Pirataria no Oceano Índico. Algumas questões jurídicas.
Quando, em Abril de 2008, o iate Le Ponant foi objecto dum ataque de pirataria, mediatizado pela intervenção pessoal do Presidente francês Nicolas Sarkozy, o mundo acordou para uma realidade que afinal sempre estivera bem patente: a pirataria não era um fenómeno historicamente superado, nem estava confinada apenas a ser trama de um daqueles filmes de “capa e espada” que alimentam o nosso romântico imaginário de aventuras. Pelo contrário, piratas continuam a atacar embarcações mercantes ou de recreio, pondo em risco vidas e bens alheios.
Na verdade, o
Jolly Roger [2] nunca foi arreado, pois, desde os confins dos tempos e até ao presente, nalgum ponto do planeta, nalgum momento, alguma embarcação foi alvo de um ataque de piratas. E não é de estranhar que assim seja, atendendo aos ingredientes do caldo de cultura em que a pirataria se desenvolve e que tão frequentemente se reúnem: vazio de poder ou tibieza no exercício da autoridade, ineficiente presença naval, pobreza e restrições ao livre comércio. Associados a estes podem surgir outros factores, como insuficiência ou ineficácia dos instrumentos legais, condições geográficas favoráveis, aceitação cultural, expectativa de lucro, alteração da ordem pública, bem como um ambiente politicamente permissivo.
Modernamente, a estes aspectos comuns somam-se ainda as causas específicas do mais recente ressurgimento da pirataria. Depois da contenção que se logrou durante a II Guerra Mundial e a Guerra Fria, mercê da forte presença naval das potências, respectivamente, beligerantes e hegemónicas, o fenómeno eclodiu com maior intensidade, devido ao fim da Guerra Fria e às novas realidades comummente caracterizadas como Sociedade de Informação e Globalização. De facto, a velocidade de circulação da informação e a crescente difusão da sua acessibilidade beneficiam também os piratas que, já não se contentando com um pequeno botim, recorrem às novas tecnologias, conhecem o Direito, estabelecem bons contactos, trabalham em rede e organizam-se sob modelos empresariais. Por sua vez, a Globalização tem intensificado a interdependência energética e alimentar, o que acrescenta importância e peso ao sector dos transportes. O aumento do tráfego de mercadorias, especialmente na componente marítima, gera uma maior pressão da concorrência, que obriga à redução dos custos de transporte
[3] e mesmo a uma “guerra de fretes”.
No caso concreto da pirataria somali que recentemente eclodiu e se tem desenvolvido no Oceano Índico, concretamente entre o estreito de Bab-el-Mandab, o Golfo de Aden e a Bacia da Somália, serão de adicionar mais três causas específicas:
i) A instabilidade política que, desde 1991, se instalou na Somália mergulhou o país numa profunda anarquia, atirando-o para uma guerra civil entre clãs e transformando-o num Estado falhado. Ao agravamento da crise política somali tão pouco foi alheia a ingerência política ocidental, justificada pelo alegado receio de talibanização da região e concretizada pelo apoio do Presidente norte-americano George W. Bush à invasão etíope que, em 2006, derrubou o governo da União das Cortes Islâmicas. Daqui resultou a eclosão de várias modalidades de criminalidade e de actividades ilícitas - entre as quais a pirataria - pois o governo anterior ia mantendo alguma ordem pela implacável aplicação da Sharia.
ii) Para além da ingerência política do Mundo Ocidental, há que não obnubilar as consequências nefastas do ilegítimo aproveitamento económico do mar sob soberania e jurisdição somali: a pesca clandestina e depredatória em águas somalis, levada a cabo, há vários anos, por embarcações pesqueiras europeias e asiáticas, conduziu ao esgotamento dos
stocks ícticos, deixando sem trabalho nem rendimentos uma larga maioria da população somali, tradicionalmente dedicada ao sector da pesca. Acresce que os recursos pesqueiros somalis também diminuíram pelo vazamento de lixo tóxico (sobretudo de origem hospitalar) e nuclear nas águas ao largo da Somália
[4], no qual estarão envolvidos interesses económicos europeus com provável ligação à
Cosa Nostra e a outras redes de crime organizado.
iii) E, finalmente, a pobreza - sempre a pobreza - que, na Somália, atinge dimensões arrepiantes: 90% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Praticamente não há actividade económica nem emprego fora das florescentes “empresas” ilícitas e criminosas que estão, é certo, criando uma pequena - mas já pujante - classe de jovens milionários, mas que contribuem para o agravamento inexorável das condições de vida da esmagadora maioria da população e para o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres.
