Recordações e opiniões
de um dos primeiros a chegar.
Nos começos de 1961, Capitão, prestes a completar 36 anos, depois de ter tomado parte em quase todas as Manobras e Exercícios Regionais, tendo terminado a minha deslocação no Comando da 3.ª Divisão como Chefe da 4.ª Repartição (Logística) fui colocado no Porto, minha guarnição de preferência.Todo este passado operacional melhorou muito a minha formação para funções de Estado-Maior. Sendo o curso da Escola do Exército a minha Licenciatura, o Curso de Estado-Maior (EM) o meu Mestrado, a minha estadia na 3.ª Divisão correspondeu ao Doutoramento, pelo muito que aprendi em Exercícios em Portugal e na Alemanha Federal. Mas tudo isto unicamente no que diz respeito à guerra convencional em ambiente subversivo. Pouco lera e nada aprendera sobre outros tipos de guerra, além das operações em montanha.
Penso que o Instituto de Altos Estudos Militares, durante o tempo em que o frequentei, deveria ter abordado a guerra subversiva, tanto mais que este assunto fora já aflorado por um antigo aluno do Curso de Estado-Maior, Capitão Hermes de Oliveira, em trabalho escolar mais tarde transformado em livro. Neste livro a guerra subversiva, pela sua pericolosidade, era considerada como sendo “a guerra atómica dos pobres”. Durante o meu Curso nunca à guerra subversiva foi atribuída qualquer importância ou probabilidade, embora este tipo de luta estivesse já a decorrer em África e na Ásia. O mesmo poderia vir a suceder no nosso Ultramar com vista à sua emancipação, pois o “crisma” que recentemente a Constituição dera (passando a chamar “Províncias” ao que antigamente eram “Colónias”), em pouco ou nada protegia o nosso País das políticas anticolonialistas em progressão.
Felizmente o Exército, a partir de 1958, ao que julgo por iniciativa do então Secretário de Estado, Costa Gomes, algo estava a começar a fazer no sentido de criar doutrina, treinar procedimentos e organizar Unidades ajustadas à guerra subversiva. Foram enviados militares para a Argélia, onde este tipo de conflito grassava, para recolha de dados com vista a futura regulamentação. Fora criado depois um Centro de Instrução em Lamego, começando-se a estudar a organização de uma nova Unidade, a Companhia de Caçadores Especiais.
Depois do assalto ao paquete “Santa Maria” e do levantamento no Norte de Angola, o País ficou chocado e as Altas Entidades Politicas e Militares perturbadas. Desenvolveu-se, mais ou menos às claras, uma tentativa de golpe de gabinete, depois chamada “Abrilada”, com vista a substituição pacífica e voluntária do Chefe de Governo para que assim a nossa política ultramarina pudesse estar mais de acordo com os chamados então “Ventos da História”.
No desenvolvimento desta tentativa de golpe pacífico, realizou-se no Porto uma reunião de comandos, presidida pelo Brigadeiro 2.º Comandante da Região e por ordem do General Comandante. Todos estiveram de acordo com a necessidade de afastar Salazar, como era sugerido pelo Ministro da Defesa, General Botelho Moniz, militar sempre ligado à União Nacional. Dia ou dias depois fez-se outra reunião, agora presidida pelo General Comandante, que mudara de opinião. E com ele todos mudaram, achando preferível a permanência de Salazar na chefia do Governo e até a sua nomeação, em acumulação, de Ministro da Defesa!
Entretanto estavam já preparadas Unidades para seguirem para Angola e que agora, com o novo Ministro, para lá marcharam “rapidamente e em força” com o apoio da maioria da população e ao som do estribilho “Angola é nossa”.
O Batalhão de Caçadores 109, um dos primeiros a seguir, era comandado por um parente meu de quem me despedi e que embarcou a 5 de Maio. Tendo chegado a Luanda no dia 14, lá foi já recebido e encaminhado por mim na categoria de Chefe da 4.ª Repartição do Quartel-General da então 3.ª Região Militar. Isto porque, entretanto, eu fora promovido a Major e nomeado para Angola com direito a 10 dias de licença. Tudo isto, porém, fora processado pelo correio normal, apenas restando 3 ou 4 dias para me preparar, fardar, ir à Junta Médica e embarcar para Luanda por via aérea no dia 29 de Abril.
E assim fui também “rapidamente e em força” entrando logo ao serviço para organizar a 4.ª Repartição do Quartel-General de Luanda e levantar todo um dispositivo logístico para recepção das Unidades de reforço e seu futuro apoio operacional. Para além de pouco ou nada possuir de Logística, o Quartel-General, voltado ainda para o tempo de paz, estava incompleto, desorganizado e cansado pelo esforço que vinha desenvolvendo.
Comandava a Região o General Monteiro Libório, militar decidido, corajoso e valente, galardoado já na 1.ª Grande Guerra pelo seu valor. Com reduzidos meios operacionais e quase nulas disponibilidades logísticas, aguentou a sublevação, adoptando para tal, com coragem e dignidade, inéditas e perigosas decisões aguardando os reforços pedidos, até então parcamente atribuídos, não obstante a possibilidade da subversão ter sido oportunamente comunicada à Metrópole e apresentada à Missão Militar que, pouco antes, percorrera Angola.
O segundo Comandante era um Coronel Tirocinado cujo nome não recordo pois foi logo mandado regressar, não tendo sido promovido, como esperava.
