Introdução
Lembrar os princípios que regem o comportamento ideal do combatente é um acto de cidadania, segundo cremos, pois assim se poderá eventualmente contribuir para uma melhor compreensão dos princípios porque se devem orientar aqueles que têm por missão institucional dar a vida, em última instância, no limite dos limites, pela segurança dos outros.
Esta lembrança não é, obviamente, dirigida aos combatentes, porque estes sabem porque se movem, foram formados para serem combatentes, conhecem o seu código de conduta. É para os estranhos, para aqueles que raramente reflectem sobre esta questão. O presente texto tem assim o propósito de apenas levantar alguns pontos essenciais sem grandes preocupações de sistematização.
A reflexão sobre o tema é de grande relevância, porque o que está no centro deste debate dirá respeito a uma das formas de encarar os riscos que se colocam às sociedades modernas, às ameaças que eventualmente poderão surgir, inopinadamente, na sua forma extrema, e à atitude daqueles que têm por missão enfrentá-las.
Parece-nos que no tempo presente existe um amplo consenso quanto à existência de riscos, embora exista menor concordância quanto à elencagem das ameaças possíveis; ainda assim, onde existem maiores dificuldades, é na definição objectiva das formas de conter essas ameaças, a começar pelos conceitos de Segurança e Defesa.
Assumir os riscos, isto é, ter a consciência que existem, e definir as formas de os enfrentar, é uma responsabilidade política inalienável. Este exercício deverá ser conduzido com objectividade, pois não seria admíssivel, nem legítimo, escamoteá-los, criar visões ilusórias de situações risonhas, autoreguláveis ou, por outro lado, resvalar para a criação de medos, e muito menos abusar das condições de angústia do cidadão vulnerável para daí se extraírem vantagens, quaisquer que elas fossem - a consciência dos riscos e das possíveis ameaças, assim como das capacidades necessárias para os evitar, minimizar ou resolver, deverá conduzir a uma atitude positiva, e não apavorada, num ambiente psicológico onde seja possível a afirmação do que se quere ser e do que se poderá ser, em termos de colectivo. Insiste-se: é preciso ter consciência de que o que se quer ser e o que se pode ser, podem estar em risco. Na sociedade dos riscos, que é a sociedade característica dos nossos dias, parece que se verificam duas posições extremas, em contradição: a que os ignora, pura e simplesmente, criticando destrutivamente os profetas da desgraça, e a que tende para o exagero dramático das situações, criando medos porventura desnecessários. Esta posição poderá ser entendida num sentido de se aumentar a sensibilidade quanto aos perigos de determinados comportamentos, ou de se saber reagir às catástrofes, ou para se justificarem medidas e acautelarem responsabilidades; contudo, ela pode conduzir a objectivos opostos aos pretendidos - se não se tiver em conta o contexto cultural, pode levar a que se baixem as guardas (os alarmes desproporcionados e frequentes, sem correspondência com a realidade, normalmente fazem perder credibilidade àquele que os emite e prejudicam a análise serena dos verdadeiros perigos).
A ocultação do problema da segurança, quer seja pela reacção negativa face aos exageros no enunciado dos riscos e das ameaças, quer seja por comodidade na fruição da segurança presente, quer seja por uma razão de poder ou de ideologia, pode conduzir à impreparação para enfrentar situações delicadas, do ponto de vista da segurança, situações a que nenhuma sociedade está imune.
A desvalorização da problemática da segurança pode estar associada à assunção libertária das possibilidades do ser humano num quadro em que a segurança não seja considerada, ou seja dispensável, ou seja dada por adquirida, “por geração espontânea”, isto é, sem cuidar de saber como e por quem é obtida, negando assim o reconhecimento de quem a garante - quem adopta esta atitude entende que tudo o que o ser humano pode fazer tem que estar seguro, não importando a forma como é providenciada a segurança (nesta perspectiva, a segurança nunca poderá interferir com a realização do ser).
Mas para além disso, a segurança poderá ainda ser desvalorizada em função da ideia em torno do conflito, mais precisamente por quem tenha a convicção de que é possível erradicar o conflito de qualquer tipo de relação, ou seja, que se poderá sempre garantir a adopção de uma estratégia de afirmação isenta de risco, sem equacionar a possibilidade do confronto ou da constituição de obstáculos, pela garantia da acomodação mútua, porque cada actor determinará a sua actividade em função da actividade do outro. Também não dará grande importância à segurança quem entenda que será sempre possível resolver de forma pacífica aquilo que está em disputa, sem contudo negar a realidade do conflito. Outra atitude é considerar a garantia da prevenção dos conflitos violentos pela remoção ciclópica das causas que estão na sua origem, ou pela reconstrução de sociedades pacíficas com regimes políticos democráticos, eficazes, legítimos e justos.
Estas posições não facilitam a sustentação de uma cultura de segurança, que nos parece fundamental para enfrentar o principal problema que afecta as sociedades dos nossos dias de uma forma continuada, e não só em função dos medos que periodicamente se agitam.
A consciência do risco tem que provir de análise objectiva e fria, adquirida pela via racional, pela ponderação dos factos e pelo estudo dos comportamentos. O risco significa um resultado ou uma consequência negativa de uma actividade, em extremo uma consequência que implique sermos forçados a deixar de ser quem queremos ser, ficarmos subordinados a poderes opressivos que não aceitamos como legítimos e que atentam contra a nossa maneira de viver. Esta consequência pode não se manifestar de forma abrupta ou violenta, pode ser progressiva e pacífica, pode ser dirigida apenas à mente, sem acções físicas conspícuas, pode corroer sem afrontar. A sociedade tem que acreditar que assim é, isto é, que existem riscos permanentes e que podem surgir ameaças aos nossos interesses e valores, e tem que confiar nas instituições responsáveis por estas análises, sem prejuizo do exercício crítico racional e do julgamento responsável, assim como as instituições terão que demonstrar os seus níveis de competência perante o conjunto da sociedade. Contudo, a análise de riscos é uma actividade complexa que deve ser conduzida de forma discreta ou reservada, por razões que nos parecem evidentes, sem ficar isenta do escrutínio a que toda a actividade numa sociedade democrática se deverá submeter. Em todo o caso, a sociedade deverá criar uma cultura de assunção do risco, onde os diversos factores deverão ser ponderados, porque a realidade actual assim o exige, e porque a aversão sistemática ao risco corresponde a estagnação, isolamento, desenvolvimento mitigado.
Os riscos ou as ameaças terão que ser tratados a diferentes níveis e âmbitos. No final deste exercício poderá vir a colocar-se a possibilidade do caos, ou de todos os tipos de agressão, e a necessidade de se prever a forma como enfrentar estas situações, situações que terão sempre que ver com quebra ou negação de valores. Esta será a situação extrema, que poderá nunca vir a concretizar-se, em especial se forem tomadas medidas preventivas dos mais variados âmbitos e naturezas. A sociedade terá que estar preparada para os sacrifícios correspondentes, terá que assumir que eles poderão vir a ser exigidos, mas até que a situação drástica ocorra, será da responsabilidade do regime político proporcionar níveis de segurança e de desenvolvimento que mantenham as pessoas felizes e com expectativas positivas quanto aos futuros possíveis. A política tem estas duas faces, uma mais optimista, outra mais sombria ou dramática que será desejável que se esbata - o grande mister da política é saber gerir expectativas com base no bem comum, de forma objectiva ou isenta (a gestão das expectativas para efeitos eleitorais parece-nos ser uma perversão do político). Só se poderão criar expectativas de desenvolvimento político, social ou económico, se a segurança, a todos os níveis, estiver garantida. Diga-se no entanto, e desde já, que a segurança nunca poderá ser atingida sem a presença da força para garantir os direitos nos casos extremos - o conflito é o buraco negro (a anti matéria) do social, para usar a expressão de um sociólogo do século passado, e o processo do conflito inclui sempre a possibilidade do uso da força, em termos próximos ou remotos.
Existem pois dois tipos de atitudes aceitáveis perante o ambiente que nos envolve: uma optimista que não vive obcecada pela segurança, mas que a considera permanentemente em “background”, que a exige sem a definir, e outra, securitária, que analisa os factos sempre segundo o pior caso possível, em termos de consequência (consideramos como irrealista aquela outra atitude, típica de determinadas franjas sociais e políticas, que rejeita qualquer discurso de segurança, com o argumento de que tal discurso é sempre atentatório das liberdades individuais, por limitar as possibilidades do ser). É fundamental que estas duas visões se sobreponham, ao nível do cidadão, com taxas de sobreposição compatíveis com o seu papel e o seu âmbito de responsabilidade na sociedade politicamente organizada, e também em função das conjunturas. Existirão situações onde se justificará um pendor mais securitário, outras em que se poderá pensar com maior insistência nos problemas do bem-estar e do desenvolvimento, ao nível do cidadão e sem descurar a segurança. Em todo o caso, a segurança deverá constituir uma preocupação permanente. A situação desejável será aquela em que a segurança esteja conseguida, sem se sentir o seu peso, permitindo a realização das várias liberdades e a submissão voluntária às limitações que ela impõe, por inerência, e à aceitação de sacrifícios na resolução do problema da garantia dos direitos ou da gestão das liberdades. Considerar que a liberdade está a montante da segurança, que esta decorre daquela, pode ter custos incomportáveis para a sociedade, para além da dúvida quanto à possibilidade - pelo contrário, a segurança é a fundadora da liberdade, porque sem segurança não existem direitos e sem direitos não existem seres humanos dignos e livres.
Em termos institucionais, a resolução da situação de segurança potencialmente mais dramática estará a cargo do sistema da defesa nacional, que terá que pensar sobre o que se valoriza na sociedade politicamente organizada, que impedimentos existem quanto à materialização desses valores, o que se deverá defender, como e quando se deverá defender e com quê. Esta actividade é permanente, não acontece só quando as ameaças estão às portas da cidade, e pode envolver também aspectos cooperativos e não apenas coercivos. Pode consistir em acções de confrontação física face a um inimigo declarado, ou pode consistir em acções não belicosas para reforçar o poder nacional, por exemplo através da criação de uma imagem credível do Estado na comunidade internacional com contributos a favor da paz. O sistema da defesa nacional não pode no entanto funcionar de forma isolada e em última instância, apenas, tem que acompanhar a evolução dos riscos e a detecção de ameaças desde o seu mais baixo nível, assim como das oportunidades em termos de defesa, e constituir um elemento fundamental de segurança. Os conceitos de segurança e de defesa não se confundem, independentemente das relações que existem entre eles.
A Segurança pode ir sendo agravada pela dificuldade de negociação, negociação que será permanente, até ao extremo da percepção da sua impossibilidade, numa escalada conflitual, ou pela incapacidade no exercício da regulação que conduza a incerteza ou falta de previsibilidade, a ausência de confiança, elementos fundamentais para sustentar qualquer tipo de relação, a qualquer nível. Quere dizer, portanto, que quando estas condições extremas se verificarem, a questão transita para a lógica da confrontação onde se procura a vitória para o alcance do direito ofendido, ou para a garantia da ordem. Nestas circunstâncias teremos que assumir a possibilidade do combate, por valores que são inegociáveis, e porque assim é, quem defende esses valores, no terreno, terá que ter o grau de empenhamento correspondente, isto é, terá que admitir que o valor da vida poderá, nestas circunstâncias, não ser absoluto. Esta é uma postura que contrasta radicalmente com a do cidadão, enquanto não directamente empenhado na defesa dos valores do colectivo, em última instância. E pela própria natureza das coisas, como se disse, esta atitude de prontidão e de disponibilidade deverá ser permanente, não surgindo apenas quando a guerra se declara.