Em rigor, esta “nova” pirataria é uma realidade mais fluida e difícil de combater do que a outrora existente. Para tanto contribuem várias circunstâncias:
- Pese embora a antiguidade da condenação da sua prática, considerada, desde sempre, um flagelo para a navegação, a pirataria ainda não é objecto de censura universal e subsistem concepções, se não favoráveis, pelo menos permissivas a seu respeito. Note-se que a pirataria é endémica em numerosas regiões do Mundo, chegando a ser encarada como uma opção profissional ou como o seguimento da tradição familiar.
- À reduzida punição que a pirataria tem merecido nestas últimas décadas não será alheia a baixa percentagem de denúncia de incidentes de pirataria. Efectivamente, os armadores, operadores e comandantes dos navios evitam participar eventuais ataques às autoridades oficiais competentes e às companhias de seguros, para poupar dias de inactividade do navio e da tripulação para as peritagens de polícia científica e outras formalidades legais, bem como para não fazer aumentar o prémio de seguro e não abalar a confiança dos carregadores seus clientes. Daqui resulta não só um falseamento estatístico dessa actividade ilícita, como, sobretudo, uma tácita facilitação da pirataria pelas próprias vítimas, que, para cúmulo, descuram amiúde a necessidade de planos de protecção e de meios de segurança a bordo. Logo, a pirataria é uma actividade de baixo risco.
- Se associarmos o facto de os piratas usarem muitos dos bens roubados (embarcações, aprestos, equipamentos electrónicos) na sua empresa criminosa, temos que a pirataria é igualmente uma actividade de baixo custo e elevada rentabilidade.
- De tudo isto decorre que é a sociedade global que, em última análise, sustenta os piratas, “fornecendo-lhes”, a custo muito reduzido, os bens de que necessitam para a sua actividade. E é também a Comunidade Internacional que financia a pirataria através das avultadas somas que os armadores pagam para resgate dos seus navios, mercadorias e tripulações e que acabam por ser repercutidas nos custos de transporte e, a final, nos preços dos bens ao consumidor.
- Ontem como hoje, a pirataria constitui uma ameaça global à segurança e liberdade de uso do mar. Todavia, actualmente a gravidade da ameaça é potenciada pelos possíveis riscos ambientais. Recorde-se a este propósito os fundados receios de que os piratas fizessem explodir ou naufragar o
Sirius Star [5], então carregado com cerca de 320.000 m
3 [6] de crude.
Do exposto resulta evidente a repercussão negativa que a pirataria tem na economia mundial, o que, de resto, já acontecia desde os tempos mais remotos. Tão pouco é inédita a associação da pirataria a outras actividade ilícitas e criminosas. Ao longo da História, frequentemente os piratas apareceram conluiados com traficantes de armas e de escravos. Hoje esta circunstância poderá ser mais grave, porquanto existe uma razoável convicção da ligação ao terrorismo internacional e a redes de crime organizado e transnacional.
2. O Direito no combate à pirataria
2.1. O Direito Internacional
Se é certo que a pirataria sempre existiu como séria ameaça ao tráfego marítimo, desde os alvores da História vem sendo combatida, designadamente através de mecanismos jurídicos. No século I a.C. a República Romana declarou essa actividade como hostes humani generis (inimiga do género humano). Na Baixa Idade Média, a Lex Mercatoria reunia um conjunto de normas de condenação e repressão de tal prática criminosa, mais tarde reunidas e consideradas por Grotius, em 1609, no seu “Princípio da Liberdade dos Mares”. Finalmente, na Convenção de Genebra sobre o Alto Mar de 1958 são positivadas normas de definição, prevenção e repressão da pirataria no Alto Mar.
2.1.1. A UNCLOS
Na sequência das Convenções de Genebra de 1958 e como consequência das alterações verificadas no xadrez internacional, as Nações Unidas convocaram a III Conferência sobre o Direito do Mar, que assinou, a 10/12/1982, em Montego Bay, o Acto Final contendo o texto da
United Nations Conference on the Law of the Sea (UNCLOS)
[7]. Pese embora não ter logrado ser uma verdadeira “constituição do mar”, por lhe falhar o objectivo unificador almejado, é, na verdade, o grande pilar do Direito Internacional Marítimo. O seu texto está longe de ser consensual, mas resultou do compromisso possível entre Estados com interesses diferentes ou mesmo opostos.
