Nº 2507 - Dezembro de 2010
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
2008 - Lições militares das últimas campanhas do Império (1961-1975)
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento
Encontros da Revista Militar - 2008
 

“A Última Campanha do Império - 1961-1974”

 
 
Conclusões e Encerramento[1]
 
Ao entrarmos na última sessão - Conclusões e Encerramento - começo com algo que não deveria fazer, porque também sou parte da Revista Militar. Felicito a Revista por esta iniciativa que, na linha do pensamento dos seus fundadores, em 1848, de discutir e propagar assuntos militares, promoveu este Encontro. Confronto da experiência com a curiosidade, do falar da geração que fez a Guerra de África (61/74) e o ouvir da geração dos futuros quadros, em que o fosso de idades e de experiência é transposto pelo mesmo elevado espírito de servir o nosso País na Instituição Militar, laço muito forte que nos irmana.
 
Das várias conclusões e ensinamentos, alguns já apresentados quando das intervenções, vamos sublinhar aqueles que, numa óptica pessoal, nos parecem mais importantes, mas antecedendo-os de duas notas prévias. Na sessão de abertura o General CEMGFA avançou com algumas das conclusões da jornada, antes mesmo das intervenções... que quer isto dizer? Primeiro, que mesmo não havendo uma perfeita identidade de pontos de vista entre aqueles que fizeram a guerra, há ideias que colhem um certo consenso; segundo, que quando existe um propósito pedagógico tende a emergir a unidade da doutrina. A outra nota prévia é acerca da pergunta aqui formulada, saber se a guerra de África (61/74) foi ou não uma guerra justa. Para além das respostas que na altura foram dadas, quero lembrar que Maquiavel dizia que a guerra justa é a que é necessária. Esta sentença eminentemente pragmática leva-nos a dizer que, nesta óptica, para o inimigo a guerra era justa porque não parecia haver outra forma de ele conseguir a autodeterminação dos territórios; para nós, portugueses, também era justa porque inicialmente foi necessário contrariar a violência e o terror que os movimentos de libertação desencadearam e porque era necessário proteger as populações. Mas se pensarmos que o poder político poderia, precocemente, avisadamente, antes de 1961, ter encontrado uma solução política que evitasse o conflito, que mais ou menos promovido e apoiado pelo exterior iria com elevada probabilidade acontecer, a guerra foi portanto desnecessária, logo injusta. Aliás, lembrando algo mais moderno, a crítica que hoje se faz à intervenção dos EUA no Iraque, é que não tendo existido as razões que foram invocadas para tal acção militar (o que deveria ter evitado a guerra), esta foi desnecessária, logo injusta.
 
 
1ª Conclusão: A clara subordinação da Estratégia à Política
 
Relembrando a máxima de Clausewitz de que a Guerra é a continuação da política por outros meios, há três observações a fazer:
A primeira é o inicial erro de entendimento da situação. Há alguns anos Norman Dixon escreveu um livro que em português recebeu o título de Psicologia da Incompetência dos Militares. Este título denota já aquela animosidade que a dita inteligentzia nacional tem aos militares, porque a Military Incompetence do título original é incompetência militar, já que na actividade militar, como em todas, há competência e incompetência; military incompetence não é a incompetência dos militares, generalizada, como o título em português sugere. Mas para o autor (e damos-lhe razão), a incompetência derivava, em parte, da tendência em se ouvir apenas as informações desejadas e em rejeitar as que contrariam ideias instaladas. Com efeito, este erro pode ser visto por vezes na estratégia, particularmente, ao alto nível, ao nível político. No nosso caso, as informações que se obtinham, no final dos anos 50 e início dos anos 60, indicavam que o exemplo das descolonizações contagiaria as elites dos nossos territórios africanos, que a subversão despontava e crescia e, com elevada probabilidade, iria originar a violência; a ideia instalada era a de que a situação era diferente da das colónias dos outros países europeus, já que a nossa colonização tinha um carácter mais humano, menos explorador. Era de facto diferente, mas não o suficiente para que a violência e a guerra não viessem a eclodir.
A segunda observação é a de que nós, Instituição Militar, somos instrumento da Política. Como instrumento da política recebemos dela (com carências e restrições) uma certa atenção para as necessidades militares. Mas à política faltou a visão de que o problema não se resolvia pelo uso do aparelho militar; que as componentes política, económica e social eram muito importantes; que a solução do problema não era estritamente militar, mas fundamentalmente política. Quando na final da década de 60 se pensou em inflectir a política, de que a expressão evolução na continuidade é a prova, era já tarde e foi muito mais continuidade do que evolução...
A terceira observação é a de que a ambição foi maior que o braço armado. Lembrando a principal Lei da Estratégia - adequada relação entre meios e objectivos - para o nosso caso só havia duas soluções: ou dispor de meios muito numerosos e caros, que só possivelmente as superpotências tinham (de facto o direito à autodeterminação não se concretizou em nenhum território dos EUA e da URSS); ou encontrar objectivos mais modestos do que o Portugal uno e indivisível, como seria, por exemplo, a autonomia das parcelas.
 