O Chefe de Estado-Maior, Coronel Godinho, era um oficial distintivo, competente e instruído. Encontrava-se, entretanto absorvido por problemas administrativos, pouco ou nada interferindo na parte operacional.
O planeamento e a orientação da conduta das operações eram da iniciativa e responsabilidade do Subchefe de Estado-Maior, Tenente-coronel Franco Pinheiro, em ligação com o Chefe da 2.ª Repartição, Major Santos Moreira. Este, através de Relatórios formais e de uma exposição feita a uma Missão que visitara Angola, já apontara a possibilidade provável de vir a suceder aquilo que se estava a viver.
Obviamente que o General Libório apoiava e sancionava todas as difíceis e até perigosas decisões operacionais que chegaram ao ponto de desprezar a defesa de Luanda para que as poucas forças disponíveis pudessem proteger as povoações dispersas e recolher as populações desprotegidas.
Toda a acção de comando se processava de modo pouco regulamentar, por carência de meios, que não por falta de conhecimento da doutrina. Era um artesanato que serviu bem nesta fase incipiente da subversão, mas que urgia melhorar.
Com falta de instalações, pessoal e meios, recorrendo também ao empirismo, procurava eu pôr em prática aquilo que de Logística aprendera durante a minha permanência na 3.ª Divisão, em Santa Margarida.
As Unidades de reforço começavam a chegar, havendo necessidade impe-
riosa e urgente de as alojar e acolher em Luanda recorrendo-se a artimanhas e arranjos também muito diferentes dos procedimentos regulamentares. Um Liceu, em construção e ainda em esqueleto, foi o primeiro aquartelamento durante bastante tempo e para muitas Unidades. As camas eram fardos de palha, as paredes panos de tenda, as panelas latas de combustíveis ou lubrificantes metalizadas na indústria local. Os sanitários eram valas a céu aberto e as agulhetas serviam de chuveiros. Entretanto começou logo a preparar-se uma futura zona na área do Grafanil, para instalação e instrução de adaptação à guerra subversiva dos futuros reforços.
As disponibilidades dos recursos locais eram reduzidas excepto para a Função Transporte, onde se recorria aos camionistas civis e à Função Hospitalização a cargo, em parte, do Hospital de Luanda. No âmbito de Reabastecimento e Serviço Técnico de Intendência, algo se conseguiu a partir de uma delegação das Oficinas Gerais de Fardamento, existente em Luanda, um “Casão” mais directamente orientado para necessidades pessoais dos militares e suas famílias do que para apoio das operações. Entretanto este órgão muito nos ajudou, graças ao desembaraço e inventiva do seu Director e do conhecimento que este tinha dos recursos locais de Luanda que poderiam ajudar a minorar as nossas incapacidades.
Isto é, na primeira fase das operações houve que recorrer ao desenrascanço que é, simultaneamente, a grande qualidade e o pior defeito dos militares avessos ao planeamento oportuno.
Por causa talvez do mesmo desembaraço, a Metrópole não atendia à difícil situação da Província. Recorde-se que as primeiras Unidades desembarcadas desfilaram garbosamente na Avenida Marginal totalmente desarmadas pois a estiva dos navios fora feita por alguém que mandou colocar no fundo dos porões aquilo que poderia ser essencial logo depois do desembarque, ou seja as armas e as munições.
A característica ordem “Para Angola rapidamente e em força” do Ministro da Defesa e Chefe do Governo parece não ter sido totalmente entendida.
As Unidades deveriam vir completas e bem equipadas pois as Ordens de Mobilização determinavam que as Unidades Territoriais forneceriam apenas o material disponível e em boas condições, cabendo ao Depósito de Lisboa depois a atribuição do material que não tivesse sido recebido.
Ora o que se começou a verificar é que, com consentimento ou não dos Comandantes, os responsáveis pelas “Cargas” aproveitavam o levantamento das Companhias e Batalhões para se desembaraçarem da sucata e justificarem todas as faltas: cantis furados, panos de tendas rotos ou sem botões, equipamentos incapazes, armas em deficientes condições, viaturas inoperacionais, etc. O exemplo mais vincado foi o de uma Companhia levantada pelo RI13 (julgo eu) cujas metralhadoras Dreyse se apresentavam, na sua totalidade, sem percutores, ostentando cada uma um cartão dizendo “em falta oficial”. Se algumas destas carências podiam ser ultrapassadas momentaneamente pela nossa Logística incipiente, outras acarretavam atrasos na prontidão operacional das Unidades.
Por outro lado também, verificava-se, por vezes, que algumas Unidades procuravam retardar a sua ida para o “mato”, com o pretexto das suas cargas estarem incompletas. Com este objectivo eram considerados essenciais à prontidão artigos que nem valia a pena exigir. Nesta técnica de atraso, o artigo mais solicitado para a Unidade estar pronta era a “Maquina de Cintar Caixotes”, que nunca vi, embora constasse, de facto, da orgânica.
Pouco a pouco, conquistando espaço e conseguindo pessoal e meios, com trabalho, imaginação e dedicação foi estruturada 4.ª Repartição e definido o futuro dispositivo logístico do norte de Angola, procurando-se sempre explorar ao máximo os recursos da província, como já foi dito.