Naquele momento de verdade, quando a segurança deixou de ser contida, quando os valores fundamentais estão em causa, o homem transcende-se na defesa desses valores, e está previamente preparado para essa transcendência, por formação. Então, para racionalizar este processo, até ao ponto em que a racionalização é possível, teremos que caracterizar o espírito do combatente, daquele que deverá estar permanentemente preparado para acorrer a situações de grande instabilidade, onde a sobrevivência ou a afirmação do Estado, e com ela as dos seus cidadãos, possam estar em causa. A Defesa, entendida como preparação para a reacção às ameaças, como conjunto de medidas para as contrariar, e como geradora da capacidade de combate, é o pilar fundamental da Segurança.
O combatente não vive, nem deve viver, isolado. Faz parte da sociedade, embora em muitas situações possa ficar colocado em posições em que sabe que apenas poderá contar consigo, está integrado numa Instituição que constitui o repositório dos princípios porque se deverá orientar e o obriga a assumir aquela atitude enquanto membro.
Remeter a Instituição Militar para um reduto, desligada da realidade envolvente, como já aconteceu no passado, um pouco por todo o Mundo, é um erro, embora não seja tarefa fácil definir o tipo ideal da relação entre a Instituição Militar e o seu exterior, e se reconheça que existem especificidades que até poderiam justificar esta separação, numa apreciação mais ligeira. Em qualquer caso, terá que existir sempre alguma distanciação entre quem detém a força institucional, superiormente dirigida pelo poder político legítimo, em termos da definição dos fins, e a sociedade, porque o emprego dessa força, sempre com origem na defesa dos valores mais elevados da Nação, implica a possibilidade de pôr a vida humana em causa e, por via disto, exige uma cultura e um mecanismo decisório diferentes daqueles que são correntemente utilizados para a resolução dos problemas do bem-estar e do desenvolvimento.
As Forças Armadas já desempenharam, de facto, num dado período histórico, o papel de equilíbradoras, ou de moderadoras das forças políticas nacionais, julgando do resultado do confronto político entre estas forças, nos momentos de crise política muito aguda. Constituiam o instrumento de última razão e decidiam, com o argumento da força, sobre os desfechos políticos internos em situações de total impasse. Foi assim, por exemplo, em Portugal em certos períodos no século XIX, embora nesta experiência a dissuasão tivesse falhado algumas vezes, não conseguindo evitar duas guerras civis. Este fracasso foi muito negativo para a definição de uma relação correcta entre Instituição Militar e sociedade civil.
Esse tempo passou, mas ainda são visíveis os traumas que essa posição provocou. Hoje é assumido que em democracia não são admissíveis outras forças, para além das que resultam da expressão da vontade popular, para estabelecer e garantir os necessários equilíbrios políticos. A intervenção das Forças Armadas no plano interno das sociedades é entendida como último recurso, nas situações de extrema gravidade relativamente ao estado de segurança nacional, desempenhando o papel dissuasor na gestão da crise, e o papel de efectivo uso da força quando todos os outros instrumentos se tenham esgotado; contudo, a aceitação deste princípio não é geralmente considerado desde a fase da estabilidade, e a sua materialização nem sempre é fácil.
Em termos ideais, o comportamento do combatente, enquanto no exercício da sua profissão, e a sua atitude perante a vida que lhe vem da preparação para o combate, são específicos. O combatente age em última instância pela preservação dos valores do colectivo, assumindo obviamente que este colectivo identifica e promove o cidadão, é obrigado a viver a sublimação desses valores num local agreste onde se confronta com um inimigo movido por propósitos contrários. Contudo, apesar desta compartimentação ou isolamento presentes no momento do combate, o combatente não deixa de ser cidadão, embora, pela exigência da profissão e pela sua integração na Instituição Militar, tenha alguns dos direitos de cidadania condicionados.
Mas o que iremos aqui tratar é de comportamentos e atitudes ideais do combatente, pelo que nos ficaremos por esta nota quanto à geração dos conflitos violentos e à relação do militar com a sociedade.
Não temos a intenção de tornar este texto um fragmento de ética militar, apesar da idealização ou teorização no tratamento da questão. O nosso objectivo é mais a descrição objectiva do que é, ou do que fundadamente se julga ser, do que a inculcação do que deve ser, é mais uma tentativa de explicação racional, do que a descrição de um conjunto de normas, de regras ou de valores.
A fonte para esta descrição não consistirá em exemplos individuais de quem se tenha notabilizado no campo de batalha, que tenha sido considerado como referência, que nos possa servir de guia. E muito menos será a recolha de experiências, segundo o método clássico de estudo empírico. É evidente que se parte dum conhecimento geral da realidade do combate, mas o que se pretende, essencialmente, é um exercício de perspectiva, isto é, uma visão tomada de fora da cena que é objecto de estudo, pretensamente racional e objectiva, que tente explicar o comportamento do combatente, recorrendo obviamente à escassa bibliografia disponível.
O comportamento ideal do combatente
O comportamento do combatente é determinado:
- por factores intrínsecos, que lhe vêm do seu interior, ou que constituem a sua “alma”, o seu desígnio;
- por factores instrumentais traduzidos pelo sentido do dever;
- e pela mística que resulta da cultura onde se situa, quer seja ao nível da sociedade, quer seja ao nível da Instituição ou da unidade onde se integra.
Aquilo que o combatente é chamado a executar materializa o fim de um processo, um chamamento da sociedade para a ultrapassagem de um impasse na realização dos seus valores, um desafio de confontação, real ou potencial, para o alcance da Razão. O local da confrontação é povoado de combatentes inimigos, a acção é pautada por um conjunto de regras, implicita ou explicitamente aceites por todos os combatentes, e o resultado do confronto determina o destino político das colectividades que os combatentes representam, qualquer que seja a amplitude desse destino, seja a resolução de uma disputa, a prevalência de um interesse ou a submissão ao regime opositor.
A capacidade de combate, que inclui a determinação em usá-la, exerce uma função dissuasora contra aqueles que eventualmente possam estar dispostos a contrariar interesses ou a não reconhecer valores. As confrontações podem ser sucessivas, com objectivos muito concretos, ditados por razões estratégicas ou táticas, inseridos na finalidade última a atingir. A capacidade de negociação política que saiba clarificar o que está em jogo, assim como definir posições afirmativas correctas, facilmente entendíveis pelos actores em presença, dá credibilidade ao actor político, e reforça a capacidade de combate. Isto é o que está na mente do combatente, como matéria de fundo; ele tem que sentir que a sua acção se insere num quadro de valores elevados, tem que confiar que assim será, sem ter a necessidade da explicação exaustiva, e tem que acreditar que não combate por interesses particulares, por jogos de poder pessoal ou sectorial - as vantagens que resultarão da vitória serão sempre em benefício da colectividade, e é essa força moral que o impele para a aceitação do risco. No local de acção o que conta é o opositor, o ambiente, a missão, e é nesse contexto que a técnica surge para o alcance da posição vantajosa.
A alma do combatente é um sentir que lhe vem de dentro, é o desejo da superação como vocação, é a consciência de que existe uma finalidade fora dele mesmo e que é mandatório que se alcance, e de que existe uma necessidade de fazer progredir uma comunidade, para que cada um e todos caminhem em direcção a um destino, na preservação dos seus valores. Esse progresso, que tem várias vertentes, só pode ser atingido numa situação em que a segurança esteja minimamente garantida, em que os direitos possam ser afirmados e respeitados. No percurso para o alcance daquele fim irão surgir obstáculos que terão que ser vencidos, sendo o mais importante o que resulta da oposição ilegítima de estranhos, que se perfilam com o estatuto de inimigo. O combatente tem que interiorizar os valores da Nação, e a sociedade tem que aceitar a Instituição Militar como uma das sedes de cultura dos seus valores.
O combatente tem a noção que objectivos tão elevados só poderão ser atingidos com sacrifício, porque se o caminho não fosse difícil não existiria a ideia do valor - aquilo que é fácil de alcançar, ou que existe em abundância, não se valoriza, está ali à disposição de quem o queira fruir.
Temos aqui um impulso que lhe vem da sua consciência para o cumprimento de um fim, e uma afirmação pessoal orientada para a realização do mesmo fim - é por isso que se fala de vocação quando por sua iniciativa e vontade o indivíduo decide aderir à condição de combatente, e de formação vocacional para o caso daqueles que, por uma razão ou por outra, estão de facto integrados na Instituição Militar e que por essa via se tornam combatentes. O apelo interior explicar-se-à pela elevação do fim, pela avaliação da causa em si, e também pelo cálculo na busca de um reconhecimento pessoal, pela necessidade sentida quanto à superação de obstáculos num desafio de capacidades, como ser humano.
Aqueles que aqui chegam de forma não deliberada, por virtude de uma lei que os obriga a defender o legado colectivo, são formados para adquirirem a vocação, para se comportarem de acordo com um código de honra. Como iremos repetir adiante, não basta um contrato de trabalho profissional, é preciso um comprometimento unilateral aos valores do combatente, ao seu código de conduta. Convém sublinhar que nas instâncias próprias se concluiu que o fim que acima se referia, e que é identificado como o Bem, em termos metafísicos, se alcança apenas pelo recurso à força institucionalizada, no pressuposto de que todas as outras vias se consideraram esgotadas - o combatente é o agente dessa força, aquele que é chamado ao desafio para obter a Razão através da vitória; do resultado da sua acção dependerá o destino ou a salvaguarda dos valores que o colectivo a que pertence reivindica. É do desdobramento daquele Bem, e da percepção sobre a oposição à sua realização, que surge o confronto onde o combatente irá intervir. Um ponto importante que aqui se deverá referir é que a Nação deverá ter esta capacidade de intervenção ou de combate, de forma permanente, para se poder afirmar nos mais variados contextos, para demonstrar o empenho na cultura e na defesa dos seus valores e interesses, afirmação que não necessita obviamente de ser ostensiva para ser entendida. O carácter de permanência da capacidade de combate confere uma demonstração dissuasória dirigida àqueles que porventura tenham a intenção de prejudicar aqueles valores e interesses.
O combatente é motivado por um sentimento de dever, porque os seus objectivos se situam no bem dos outros, dos da sua comunidade, exteriormente a ele mesmo, enquanto indivíduo. Aquilo que prossegue, por vocação e por profissão, é definido no seu exterior, embora tenha capacidade para o interiorizar, sem a ajuda dos outros - o combatente não se move como um autómato comandado por outro ser, o dever é assumido conscientemente, e não de forma cega, e a sua acção individual insere-se na acção dum colectivo, na sua unidade, no cumprimento duma missão que é definida a um outro nível. A articulação do comando funciona numa base de confiança, ao mais elevado grau, e na interiorização individual da finalidade da missão.