No que respeita à pirataria, a UNCLOS insere-a na sua Parte VII (Alto Mar), juntamente com outras excepções ao princípio da liberdade do Alto Mar. Dedica-lhe os artigos 100º a 107º, nos quais, nomeadamente, define o seu conceito e impõe aos Estados o dever de cooperarem na sua repressão, autorizando o apresamento de naves piratas e permitindo que os Estados possam exercer a sua jurisdição penal sobre os autores de actos de pirataria
[8]. Não cabe aqui analisar todas e cada uma destas oito disposições legais, mas atente-se ao teor do artigo 101º, no qual se encontra a única definição de pirataria em sede de Direito Internacional vigente:
«Constituem pirataria quaisquer dos seguintes actos:
a) Todo o acto ilícito de violência ou de detenção ou todo o acto de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra:
i) Um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos;
ii) Um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado.
b) Todo o acto de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de factos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o carácter de navio ou aeronave pirata;
c) Toda a acção que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos actos enunciados na alínea a) ou b).»
Já os romanos alertavam para que toda a definição é perigosa e, em rigor, esta parece padecer de uma grave insuficiência: a da excessiva restrição do âmbito geográfico. Com efeito, esta formulação exclui que, conceptualmente, possa existir pirataria fora do Alto Mar, de lugares não submetidos à jurisdição de algum Estado
[9] e da Zona Económica Exclusiva (ZEE)
[10]. Se, por um lado, se entende que a UNCLOS não tenha querido imiscuir-se nas opções de natureza criminal dos Estados ribeirinhos, deixando a estes a tipificação penal dos actos cometidos nas águas sob sua soberania, por outro, teria sido preferível que a Convenção, atento o seu objectivo unificador, tivesse definido o conceito de pirataria, enquanto actividade ilícita ou criminosa, em termos gerais e abstraindo do espaço marítimo em que é praticada. Esta excessiva restrição permite aos piratas fugirem para as águas territoriais dos Estados que não punem os seus crimes, subtraindo-se ao Direito Internacional.
Ora, a exclusão do âmbito conceptual da pirataria a que são votados todos os actos materiais equivalentes
[11] perpetrados nas águas interiores, territoriais e arquipelágicas leva a uma esquizofrenia conceptual, porquanto um Estado que tenha ratificado a Convenção condena a pirataria em Alto Mar
[12], mas pode não puni-la quando praticada nas suas próprias águas. Ora, se se tiver em conta que a esmagadora maioria dos actos materiais de pirataria (assaltos à mão armada contra navios) é praticada em águas territoriais, verifica-se que um enorme número de ataques poderá escapar às malhas da Lei, se o Estado ribeirinho entender não dever penalizá-los, o que, por sua vez, contribui para a insegurança do tráfego marítimo em geral
[13].
A esta limitação da definição legal da pirataria, acresce a ineficiência do regime jurídico previsto na UNCLOS, que resulta particularmente clara do confronto entre o teor dos artigos 100º e 105º. Vejamos:
«Artigo 100º
Todos os Estados
devem cooperar em toda a medida do possível na repressão da pirataria no alto mar ou em qualquer outro lugar que não se encontre sob a jurisdição de algum Estado.»
[14]«Artigo 105º
Todo o Estado
pode apresar no alto mar ou em qualquer outro lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado, um navio ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturados por actos de pirataria e em poder dos piratas e prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou dessa aeronave. Os tribunais do Estado que efectuou o apresamento
podem decidir as penas a aplicar e as medidas a tomar no que se refere aos navios, às aeronaves ou aos bens sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé.»
[15]
Assim, a atribuição aos Estados de uma competência penal meramente facultativa relativamente a actos de pirataria em Alto Mar, em lugares não submetidos à jurisdição de algum Estado e na própria ZEE, (artigo 105º) retira eficácia e capacidade de concretização à obrigação que lhes é genericamente imposta de reprimir tal actividade ilícita para defesa desses espaços marítimos dos piratas (artigo 100º).
2.1.2. Outros instrumentos de Direito Internacional
Sem prejuízo - e antes em reforço - da UNCLOS, existem alguns instrumentos de Direito Internacional, que ultimamente têm sido implementados com vista à prevenção e/ou à repressão da pirataria. Entre estes, são de salientar dois acordos regionais que têm logrado obter excelentes resultados na sua área geográfica de aplicação:
i) O
Malacca State Sea Patrol Arrangement, firmado, em Julho de 2004, pelos governos da Indonésia, Malásia e Singapura (e a que a Tailândia aderiu em meados de 2009), tem contribuído para uma drástica redução dos incidentes de pirataria no Estreito de Malaca
[16], desde sempre fustigado por ataques que punham em perigo uma das mais importantes vias marítimas de transporte de mercadorias
[17].
ii) O
Regional Cooperation Agreement on Combating Piracy and Armed Robbery (ReCAAP), assinado por 16 países
[18], em Tóquio, em Novembro de 2004, por seu turno, foi o primeiro acordo inter-governamental regional para combate à pirataria na Ásia e a sua eficácia está demonstrada nos mais recentes
Annual Reports do IMB.