Começámos mesmo a conseguir ser ouvidos pelo Estado-Maior do Exército que, por vezes, com certo paternalismo, tomava decisões ou adoptava procedimentos sem procurar saber as nossas reais necessidades. Um caso característico foi o das viaturas de transporte geral. Soubemos que se iam comprar viaturas do tipo das GMC americanas com capacidade de 5 toneladas. A Região Militar pedia e insistia na necessidade de adquirir viaturas com muito maior capacidade de carga, dizendo mesmo que elas existiam à venda na Província. A nossa teimosia foi a ponto de vir a Luanda, para nos esclarecer, um General dos Transportes, afirmando que viaturas com maior capacidade de carga não poderiam circular nas vias de comunicação de Angola nem nas pontes, vaus ou barcaças. Escusado será dizer que abandonou esta ideia logo que lhe mostramos as viaturas normais dos camionistas civis que contratávamos, e que felizmente passavam por todo o território.
Entretanto, com o hábito tão português de atribuir responsabilidades a quem delas não tem culpa, o Governo destituiu e mandou regressar imediatamente à Metrópole o Governador, ficando o General Libório, interinamente, a desempenhar tais funções por acumulação.
Mas por pouco tempo, uma vez que, dias depois foi também corrido com a mesma presteza e falta de dignidade, sabendo, na véspera, que no outro dia, depois da chegada do avião da TAP, deveria imediatamente entregar o comando ao General Silva Freire e regressar à Metrópole.
Esta decisão causou surpresa e espanto a todos os que serviam com o General e que muito o apreciavam e respeitavam pela maneira exemplar como enfrentou a crise angolana desde o seu início.
Foi improvisada uma cerimónia na Biblioteca do Quartel-General, onde nos reunimos desgostosos com este inesperado procedimento que muito ia magoar o Comandante.
Chegado no avião referido, o General Freire, no inicio da tarde de 6 de Junho, entrou na Biblioteca. Depois de um rígido e protocolar cumprimento militar o General Libório entregou o comando e preparou-se para sair. O General Freire, com a sua elevada categoria e inteligência, apercebendo-se do ambiente geral, fitou as muitas condecorações do General Libório e iniciou um breve discurso encarecendo a personalidade militar do Comandante cessante e afirmando o seu muito orgulho pela honra de substituir um brilhante combatente da Grande Guerra onde demonstrara coragem reflectida debaixo de fogo. E assim o que poderia ser um insulto, transformou-se numa cerimónia dignificante, ao mesmo tempo que transmitia a todos os presentes uma ideia nítida da categoria moral do novo Comandante.
O então Coronel Silva Freire já era conhecido por alguns dos presentes e por mim, pois fora nosso professor e depois Director do Curso do Estado-
-Maior no Instituto de Altos Estudos Militares. Oficial distinto, professor abalizado, Director pouco familiar para com os alunos, era por estes conhecido familiarmente, por “perú” dada a sua imponência aparente.
Logo após a transferência de poderes no Governo-Geral, o General Freire começou imediatamente a comandar em pleno a Região, procurando ambientar-se através de exposições exaustivas de todos aqueles mais directamente ligados a conduta operacional, à instrução/treino e ao apoio logístico.
O terreno começou a ser idealizado nas pequenas e ridículas cartas itinerárias do Automóvel Clube ou em ampliações desta para escalas mais militares (que entretanto mais nenhuns pormenores ofereciam) e ainda em fotografias aéreas. Pormenores, houve que exigiram a consulta de muitos relatórios de antigas operações militares ou reconhecimentos, quando os militares usavam a técnica de caminhar e medir. Reconhecimentos aéreos permitiram objectivar áreas de interesse no Norte da Província que se passou a chamar “Zona de Intervenção Norte”.
Ignorando noites e esquecendo domingos, o General Freire, com muito trabalho e sacrifícios de todos, ficou rapidamente conhecedor do panorama que se vivia, definindo um conceito objectivo das operações, no âmbito militar e psicológico. Embora objectivado à Zona de Intervenção Norte, a decisão do General abarcava já toda a Província, ainda que de maneira esquematizada. Recordo o seu velho mapa itinerário, onde definira outras Zonas de Interesse com o cálculo dos efectivos necessários à prevenção e defesa destas áreas sensíveis. Anos depois verifiquei que as previsões do General se acabaram por confirmar dentro do seu raciocínio original.
Com o Tenente-coronel Pinheiro e Major Moreira em fim de comissão e com a necessidade de completar o Quartel-General com gente nova e competente, foram chegando oficiais que se chocavam com muitas das deficiências de algum pessoal existentes. Nas reuniões com o General pediam-lhe, com insistência, a saída imediata dos empatas e incompetentes ainda presentes, por vezes em posições-chave. Mas o General resistia, dizendo que nós os devíamos aturar e ensinar-lhes a maneira correcta de cumprir as missões a eles confiadas. Esta tolerância quanto aos desleixados ou incapazes era o único ponto fraco da estrutura militar do General Freire, contrariando frontalmente a ideia que dele faziam os seus antigos alunos.
Entretanto esta pequena fraqueza era compensada com a energia, dinamismo e mesmo dureza do seu Chefe de Estado-Maior, Tenente-coronel Oliveira Marques que assim completava perfeitamente o seu Comandante.
O novo Segundo-comandante, Brigadeiro Moura dos Santos, parecia uma figura apagada, orientado prioritariamente para assuntos administrativos, secundado pelo Subchefe do EM, Tenente-coronel Castro de Ascensão, ambos aparentemente muito afastados da conduta operacional. O futuro, entretanto, iria demonstrar a alta craveira destes oficiais e a sua capacidade para dirigir todos os diferentes sectores do comando da Região.