A aquisição deste sentimento do dever é efectuada pela socialização, em geral, e pela formação e treino militares, em particular - a existência de dúvidas quanto à finalidade da missão corresponde a uma fraqueza e não a uma força, dúvidas que podem ter origem na sede onde se define a missão, no espírito do combatente, no seu carácter, ou em insuficiências de formação ou em incompetências ao longo do canal de comando, até ao escalão político. A ordem deve dar respostas a todas as suas questões. A dialética que normalmente existe na sociedade, o confronto entre as teses para a busca da síntese optimizada, a conflitualidade permanente entre sedes de interesses particulares divergentes, no âmbito de um interesse comum, não pode existir no interior da Instituição Militar, por razões de eficácia, que é o que domina a sua forma de estar e de actuar. A missão, que é a forma de alcançar os fins, não pode conter ambiguidades, o que não significa que não exista flexibilidade na sua execução. O dever é interiorizado, em resultado do papel que está atribuido ao combatente, da compreensão do fim geral e da missão específica, e não será apenas a tradução de uma imposição concreta - o dever é o que está associado ao alcance do Bem, e isso está ínsito na consciência de qualquer ser humano; o dever do combatente, em concreto, diz respeito à sua consciência e à missão que lhe está confiada. É esta noção de dever que caracteriza a função do combatente como vocação, como acontece com outras vocações similares na sociedade.
O combatente vive para os outros, não vive para ele mesmo, para uma empresa com interesses particulares, para uma parte da sociedade, e é isto que torna a sua profissão como um mandato directo da sociedade, e como tal muito nobre, num sentido de elevação. E o combate, quando surge, constitui a oportunidade para manifestar o seu compromisso para com o seu País através do sacrifício, o que não significa que o combatente deseje o combate, pelo combate; esta sublimação é alcançada pela via racional, pelo entendimento de que seria preferível que não viesse, mas se vier estará pronto a enfrentá-lo. A instrução militar tem processos para garantir que a prontidão não baixe só pelo facto de não existir o combate real, assim como mentaliza para o afastamento da propensão para o combate desnecessário.
Para facilitar a síntese, ao nível das consciências, é necessário criar um ambiente de mística, que traduza o transcendental, que simplifique a adesão, que decomponha a complexidade. Essa mística é criada, quase que involuntariamente, pela sociedade, através de figuras, de lendas, de mitos, de ficção, e também pelas unidades a que pertencem os combatentes através de símbolos, de lemas motivadores e de registos históricos, com o fim de reforçar o espírito de corpo. Desde o culto pelos heróis que preenchem as páginas das histórias nacionais, que deve ser incentivado, até às várias formas de representação da realidade do combate, todo esse manancial vai formando aqueles que sentem a vocação para serem combatentes.
São os mitos que nos dão uma interpretação da vida social, que criam uma imagem sobre os significados dos comportamentos, ou sobre a definição dos bons e dos maus comportamentos, que se actualiza de acordo com a evolução dos contextos. A actualização deverá ser muito mais na forma do que na substância. Aqueles que se revêm nesses mitos condicionam o seu comportamento, ou mimetizam as atitudes e as acções dos actores que fazem parte do mito, tendo em conta os contextos onde estão inseridos. E isso acontece também com o combatente, que escolhe as suas referências naqueles que morrem ou se sacrificam pelos outros, pelos camaradas ou pela Nação, para atingirem o Bem. O mito é uma alegoria do real, constitui um paradigma que nos diz como nos devemos comportar, promove as respostas sem equacionar explicitamente os problemas - quem adere ao mito compreende o seu sentido, na medida em que ele traduz o que já vai no seu íntimo.
A guerra, considerada aqui em sentido amplo, pode ter manifestações muito variadas, normalmente associadas às situações caóticas e onde existe um imperativo de ordem. Por um lado há um apelo de racionalidade, na decorrência do seu carácter instrumental para atingir um determinado fim considerado como legítimo, que usa a tecnologia e o respeito pelo opositor, como ser humano, e por outro lado há expressão irracional, dominada exclusivamente pelas emoções, face ao ambiente de violência, que pode sair fora de controlo, numa atitude injustificada de violência pela violência.
O combatente deverá estar alerta quanto a estas situações possíveis, pela própria natureza do processo violento, e é formado para não deixar que se perca o seu controlo, o que em certas circunstâncias poderia ser fácil que ocorresse - esta capacidade de controlo faz parte da sua identidade, que se perderá quando se retorna a um estado de natureza onde imperam apenas os impulsos inconscientes. O combatente que não sente os limites instrumentais que a razão impõe, pode não se vir a respeitar a si mesmo, pode vir a agir sem sentido, e este será um risco que se deverá acautelar, sem prejuizo mínimo na eficácia que deverá procurar no cumprimento da missão, com o risco de vida que é próprio da elevação dos fins. Isto não significa que se sugira que se expurguem as emoções do combate que resultam da motivação para agir, mas tão só que se orientem num quadro de respeito pela dignidade do outro - a sua eventual eliminação terá sempre a ver com a mecânica do combate, com a irredutibilidade de posições e não em resultado do instinto violento.
Combatente é todo aquele que tem alma de lutador, que actua com agressividade, no sentido de reparar o que está errado, logo que note que esteja errado, que se move por um ideal, por um desejo de melhorar o Mundo, que apreende os valores que enformam os agregados humanos, a sua Nação, e que se excede na defesa desses valores empenhando-se de forma proactiva. É aquele que consegue interiorizar os valores que são a base de vida da sua comunidade, que se apercebe dos riscos que essa vivência pode conter, que é possuído de um sentimento pátrio - porque sente ter esta vocação, procura o enquadramento social, ou profissional, onde melhor se possa realizar.
Quando a ordem chega, o combatente já conhece o enquadramento básico em que ela se situa, já sabe qual a finalidade última; a ordem define-lhe as particularidades da execução num dado contexto, os objectivos a atingir, indica-lhe o que deverá fazer de acordo com a sua competência técnica. Nesta perspectiva, combatente é não só aquele que usa a arma, é também aquele que usa outros meios para atingir os mesmos fins, com atitude idêntica, quando os valores estão ameaçados ou quando se verifica a sua erosão, e que tem o mesmo espírito daquele que luta de armas na mão; contudo, é destes últimos que aqui tratamos.
A alma do combatente é um comando interior consciente, que está em harmonia com o sentir da comunidade onde tem lugar o seu reconhecimento - porque actua a benefício de uma comunidade, é desejável que esta comunidade o reconheça para lhe redobrar o ânimo. Mas é preciso também ter a consciência de que esse reconhecimento poderá não vir, em circunstâncias muito particulares, e que esse facto não poderá ser razão de quebra de vontade, embora resulte, necessariamente numa relação difícil com a sociedade. As sociedades guerreiras, sucedâneas das sociedades primitivas, totalitárias e solidárias, colocavam desafios cada vez mais dificeis aos seus guerreiros, com o propósito de lhes provocarem derrotas e assim fazer diminuir o seu poder interno, em relação às outras classes. Nas sociedades contemporâneas procura-se o mesmo fim com o reconhecimento mitigado em tempo de paz ou de estabilidade, e o desconhecimento deliberado da função do combatente.
Os factores intrínsecos, ou do interior da mente, os factores instrumentais e a cultura constituiem a massa de que são feitos os combatentes, sendo certo que o primeiro, a alma do combatente, é o mais importante de todos eles, que o faz ir mais além donde iria se não tivesse a motivação do combate.
Sem espírito de afirmação e de dádiva aos outros, sem vontade de se transcender nos momentos de maior dificuldade, sem sensibilidade para interiorizar os valores e detectar as situações de perigo para os outros, e de se expôr na defesa desses valores, dificilmente estaremos em presença de um combatente.
A qualidade de combatente provém da sua capacidade espiritual, da sua capacidade física, cognitiva e técnica. De todas estas capacidades a mais relevante é a resistência mental, que faz com que realize feitos que ele próprio julgaria não ser capaz de concretizar, quando os analisa depois de atingidos.
Na acção, o combatente vive rodeado de medos e de dificuldades, que constituem outros tantos desafios e cuja ultrapassagem, de forma consciente, é objecto de transformação individual, de realização humana, uma experiência de vida autêntica que contrasta com a rotina social; o fracasso resulta num “stress” duradouro, num fim de vida da qual se perdeu o sentido. Em qualquer caso, trata-se sempre de uma ruptura ou de uma transformação que é positiva, quando se tem a consciência de que se realizou um serviço de alto significado para os outros.
O combatente sabe que a morte pode ser um dos resultados possíveis do combate, pelo risco que lhe é inerente, mas não assume uma atitude de resignação, ou de suicídio, procura uma estratégia de sobrevivência com dignidade e glória, também em termos de possibilidade, sem prejuizo dos fins que o motiva, numa estratégia de afirmação. Isto é, o combatente está preparado para enfrentar a morte, para dar a sua vida na defesa de valores fundamentais, no pressuposto de que o seu sacrifício terá um significado muito relevante para os outros - o combatente tem a consciência de que assim será, mas sem prejuizo deste desiderato procura alcançar o mesmo fim, sobrevivendo, isto é, não se entrega à morte, aceita-a como possibilidade.
O risco da morte é, no entanto, instrumental, e tem a ver com a grandeza dos objectivos. Se fôr necessário, arriscará a vida para atingir um dado fim e isto está interiorizado no espírito do combatente, o que significa que, nesta circunstância, se apela a todas as forças interiores para alcançar a vitória, sem condicionantes de qualquer natureza, dentro dos limites do possível, das capacidades naturais do combatente e das regras morais a que está submetido - a morte pode surgir de forma natural no cumprimento da missão, no desenvolvimento da actividade que deveria conduzir ao sucesso positivo, e que sempre se assumiu, de forma consciente, que essa actividade era perigosa; é uma das saídas possíveis do combate, embora se procure restringir, sem prejuizo da finalidade desse combate.
Esta posição deverá ser diferenciada da do combatente suicida, que oferece a vida para a sua salvação eterna, que assim será garantida, por essa via, segundo a sua Fé, assim como será diferente da do combatente que, por ideologia ou cultura, coloca a questão da honra acima da sua própria vida, que a oferece para não sentir a vergonha que o exterior lhe imporia, pressionando-o para se sentir desonrado.
Existem, no entanto, situações em que será difícil distinguir entre uma posição instrumental (a vida no decurso do serviço arriscado a uma causa) e uma posição existencial (a oferta da vida para a salvação da alma ou da honra). O combatente ocidental está disponível para todos os sacrifícios no alcance de um objectivo, enquadrado numa missão para a defesa de valores elevados, dá tudo de si até ao extremo da sua vida, e racionaliza o enquadramento em que a sua acção decorre; não é mártir nem suicida, e procura cumprir a sua missão numa estratégia de sobrevivência, com a consciência do risco envolvido.
A atitude do combatente não tem que ser, necessariamente, exuberante, mas a sociedade deverá depositar nele confiança, reconhecer que a sua orientação será sempre segundo a defesa dos seus valores. O combatente não é senhor do seu destino; o seu destino é determinado pelos outros, que sancionam os seus actos. O combatente serve o Estado, e será a Instituição Militar, como repositório dos valores éticos, que deverá definir o quadro moral que legitima a sua acção.