Note-se, porém, que o facto de a ambição ser maior do que o braço armado não começou em 1961... Já tinha sido visto em várias ocasiões: no Império do Oriente, no século XVI e XVII, quando este começou a ser contestado, pelas armas, por holandeses e ingleses; no século XIX, no Império de África, no “mapa-cor-de-rosa”, consequência da Conferência de Berlim e do “apetite” das potências europeias. Aqui no século XX, a contestação vinha das superpotências que queriam estender a África as suas áreas de influência, da voz do terceiro mundo após Bandung e da opinião pública mundial.
 
 
2ª Conclusão: A importância das manobras da Estratégia estrutural, genética e operacional
 
Porque a principal base de recursos essenciais era distante e limitada - Portugal Continental; porque o espaço de desenvolvimento da acção militar era muito vasto e a grandes distâncias das Metrópole; porque havia uma enorme diversidade geográfica, física e humana, com múltiplas etnias e religiões; porque era notória a variedade de condições entre os TO e mesmo dentro destes; porque o conflito foi muito prolongado, num quadro de escassez de recursos, continuidade de esforço e até, por vezes, com escalada da acção inimiga, como foi evidente na Guiné; porque havia um apoio continuado e crescente às forças inimigas por parte da URSS e dos países satélites, nos campos ideológico, político e material - por todas estas circunstâncias houve que evoluir, adaptar, criar uma certa variedade de forças, meios e missões.
 
Assim, foi necessário fazer adaptações nas estruturas de comando, nos dispositivos, na estrutura e normas logísticas, na actividade operacional; foi despendida anualmente uma elevada percentagem do PIB; houve que alargar a base de recursos humanos; foi recebido apoio de países vizinhos como a RAS e a Rodésia. Tudo isto exigiu quadros preparados e sucessivamente mais experientes, elevada imaginação e a exploração das nossas potencialidades com destaque para a capacidade de adaptação e improviso.
 
 
3ª Conclusão: As nossas Forças Armadas cumpriram
 
As nossas FA cumpriram as missões que lhes foram determinadas, demonstrando:
- Disponibilidade, espírito de missão e espírito de sacrifício, que fazendo parte da condição militar a que os seus elementos estão vinculados, devem no entanto sublinhar-se, visto termos um exército baseado no serviço militar obrigatório;
- Capacidade de aptidão e engenho que permitiram a adaptação a condições de vida frequentemente muito exigentes e a um continuado aperfeiçoamento da doutrina, acção notável que ficou registada nos volumes do Regulamento do Exército na Guerra Subversiva e na publicação “Experiência de todos para todos”; além disto, foram encontradas novas soluções para a organização (unidades elementares), para as acções tácticas e logísticas;
- Uma grande aptidão para o contacto com as populações, essencial neste tipo de guerra;
- Uma utilização eficaz dos meios disponíveis.
 
Para a utilização destas potencialidades e valores concorriam de forma definitiva o empenhamento e saber dos quadros a as qualidades militares do soldado português, a sua rusticidade, desembaraço e solidariedade.
As nossas Forças Armadas cumpriram, e cumpriram bem.
 
 
4ª Conclusão: Sendo o esforço da guerra efectuado na manobra terrestre, dada a necessidade de controlar o território, ocupar terreno e controlar populações. Deve no entanto sublinhar-se a acção conjunta das Forças Armadas.
 
É importante realçar este ponto, porque sendo frequente o esforço recair sobre as forças terrestres (nas actuais missões de apoio à paz continua a ser assim), no nosso País, mais do que noutros, há um grande antagonismo entre os Ramos, com disputas “paroquiais”, de protagonismo e poder, em que se chega a perder de vista o primado do interesse nacional, o que é inconcebível. Porém, nos 13 anos da guerra, porque a ameaça era clara, a necessidade de defesa evidente e a oportunidade e eficácia das acções era imperativa, convergiram as vontades, o sentido de missão, os esforços, as soluções imaginadas para que as missões fossem cumpridas da melhor forma.
 