Com a chegada do novo Governador e Comandante-Chefe, General Deslandes, ficou definida a estrutura de combate à subversão, sendo de sublinhar a perfeita ligação que com ele logo se estabeleceu, o que fazia prever uma melhoria rápida da situação.
Os primeiros Batalhões vindos da Metrópole foram orientados para áreas sensíveis. Um para aliviar Carmona, capital do Uíge e abrir caminho para S. Salvador, outro para a conquista de Nanbuangongo, tanto ou mais por motivos psicológicos do que militares. Outros Batalhões receberam missões de acordo com a Directiva do General, iniciando-se assim, ainda durante o seu curto comando, a tarefa de pacificar o Norte de Angola e evitar a propagação da subversão armada.
Com o seu empenhamento o General Freire conseguiu tirar a tropa das vias de comunicação e levá-la ao seu empenhamento no “mato”, no que era secundado por todos, especialmente o seu Chefe Estado-Maior.
Recordo uma das suas decisões administrativas adoptada como processo de acelerar uma missão em curso. Da Metrópole, começaram a chegar sacos de dormir. Elaborei uma proposta de atribuição de sacos às Unidades no mato. O CEM Oliveira Marques aprovou apenas com uma excepção relativa a um Batalhão encarregado de ocupar um determinado ponto mas que ainda o não fizera. A decisão pois foi a de só dar sacos de dormir quando a missão fosse cumprida. E assim se fez, o ponto foi conquistada e a Unidade, já com sacos, continuou no cumprimento da sua missão. Não gostei, mas admirei a determinação do meu Chefe.
Entretanto, haviam chegado a Angola o Major Mota de Oliveira, que foi chefiar a 3.ª Repartição e o Major Monteiro de Figueiredo, a quem foi atri-
buída a 4.ª Repartição, já de certo modo estruturada.
Com espanto meu, em vez de continuar a frente da Logística, que começava já a funcionar, o General Freire entendeu que eu deveria chefiar a 2.ª Repartição pois o Major Moreira terminara a sua comissão.
Encontrei esta Repartição bem organizada e estruturada, difundindo oportunamente a todos os interessados o resultado do processamento das notícias. Para tal haviam sido criados, ao que julgo como reminiscência do tempo de paz, um certo número de procedimentos que não estavam de acordo com letra regulamentar.
Antes de alterar o quer que fosse, decidi levar ao General Freire umas “Possibilidades do Inimigo” que encontrara na Repartição. Ele aprovou e ordenou que estas possibilidades fossem integradas no Relatório de Comando, a enviar para Lisboa. Estático ficou, entretanto, quando lhe comuniquei que aquilo não era trabalho meu mas sim do meu antecessor, que as enviara para o EME no ano anterior e as comunicara pessoalmente à Missão que depois visitara a Província. Como o General Freire era então Subchefe do EME já delas devia ter conhecimento. O que o levou a concluir que o Major Moreira fora tratado muito injustamente mas que ele tal iria remediar. Infelizmente tal não pode fazer …
Com a falta de cartas ou fotografias aéreas e com insistência de tudo ver e apreciar, o General levava a efeito sucessivos reconhecimentos terrestres e aéreos, utilizando, neste ultimo caso, aviões da Força Aérea ou dos Transportes da Província. Quando estes eram bimotores, o General, perigosamente, para poupar tempo e meios, fazia-se acompanhar por todos os interessados. Na procura dos pormenores, obrigava os pilotos a baixar, o que não acarretava grande perigo quando as aeronaves eram civis pois os pilotos, veteranos muito batidos, sabiam evitar o perigo dos voos rasantes.
No dia 10 de Novembro de 1961, durante um destes reconhecimentos colectivos num bimotor da Força Aérea totalmente carregado e pilotado por um jovem Tenente, a coisa não funcionou e o aparelho, em voo rasante na fronteira Sul de Angola, depois de uma tentativa falhada para evitar umas árvores, tombou violentamente. Pode dizer-se que, para além de muitos outros passageiros do Exército e Força Aérea, o Comando da Região Militar ficou destroçado, pois neste massacre morreram o Comandante, o Chefe do Estado-
-Maior, Chefe da 3.ª, da 4.ª Repartição e o Ajudante. Oficialmente, até eu morri, pois constava da lista de voo, mas o Major Mota de Oliveira, na véspera à noite, convencera-me a trocar com ele, acabando eu por ceder, um pouco convencido de que fora levado…
Pouco tempo servi pois com o General Freire como responsável pelas Informações. Mais tarde, graças a um excelente grupo de Adjuntos, consegui organizar o Serviço de Informações e fixar doutrina prática e válida sobre Informações na guerra subversiva. Não pretendo vangloriar-me mas sim apenas demonstrar a alta craveira do General Freire que descobriu em mim aptidões que eu próprio não julgava possuir.
Pessoalmente, continuo convencido que, se o General Freire tivesse continuado à frente da Região, o evoluir da situação poderia ser muito diferente e melhor, pois o seu planeamento não se cifrava a imediata solução militar, abarcando aspectos que naturalmente teriam de ser considerados na solução ampliada do problema de Angola e dos quais estava já tratando o Governador.
Com este inesperado desastre do Chitado, o Comando da Região ficou decepado mas não inoperacional. Logo após a noticia, o Brigadeiro Moura dos Santos passou a ser Comandante de corpo inteiro, tomando todas as medidas necessárias e as providencias exigidas pela conduta das operações com o dinâmico apoio do Tenente-coronel Ascensão que, imediatamente, assumiu as responsabilidades de Chefe de Estado-Maior do Quartel-General onde os “imediatos” dos desaparecidos assumiram a direcção das 3.ª e 4.ª Repartições.