O comportamento não é apenas ditado pela mística que o envolve, existe também racionalidade, ou seja, é também explicado pelo lado da Razão, da motivação racional. O comportamento em combate deve resultar dum sistema de valores próprio do combatente, de uma atitude ou de um espírito, que constituiem a essência daquele comportamento, ou que o justificam. Contudo, na hora da verdade, é preciso ser sintético, construir explicações simples, e a mística que os símbolos e as práticas transportam, ou envolvem, deve reflectir ou ter um nexo de racionalidade. Isto é, os símbolos deverão ser fundados em bases sólidas, com significados precisos que justifiquem as atitudes perante o exterior, em especial nas situações mais graves, onde a vida humana possa estar em causa.
O combatente opera num ambiente de violência que pode assumir várias configurações ou formas, e espera-se que pela sua acção essa violência possa ser contida. O combate surge no fim de um processo político onde são ponderadas todas as opções possíveis para evitar a violência ou para reparar a violência desregulada - a opção última é o recurso à violência organizada, com uma capacidade de auto-controlo, relativamente a este fenómeno tão complexo. Aquele que não dispõe da formação adequada facilmente se pode exceder, porque violência pode gerar violência, numa espiral que é conforme com as capacidades de cada um dos actores em presença. De igual forma não é esperado que, face à violência, o combatente se diminua, se escape ou se resigne num contexto de horror assim criado. A estratégia de sobrevivência passa em primeiro lugar pelo cumprimento da missão, e a audácia decorrerá de um julgamento consciente para atingir este objectivo. As formas de violência extremas desnecessárias não poderão ser aceites como comportamento correcto do combatente.
Daí que se imponha a interiorização permanente quanto ao sistema de valores que deverá reger o comportamento do combatente, antes que surja a situação violenta, e a sua idealização é objecto de formação e de reflexão antes da entrada em combate. Na situação real do combate o tempo disponível não permitirá exercícios de reflexão, apenas serão exigidos julgamentos correctos, baseados numa análise breve da situação e na formação adquirida longe do local de acção, e é aqui que os símbolos desempenham um papel fundamental, num apelo à afirmação e à solidariedade.
O combatente não pode ter dúvidas quanto à possibilidade de ocorrência de situações em que terá que anular o seu opositor, nunca terá o desejo ou o gosto de o fazer, mas não poderá ter objecções de consciência se ocorrer o enquadramento moral que o justifique, isto é, se a situação fôr de confrontação militar. A seguir ao impasse da negociação que conduziu ao conflito armado, poderá surgir o impasse ao nível das armas, e nessa circunstância não poderão existir dúvidas quanto à atitude a tomar, isto é, toda a acção é dirigida para a obtenção de uma posição de vantagem. Ao actuar desta forma, ele tem a consciência de que, ao nível da sua sobrevivência, estará em causa um valor elevado que o transcende. É esta noção que o distingue daquele que se move na guerra apenas por interesse pessoal, ou na busca de auto estima, e que o torna um cidadão no cumprimento de uma missão que a sociedade lhe atribuiu, segundo parâmetros éticos rigorosamente definidos.
O combate é, por definição, um acto regulado, onde se supõe existirem algumas regras básicas. No tempo presente, esta regulação assume aspectos contraditórios. Por um lado, existe uma legislação exaustiva, definida a âmbito internacional, que regula todos os aspectos da actividade guerreira, incluindo não só as armas autorizadas como os comportamentos aceitáveis, sendo cada vez mais difícil caminhar neste emaranhado legal. Por outro lado, a regulação no terreno tende a ser cada vez mais ténue, a situação mais difusa e mais sangrenta, em particular no quadro dos conflitos assimétricos, com acentuação maior no caso do terrorismo.
A atitude perante uma situação extrema onde a violência organizada pode vir a ter lugar, e onde possam estar em causa elevados valores nacionais, assim como a forma de agir no quadro dessas situações, terão que ser previamente estudadas e ensaiadas por aqueles que têm a responsabilidade institucional de contribuir para a sua resolução, no sentido de as fazer reverter a um estado normal. O que motiva o combatente a agir é a convicção firme de que a sua acção é decisiva para a realização de fins elevados, não particulares; contudo, no local da acção ele determina-se em função de uma missão concreta que lhe atribuiram, e rege a sua conduta por outros valores mais próximos como sejam o comprometimento ou a afirmação, a coragem, a ajuda mútua em equipa, a solidariedade, o sacrifício, a camaradagem, a dádiva. Na acção, o combatente usa a técnica para que foi treinado, segundo critérios de eficácia e de acordo com a análise das condições do combate. Na mente do combatente colocam-se duas questões fundamentais: por que se combate e como se deve combater, com que meios e com que técnicas - é preciso saber fazer a ligação entre estas duas questões. A exigência da formação não significa que esteja garantido um comportamento ideal por parte de todos os combatentes, pois não será possível recriar previamente todos os elementos que caracterizam cada situação extrema, e porque a condição psicológica é um factor importante na motivação dos intervenientes, e neste sentido será de esperar variações. De acordo com os relatos dos que tiveram que entrar em ambientes de extrema violência, muitos deles encontraram situações que nunca tinham imaginado, do anterior, o que significa, para estes casos, uma preparação deficiente ou uma insuficiência objectiva de previsão dessas condições. Outros não tiveram as capacidades que deveriam ter tido para reagir àquelas situações, e soçobraram, procurando, ou não, justificações no exterior, para os seus actos. Outros excederam-se e foram além daquilo que julgariam ser as suas próprias capacidades.
Por todas estas razões, o primeiro julgamento dos comportamentos é feito pelos próprios combatentes após a acção, tendo em conta o contexto em que se desenrolou - em todo o caso, não é legítimo fazer julgamentos desligados das condicionantes do combate, baseados em ideias descontextualizadas, como se de uma situação normal se tratasse. Assim como não se poderá admitir a violência desproporcionada aos fins, também não se deverá julgar apenas com base numa interpretação rígida da extensa documentação reguladora existente, de forma dogmática, porque o combate resulta da criação de uma situação excepcional - como se disse, o combate tem regras baseadas em critérios de humanidade, por um lado, e envolve o risco da vida por outro lado.
Apesar da falta de previsão, da dificuldade de configuração de todas as situações possíveis, da incerteza, a formação nesta matéria continua sendo a chave fundamental do sucesso, que se traduz, em termos simples, na aptidão para enfrentar uma situação excepcional. Parece óbvio que assim seja. Sendo necessária a formação, necessário será integrar os princípios que deverão reger o combate nas acções específicas de formação, para favorecer a mentalização individual de cada um dos possíveis intervenientes, face a potenciais extremos onde a força venha a imperar. A execução da acção de combate, não é, obviamente, de natureza simplesmente técnica, como nos tempos actuais alguns sectores tendem a fazer crer; é, fundamentalmente, uma questão de motivação e uma questão moral no cumprimento de um objectivo claro. Enquanto que ao nível da decisão política e estratégica poderão existir posições ambíguas, próprias das técnicas de negociação, ao nível da acção de combate esssa ambiguidade é inconcebível - o que aqui poderá existir será decepção, mistificação e outras medidas quejandas para obter vantagens tácticas pontuais, mas o comprometimento, a execução das ordens, nunca poderá ser objecto de dúvida. O factor mais importante da avaliação da formação, à posteriori, é o comportamento social daqueles que lidaram com situações violentas, no enquadramento do combate.
Os factores externos e a mente do combatente
Para este debate parece-nos que deveremos considerar os factores externos e os factores internos, isto é, aquilo que é o desígnio do combatente e as influências que recebe do exterior. Não se poderá assumir que o combatente esteja totalmente imune à influência do ambiente onde está inserido, designadamente quanto ao que se pensa nos círculos dominantes da sociedade, às condicionantes de variada natureza que as sociedades e as suas organizações impõem na actuação da força - esta é uma questão muito polémica, em especial porque existem correntes que fazem uma interpretação muito restritiva quanto ao papel das Instituiçoes relacionadas com a Segurança e Defesa, criando a ideia de que esse papel se circunscreve a acções humanitárias, a apoio das populações, à garantia da ordem pública pela presença, à dissuasão garantida e a outras acções de teor semelhante, escamoteando a função nuclear da Instituição Militar que se traduz na sua capacidade de combate. A intervenção da força, em sequência de decisão política legítima, deverá ser dirigida por um sistema de comando ausente de ambiguidades, pela sua própria natureza, e deve ser dominante em relação aos papéis a desempenhar por outras Instituições e agentes em matérias de âmbito civil nesse mesmo cenário. As razões na base desta afirmação parecem óbvias - a força é sempre indispensável, como última razão, tanto em termos de efectividade como em termos de potência, em ambientes onde as posições se extremaram a um ponto de não retorno, do ponto de vista dos valores, ou onde as emoções fizeram quebrar as regras básicas que garantem a segurança de pessoas e bens; existe aqui um problema de gradação, entrando a força armada quando a situação se encontra num estádio elevado de conflitualidade ou de insegurança com uma lógica de actuação específica, diferente da lógica de intervenção de outras instituições.
As polémicas que existem na sociedade sobre as forças armadas, sobre o serviço militar, sobre questões de defesa nacional, numa perspectiva de curto prazo, as declarações sobre ausência de ameaças, as questões corporativas em torno da atribuição de orçamentos, e de outras naturezas semelhantes, regra geral pouco fundamentadas, poderão ter reflexos ao nível do desempenho do combatente. Muitas vezes será necessário contrariar, no processo da formação, o discurso fácil e velado da condenação, em absoluto, dos meios violentos para conter a violência, porque nesse discurso não entra a possibilidade do confronto e se idealiza um mundo onde domina um respeito consciente e auto garantido pelos direitos, e onde se assume a eficácia total da negociação pacífica. A realidade que porventura se irá encontrar é bem diferente, e não será produtivo contemplar apenas mundos ideais sem correspondência com os mundos reais - estes mundos reais, onde a violência pode estar presente, não são mundos povoados necessariamente por seres doentes, mal formados e malvados; a violência pode também surgir da afirmação positiva de valores que se contradizem na ausência ou insuficiência de sistemas reguladores.
O combatente tem que ser preparado para a pior situação possível, que é incompatível com a idealização sobre a garantia do não confronto violento. É evidente que este discurso idealista poderá ter algum efeito na mentalização dos cidadãos para a não-violência, no quadro duma harmonia de valores e interesses, de respeito pela lei, com a ressalva que essa harmonia nem sempre é possível de alcançar - trata-se de uma situação ideal que não deverá no entanto fazer ignorar a situação real. A formação mental do combatente deverá estar muito mais orientada para os valores positivos que a Nação tem a firme intenção de prosseguir, e nas possíveis dificuldades ou obstáculos que poderão surgir nesse percurso, isto é, trata com mundos reais onde a violência está latente ou real. O combatente é também cidadão e partilha os desejos de paz e tranquilidade que a generalidade dos cidadãos deseja, mas tem que estar mentalizado que poderá ser envolvido em situações de extrema violência, onde a sua vida poderá vir a estar em risco, para fazer com que os outros vivam de acordo com os seus valores.