Para além destes acordos de âmbito regional, de duração ilimitada, são de evidenciar algumas medidas de carácter pontual, para áreas geograficamente circunscritas e de vigência previsivelmente limitada. É o caso da Acção Comum 2008/851/PESC, de Novembro de 2008, pela qual a União Europeia (UE) aprovou uma operação militar conjunta para prevenção e repressão de actos de pirataria e assalto à mão armada contra navios ao largo da costa da Somália. Desde então, a UE tem emitido outras decisões e celebrado acordos bilaterais com países terceiros no âmbito da referida acção militar conjunta denominada “EUNavFor Somália - Operação Atalanta”.
Também o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), com a concordância do Governo Federal de Transição da Somália, aprovou várias Resoluções
[19], permitindo a entrada no mar territorial somali, a fim de prevenir e reprimir os actos de pirataria perpetrados ou tentados ao largo desse país. Apoiada nestas Resoluções, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) desenvolveu as operações “
Allied Provider” (Outubro a Dezembro 2008), “
Allied Protector” (Março a Agosto 2009) e “
Ocean Shield” (iniciada em Agosto 2009 e prevista até finais de 2012)
[20] [21].
E as Convenções SUA de 1988 e de 2005 serão de integrar neste elenco?
A Convenção SUA (
Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Maritime Navigation [22]) e seu Protocolo de 1988 foram inspirados pelo sequestro do paquete italiano
Acchile Lauro [23]. A circunstância de não ter sido usada uma outra embarcação ou aeronave e o facto de os sequestradores terem objectivos de natureza política impedia que se considerasse tal incidente como sendo pirataria, tratando-se antes de um acto de terrorismo marítimo, que merecia um tratamento específico e aprofundado. Mais tarde, também sob os auspícios da IMO, foi adoptado o texto da Convenção SUA 2005 e do respectivo Protocolo Adicional, revogando os anteriores documentos e entrando em vigor em 28/07/2010. A estes novos instrumentos também foi um acto terrorista que serviu de causa (o atentado de 11/09/2001), pelo que foram revistos alguns aspectos da atribuição de jurisdição aos Estados, aumentando o elenco dos crimes aí previstos e alargando a todos eles a possibilidade de extradição e reforçando os meios de colaboração entre os Estados signatários.
Dada a recente tomada de consciência da gravidade dos ataques cometidos por piratas na Somália e noutras regiões do Planeta, bem como da falta de mecanismos jurídicos suficientemente eficazes para o seu combate, surge a tentação de aplicar as Convenções SUA (em qualquer das suas redacções) aos actos de pirataria. Não cabe aqui desenvolver esta questão, mas sempre se diga que não parece ser esta a melhor solução. Decerto que os mecanismos jurídicos disponibilizados pela Convenção SUA de 1988 ou de 2005 são mais eficientes que as tíbias disposições da UNCLOS, pelo que não deixa de ser atraente a ideia da subsunção da pirataria à ampla tipificação legal dos actos ilícitos contra a segurança da navegação marítima.
Porém, lendo os preceitos duma e doutra redacção da Convenção em análise, não se lhes encontra qualquer referência a actos de pirataria, pese embora o facto de a tipificação dos crimes nela previstos ser tão dilatada (sobretudo na versão de 2005), que qualquer ataque de piratas, em concreto, a ela se subsumiria. De resto, esta é a circunstância que tem levado algumas vozes a defenderem que o regime da Convenção SUA se estenderia à pirataria e aos ataques à mão armada contra navios, o que, no entanto, parece ter sido expressamente afastado pelo próprio legislador de 1988 e de 2005
[24]. Como se viu, ambas as versões da Convenção SUA surgem na sequência de atentados terroristas e pretendem, por isso, criar mecanismos para o combate a esse tipo de ameaça e não a outros ilícitos que não se revistam das mesmas características. Aliás, nos preâmbulos dos textos de 1988 e de 2005, são feitas referências taxativas tão-só ao terrorismo e a outros crime de natureza política, sem que se vislumbre qualquer preocupação com crimes comuns e outro tipo de ameaças à segurança marítima. E importa ter presente que, em matéria penal, não é admissível a interpretação extensiva que sujeite ao regime de um crime um outro ilícito que não tenha sido taxativamente considerado.