Mas o que é mais de sublinhar é que, com a chegada dos oficiais que renderam os falecidos, todos os interinos assumiram, modesta e imediatamente, as funções que haviam desempenhado até ao desastre.
Para Comandante foi nomeado o General Holbeche Fino, militar muito distinto e bem conhecido na Infantaria e fora dela e que deixara até nome e fama na Escola de Estado-Maior dos Estados Unidos, para onde fora nomeado para frequência de um curso, sem qualquer período de preparação prévia e numa idade superior a dos restantes discentes.
O Tenente-coronel Bethencourt Rodrigues, igualmente muito reconhecido e apreciado na Arma e no Corpo de Estado-Maior pela sua extraordinária craveira como oficial e professor, foi nomeado Chefe de Estado-Maior.
O Major Silva Carvalho, que comigo servira também no QG/3.ª Div, foi chefiar a 3.ª Repartição, ao passo que o Major Tavares da Costa foi responsabilizado pela 4.ª Repartição. Entretanto a 1.ª Repartição passara também a ser chefiada por um oficial do Estado-Maior, o Major Moreira Rebelo.
Para além das ligações formais que uniam o CEM aos Chefes das Repartições, sucedia igualmente que todos estes haviam sido alunos do Tenente-
-coronel Bethencourt Rodrigues na Escola Prática de Infantaria e no Instituto de Altos Estudos Militares no Curso de Estado-Maior. Seria difícil conseguir um outro Quartel-General onde, além do respeito e consideração formais, existisse uma tão grande união moral e amizade entre todos.
Com todas as suas pedras fundamentais novamente preenchidas, poderia dizer-se que o Comando retomara a sua anterior eficiência. Mas esta afirmação pecaria por defeito pois, durante o interregno, nada perdera da sua capacidade de planear, dirigir e controlar toda a actividade operacional e assumir inteiramente todas as suas restantes responsabilidades.
À frente de uma Repartição de Informações já organizada e em funcionamento, depois de ouvir todos os Adjuntos, procurei ambientar-me para poder chefiar com conhecimento e autoridade.
Li e meditei a doutrina do Regulamento de Campanha, passei os olhos por um rascunho daquilo a que viria ser o regulamento “O Exército na Guerra Subversiva” com base nos conhecimentos adquiridos pela missão que estivera na Argélia. Li com interesse publicações, que julgo serem da Agência, Geral do Ultramar, sobre a população angolana. Procurei conhecer o terreno aproveitando todos os transportes pois, como já disse, a cartografia da nossa zona de interesse era praticamente inexistente. A doutrina americana, de que tanto aproveitamento tirei quando estava na 3.ª Divisão, pouco ou nada ajudava agora pois abordava a subversão em países estrangeiros. Ora o nosso caso era profundamente diferente pois a subversão era em território nacional e conduzida por naturais tão portugueses como nós.
Encarando o futuro previsível e depois de conversas e discussões com os oficiais que já serviam na Repartição e com total aplauso de Chefe de Estado-
-Maior, que me ensinara Informações no IAEM durante o CEM, acabei por concluir que haveria nítida vantagem em procurar aproximar o mais possível os nossos procedimentos à doutrina oficial do Regulamento.
Nestes termos, embora continuando a acompanhar o dia-a-dia do desenrolar das operações, iniciamos a elaboração de umas Normas de Execução Permanente do Serviço de Informações de Angola (NEO/SIM/RMA). Estas, seguindo a doutrina e o articulado do Regulamento, descriminavam e explicavam como fazer, a quem comunicar e por que meios, tudo em linguagem simples e objectiva para mais fácil compreensão por qualquer militar, mesmo pouco habituado ao trabalho das Informações.
Depois de distribuídas as Normas de Execução Permanente (NEP), Quartel-General, Comandos de Sector, Comandos Subordinados, Unidades e Órgãos passaram a estar unidos por uma doutrina simples e eficiente, criando-se assim, naturalmente, uma ligação a que foi chamada Serviço de Informações de Angola, identificado até por um emblema apropriado. O Comando-Chefe seguia um procedimento paralelo o que facilitava os contactos.
Dentro do espírito das NEP fixou-se que todas as notícias ou informações de interesse imediato, trabalhadas ou não, eram comunicadas pela via mais rápida, num sentido ou no outro. Estas e outras informações eram incluídas depois nos “Situation Report” (SITREP) das Unidades. Periodicamente a 2.ª Repartição difunda o “Periodic Intelligence Report” (PERINTREP) com uma informação detalhada resultante da interpretação e estudo feito a partir da integração de todos os elementos recolhidos ou recebidos. Quando a profundidade ou especificidade da informação ou da contra-informação assim o aconselhava a Repartição tudo consolidava num “Supplementary Intelligence Report” (SUPINTREP).
Face aos bons resultados que começaram a ser conseguidos, as NEP/SIM/RMA passaram a ser adaptadas por outros Comandos Ultramarinos, tendo mesmo estagiado connosco um oficial de Moçambique para se integrar na doutrina que estava a ser seguida.
Uma vez que as NEP tinham por base o Regulamento, quem já havia funcionado como Oficial de Informações nos Exercícios e Manobras em Santa Margarida, não precisava de estudar outros processos ou decifrar novos documentos. A guerra era diferente mas informações passaram a ser processadas de maneira semelhante embora o seu estudo tivesse por base outros factores pertinentes.