O combatente assume o conflito violento como uma possibilidade que decorre da própria vida - a situação excepcional criada por um confronto com uma origem qualquer não provém necessariamente de uma patologia, de uma insuficiência na natureza humana; ela pode ser, de facto, o resultado de duas posições afirmativas opostas e legítimas aos olhos dos seus autores, ou de um contexto de antagonismo que se foi criando e desenvolvendo insensivelmente, em sedes diferentes de direitos que se vão colocando em oposição, ou, pura e simplesmente, da ausência de regulação incapaz de evitar ou de reparar o estado de natureza. Para além do tratamento dessas patologias fictícias através de odes à não-violência, ao amor e à feliz convivência entre os povos, e de apelos à socialização, declarando o desejo do retorno dos desviados para o caminho da paz, é preciso ter consciência que para a resolução daquela situação excepcional o uso da força institucionalizada pode ser determinante. O reconhecimento deste facto nunca poderá ser considerado como um louvor à violência, sendo pelo contrário o reconhecimento de que ela existe e que a força institucional é o elemento fundamental para a sua contenção.
Porque na sociedade existem visões diferentes quanto às origens da violência entre grupos sociais, ou entre Nações, e especialmente quanto à forma como se poderão conter, a exigência na formação moral do combatente terá que ser reforçada em proporcionalidade com aquelas divergências, para evitar que falhe no momento em que fôr chamado a ultrapassar a situação excepcional - normalmente nestas alturas a controvérsia exterior esbate-se perante a realidade dos factos, o discurso altera-se apelando à intervenção da força armada, mas a preparação para enfrentar essas situações tem que vir de longe, tem que ser permanente, nunca poderá ser improvisada.
A Tecnologia tem feito com que a distância entre opositores se tenha alargado, em função do alcance eficaz dos sensores e das armas. A linguagem do combate já não se expressa fundamentalmente por manifestações corporais agressivas, por cargas de baionetas, pela luta corpo a corpo no local de acção, por tiros de pistola entre aeronaves; essa linguagem passou a ser a da visualização do míssil que se aproxima, ou do som das rajadas das armas automáticas ou das explosões das bombas, granadas ou mísseis. O opositor é mais abstracto, levando quase ao esquecimento que por detrás da arma ou da munição está o homem que ali foi colocado por força de um impasse, de uma impossibilidade de negociação sobre valores que ambas as partes consideraram como irredutíveis, inegociáveis. Contudo, as armas do presente continuam a provocar mortes e feridos, de uma forma mais intensa, a criar situações dramáticas e caóticas que o combatente deverá estar preparado para enfrentar.
Mas este facto, não altera em nada a atitude do combatente. Os termos do combate, na sua essência, são os mesmos, qualquer que seja o ambiente onde tenha lugar, seja no ar, no ar contra a superfície, e na superfície contra o ar, na terra ou no mar. No plano da ética e da moral, nada muda. O que muda é a técnica, que exige ponderações diferentes nas qualidades do combatente - a força física, por exemplo, não será hoje tão determinante como o era no passado distante (hoje nenhum combatente terá a força de Aquiles ou de Heitor), apesar de continuar a ser muito importante (deverá continuar a ser um requisito de selecção fundamental, porque a distância entre combatentes opostos pode diminuir drasticamente, porque a operação dos sistemas reais poderá exigir maior capacidade física - as forças armadas de laboratório são uma ficção - não sendo admissível aceitar potenciais combatentes sem a necessária compleição física, por exemplo), mas o vigor moral poderá ser mais exigente porque o ambiente social e político é bastante mais complexo com contradições aparentes.
Independentemente destes avanços, que alguns pretendem fazer crer que significam que estamos perante uma transformação do combatente em mero processador de informação, a verdade é que as emoções, os desejos de vitória continuam a estar presentes no local de acção - o combate frio não existe. A revolução tecnológica, ou estratégica, ou a evolução acerca das ideias sobre a guerra, não poderá nunca alterar dramaticamente o núcleo central de actividade em que o combate convencional se constitui.
O combatente actua em equipa solidária. Por esta razão, exige-se que cada um cultive os valores da dádiva, da camaradagem, do sacrifício. A entreajuda, a capacidade de liderança, a segurança do grupo, a noção de objectivo e do seu alcance, a compreensão da missão são as características ou as exigências globais da equipa, que implicam que as acções que reforcem a coesão e a unidade de missão se considerem fundamentais. O combate é o teste supremo de carácter, no qual aqueles que nele são envolvidos adquirem um sentimento duradouro de auto conhecimento, e de conhecimento sobre os outros, de uma forma que não está normalmente disponível na vida civil.
O lugar do combate corresponde ao estado de natureza, onde cada um tem medo do seu opositor e que toma a iniciativa de o anular, na iminência de ser anulado por ele. O combatente procura ultrapassar esse estado de natureza pela aplicação de regras que rigorosamente segue no prosseguimento da sua missão, e cuja consequência será, entre outras, o reconhecimento do outro como inimigo, o que corresponde à aceitação da sua condição de ser humano, o que significa, entre outras coisas, o respeito mandatório pelos prisioneiros.
O combatente pode ser forçado a matar, de acordo com a evolução do confronto, e em situações previamente definidas, quando essa acção é absolutamente necessária para a vitória e para a sua sobrevivência; o acto não resulta de um impulso biológico ou emotivo, como o que resulta dum processo de violência pura, é uma inevitabilidade que decorre da própria mecânica do confronto, e que é praticada de acordo com regras que constituem o código do combatente - o abate do inimigo não é objecto de celebração ou de festa, antes pelo contrário, deve ser objecto de um sentimento de pesar, como acção não desejada mas inevitável; o que se celebra é a ultrapassagem da dificuldade que o inimigo representava no caminho para o objectivo legítimo. Refira-se, a propósito, que o combatente retirado, fora das funções institucionais que lhe dão a perícia para matar, comporta-se de forma muito mais pacífica na sociedade civil do que a maioria dos cidadãos que nunca foram combatentes - quando assim não é, porventura isso deve-se a deficiências de formação.
O combatente é um ser ético, na forma suprema, é treinado para cumprir com as regras morais do combate, para ter respeito próprio e auto-estima. É determinado, actua em clima de violência, mas de acordo com um conjunto de regras que são inerentes à sua condição. A aderência às regras é uma questão de consciência, é uma questão de defesa da sua honra perante os seus camaradas, da honra da sua unidade, da honra da bandeira e da Pátria.
A evolução histórica na motivação guerreira
A guerra tem assumido formas diferentes com o andar dos tempos. As motivações para a declaração de guerra, as questões que justificam a entrada em guerra, o que se pensa acerca da guerra, o direito na guerra, tudo isso tem evoluido. As posições actuais quanto a estas matérias resultarão da sedimentação das posições passadas e da análise dos contextos da actualidade. O mesmo se passa em todas as formas da vida. Por exemplo, nos tempos actuais a busca da Glória, em si, deixou de ser uma justificação exclusiva, imediata e determinante para o político que tenha a responsabilidade de declarar a guerra, mas a atitude gloriosa continua a ser valorizada nos combates decididos com base na legitimidade presente. Glória daqueles que se afirmam, na defesa de um ideal, pela afirmativa, pelos actos praticados em coerência com esse ideal.
Convirá, portanto, analisar a questão dos motivos que justificaram as guerras com recurso àquilo que os nossos antecessores históricos pensaram, e fazer o filtro correspondente para o tempo presente. Em todo o caso, o pressuposto fundamental de toda esta análise é de que será a formação mental do combatente, o seu sistema de valores, a sua forma de estar, que poderão garantir que as actividades guerreiras se desenvolvam num quadro ético bem claro, no prosseguimento dos objectivos que estiverem definidos. O estudo do passado entrará obviamente nesta formação. O combatente deverá trazer moralidade a uma actividade em que é fácil praticar as maiores atrocidades e saltar a barreira para o lado do bárbaro, se não existir regulação e autocontenção, pela sua própria natureza. Um outro aspecto a ter em consideração é que a sociedade é ambígua quando pretende fazer diminuir o valor do combatente em tempo de estabilidade, e quando apela às suas máximas capacidades em tempos menos estáveis - daqui resulta a necessidade de uma força moral acrescida do lado do combatente. Aquela ambiguidade reside por exemplo no campo de alguns pseudo-intelectuais que repudiam o uso da força em todas as circunstâncias, incluindo a força institucional, esquecendo que é função da Instituição que gere essa força evitar que os autores daquelas declarações sejam mortos pela violência anárquica potencial existente em qualquer sociedade, ou fiquem sujeitos à opressão desumana de poderes ilegítimos que rejeitem profundamente, isto é, esquecendo os conceitos mais importante da vida, para além do desígnio, que são a segurança e o risco.
Esquecem igualmente que a acção de anular o inimigo constitui uma última instância num choque em que cada uma das posições valoriza ao mais alto grau aquilo que defende, numa atitude de afirmação para salvaguarda dos valores do colectivo, e é condicionada por um quadro ético muito rígido. A vontade de defesa de uma Nação deverá estar plasmada naqueles que têm por dever defendê-la e estes terão a obrigação de chamar a atenção para a necessidade do estímulo em períodos de recessão moral, quando continuam a cultivar os valores fundamentais que a sustentam.
A atitude e o comportamento do guerreiro são determinados pelo seu desígnio, e serão sempre influenciados, por três factores externos fundamentais: o conceito dominante sobre a guerra, a caracterização previsível do combate, e os princípios éticos prevalecentes.
Aquilo que hoje se pensa sobre o fenómeno da guerra, como o pensamento sobre qualquer outro tema, não pode estar desligado da sua evolução histórica, o que não quere dizer que se adopte hoje o que foi aceite no passado, na íntegra, como é evidente - o contexto condiciona muito o pensamento, mas as ideias de hoje poderão ser confrontadas com os contextos do passado, ou viceversa. Por isso vale a pena revisitar, ainda que muito brevemente, a história das ideias relativamente à guerra, não indo além do período medieval. Nesse tempo a guerra era considerada como uma empresa gloriosa e como um instrumento aceitável para a obtenção de vantagens materiais; os seus aspectos negativos relativos à perda de vidas e bens não eram tidos em conta na decisão de entrar em guerra. Era considerada como uma forma de vida, como uma característica normal da existência humana, ou como julgamento divino para determinar quem tinha razão. Para além disso era considerada como essencial para demonstrar a capacidade de resolução do líder, fundamental para manter a coesão social.
Apesar de assim se pensar, desde sempre se regista a preocupação da sua legitimação, procurando justificações da ordem do natural e do divino - na defesa da honra, na afirmação de um direito ou na promoção de um interesse.
No tempo das guerras de religião, a guerra era considerada um mal que Deus utilizava para punir o homem pecador. A guerra, considerada um instrumento para alcançar um fim divino, para expurgar o Mal, não poderia ser objecto de cálculo, porque a certeza da benção divina dispensava a necessidade de ponderar as hipóteses de sucesso ou de insucesso.
A guerra era considerada como uma necessidade porque se reconhecia a existência de forças que atentavam contra os princípios que deveriam reger a vida dos homens, e a participação nela como um dever para contrariar essas forças do Mal.
