Nº 2503/2504 - Agosto/Setembro de 2010
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
EDITORIAL - Inovação, Forças Armadas e Instituições Militares
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo
Na procura de soluções que permitam romper com as paralisias no funcionamento dos sistemas, fala-se frequentemente em inovação. Inovação entendida como algo inesperado introduzido na complexidade do sistema, esperando-se que a linearidade da relação causa e efeito, produza o resultado esperado. Se foi assim, e em muitas situações ainda o sistema reage desta maneira, a relação causa e efeito está a ceder perante novas situações de ambiente que influenciam os sistemas, sujeitas ao imprevisto e ao que, cada vez mais, se pretende teorizar como a ciência do caos. As tradicionais teorias económicas, sociais e do comportamento da matéria têm mostrado, recentemente, como o futuro é cada vez mais difícil de prever. Mas, à falta de melhor e mais seguro, teorizadores e responsáveis pelos sistemas continuam a falar da inovação como solução. Inovação na maioria das vezes entendida como um salto ou mudança na tecnologia e, raramente, entendida como mudança no comportamento dos agentes do sistema.
 
A força militar, e as teorias que a concebem e regulam, tem mostrado na sua evolução e história como as inovações tecnológicas a têm influenciado, tornando-a mais eficaz nas respostas às diversas ameaças, riscos e desafios que tem de enfrentar. Foi a arma de fogo e a fortaleza, foi o carro de combate e o desembarque anfíbio, foi o submarino e o potencial aéreo, foi o radar, foi a arma nuclear, foi o chip com a domesticação do electrão, que possibilitaram novas maneiras de sentir, comunicar e atingir o adversário com armas inteligentes. As inovações tecnológicas na força militar foram seguidas, através dos tempos, e com compreensíveis dilações na aplicação, por transformações na Instituição que gera, organiza e dá o seu carácter específico às Forças Armadas que é a Instituição Militar. Comando, disciplina, dever, sacrifício extremo, espírito de corpo, camaradagem militar, honra e sentido de servir foram constituindo um sistema de valores assumido pelas instituições militares, tentando estabelecer um código de comportamento e de ética para justificar a diferença entre a condição militar - daqueles que tomavam o compromisso de bellatores ou defensores da cidade - e a dos seus concidadãos. Se a força militar foi influenciada por inovações tecnológicas, a Instituição que a albergava tentou sempre moldá-la para que o direito de matar fosse acompanhado pelo dever de morrer, desenvolvendo e implementando aquele código de valores, atento às mudanças da sociedade por forma a que reflectisse as tendências que nessa sociedade se iam desenvolvendo nos campos do sacrifício, do dever, da solidariedade, do sentido de cidadania, do sentimento de pátria e outros.
 
No século passado, os grandes confrontos militares que se viveram no globo, com especial incidência no espaço europeu, levaram a tremendas inovações na força militar e nas suas componentes naval, terrestre e aérea, que obrigaram a enormes investimentos no estudo, pesquisa e indústrias de defesa, na procura de procedimentos, equipamentos e armamentos que permitissem aquela “vantagem inicial” tão importante para a conduta dos confrontos militares. Inovações que se traduziram em maior eficiência da força militar mas que foram acompanhadas por um reforço das instituições militares, traduzido na correcção e transparência do diálogo político-militar, no apoio das nações aos que combatiam e morriam por todos, na confiança depositada em comandantes que conduziam as operações militares e seu consequente prestígio perante cidadãos imbuídos de espírito de defesa e ansiando a paz. A utilização da tremenda inovação tecnológica que foi a arma nuclear abriu um período de paz impossível e guerra improvável e o discurso do General Mac Arthur, perante o Senado dos EUA, e os diferendos com o seu Presidente sob a utilização da força militar no conflito da Coreia no início da década dos anos cinquenta do século passado, marcam talvez a grande viragem entre Instituições Militares e Estado na época contemporânea. A força militar passou a ser encarada mais como instrumento da política do que como Instituição que tinha sido também um alicerce na construção do estado moderno, com um tendência crescente para responder na sua utilização mais perante administrações e governos do que perante os parlamentos representativos das nações.
 