Finalmente, o que parece ser um argumento importante no sentido do afastamento da aplicabilidade das Convenções SUA de 1988 e de 2005 aos actos de pirataria é dado pelos próprios preâmbulos, que se declaram alheios às matérias que não tenham sido expressamente previstas nos respectivos articulados
[25]. Para reforçar esta ideia, acrescente-se que, ao abrigo da UNCLOS, a pirataria é definida como um ilícito internacional, enquanto os delitos previstos nas Convenções SUA de 1988 e de 2005 não são verdadeiramente crimes internacionais.
Não obstante o já afirmado interesse que poderia ter a aplicação prática dos regimes jurídicos das Convenções SUA de 1988 e de 2005 à pirataria, uma vez abatidos os obstáculos acima apontados, é de aduzir mais uma preocupação: como já referido, um dos principais elementos de ineficácia jurídica no combate à pirataria resulta da circunstância de esta não ser objecto de condenação universal e de coexistirem variadíssimos ordenamentos nacionais com o Direito Internacional, este aplicável só em certos espaços marítimos. Se juntássemos a esta profusão de regimes jurídicos aplicáveis em matéria de pirataria e assalto à mão armada contra navios, ainda os resultantes da ratificação ou adesão aos dois textos da Convenção SUA, mais nos afastaríamos da ansiada unificação do Direito do Mar
[26].
2.2. Os ordenamentos jurídicos nacionais
Como repetidamente afirmado, a pirataria não sofre censura universal. Mesmo os países que a condenam têm posturas diferentes em relação à sua repressão
[27]: Há ordenamentos como o alemão, que, além de criminalizarem os actos de pirataria quando praticados nas suas águas, assumem ter jurisdição universal contra a pirataria, independentemente do local onde seja praticada. Outros Estados, como o italiano, tipificam a pirataria quando desenvolvida nos espaços sob sua jurisdição nos mesmos termos em que a UNCLOS os define para o Alto Mar. Existem ainda países que não se atribuem jurisdição universal contra a pirataria e outros nem sequer prevêem o crime de pirataria nas respectivas legislações domésticas. Portugal encontra-se nestes dois últimos grupos.
Assim, no ordenamento jurídico português, a pirataria não está tipificada como crime na nossa legislação penal, mas os actos de pirataria podem sempre ser subsumidos a outro(s) tipo(s) de crime
[28]. Portanto, a falta de tipo de crime não é, em rigor, limitadora da efectiva punição de tais actos que caiam na alçada da nossa Lei. Inibidor é, sim, o facto de o ordenamento jurídico português apenas se considerar competente para julgar e punir um agente do crime de pirataria, quando ele for cidadão nacional ou quando a vítima for portuguesa ou ainda quando o acto seja cometido a bordo de embarcação que arvore o nosso pavilhão
[29]. Foi por não se verificar qualquer uma destas condições que tiveram de ser libertados os piratas retidos pelas guarnições das fragatas portuguesas que tão brilhantemente integraram as recentes operações da NATO no Golfo de Aden e ao largo do Corno de África.
3. Conclusões
A pirataria constitui um novo problema político.
A tibieza e a falta de afirmação das legislações nacionais e a insuficiência e frustrada uniformidade do Direito Internacional espelham a incapacidade da Comunidade Internacional de lidar com o fenómeno da pirataria, o que pode vir a ter custos (se é que os não tem já) demasiado elevados para o way of life ocidental. São evidentes os prejuízos que decorrem da intensificação das actividades de pirataria para a segurança das nossas comunicações e cadeias de abastecimento. Os riscos ambientais associáveis a este tipo de ameaças, esses, são inimagináveis e poderão vir a ser incomportáveis.
E se já é preocupante a pirataria enquanto fenómeno isolado, que se assume como uma verdadeira ameaça global e assimétrica, maior apreensão deve causar a sua mais que provável integração em poderosas joint ventures do crime, enquanto simples mas eficiente fonte de financiamento, que permita ultrapassar as novas regras de controlo dos fluxos de capitais e do seu branqueamento.
Duvida-se que algum dia se erradique definitivamente a pirataria, mas urge controlá-la e fazê-la recuar às proporções que tinha ainda há cerca de trinta anos. Para tanto, impõe-se que a Comunidade Internacional, designadamente através das Nações Unidas, aperfeiçoe os mecanismos do Direito Internacional, conferindo-lhes maior eficácia, não deixando os Estados de ser chamados a idêntico empenhamento nos seus ordenamentos nacionais. Particularmente importante poderá ser a criação de mecanismos jurisdicionais especificamente vocacionados para o julgamento dos actos de pirataria. Mas atenção: nenhum quadro jurídico será realmente eficiente se não for garantido por uma maior presença naval e um poder naval mais robusto em todos os espaços marítimos, especialmente nas regiões de maior vulnerabilidade e/ou decisiva importância estratégica.