O Tratado de Westfália de 1648 deu início à era da soberania dos Estados, que se traduziu por uma compressão da violência no plano interno e na assunção de uma situação caótica no plano da relação internacional - ali havia regulação, aqui existia o estado de natureza.
O interesse do Estado era o objectivo que os dirigentes deveriam prosseguir por todos os meios ao seu alcance; a definição daquilo que deveria constituir aquele interesse era uma prerrogativa soberana do Estado, acima de qualquer interesse individual, e não carecia de aceitação pela comunidade dos Estados. Cada Estado tinha não só o direito, como a obrigação de recorrer à guerra quando esses interesses estivessem em causa.
A razão de Estado sobrepunha-se a qualquer princípio de ordem moral. A guerra era considerada como o último tribunal de apelação que os soberanos deveriam utilizar. Na relação internacional não eram permitidos vazios de poder, sendo obrigação de cada Estado diligenciar para que essa situação fosse corrigida.
O surgimento do terceiro estado, no sentido da população não pertencente à nobreza ou à classe eclesiástica, deu relevância à ideia de Nação, inculcada pelos novos poderes saídos da Revolução Francesa. A sobrevivência nacional como a honra nacional ou a glória nacional dependiam da capacidade das Nações para vencerem as guerras. Acreditava-se que a guerra era uma forma característica normal e inevitável da existência humana, que preenchia uma finalidade mais elevada, no quadro da filosofia da História. A guerra era considerada por uns como uma das condições para o progresso, o estímulo que fazia com que os países se orientassem no caminho do desenvolvimento; outros consideravam que a guerra era um dos elementos da ordem mundial estabelecida por Deus, onde as virtudes mais nobres do Homem eram postas à prova ou desenvolvidas, evitando que o mundo degenerasse num pântano materialista e imoral. A guerra era vista como um instrumento normal e legítimo da política. Era entendido que as disputas sobre certas questões, como por exemplo os interesses vitais, a independência ou a honra do Estado só poderiam ser resolvidas através da guerra, sendo impensável considerar para estas circunstâncias o acordo pacífico obtido pela via diplomática.
O jogo das estratégias baseado nas ideias deste tempo conduziu à armadilha da guerra, que todos os potenciais intervenientes declararam não querer, em 1914; foi um conjunto de malentendidos num dado contexto estratégico que conduziu à catástrofe. Os resultados dramáticos desta confrontação fez alterar no imediato as atitudes perante a guerra, sendo a sua iniciativa declarada como pecado, e como tal condenada, por princípio.
Acreditou-se durante um certo período que a guerra não mais deveria ser considerada como inevitável, e que a criação da Liga das Nações proporcionaria a paz perpétua Kantiana. A declaração de renúncia à guerra ganhou estatuto de Pacto, firmado para sempre (Briand/Kellog). Contudo, a realidade das situações concretas foi conduzindo à preparação para a guerra, preparação essa sublinhada no entanto, de forma reiterada, com declarações de intenção pacífica - esta posição dos iniciadores guerreiros é recorrente, como hoje podemos observar. A retórica em torno da questão da guerra ou da paz não foi suficiente para evitar uma outra guerra a nível mundial.
A invocação do uso da força foi efectuada para remediar situações concretas, como medida de última instância. Contudo, a tónica essencial na justificação da guerra no período da guerra fria, e pós guerra fria, tem sido de natureza política; a nova moralidade tem sido política, como se tem traduzido, por exemplo, na guerra contra o fascismo, contra e favor do socialismo, pela libertação dos povos, pela autodeterminação, pela imposição da democracia, contra o terrorismo internacional, entre outros.
As Nações Unidas legitimaram o recurso à força, nos casos de legítima defesa, perante uma agressão iminente e levaram vinte e cinco anos a procurar um consenso em torno do conceito de agressão, porventura já ignorado pela grande maioria dos dirigentes políticos da actualidade. O que de facto é consenso nos dias de hoje é a condenação da guerra, por princípio, o que não significa que ela tenha sido erradicada, como a evidência do dia-a-dia nos demonstra. E porque a guerra existe de facto, a via mais prudente para a conter, deverá ser a da criação de condições que tornem mais difícil a sua ocorrência, para a qual a presença da força não poderá ser dispensada, no pressuposto de que estas acções do âmbito do político não garantem uma eficácia absoluta e definitiva.
A ideia sobre a possibilidade da paz tem cerca de dois séculos, muito embora só tenha sido considerada verdadeiramente nos tempos mais recentes. A consequência desta aceitação é o enfoque na acção preventiva, na capacidade de resolução pacífica dos conflitos, nas operações de apoio à paz - contudo não se pode esquecer que Kant, na sua proposta de paz perpétua, não desprezava a possibilidade do emprego da força.
O conceito moderno de segurança inicia-se com Hobbes, a partir da noção de poder ínsito em cada ser, ou da margem de poder que cada um exerce sobre o outro: “em primeiro lugar, haverá a considerar para toda a Humanidade um perpétuo e incansável desejo de poder por mais poder, que só cessa com a morte. Não poderá existir uma lei comum sem que exista um poder comum que exerça constrangimento a esta luta perpétua de cada um tentar obter mais poder. O Leviatão é assim o instrumento primeiro da segurança que proporciona paz interna, controlando a violência até aos limites territoriais. Sem medo, em busca de ganho ou de glória, os Estados recorrerão à guerra para garantir o direito da sua auto-preservação“. Ou seja, o critério de soberania e de territorialidade terá sido a consequência da anarquia e da contingência naturais, donde resultaram as restrições à liberdade natural dos seres humanos que habitavam nesse território e que passaram a sujeitarem-se a uma autoridade representativa da colectividade. Foi porque a anarquia existia, dificultando os objectivos do colectivo, e porque o medo do outro era permanente, que se criou um lugar, perfeitamente delimitado, onde a vontade colectiva poderia ter expressão, através de uma autoridade legítima, onde se pudesse viver com alguma tranquilidade. Fora desse espaço existia o caos, segundo a perspectiva de quem via aí a diferença. De acordo com Hobbes é o medo permanente da morte prematura e violenta que compele o ser humano a procurar segurança, pela instauração dum poder superior e consequente submissão a esse poder.
O conceito actual de segurança faz a fusão ou a conciliação entre a vontade de afirmação e a aceitação de submissão decorrente dos riscos do desconhecido, entre o exercício de liberdade e as restrições impostas para evitar o caos, a falta de domínio, o enfrentamento do desconhecido. Nestas circunstâncias, a política de segurança deverá ser dinâmica, acompanhando os novos espaços criados por esta dialética.
A teoria clássica ou realista considera o conflito como o afrontamento de dois seres ou grupos, que assumem posições contraditórias, a propósito de um direito ou em virtude de valorizações diferentes que assumem perante determinadas questões, e em que as duas partes manifestam empenho em superar. O conflito nasce não só a partir de uma situação real objectivamente analisada, mas também a partir das percepções que cada uma das partes adquire relativamente ao comportamento da outra, que fazem criar os antagonismos. O conflito extremado pode criar uma situação excepcional, para além do quadro jurídico pré-existente; nesta perspectiva, o conflito é um acto criador da norma positiva.
Mesmo considerando a existência de um terceiro, com função reguladora, a possibilidade do conflito extremado existe, sempre que a força que suporta a posição afirmativa desafie a força daquele terceiro. Por isso se fala em Estados Falhados, ao mesmo tempo que aparentemente se põe em causa o próprio Estado.
A guerra é uma das consequências possíveis da actividade humana, é desencadeada por seres humanos e utiliza os instrumentos que eles próprios produzem. A condenação generalizada do fenómeno da guerra não poderá ser razão para que se não estude, ou que se não considere como possibilidade. Se não se tentar compreender o fenómeno, poderemos chegar à conclusão que é de natureza aleatória, sobre o qual não existirá a menor capacidade de controlo, e que, por via disso, deveríamos aceitar o fatalismo ou, na visão optimista, fazer de conta que não existe em virtude de tanto se condenar. Contudo, talvez mais grave do que a condenação inconsequente da guerra seja o não reconhecimento dos sistemas concebidos, desde os alvores da sociedade política, para o seu controlo.
A guerra não surge desta forma, por um acaso não fundado, como um fenómeno aleatório a que não poderemos fugir, mas também não parece ser menos verdade que, preenchidas determinadas condições, o fenómeno se afigura como inevitável. O que poderá acontecer actualmente é que existirá maior capacidade de controlo destas condições, a começar pela mentalização dos dirigentes políticos e dos cidadãos, ainda que sem garantia definitiva de o conseguir; todavia, a experiência empírica mostra-nos, paradoxalmente, que esta capacidade não fez diminuir a emergência da guerra a nível planetário.
Apesar dos níveis de violência que hoje se verificam por todas as partes do Mundo, o discurso político sobre a forma de os contrariar é ambíguo e utópico, em especial o que é proferido pelos actores que não estão sendo atingidos pelo fenómeno.
A cultura actual passa por uma fase de transição que teve início há pouco mais de duzentos anos, com a crença de que seria possível a paz perpétua, depois de se ter eliminado a ideia de inevitabilidade da guerra, mas que a continua a admitir como manifestação da malvadez humana e da incompetência das lideranças políticas, lutando pela sua condenação liminar, não aceitando qualquer argumento que a pretenda explicar, mesmo num quadro em que uma das partes tenta impôr à outra valores não aceitáveis.
No passado muito recente existiam duas correntes opostas quanto à natureza da guerra: uma realista baseada nas questões de poder, outra idealista baseada em princípios supostamente constitutivos das sociedades pacíficas. O que nos parece existir na actualidade é uma posição muito mais difusa quanto à natureza da guerra, na medida em que se banalizou o próprio conceito, se considerou menos nítida a fronteira entre paz e guerra, se confundiu esta com o crime organizado à escala transnacional, se admitiu a privatização dos meios de segurança voltando a uma situação próxima do mercenarismo, se se segrega a função militar, de facto, se não apresenta um conceito claro para a guerra, desconstruindo-se o conceito clássico, se admite um futuro de paz apenas pela evolução na formação humana.
O combatente da actualidade tem que viver nesta ambiguidade e ter a capacidade de discernir que o discurso só é válido para os tempos da paz e da tranquilidade, e a convicção de que a sociedade o chamará quando as dificuldades surgirem, se surgirem.
O combatente prepara-se para combater, mesmo que exista uma aparente negação da sociedade, no tempo de paz presente, em aceitar essa possibilidade. A sociedade não pode negar a vocação, mas olha para o combatente apenas como o elemento para combater a guerra, de forma abstracta, para erradicar o fenómeno, e não para procurar glória nela, não só para si como para o colectivo que representa, se ela vier a ocorrer na sequência de uma situação que saia fora do controlo. Face a esta possível posição, torna-se necessário sublinhar que, de facto, o combatente não procura a guerra pela guerra, a sua preparação para a guerra significa estar apto a vir a desempenhar o seu papel, se a guerra vier, e a dissuadir os outros de a iniciarem.