Naturalmente que, em guerra subversiva, era mais complicado definir as “Possibilidades do Inimigo” pois havia que encarar meios diferentes, objectivos não coincidentes, tácticas diversas e, muito especialmente, a influência decisiva de factores psicológicos, humanos e da personalidade dos chefes locais. Havia pois que ter sempre em atenção as “intenções” do inimigo para além das suas “possibilidades”. Nunca esquecendo que o inimigo poderia seguir procedimentos que, embora militarmente piores, acabassem por assegurar resultados psicológicos mais valiosos. O que exigia o conhecimento perfeito do meio humano, das tradições e hábitos locais e do passado ou maneira de ser dos chefes regionais. Nestes termos organizou-se na 2.ª Repartição uma Secção de Ordem de Batalha que muito nos ajudou na previsão do que iria suceder.
Escusado será dizer que a Repartição mantinha constantes e frutuosas relações com os serviços de informações do Comando-Chefe, da Marinha e da Aeronáutica. Desta, especialmente, recebia notícias de elevado valor e oportunidade sobre o terreno e actividade do inimigo. Das unidades do Serviço de Reconhecimento das Transmissões igualmente se processavam notícias e informações de âmbito externo e interno.
Posteriormente foi criado o SCCIA (Serviço de Centralização e Coordenação de Informações de Angola) na dependência do Governo da Província. Trabalhavam num amplo campo de informações, processadas fundamentalmente pela autoridade civis. Iniciados por militares e com técnicas militares, sempre colaboraram de maneira impecável e oportuna.
Da PIDE, como serviço de informações que também era, recebíamos notícias sobretudo do âmbito estrangeiro com interesse para nós. No respeitante a Contra-Informação, era normal que, relativamente a alguns militares, sobretudo graduados de complemento saídos das Universidades, a PIDE nos dissesse que eram “suspeitos” sem dizer mais nada o que, para nós, regra geral, pouco significava nem nada acarretava.
Entretanto a 2.ª Repartição, com o aplauso e orientação do TCor Bethencourt Rodrigues e com o interesse e dedicação de todos os que lá serviam, procurava alcançar as metas previstas, adaptando procedimentos e normas às críticas e sugestões recebidas.
No dia em que se completava o primeiro ano da elaboração do PERINTREP, documento fundamental no funcionamento do Serviço, o General Comandante despachou assinalando os “serviços relevantes e distintos prestados às tropas da Região e ao seu Comandante” esperando “estímulo e impulsão para um trabalho ainda mais fecundo no ano que se inicia”.
A 2.ª Repartição, sempre em colaboração com as restantes, desenvolvia actividades que por vezes a ultrapassavam, sobretudo no campo da Acção Psicológica, da responsabilidade da 3.ª Repartição.
Acompanhava jornalistas, nacionais e estrangeiros, apresentando provas e expondo procedimentos que demonstravam que a subversão em Angola não era apenas uma revolta de angolanos contra as autoridades metropolitanas mas sim uma acção concertada contra Portugal, desenvolvida com aplauso e apoio vultoso de países de ambos os lados da então chamada “cortina de ferro”.
Por outro lado, a confiança que o Serviço de Informação transmitia aos naturais levava muitos destes a colaborarem voluntariamente fornecendo dados e informações pertinentes. Assim sucedeu quando, Angelino Alberto, dirigente de um partido que congregava os naturais, vindo das matas, me procurou, dizendo que podia peitar os guardas da prisão e libertar o 1.º Tenente Rosa Coutinho, há meses detido no Congo, quando viera a terra convidar as autoridades congolesas para visitarem o navio que comandava. Para tal precisava apenas de uns 50 contos (se bem me recordo). Levado o caso ao Governador, o General Deslandes entendeu que esta acção deveria ser feita pela PIDE, o que acabou por ser realizado com bons resultados mas com mais dinheiro para o suborno…
Ouvido o Comandante à chegada, obtivemos notícias com interesse, uma das quais nos espantou e revoltou: depois de liberto de noite o Comandante dirigiu-se à nossa Embaixada, ainda não encerrada. O pessoal desta recusou-
-se a abrigar o Primeiro-tenente Rosa Coutinho que teve então necessidade de se acolher à colónia portuguesa local que o encaminhou para Angola. Tudo isto porque os diplomatas não queriam embaraços com as autoridades!
Muitas outras processadas pela 2.ª Repartição serviram também para nelas se basearem acções ou campanhas psicológicas, visando a conquista das populações.
Entretanto, tendo-se gerado um atrito entre o Governador e o Ministro do Ultramar, o Governo novamente despediu este, com espanto e revolta local pois, mais uma vez, se quebrava o ritmo da pacificação.
O novo Governador, Coronel Silvino Silvério Marques, militar do Exército como nós, iniciou igualmente uma boa colaboração.
De notar que, contrariamente ao sucedido na Argélia e em outros teatros de operações de guerra subversiva, em Angola não se verificaram neste período actos importantes de terrorismo urbano ou de outros do âmbito da Contra-Informação. Acabado o curto período inicial da sublevação não se notaram acções significativas no campo da traição, espionagem, sabotagem, deserções em massa, roubos de armamento, etc. Não tinha qualquer significado o numero de deserções de angolanos ou metropolitanos no campo de batalha. Fugas ao serviço militar e deserções de continentais eram muito mais significativas na Metrópole, sobretudo no âmbito dos graduados do complemento e especialmente depois de recebido o subsídio de embarque. Muitos procuravam a Argélia, colaborando, muitas vezes, com a “Voz da Liberdade” uma emissora que apoiava francamente os movimentos emancipalistas emitindo notícias falsas e fazendo propaganda à deserção e traição.