Mas também é evidente que, a longo prazo, a pirataria só será controlada se for combatida em terra, por uma repartição mais equitativa das riquezas, pela implementação de uma nova ordem económica internacional mais justa, que mitigue as assimetrias económicas e combata os horrorosos flagelos da pobreza, da fome, da exclusão económica e social, da guerra e dos atentados contra a dignidade humana, que assolam tantas regiões do globo. E não deveria ser este, afinal, o objectivo primeiro e central da política?
* Advogada. Auditora do Curso de Defesa Nacional. Doutoranda da Faculdade de Direito de Lisboa.
[1] O presente artigo refere-se apenas à pirataria stricto sensu, excluindo-se do seu objecto considerações sobre demais ameaças, como o terrorismo marítimo, ou sobre outros fenómenos que integram o conceito amplo de pirataria, embora delimitados historicamente, como os protagonizados por corsários, flibusteiros e bucaneiros. A palavra “pirata” tem origem na Antiguidade Clássica e chegou-nos por duas vias: do étimo grego πειραν, com o significado de “ousar”, “atrever-se”, ou ρειρατής, “agressor” (aliás, a primeira referência escrita à actividade da pirataria encontramo-la na Odisseia de Homero) e do latim pirata (ladrão do mar). Ora, a antiguidade do conceito e da actividade que ele denomina leva a que se lhe aplique a reflexão de Nietzsche, sobre a impossibilidade de definir conceitos que tenham uma evolução ao longo dos tempos. Talvez seja esta, a par de razões de ordem estritamente política, uma das circunstâncias que tem dificultado conseguir-se uma definição comummente aceite do conceito de pirataria.
[2] Nome dado às bandeiras dos navios piratas, habitualmente de fundo preto, com símbolos de morte ou de destruição, designadamente uma caveira branca sobre duas tíbias ou duas espadas cruzadas. O hastear do Jolly Roger era um meio de provocar medo às potenciais vítimas, favorecendo a sua rápida rendição.
[3] Daí recorrer-se crescentemente a tripulações mal pagas e mal preparadas, bem como a uma construção naval mais barata, logo menos segura e mais vulnerável a ataques de pirataria. Note-se igualmente que o significativo flagging out dos navios mercantes, que abandonam os seus registos convencionais para arvorarem bandeiras de conveniência, tem-se revelado ser mais um factor de insegurança náutica, marítima e jurídica; sobretudo da insegurança jurídica têm os piratas logrado extrair vantagens consideráveis, designadamente pelo recurso à utilização de “navios fantasma”, isto é, de embarcações sequestradas e, posteriormente, registadas sob pavilhão de conveniência, sem controlo sério da sua situação jurídica.
[4] Este crime contra o ambiente e contra a economia tornou-se particularmente evidente quando o tsunami de 26/12/2004 trouxe para a superfície e para terra os detritos ilegalmente depositados nos fundos marinhos ao largo da costa oriental africana, especialmente na região do Corno de África.
[5] Petroleiro de pavilhão árabe saudita, de propriedade do Grupo Aramco, abordado e sequestrado por piratas somalis, a 450 milhas marítimas sudeste do Quénia, em 15/11/2008, tendo sido libertado apenas em 09/01/2009, após o pagamento de um resgate que se presume na ordem dos US $ 3.000.000,00. Aquele que foi o primeiro navio árabe saudita a ser baptizado por uma mulher terá sido também a maior embarcação vítima de um ataque de pirataria até ao presente.
[6] Equivalente a cerca de dois milhões de barris.
[7] A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar entrou em vigor em 1994 e foi ratificada por Portugal, em 1997.
[8] Esta é a principal excepção ao princípio da competência do Estado de bandeira em Alto Mar.
[9] Tradicionalmente, tem-se entendido por «lugar não submetido à jurisdição de algum Estado» exclusivamente o espaço aéreo sobrejacente à superfície do Alto Mar. No entanto, adere-se à posição de autores como Fernando Castán, para quem esta expressão deve ser entendida enquanto situação de facto e não de Direito. Deste modo, o regime do Alto Mar aplicar-se-ia sempre que um Estado ribeirinho não exercesse de facto os seus direitos soberanos e de jurisdição sobre um determinado espaço marítimo. No mesmo sentido, Fernández Rodera considera haver “mares falhados”, tal como existem Estados falhados.