O perfil ideal do combatente, que acima se expôs, tem que ser confrontado com a realidade social e política dos nossos dias. Como se disse, o combatente faz parte da sociedade e, por via disso, não se pode ignorar a influência que as ideias dominantes exercem sobre ele. Existe no entanto um ponto de partida: o combatente é treinado para enfrentar situações caóticas e violentas, onde não pode prevalecer um discurso ambíguo, um querer e um não querer, uma posição difusa, que considere, ao mesmo tempo, a necessidade de se atingir um objectivo com um constrangimento inviável, onde se quere o máximo com o mínimo, mesmo quando seja evidente a impossibilidade.
O combatente tem uma forma de pensar que contempla sempre o pior caso possível, assim como as alternativas que se deverão prosseguir no caso extremo da radicalização de posições, isto é, quando, e se se verificar esse caso, e pauta a sua acção por critérios de eficácia.
Existe um outro aspecto de fundo: a sociedade dos nossos dias parece valorizar o indivíduo, em termos absolutos; a contribuição individual para o colectivo é, aparentemente, subordinada ao querer e ao interesse do indivíduo, num quadro onde os direitos apagam drasticamente os deveres. Isto existe apenas na aparência, não tem expressão no real, mas parece fazer parte do discurso pós-moderno, são ideias que têm muitos defensores e que fluiem nas sociedades dos nossos dias. Esta posição é contrária ao espírito do combatente, que actua de forma solidária em conformidade com a missão que lhe atribuem. Donde, a complexidade da formação.
No princípio do século passado, um poeta inglês perguntava: “Quem é o guerreiro feliz?” e respondia: “é um espírito generoso cujos esforços iluminam a sua trajectória de vida, ultrapassa a dor e o medo, renuncia à riqueza e ao sucesso material, é um espírito livre que em si mesmo possui o seu próprio desejo; é feliz porque é o próprio Homem, em si; a sua fama deriva de servir os outros e não a ele; portanto, a sua imortalidade está assegurada; no decurso da sua vida torna-se num sujeito conspícuo aos olhos da Nação.” Este poema, de que aqui se reproduz em tradução livre um pequeno excerto, é citado na actualidade, o que significa que continua a fazer algum sentido. Serve-nos para colocar a questão que acima se referia: que dificuldades existem hoje que levam a que não se siga à letra o conteúdo deste poema romântico? Já aflorámos dois tipos de proposições, genéricas, que prejudicam o conceito ancestral de combatente; passemos então a uma decomposição mais pragmática.
As novas formas que a guerra tem vindo a assumir nos últimos tempos produzem algum efeito na forma de estar ideal do combatente, pelo menos em dois aspectos que se contradizem: na criação da ideia que o combatente é um processador de informação num espaço de batalha cibernético, e na falta de humanidade do guerreiro totalitário, para usar a expressão de André Glucksman, o que mata por matar. O primeiro aspecto tem que ser contrariado com a ideia de que a Tecnologia é um instrumento, porventura indispensável nas guerras do presente e do futuro, que não transforma o combatente numa máquina mas que potencia as suas capacidades, combatente que continuará a ter emoções, a ter desejos e crenças, e a se mover por um código de conduta que se baseia em valores de humanidade. Dentro deste conceito de “processador de informação” está implícita uma direcção política mais próxima, uma confusão entre níveis - o político, o estratégico e o táctico aparecem muitas vezes misturados na avaliação das situações, no planeamento e na execução. Em consequência, verifica-se algumas vezes uma transferência da ambiguidade que já existe a outros níveis, para o nível da execução, uma ligação entre níveis mediada pela comunicação social, a tendência para se considerar o combatente como se fosse um autómato que aponta a arma para o alvo que o político lhe determina e que é liminarmente condenado quando não cumpre escrupulosamente os constrangimentos utópicos impostos.
O segundo aspecto exige uma formação ainda mais exigente, na medida em que apela à contenção da violência num quadro onde, do lado opositor, não existem condicionantes de qualquer natureza - é fundamental não assumir um quadro de barbárie, porque se assim fôr voltamos ao estado de natureza, à luta sangrenta de todos contra todos. Porque o combatente é um ser humano, é fácil passar esta barreira e cometer os excessos que o outro comete; as sociedades ocidentais, assim como a Instituição Militar, não aceitam este tipo de comportamento que qualificam como criminoso, e o opositor, conhecendo este facto, suscita, sem escrúpulos, a ocorrência de situações que forcem ao crime, como forma de enfraquecer aqueles que ele enfrenta - daí que se exija uma formação ainda mais aprofundada, em especial neste domínio, em moldes que não prejudiquem, de alguma forma, as capacidades, ou a eficácia militar. Neste quadro existe uma particularidade interessante, que é a crítica à Instituição Militar quando ela não é convocada para enfrentar a violência anárquica (“morrem mulheres e crianças, num autêntico genocídio, e os militares continuam a exibir as suas fardas de gala nas recepções oficiais, como se fossem estranhos à situação” - crítica feita por um ocidental à situação na República Democrática do Congo, a propósito da tragédia humana alí ocorrida hà uns anos atrás, sugerindo que o que se estaria a passar neste particular poderia ser generalizado a muitos outros países) esquecendo-se que a não convocatória, nestas situações, resulta, muitas vezes, de preconceitos assumidos pelo poder político relativamente à função militar (por exemplo, a associação de ameaça externa à função militar).
Algumas elites não aceitam a violência ou, se se quiser, a guerra, em qualquer situação, e como tal condenam qualquer acto violento, mesmo que seja executado para atingir um fim elevado, que tenha em vista a preservação ou a promoção da sociedade naquilo que ela mais valoriza, face a obstáculos ilegítimos. Mas, a violência existe, de facto, nunca se sabendo quando nos vem atingir, e muitas vezes resulta dum conflito que não se conseguiu resolver - o combatente, ou a Instituição onde se integra, não foi parte desse conflito, enquanto tal; foi a cúpula política que levou o conflito à situação de impasse, na defesa legítima dos valores da Nação, ou foi a ausência ou o fracasso do poder político que conduziu ao caos que importa reparar.
A negação da guerra, que não faz sentido porque ela existe, de facto, é substituida pela ideia difusa da guerra, pela declaração da impossibilidade (ou dificuldade) em a definir, dadas as múltiplas formas em que se pode manifestar. A identificação do combatente, nesta perspectiva, sai pouco definida, confundindo-o com outros actores que se movem por interesses particulares e que quebram todas as regras do combate tradicional, regras que decorreram duma experiência multisecular na resolução dos conflitos - as figuras que muitas vezes abusivamente se identificam como combatentes, como os piratas informáticos, os terroristas e outros, nada têm a ver com o combatente que aqui procuramos caracterizar.
Há ainda um outro factor que pode contribuir para uma ideia menos correcta quanto ao perfil do combatente: parece que se vai assumindo, pela experiência em alguns teatros de operações recentes, que a acção militar no terreno consiste apenas na presença dissuasora, na demonstração simbólica de força, no apoio as populações que são vítimas da violência, na imposição de alguma ordem no caos social - a possibilidade do combate parece estar muito distante, a aceitação de baixas situa-se a um nível mínimo, quase nulo, e daí se poderá extrair a conclusão errada de que a missão poderá ser sempre cumprida desta forma.
Estas posições, se eventualmente tiverem vencimento em sectores alargados da sociedade, corroem o sistema de valores do combatente, na medida em que este não “escuta”, ou não sente o apelo dos da sua comunidade para justificar a sua existência, ou a sua intervenção - apesar de, por formação, dever estar protegido do ambiente social mais agreste, é sempre desejável não existir dissonância entre o combatente e as forças sociais que o apoiam e que ele tem por missão proteger.
O ser humano tem vindo a ser construido, ao longo da sua história, segundo duas vertentes, aparentemente opostas: pela necessidade de afirmação e pela capacidade de sobrevivência. Ao mesmo tempo que nos afirmamos, segundo um desígnio valorativo, poderemos estar a criar uma situação de risco para o semelhante, que poderá ser agravada de acordo com o desejo, a vontade e a capacidade de afirmação de cada um deles.
O combatente, como qualquer outro ser humano, procura uma identidade que é derivada da sua actividade, daquilo que está pronto para fazer, actividade que deve ser valorizada, ou no mínimo entendida pelos outros.
Procuramos reconhecimento nos outros, valorizamo-nos quando nos valorizam. A realização do combatente existe quando existe conformidade entre o seu mundo interior, e a interpretação que faz da realidade que o envolve.
A sociedade dos nossos dias parece valorizar muito mais a vertente da sobrevivência do que a vertente da afirmação dos valores - são muitos mais os louvores para aqueles que conseguiram sobreviver, ou que foram forçados a viver em condições desumanas, independentemente do que realizaram, do que para aqueles que se mantiveram firmes na defesa dos valores e que o conseguiram, sem condicionarem o cumprimento da missão à sua própria sobrevivência. As sociedades tendem a construir uma cultura que honra mais os feridos e mortos da guerra do que a afirmação, a audácia e as proezas dos seus combatentes nos espaços de batalha, e tanto uns como outros deveriam merecer igual respeito. O acento tónico na vitimização faz reforçar a consciência das vulnerabilidades do combatente, o que o pode afastar da sua missão se a sua formação contiver falhas. Se existirem sinais de que o sacrifício do combatente não é assumido pela sociedade como um acto heróico relevante para a realização dos seus fins, seria muito natural que ele viesse a assumir que não valeria a pena arriscar a vida, em qualquer circunstância - a não consideração desta dialética levaria, a prazo mais ou menos dilatado, à morte dessa sociedade ou do seu regime político, porque nada justificaria o sacrifício; a confiança mútua, neste enquadramento, é fundamental para a sociedade e para o combatente. A necessidade da confiança também existe ao nível da unidade, do grupo ou da equipa, porque onde se instala a dúvida sobre o que se defende, e como se defende, a derrota estará garantida.
O combatente, na convicção de que está certo, terá que procurar formas para ultrapassar as dissonâncias entre os seus dois mundos. Uma vez mais, a formação é essencial.
Os poderes políticos da era em que vivemos parecem orientar-se, quase que exclusivamente, e de forma directa, para as matérias do corpo, para a melhoria do bem-estar, para os problemas da saúde humana, para a extensão da esperança de vida, e outras matérias afins. São mensagens deste teor que predominam na relação entre governantes e governados. A diferença em relação a um passado não muito distante é que então se considerava que o objectivo do Estado relativo ao bem-estar dos cidadãos passava, em primeiro lugar, pela preservação das unidades políticas na competição natural entre elas, donde a relevância do prestígio nacional, da honra nacional, do sentido da pertença a uma Nação, do objectivo distante do reconhecimento pelas outras Nações, como condições necessárias e suficientes para a realização do objectivo próximo do bem-estar e da justiça a nível interno. Se assim é, o bem-estar será colocado ao nível de valor absoluto, e o sacrifício deixará de fazer sentido. Se este fosse já o paradigma das sociedades mais desenvolvidas, a caminho da não-violência, não nos poderíamos alhear da evidência do rito violento noutras sociedades, e numa era de globalização não poderíamos escamotear a possibilidade do contacto com esses mundos violentos que em última análise, por hipótese absurda, nos aniquilariam no uso de métodos que a nossa Civilização teria banido de forma absoluta ou radical.