Durante o tempo em que servi em Angola houve apenas um caso pouco esclarecido que ainda agora tem vindo a ser tratado por certos órgãos de comunicação social, em determinadas ocasiões.
Como se disse, por vezes, a PIDE comunicava que um ou outro militar era ”suspeito” sem nada esclarecer quanto ao motivo desta classificação. Em 1963, foi fornecida esta indicação relativa a um Alferes Miliciano, estudante de Coimbra.
Veio a saber-se, mais tarde, que esta indicação tinha por base, a hipótese de ele ser delegado de oposicionistas da Metrópole que, simultaneamente com outros de Angola, iriam tentar uma revolta com vista à mudança do regime em Portugal e consequente emancipação daquela Província.
Possivelmente por algo saber que nós ignorávamos, o Ministro do Exército determinou a prisão do militar e a sua entrega à PIDE. O General Holbeche Fino, com autoridade e firmeza, disse que nunca iria entregar quem quer que fosse a essa Polícia. Face a esta intransigência, o Ministério determinou passagem do Aferes à disponibilidade, com o serviço militar cumprido. O que teve ser feito, ficando o Alferes em Luanda liberto, pelo menos até ao fim da minha comissão.
Mais ao menos ao mesmo tempo, em conexão ou não com tudo isto, soube-se que um Oficial da Força Aérea levava a efeito actividades pouco recomendáveis na Base Aérea de Luanda, entrando mesmo no âmbito político, mantendo para tal ligação com militares do Exército da área da Nova Lisboa.
Imediatamente o General Holbeche Fino convocou uma reunião de comando naquela cidade, para onde partiu comigo em avião civil. Perante todos os comandantes e outros responsáveis o General falou nesta hipótese da pretensa rebelião avisando, duramente, que, se algo houvesse, ele actuaria com a máxima violência para restabelecer a ordem e punir os responsáveis. Todos os presentes, mais ou menos veementemente, negaram qualquer comprometimento ou mesmo conhecimento, embora ninguém tivesse impugnado a noticia. Fiquei com a impressão de que, um ou outro, por ingenuidade, leviandade ou convencimento talvez em algo estivesse comprometido, ou de alguma coisa tivesse conhecimento.
Entretanto a firmeza ou mesmo a dureza da intervenção do General, tão diferentes da sua personalidade habitual foram bastante convincentes. E nada se verificou. Mas o Major Piloto-Aviador suspeito acabou por desertar.
Embora nada se tivesse passado, a Repartição entendeu que haveria vantagem em difundir mais doutrina sobre Contra-Informação o que se processou como adiante se refere.
A 2.ª Repartição procurava sempre aperfeiçoar o cumprimento da sua missão, melhorando procedimentos, alterando normas ou modificando conclusões de acordo com as sugestões ou criticas dos Comandos Operacionais, podendo pois dizer-se que funcionava já muito razoavelmente o Serviço de Informações Militares de Angola. Convém esclarecer que a palavra “ Serviço” não deve ser entendida como um dispositivo hierarquizado de comando. Melhor será entender a palavra “Serviço” como significando sistema de informações, em que a 2.ª Repartição nada chefiava, sendo apenas o órgão coordenador de todas as noticias ou informações, externas ou internas, que constituam preocupação do General Comandante.
Com este objectivo, para além de toda a documentação trocada noutro sentido, a Repartição procurava sempre o contacto pessoal ao nível técnico. Assim, como norma, aquando da vinda a Luanda dos Comandantes ou Oficiais de Informação, estes deviam sempre passar pela Repartição para partilha de informações ou de outros dados pertinentes. Quando julgado necessário, o processo era inverso e aos Comandos das Unidades dirigia-se um Oficial da Repartição, para partilhar ou esclarecer aspectos pertinentes.
Naturalmente que a 2.ª Repartição nem sempre estava de acordo com os relatórios ou afirmações dos Comandos Operacionais, sobretudo no respeitante à área e grau de pacificação dos respectivos sectores. O desejo, a vontade, ou a vaidade de mostrar bons serviços, levava alguns “pacificadores” a dilatarem as zonas controladas ou melhorarem o grau da sua pacificação. O que, por vezes, criava situações difíceis e desagradáveis por obrigarem um simples Major a discordar frontalmente de afirmações ou pretensões de Comandos muito mais graduados. Felizmente eram raros estes casos e os louvores mais frequentes do que as criticas.
Recordo um destes louvores que considero importante e significativo por vir de um Comandante de um Batalhão de Cavalaria, o então Tenente-coronel Spínola, pois este sempre via com maus olhos tudo o que o Quartel-
-General fazia, “odiando” particularmente os Oficiais do Corpo de Estado-Maior. Escreveu-me uma carta pessoal a “exprimir a sua maior admiração pela forma verdadeiramente eficiente como se encontram elaborados estes documentos”… e para…” agradecer, na qualidade de beneficiário, o trabalho produzido…” .