[10] Por força dos números 1 e 2 do artigo 58º da UNCLOS. Note-se que este entendimento tem merecido alguma discussão doutrinária, havendo quem entenda que as disposições aplicáveis à pirataria são incompatíveis com a parte que regula a ZEE.
[11] Estes actos materiais equivalentes são aqueles que integrariam a previsão do artigo 101º da UNCLOS, mas que, a nível do Direito Internacional, não podem ser qualificados juridicamente como pirataria, por serem praticados fora do Alto Mar, da Zona Económica Exclusiva e de qualquer lugar submetido à jurisdição de algum Estado.
Confrontada com a limitação do conceito de pirataria e com a consequente inexistência de uma qualificação em Direito Internacional dos actos de violência ou de depredação cometidos contra um navio em águas sob jurisdição de um Estado, a IMO (International Maritime Organization), secção especializada das Nações Unidas, desde 1983 vem definindo-os como assaltos à mão armada contra navios (armed robbery against ships). É de salientar, porém, que este conceito não consubstancia uma tipificação legal, nem é vinculativo; trata-se de uma mera proposta de caracterização de uma realidade de ocorrência frequente, contida em algumas resoluções da IMO, e definida na que, sob o número A 1025(26) e tomada em 02/12/2009, propõe o Code of Practice for the Investigation of the Crimes of Piracy and Armed Robbery against Ships.
[12] Note-se que a UNCLOS nem sequer qualifica a pirataria de crime, mas apenas de acto ilícito, pelo que a respectiva punição decorrerá do ordenamento jurídico interno de cada Estado. No entanto, não deixa de ser positiva a condenação - ainda que com reduzida eficácia - da pirataria em sede de Direito Internacional.
[13] O
International Maritime Bureau, divisão especializada da
International Chamber of Commerce, foi constituído em 1981, com o objecto de combater todo e qualquer tipo de crime e acto ilícito no âmbito marítimo. Em 1992, o IMB criou o
IMB Piracy Reporting Centre em Kuala Lumpur, para recolha, tratamento e difusão de informação relacionada com actos de pirataria, perpetrados, tentados ou meramente suspeitados. Mercê do seu intenso labor e enorme experiência neste âmbito, o IMB tem defendido uma definição bem mais abrangente da pirataria, entendendo-a como «abordagem ou tentativa de abordagem de qualquer navio, com a intenção de cometer um roubo ou qualquer outro crime e com a aparente intenção ou capacidade de usar a força para a concretização de tal acto» (cfr.
Piracy and Armed Robbery against Ships. Annual Report: 1 January 2009 - 31 December 2009). Nalguns estudos, o IMB tem ido ainda mais longe, qualificando-a como «qualquer depredação ou ataque, actual ou potencialmente violento, contra navio». Qualquer uma destas propostas tem merecido veemente contestação dos Estados ribeirinhos por alegado cerceamento das respectivas soberanias.
[16] Sem diminuir o enorme valor deste acordo (que inclui diversas iniciativas conjuntas, como a
Malacca Strait Sea Patrol, a Eyes-in-the-Sky e a Malacca Strait Patrols Intelligence Exchange Groups), é de sublinhar que o
tsunami de 26/12/2005 contribuiu para a redução das actividades de pirataria na região, nomeadamente pela destruição das embarcações e estruturas de apoio em terra dos piratas.
[17] Note-se que a eficácia deste acordo permitiu que, desde Agosto de 2006 e para efeitos de contratos de seguro, o
Lloyd’s Joint War Risk Committee tenha deixado de considerar o Estreito de Malaca como uma zona de “
war-risk”. Por outro lado, o sucesso desta experiência levou a que fosse tomada como modelo nos trabalhos preparatórios de um acordo similar a ser implementado no Golfo de Aden e Península Arábica.
[18] Bangladesh, Brunei, Cambodja, Coreia do Sul, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Laos, Malásia, Myanmar, República Popular da China, Singapura, Sri Lanka, Tailândia e Vietname.
[19] Cfr. Resoluções CSNU 1816 (2008), 1838 (2008), 1846 (2008), 1851 (2008), 1897 (2009) e 1918 (2010).