Por apelo, ou por circunstância, o combatente cria uma vocação, que é a característica que o distingue do cidadão que muito raramente se confronta com um problema de vida ou de morte, e que é a base onde assentam as suas capacidades técnicas e profissionais. Aquilo que liga o militar à sociedade que defende, é o seu juramento. A existência de um contrato, que a profissionalização maciça veio exigir, regula apenas a relação administrativa ou legal. O compromisso para a defesa dos valores nacionais é um juramento de honra, que não exige nada em troca, e que reflecte a alma, ou o espírito, do combatente - combater com o sacrifício da própria vida, se isso vier a ser exigido, em última instância, para a salvaguarda dos fins que a sociedade entende prosseguir, e do legado que os antepassados nos deixaram, em respeito por eles. A morte, nesta circunstância, será sempre uma afirmação da vida, pelo alto valor que se lhe atribui e pelo valor que se atribui àquilo que se defende. O combate tem assim uma associação ao sagrado e ao sacrifício, como decorre de tudo quanto foi dito até aqui.
O juramento é interiorizado pelo combatente mas também deverá ser compreendido pela sociedade, dado que o compromisso é celebrado perante a sociedade, para a sua continuação segundo a forma de vida que entende ser a mais digna. Aquilo que os combatentes pedem em troca é a confirmação da sua identidade na sua relação normal com a sociedade, em períodos de estabilidade social e política - é ainda aceitável que, nestas circunstâncias, a confirmação seja feita de forma difusa, desde que se possam interpretar os seus sinais num sentido positivo; contudo, em períodos de tensão, de crise ou na iminência de conflito, a confirmação deverá ser explícita e emocional, por forma a que se possa deduzir, de forma muito clara, que ela é inequívoca. Só assim o combatente procura o prémio desse reconhecimento, que é a vitória, qualquer que seja o seu significado, arriscando, de forma consciente, a sua própria vida. O combatente pode vir a ser desapossado do seu último valor que é a vida, que consagra à sociedade relevando assim o seu valor.
Considerações finais
Como qualquer outro ser humano, o combatente sente a necessidade de atribuir valores às coisas, aos resultados das situações, a si próprio e aos outros, e esta atribuição cria laços cuja força é proporcional aos objectivos do grupo, seja esse grupo a sua Nação, a sua unidade, a sua equipa, e é nesta perspectiva que se entende o sentido solidário e o empenho no cumprimento da missão que outros lhe atribuem e a que dão um valor elevado. O combatente é um instrumento dos fins mais valorizados das sociedades politicamente organizadas.
Tal como os indivíduos, também as Nações têm a sua identidade, que reflete a posição que julgam dever assumir no relacionamento com as outras Nações. Essa identidade resulta da sua História, dos seus mitos, da consciência do que representam, e do reconhecimento que os outros lhe atribuem por força das acções nacionais nesse sentido, na reivindicação desse reconhecimento. Cada Nação assume que deve ter um dado lugar, uma dada posição no Mundo, que é baseada na sua visão sobre esse Mundo e na consciência sobre as suas capacidades para sustentar, ou justificar essa posição. É desta concepção dos outros e de nós próprios que nascem os nossos códigos, que se fabricam as nossas crenças e que se estabelecem as nossas convenções, que se define o interesse comum, o bem colectivo e o interesse do Estado. E é daqui que nasce o código do combatente, a subordinação da sua vontade individual ao interesse do colectivo, a consciência da existência de valores que o transcendem e que considera que devam ser defendidos com os sacrifícios inerentes.
O problema maior do combatente é sentir-se alienado da sociedade, porque a sua forma de estar, por natureza, é difícil de conciliar com o carácter tendencialmente utilitarista das sociedades contemporâneas - quando os valores são sempre relativizados, quando não há, de entre eles, nada que seja absoluto, não pode haver glória, porque a satisfação com o seu alcance é indiferente da insatisfação do seu fracasso, e sem a perspectiva de glória a alma do combatente sente-se diminuida - esta desvalorização corresponde a uma diminuição do valor instrumental da sua realização. O combatente quer acreditar que esta posição que a sociedade parece assumir na actualidade, tem um carácter estratégico, é o resultado de um receio de que o combatente goste demasiado da guerra e que a arraste para situações de confronto que, no entender dessas sociedades poderiam ser resolvidas pela via negocial pacífica, isto é, tem receio de ficar refém do seu braço armado, ou das suas posições afirmativas - o combatente pode viver com esta situação, ou deve viver com ela, desde que não fira a sua alma, o seu espírito, desde que sejam inventados mecanismos que salvaguardem o seu sistema de valores, a sua forma de estar.
Um dos aspectos que leva ao repúdio absoluto da guerra é o seu cortejo de horrores. Na realidade, é este carácter que exerce uma função dissuasora: se a guerra fosse apenas uma demonstração de força, ou um confronto de inteligências, ou um duelo entre forças militares sem efeitos colaterais na população civil, se fosse uma acção limpa, provavelmente recorrer-se-ia a ela com muito mais frequência. Contudo, a capacidade dissuasora tem limites: quando estão em causa questões sobre valores irredutíveis, ou quando o respeito pela vida humana é muito baixo, os actores políticos não hesitam em recorrer à guerra, independentemente das consequências sangrentas que essas decisões implicam. O papel do combatente, nesta circunstância, é não ignorar que estas situações existem realmente, e encará-las de frente, evitando embarcar ou contagiar-se por esse ambiente desumano sem prejuizo do cumprimento da sua missão. É neste quadro que o combatente deverá ser julgado, louvando a sua iniciativa em defesa dos outros, e sabendo apreciar que a sua afirmação pode levar à anulação dos seus opositores, de forma controlada, ou seja, na justa medida das necessidades impostas pelo cumprimento da sua missão. As condicionantes que hoje são impostas ao combatente, em especial as ameaças de julgamentos parciais (na medida em que apenas valorizem uma das partes desta dialética e desvalorizem os contextos onde as acções forem praticadas), e as instrumentalidades da guerra, criam um outro género de dificuldades ao combatente e podem tender a desvalorizar o seu papel, tanto nas situações de estabilidade social e política, como no escrutínio pós-missão. A guerra assimétrica, que veio desregular o combate, torna esta questão ainda mais grave, porque a assimetria reside, essencialmente, no valor desiquilibrado que cada uma das partes atribui à vida humana, e na consequente ausência de regras. A utilização de escudos humanos, os ataques a populações indefesas, a criação de condições artificiais que levem à quebra de regras por parte daqueles que têm preocupações éticas, para provocar choque nas opiniões públicas, são alguns dos exemplos das assimetrias que se praticam actualmente.
O combatente presta um juramento perante a sociedade que serve, o conjunto dos cidadãos, não se restringindo portanto à sua unidade ou ao Ramo das Forças Armadas a que pertence, ou a qualquer serviço ou agência do Estado, criando por esse acto solene uma confiança mútua que é fundamental para a definição do seu comportamento. É por isto que não faz sentido colocar o conjunto dos combatentes num compartimento fechado, à margem do conjunto social, sem prejuizo das relações institucionais que deverão existir na mediação com a sociedade, e da necessidade de alguma distanciação, como já foi referido. Neste contexto, o combatente tem uma responsabilidade moral, no âmbito da qual orienta todas as suas actividades, e cuja expressão constitui o seu código de honra - a aderência ao juramento é uma questão de consciência e não uma questão legal ou administrativa.
Existe uma diferença entre a consciência moral individual e o sentido do dever. Enquanto o primeiro é essencialmente originado por ele próprio, por vocação ou interiorização pela formação, o segundo é determinado pelo exterior através das regras que lhe são impostas e a que ele adere de forma consciente. O sentido do dever não esmaga a consciência individual, antes a amplifica - quando a ordem externa chega, na sua consciência já está criado o sentimento de que a sua actividade deverá ser feita com outros e para os outros, e o que a ordem traz de novo é a definição do circunstancialismo e do modo como a actividade deverá ser desenvolvida; por outro lado, a norma que estabelece o dever faz reavivar, criar, iluminar a consciência individual.
As regras que definem o dever correspondem à moralidade social onde a moral individual se integra, com a qual interage, isto é, o combatente enquadra o seu comportamento individual para atingir os fins da forma que a sociedade pretende que ele alcance, mas ao fazê-lo constitui-se como exemplo para o conjunto social, desenvolve aquela moral social.
Os deveres e a consciência moral não dizem apenas respeito ao alcance de objectivos, têm também a ver com a forma como se trata o inimigo, com o respeito pela sua dignidade humana, porque o combatente tem a consciência de que os seus actos têm uma consequência moral no contexto onde actua, e é formado para ganhar a percepção onde deverá terminar o acto violento, contendo o efeito de contágio ou de reflectividade e evitando a violência pela violência. Para além disso, a desvalorização do inimigo, como ser humano, desvaloriza o próprio combatente - não pode haver honra na vitória quando se despreza o inimigo. Quando o inimigo vive num estado de natureza, onde a violência se entende como elemento estruturante ou constitutivo do ser humano, a contenção do bárbaro pelo civilizado exige ainda muito mais do combatente, num quadro moral de realização de objectivos, onde a estratégia da sobrevivência poderá vir a ser relevante.
O combatente desenvolve as suas actividades numa dada estrutura, segundo uma dada hierarquia. A sociedade cria e distribui papéis a cada corpo, e dentro de cada corpo a cada indivíduo, que têm a ver com os fins esperados das suas actividades; a esta definição estão associadas regras de comportamento moral a que cada agente se deverá submeter. O que é peculiar no caso do combatente é que para o desempenho desse papel poderão ser exigidos sacrifícios que não serão considerados como normais para o comum dos cidadãos, em vida normal, arriscando a vida no cumprimento de um ideal. As ordens dadas ao combatente corresponderão sempre à salvaguarda de valores essenciais, e nunca de interesses particulares por mais legítimos que sejam. Por isso, é esperado que o combatente possa vir a cumprir para além do dever. Por outro lado, e para que este processo se possa materializar segundo esta base, ou fundamentação, é exigido que a ordem não contenha elementos de ambiguidade, ainda que possa ser incompleta ou insuficiente quanto às formas, não quanto aos objectivos ou aos fins a atingir.
O combatente tem a responsabilidade primária de garantir que a guerra seja uma actividade moral.
Os combatentes portugueses foram chamados a combater em África, durante mais de treze anos no século passado, e aí demonstraram o seu valor ético. A História os julgará. No fim da guerra, as vozes que os combatentes ouviram, provenientes dos pequenos grupos sociais que então tinham tempo de antena, desproporcionado em relação à sua dimensão, importância e representatividade, foram de condenação pela participação em geral, e por atrocidades cometidas, em particular, com acusações infundadas na sua esmagadora maioria. Felizmente que ao fim de todo este tempo, o reconhecimento começa a surgir. Levou muito tempo, muito mais do que aquele que levou o antigo inimigo a sugerir projectos de cooperação na área militar. Como se referiu, o combatente também tem que estar preparado para enfrentar este género de situações.
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* Este artigo foi escrito para ser incluido num livro sobre a História dos Encontros Nacionais dos Combatentes, editado pela Comissão promotora desses encontros.
** Vice-Presidente da Assembleia Geral da Revista Militar.