Naturalmente que esta carta, vindo de um Oficial com quem não mantinha relações pessoais, materializava o seu agradecimento a todo um grupo de Oficiais, Sargentos e Praças, metropolitanos e ultramarinos que, dentro de um ambiente de trabalho e dedicação de todo o Quartel-General e com o apoio e incentivo da hierarquia, tornou possível que, a partir da regulamentação de Informações, se desenvolvesse uma doutrina ajustada à “nossa” guerra subversiva.
Naturalmente que esta doutrina não representava a verdade absoluta e imutável pelo que, como já disse, havia a preocupação de ouvir Comandantes e Oficiais de Informação com vista a actualização ou melhoramento das NEP/SIM/RMA face aos resultados da prática.
Alguns assuntos mais especializados e de âmbito mais alto deram origem a Relatórios Suplementares no respeitante a interrogatório de prisioneiros, reconhecimento aéreo visual e Contra-Informação.
Mais tarde estes estudos, além de outros, foram completados e aproveitados. Inicialmente no âmbito do Curso de Promoção a Oficial Superior do Instituto de Altos Estudos Militares, onde fui colocado aquando do meu regresso em fim de comissão. Os discentes, regressados igualmente de todos os teatros de operações, possuíam dados da experiência que eram recolhidos, trabalhados e sintetizados como documentos didácticos. Alguns destes apontamentos foram depois aproveitados pela 2.ª Repartição do EME, onde eu igualmente trabalhava, para difusão como documentos oficiais. Surgiu assim uma publicação que, além de incluir o interrogatório, o reconhecimento aéreo e a Contra-Informação abarcava ainda um outro documento que continha e sintetizava tudo o que um Comandante ou Oficial de Informações devia conhecer e que recebeu o nome de “Informações num Batalhão em Guerra Subversiva”.
Com o apoio, interesse e conselho do Chefe de Estado-Maior e com a colaboração das Unidades Operacionais a 2.ª Repartição, em meados de 1963, tinha atingido ao nível de eficiência que muito me satisfazia e muito aprazia todos os que nela trabalhavam.
Naturalmente que não sou a pessoa mais indicada para sublinhar o que era positivo, embora possa apreciar o que o não era.
Recorro portanto a parte do texto de um louvor proposto pelo Comandante da Região e aprovado depois pelo Ministro do Exército.
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“Apesar do Quartel-general se encontrar em plena actividade operacional ocorreu uma profunda e completa reestruturação da 2.ª Repartição com métodos de trabalho baseados na regulamentação em vigor embora com as adaptações requeridas pelo tipo de guerra em curso lançando-se o pessoal…na tarefa imperiosa de por em movimento um Serviço de Informações dinâmico agressivo e eficiente”.
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“Definidos princípios de organização e processos de actuação… a 2.ª Repartição adquiriu um excepcional nível de eficiência, fornecendo, em tempo oportuno ao Comando da Região e as Tropas elementos de informação essenciais para a conduta das operações, difundindo sempre como oportunidade estudos de informação de categoria e do maior interesse, mantendo-se activamente atenta a todas as evoluções ou alterações de condicionalismo, ambiente e tendência, procurando estreitar, ampliar e aperfeiçoar as relações com os outros Serviços de Informação, estruturando, afinando e apertando a ligação com as tropas…”.
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Com muita amizade saudade e gratidão relembro todos os Oficiais que comigo serviram nas Informações e a cujo trabalho se ficou a dever o nível atingido pela Repartição: Salavessa Moura, Ferreira Machado, Rodrigues Pena, Beça Murias, Baptista Beirão, Almeida e Brito, Fernandes Aguiar, Goulão de Melo, Ferreira Dias. Um grupo excepcional, onde todos eram diferentes no pormenor, mas todos iguais no essencial, ou seja, inteligência, competência, capacidade, espírito de sacrifício e entusiasmo. Deste grupo acabaram por sair 4 Oficiais Generais, embora qualquer dos outros tivesse igualmente atributos e condições para ascenderem ao generalato.
Não esqueço igualmente o excepcional lote de Sargentos e Praças que constituíam a máquina de produção e difusão oportuna de toda a documentação. Muitos ascenderam ao Oficialato e um deles ao doutoramento em Estudos Africanos, o nosso tradutor José Carlos de Oliveira, filho de um comerciante do mato que tudo conhecia e tudo sabia sobre o norte de Angola.
Tendo sido um dos primeiros reforços do Quartel-General de Angola, fui igualmente um dos primeiros a regressar em Maio de 1963, depois de ter servido com 3 Generais Comandantes, todos de elevada categoria como militares e como cidadãos, 3 Chefes de Estado-Maior e ter conhecido 3 Governadores. Assistindo igualmente, com revolta, ao despedimento indecoroso de um General e dois Governadores.
Na Metrópole fui colocado no Instituto de Altos Estudos Militares, prestando serviço cumulativamente na 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército, o que, como disse, proporcionou a possibilidade de continuar colaborar no aperfeiçoamento da doutrina sobre Informações em guerra subversiva.
Os Oficiais e Sargentos que ficaram na “minha ex” 2.ª Repartição tiveram depois oportunidade e vantagem de servirem o então Major Marques Pinto, Oficial distinto e conhecedor profundo da técnica das informações e que, ainda hoje, como General, é reconhecido e procurado como perito no âmbito mais lato da “intelligence”.
Nota:
Sempre esperei que estas minhas recordações fossem apreciadas ainda pelo General Bethencourt Rodrigues e com ele discutidas como responsável que foi de tudo o que consegui fazer bem em Angola.
Infelizmente Deus não quis!
* Ex-Chefe do Estado-Maior do Exército.