O curto período da guerra fria que dominou o panorama estratégico da segunda metade do século passado ainda representou grande inovação na força militar, especialmente na capacidade de fogo preciso à distância, na capacidade de projecção da força militar, nas capacidades de observar, detectar e comunicar, de proteger e defender e de combater, melhorando o movimento e a possibilidade de sobrevivência nesse combate. As forças armadas, com uma missão bem definida num conceito estratégico que pressupunha a defesa do território mantiveram papel de relevo nas sociedades: Continuou alguma estabilidade nos orçamentos da defesa, investiu-se na pesquisa, desenvolvimento e indústrias de defesa, as opiniões públicas apoiaram o esforço na defesa como garantia da sua segurança, o serviço militar obrigatório continuou como a solução para obtenção de recursos humanos para a defesa e a condição militar continuou a merecer especial atenção das administrações, materializada nos recursos que lhe eram atribuídos em compensações directas e indirectas, resultantes da sua especificidade nas sociedades. As instituições militares mereciam o carinho de governantes e concidadãos, eram prestigiadas dignificando os seus comandos, a sua simbologia e os seus rituais. O Juramento de Bandeira materializava o contrato de sacrifício entre o cidadão e a sua Pátria.
 
O período que actualmente se vive no globo, ao nível de segurança e de uma nova cultura sobre guerra e paz, levaram a força militar a desempenhar outras missões para além da guerra, mais voltadas para um conceito difuso de segurança e menos voltadas para o combate, com crescentes restrições das administrações para se exporem ou envolverem em operações de combate e com opiniões públicas mais apoiantes de missões de interesse público do que missões para o que a força militar deve existir: combater, se necessário, para atingir objectivos que lhe sejam fixados no interesse da comunidade. Os conflitos em que a força militar se tem envolvido, e cuja resolução cada vez merece mais dúvidas, arrastam-se porque há restrições para que as forças armadas cumpram a sua missão, que é combater.
 
Se isso acontece, e parece que tenderá a permanecer, a força militar perde a sua raiz de Instituição, e irá apagar-se no tempo, podendo mesmo ser substituída por outras forças militares sem raízes institucionais, acarretando em si incertezas sobre o seu fundamento, controlo e código deontológico. As inovações introduzidas na força, e foram muitas, obrigam a alguma reflexão. Não basta inovar nas capacidades da força militar. Teremos de inovar nos fundamentos da Instituição Militar para a sua sobrevivência face a forças que procuram, como em outros tempos, a sua eliminação. E a responsabilidade para essa inovação deve ser encontrada nos que detêm a condição militar e que desde que a assumiram estabeleceram como princípio fundamental “não deixar ninguém para trás nem trabalhos para outros fazerem”.
 
A inovação na Instituição Militar tem de começar em si própria. Fazendo uma profunda revisão das missões que lhe são atribuídas e para as que se devem preparar, mantendo a sua especificidade própria que não se deve confundir com a de forças policiais, assumindo funções de segurança só quando claramente definidas e sempre sob o seu comando, que não pode ser repartido. Com uma menor presença nos territórios nacionais a Instituição tem de rever os seus conceitos de ligação à Nação, em sociedades com elevado ritmo de modernização que esqueceram a presença do quartel, o cidadão fardado e os valores que caracterizavam essa Instituição. Com novo universo dos que detêm a condição militar (homens, mulheres, voluntários, contratados, profissionais), há necessidade de uma profunda revisão dos conceitos de serviço interno e os seus regulamentos (alojamento, alimentação, segurança, transportes, saúde, apoio social e psicológico) que representam um trabalho permanente e em grande escala. Comando e direcção política necessitam de diálogo permanente, para não se confundirem ou actuarem em sobreposição em áreas de competência que não devem ser confundidas.
 
As Forças Armadas Portuguesas têm inovado nos últimos anos nas suas capacidades militares para desempenharem bem as missões de que têm sido incumbidas. Capacidades que se reflectem no Sistema de Forças Nacional, arrumado de forma coerente e equilibrada, com deficiências detectadas mas que os recursos nacionais condicionam. Mas parece-nos que a Instituição Militar necessita de uma reflexão e arrumação, a nível da Nação e da sua direcção com o apoio do Comando, para inovar em conceitos e procedimentos que a tornem mais conhecida e apoiada pelos seus cidadãos, que termine com conceitos construídos no passado que alguns teimosamente tentam manter vivos mas que passaram à História, e que a torne apta a enfrentar desafios de um futuro incerto que se aproxima a passos largos. Para o bem e para o mal, a História da Nação está ligada à da sua Instituição Militar. Cuidar da sua modernidade e vitalidade talvez seja aconselhável, introduzindo inovação nos procedimentos sem afectar a perenidade dos seus fundamentos.
 
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*      Presidente da Direcção da Revista Militar.
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2011-05-26
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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by COM Armando Dias Correia