[20] Para além das operações Atalanta da UE e das referidas três operações desenvolvidas pela NATO, têm estado presentes outras forças nesta área de operações como é o caso da
“Combined Task Force 150 (CTF150)”, “
Task Force 151 (TF151)”, para além dos empenhamentos nacionais de países como Arábia Saudita, China, Índia, Irão e EUA. A indiscutível relevância económica, geopolítica e geoestratégica da rota marítima constituída pelo Mediterrâneo, Canal do Suez, Golfo de Aden, Mar Arábico e Golfo Arábico é um factor fundamental para que tantos Estados e forças multinacionais tenham decidido mandar os seus meios navais, com vista a patrulhar a região e defender os seus navios mercantes de prováveis ataques piratas. Note-se que para alguns países, como China e Índia, o empenhamento nacional no combate à pirataria no Oceano Índico pode revelar-se um oportuno meio de desenvolvimento das suas
blue water navies para domínio de rotas marítimas essenciais às respectivas economias.
[21] Da circunstância de a UE e o CSNU se centrarem na pirataria praticada no Golfo de Aden e ao largo da Somália não se deve inferir que a pirataria esteja reduzida apenas a esta área. Pese embora a explosão do fenómeno nessa região, o certo é que ataques de pirataria e assaltos à mão armada contra navios ocorrem em várias outras regiões do globo, como o Mar da China, o Estreito de Malaca, as águas arquipelágicas da Indonésia, o Golfo da Guiné (a par de ataques de terrorismo marítimo das forças de libertação do Delta do Níger), as Antilhas, as águas ao largo do nordeste brasileiro, etc.
[22] A Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima foi ratificada por Portugal em 1994 (cfr. Resolução da Assembleia da República nº 51/94 e Decreto do Presidente da República nº 66/94, ambos de 12 de Agosto)
[23] Em 07/10/1985, no Mediterrâneo, o paquete foi sequestrado por quatro passageiros, em nome da Frente de Libertação da Palestina, exigindo a libertação de palestinianos detidos em prisões israelitas.
[24] Aliás, o CSNU parece manter este entendimento, porquanto nas suas duas mais recentes Resoluções sobre a pirataria no Corno de África - 1897 (2009) e 1918 (2010) - é reafirmada exclusivamente a UNCLOS como o quadro legal internacional a que se subsume o combate à pirataria e ao assalto à mão armada contra navios. Sem prejuízo de a Resolução 1897 (14.) instar os Estados a implementar nos ordenamentos domésticos as obrigações decorrentes da UNCLOS e da Convenção SUA para possibilitar o julgamento dos suspeitos de pirataria, no seu preâmbulo refere-se à Convenção SUA sem nunca a considerar directamente aplicável aos crimes de pirataria.
[25] A Convenção SUA de 2005 é mais assertiva neste aspecto que a redacção anterior, porquanto não só reafirma a importância da UNCLOS (sem anunciar qualquer alteração aos princípios nela consagrados), como inclui mesmo um artigo 2
bis, nos termos de cujo número 1 afirma que o seu texto em nada afecta outros direitos, deveres e responsabilidades dos Estados e dos indivíduos decorrentes do Direito Internacional.
[26] Actualmente, podemos encontrar cinco combinações possíveis: i) Estados aderentes à UNCLOS e à Convenção SUA de 2005 (p. ex. Espanha, Suíça), ii) Estados aderentes à UNCLOS e à Convenção SUA de 1988 (p. ex. Portugal, Brasil, Federação Russa, Japão, Marrocos), iii) Estados aderentes à UNCLOS mas não a qualquer das Convenções SUA (p. ex. Angola, Colômbia, Tailândia. Aqui também se integra a União Europeia), iv) Estados não aderentes à UNCLOS, mas sim à Convenção SUA de 1988 (p. ex. EUA, Israel, Turquia) e v) Estados que não aderiram a qualquer uma destas Convenções (p. ex. República Central Africana, Venezuela).
[27] Não se entra aqui na discussão em relação ao risco de o Estado que exerça o direito de julgar e punir os piratas se ver confrontado com o insólito de os condenados encontrarem aí (mesmo na prisão) melhores condições de vida que no seu país de origem, pretenderem, por isso, permanecer no território desse Estado e pedir o acolhimento das respectivas famílias, ao abrigo do princípio da reunião familiar...
[28] Assim, os actos materiais de pirataria poderão ser punidos pelo Direito português, consoante os casos, enquanto crimes contra a segurança das comunicações, a propriedade, a liberdade, a integridade física ou a vida.
[29] Embora o artigo 5º, número 2, do Código Penal estenda a jurisdição nacional aos crimes que Portugal se tenha obrigado a julgar por força de tratado internacional, não se aplica ao caso da pirataria, pois, como se viu, da UNCLOS não decorre uma obrigação, mas sim uma mera faculdade de julgar os piratas.