Pelas características dos TO a cooperação na manobra aero-terrestre foi mais evidente, mas existiu acção coordenada e cooperação entre os três Ramos e o empenhamento foi tal que a Marinha e a Força Aérea até desenvolveram forças para a manobra terrestre.
 
A lição que deveremos tirar é a de que, em tempo de paz, para além das missões gerais que a lei exige aos Ramos, o poder político tem que dizer com clareza o que quer das Forças Armadas; quais os cenários em que prevê a sua intervenção; e qual o grau de empenhamento que deseja fazer. Se isto for feito não haverá “guerrilha” entre os Ramos e cada um estará preparado para dar o seu contributo na manobra conjunta que for determinada.
 
 
5ª Conclusão: Há ensinamentos importantes a tirar
 
Ainda que as Forças Armadas tenham que estar preparadas para actuar em conflitos de alta intensidade, porque é hoje frequente a participação das nossas forças em conflitos de média e baixa densidade, com semelhanças com aquele que vivemos em África de 1961 a 1974, é importante colher nele ensinamentos em diversas áreas, dos aspectos positivos aos negativos. Entre outros, refere-se os seguintes:
- A preparação das forças;
- A projecção das forças;
- A dependência operacional das unidades;
- As missões de quadrícula e de intervenção;
- As formas de apoio logístico;
- O ambiente subversivo;
- O apoio aéreo;
- O conhecimento das populações (características, estado de espírito, carências, etc.);
- Formas de acção do inimigo;
- Apoio da retaguarda, moral das tropas, etc..
 
Porque grande parte da preparação dos quadros visa o exercício do comando; porque comando é autoridade, isto é, a capacidade estatutária de se ser obedecido, que é um poder enorme; porque grande parte da autoridade tem suporte no saber; por tudo isto, reflectir sobre a experiência da Guerra de África de 1961/1974 pode ser um valioso contributo para um melhor desempenho dos quadros nas actuais missões.
 
 
6ª Conclusão: O que se passou hoje aqui merece uma atenção especial
 
Esta Sessão merece uma atenção especial porque há duas razões que fazem com que esta ocasião seja, de certo modo, rara. A primeira razão é que depois de 1975 as nossas Forças Armadas regressaram ao quadro dos conflitos convencionais, que passaram a reter a nossa atenção e orientaram a doutrina, o ensino militar aos diversos níveis, o treino operacional. A segunda razão é que apesar de os subordinados e instruendos pedirem por vezes aos militares desta geração que falassem da sua experiência, houve de um modo geral um certo constrangimento, um certo pudor, porque o saldo da guerra, do esforço despendido, foi negativo e porque há perguntas perturbadoras para as quais não encontramos respostas satisfatórias.
 
Porque morreram os nossos camaradas? Para quê? Porque ficaram tantos incapacitados? Para quê? Porque razão morreram homens que comandámos? Para quê? As respostas, tais como, cumprimos o nosso juramento, demos o melhor de nós, protegemos as populações, demos tempo à política para encontrar uma solução, sendo verdade, são também pouco convincentes. Note-se que este sentimento é vulgar em todas as Forças Armadas que na guerra viram o seu esforço e sacrifício ser desaproveitado, o problema é que neste caso isso passou-se connosco.
 
Tudo isto se liga, aliás, à ideia de Clausewitz de que na guerra não há uma “lógica”, mas há uma “gramática”. A falta de “lógica” sucede porque, não havendo dois vencedores, no mínimo um deles cometeu um erro de cálculo ao fazê-la ou ao prolongá-la; mas há uma “gramática”, porque há regras que devem ser entendidas e praticadas. Hoje, aqui, invocando a experiência, aflorou-se a falta de “lógica” e falou-se da “gramática”, mas o que se passou merece também a vossa atenção, porque sendo o cumprimento do dever e das missões determinante da nossa actuação e a disciplina a “pedra de toque” da eficácia dos exércitos, isto não nos impede de pensar e de sentir. Ao contrário dessa boutade anti-militar de que pensar é a primeira forma de indisciplina, ao expressarmos o nosso pensamento e os nossos sentimentos apenas estamos a afirmar que somos conscientemente militares, mas que também somos humanos, e que por muito sofisticados que sejam os Exércitos, o que nós comandamos são homens e mulheres.
 

*      Presidente da Assembleia-Geral da Revista Militar.
[1] Aproximação escrita daquilo que se apresentou oralmente.
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