anualmente naquele país e deixamos para os australianos o encargo de provar que fomos nós que descobrimos o continente em que habitam. Isto só para citar alguns exemplos gritantes.
Havendo esta importância na relação Portugal/Oceano, parece inacreditável que se contam pelos dedos das mãos os especialistas que no nosso país se dedicam ao Direito do Mar e praticamente nada se oiça falar neste âmbito, chegando-se ao ponto de nada se debater e quase nenhuma vez se fazer ouvir relativamente ao perigosíssimo articulado que se encontra no Tratado de Lisboa relativamente à gestão dos recursos vivos das ZEE.
Finalmente, “last but not the least”, aquilo que neste quadro cinzento-escuro que pintei da nossa realidade, o que se tem aguentado menos-mal tem sido a Marinha de Guerra, apesar da manta ser tão curta. Mas existem fortes possibilidades de um conjunto de actividades de fiscalização, gestão de portos, socorros a náufragos, autoridade marítima, combate à poluição, etc., passar para as mãos de entidades ou empresas civis, alimentado assim a clientela partidária e usufrutuários de organismos cujo principal móbil não é propriamente o serviço público.
E se as preocupações de soberania e de eventuais ameaças se mantêm, variando apenas no tempo e no espaço, as questões relativas à segurança da fronteira marítima estão num crescendo com a intensificação da emigração ilegal, contrabando, tráfico de droga, crimes ecológicos, terrorismo e agora parece que também, a pirataria marítima. São necessários meios adequados para fazer face a tudo isto. Meios e vontade!
Conclusão
“Não há vento favorável
para aquele que não
sabe para onde vai”
Séneca
Em termos histórico-estratégicos podemos dizer que Portugal se pode dividir em seis períodos:
O 1º, representado pela I Dinastia, em que se procedeu ao alargamento e consolidação do Reino; Portugal é uma nação no reinado de D. Dinis e constitui-se um estado nação moderno, com D. João II;
O 2º período coincide com a II Dinastia, em que Portugal sai fora de si mesmo e se projecta no mundo; com pouco mais de um milhão de habitantes, provoca a globalização da terra e tem mais de meio hemisfério à sua responsabilidade.
Este esforço de certo modo, ultrapassou-nos e esgotou-nos, pagámos isso com 60 anos de coroa dual filipina. É o 3º período, que se caracteriza, pela falta de liberdade estratégica, sujeitos que estivemos a interesses estranhos. Sofremos um ataque à escala global.
O 4º período é representado pela Restauração e o século e meio que se lhe seguiu. Pagámos um preço: perdemos quase todo o Oriente e mudámos o esforço estratégico para o Brasil. Este período termina com as invasões francesas que quase acabaram com o Portugal europeu. O início da recuperação, muito afectado por guerras civis, marca o 5º período, mas voltámos a pagar um preço: perdemos o Brasil e mudámos - com atraso - o esforço estratégico para África. Este período durou até ao 25 de Abril de 1974.
A mudança de regime, que permitia por sua vez a entrada na CEE, teve também um preço: perdemos todo o Ultramar e mudámos o esforço estratégico para a Europa. É o 6º período e no que estamos.
Passámos a ter um problema, porém: é que nos períodos anteriores tirando o domínio filipino, nós tínhamos liberdade de acção e agora estamos constrangidos. Não estamos ainda como no tempo dos Filipes - apesar deles nunca se terem atrevido a substituírem-nos a moeda … - mas para lá caminhamos, dada a perda continuada do Poder Nacional, sobretudo da vontade e arrimo moral, não nos deixar outra alternativa. Temos, sem embargo, ainda um preço que podemos pagar: a perda da ZEE, a perda dos Arquipélagos e finalmente o desaparecimento desta faixa litoral peninsular de 800 por 200 Km, que sem apoios exteriores será facilmente digerida por Castela a Velha.
Fechando a quadratura do círculo, quero relembrar que foi a procura destes apoios exteriores, a razão principal porque pusemos pé em Ceuta, no já recuado ano de 1415.
Por isso não tenho dúvidas em afirmar que os nossos maiores de então, eram políticos mais sagazes e patriotas mais esclarecidos do que os responsáveis políticos contemporâneos.
E não sei de mais nenhum país no mundo, em qualquer época histórica, que tenha cometido tantos erros político-estratégicos, como os portugueses cometeram contra Portugal, nos últimos 35 anos.
Todavia, não podemos perder a esperança. E o quase milagre da extensão da plataforma continental, as actividades embora incipientes da CPLP e as vozes que cada vez se ouvem mais sobre a importância do mar, na economia, são indícios muito positivos.
Há que perseverar. E termos que voltar a escolher se queremos novamente voltar-nos para o mar, que é a nossa janela de liberdade, garantia de identidade e oportunidade de desenvolvimento, ou continuarmos voltados para o continente e dentro deste a Península, donde só nos vieram até hoje, ameaças de hegemonia e destruição.
A opção parece-me de uma clareza meridiana e em vez de se ouvir Espanha, Espanha, Espanha, é urgente que se possa ouvir: MAR, MAR, MAR.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar.