Introdução: As Forças Armadas e as suas missões
Consideramos ser um enorme erro tratar-se a Instituição Militar e os militares como se de mera actividade de um serviço público e de funcionários da administração pública se tratasse, incutindo-se na sociedade a existência de uma situação que não é real. Não é igual na organização, não é igual no estatuto dos seus membros, como não é igual nas suas missões e atribuições. Na verdade, a sociedade civil compreende perfeitamente a especificidade de uns e o que os distingue dos outros; no entanto, quando os próprios poderes políticos tutelam as Forças Armadas e a função pública como uma mesma realidade, a comunidade tende a assumir a diluição dessas diferenças.
Efectivamente, embora integrando a Administração directa do Estado, a Instituição Militar é peculiar. Compete-lhe a gestão organizada da violência armada ao serviço do Estado e essa peculiaridade exige aos militares sacrifícios extremos, que são mais do que simples riscos de serviço das suas actividades penosas. Recursos humanos altamente qualificados, treinados, motivados e bem equipados são o fundamento da capacidade de qualquer força armada, reflectindo o desejo da própria sociedade. As Forças Armadas são, portanto, o elemento fundamental para a preservação dos interesses vitais da Nação, pelo que os militares na efectividade de serviço são sujeitos de deveres e direitos próprios da sua condição militar.
As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria; esta é a função militar. Assim, a condição militar, consagrada na Lei n.º 11/89 de 1 de Junho, que define as Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar (BGECM), impõe que o militar deva estar sempre pronto a defender a Pátria, mesmo com sacrifício da própria vida, e deva em todas as situações pautar o seu procedimento pelos princípios éticos e pelos ditames da virtude e da honra, adequando os seus actos ao cumprimento dos seus deveres e à obrigação de assegurar a sua respeitabilidade e o prestígio das Forças Armadas.
É a Constituição da República (art.º 275.º) que estabelece o tipo de missões das Forças Armadas, traduzindo-se estas numa vasta panóplia que integra missões de interesse público, missões de gestão de crises, missões a desenvolver em estados de excepção e missões de defesa militar. Esta realidade parece ser frequentemente esquecida quando as pretendem diluir na função pública. As Forças Armadas servem tradicionalmente para fazer a guerra; foi o que as nossas fizeram durante 14 anos nas campanhas em África, num esforço permanente e continuo distribuído por três teatros de operações, a uma distância considerável do Continente e, também então, com uma enorme escassez de recursos face às exigências e ao desafio militar que se lhe colocavam. Porém, desde 1992 as nossas Forças Armadas são garante da paz e segurança internacionais participando em operações de paz, em vários continentes, no âmbito dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado português e no respeito pela Carta das Nações Unidas. Também estas missões não são isentas do risco próprio de teatros de operações difíceis que, infelizmente, já se têm traduzido em baixas militares.
As operações militares no âmbito da gestão de crises não estão isentas do risco próprio dos teatros de operações difíceis
As missões consagradas constitucionalmente às Forças Armadas e os objectivos da defesa nacional exigem uma organização militar apoiada em conceitos tão evidentes como a hierarquia e a disciplina, sustentada por homens imbuídos dos valores tradicionais de unidade, sentido de honra, patriotismo, lealdade, espírito de corpo e camaradagem, e justificam a existência e a consagração constitucional de um direito militar. Este direito integra o sistema de justiça militar - do qual fazem parte o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar - mas, também, diplomas como as Bases Gerais do Estatuto de Condição Militar, o Estatuto dos Militares das Forças Armadas, a Lei de Defesa Nacional, a Lei do Serviço Militar ou a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas. Contudo, a existência de um ordenamento jurídico próprio não faz do militar um privilegiado. Pelo contrário, os militares vivem sob um regime jurídico especial com diversas restrições constitucionais e legais que os privam do pleno exercício de vários direitos fundamentais.
O primeiro dos deveres do militar é o da defesa da Pátria que, se necessário, é cumprido com o sacrifício da própria vida. Note-se que esta exigência de disponibilidade pessoal para o sacrifício supremo é exclusivamente feita a militares e a mais nenhum funcionário, constituindo a característica mais relevante da função militar.
A justiça penal militar
A existência de um foro próprio e de um sistema de justiça militar é muito antigo, podendo apontar-se como referência o ano de 1640 com a criação, logo após a Restauração da Independência, do Conselho de Guerra que funcionava como Tribunal de Apelação para alguns crimes praticados pelos militares e que se manteve em funcionamento durante cerca de dois séculos. A necessidade de um sistema de justiça militar não inteiramente integrado na justiça comum sempre se deveu ao facto de determinado tipo de ilícitos terem de ser conhecidos e julgados por quem seja capaz de ponderar a sua influência na hierarquia e disciplina das Forças Armadas. Actualmente o direito penal militar tutela interesses militares da defesa nacional e quando contemplamos o elenco dos crimes estritamente militares1 tipificados no Código de Justiça Militar constatamos que os interesses militares da defesa nacional correspondem aos valores fundamentais que baseiam a actividade e a organização destas.
Para a investigação dos crimes estritamente militares o legislador atribuiu competência específica à Polícia Judiciária Militar (PJM)2, na dependência funcional do Ministério Público (MP), porque pela natureza dos crimes e pelos bens jurídicos tutelados, a investigação criminal dos mesmos deve ser da responsabilidade de um órgão que percepcione facilmente os interesses jurídicos em causa. É esta também a razão da existência de juízes militares nos tribunais que julgam os crimes de natureza militar e de assessores militares a assessorar os magistrados do MP na fase do Inquérito. Os próprios crimes de foro comum cometidos no interior de unidades militares, e que são igualmente investigados por este órgão de polícia criminal, têm uma possibilidade de dano que extravasa o núcleo do bem jurídico que tutela porque, em razão do lugar onde são cometidos, estão conexionados com a vivência militar, afectando valores de confiança e de disciplina e, logo, a eficiência e eficácia das Forças Armadas. Estes mesmos valores e razões operacionais aconselham que o acesso às unidades, estabelecimentos e órgãos militares, para investigação destes crimes, seja condicionado por razões de segurança e reserva desses espaços. Daí a importância que a PJM e a Instituição Militar lhes atribui. Outro órgão de polícia criminal a realizar acções de investigação e de prevenção nestes espaços em vez de constituírem uma mais-valia no desenvolvimento de valores de coesão e confiança nas Forças Armadas provocarão, pelo contrário, danos nos mesmos.
Emergência e consolidação do órgão de polícia criminal militar: PJM
Em Portugal e até 1975 o exercício da autoridade judiciária para investigação de ilícitos criminais de natureza militar era da responsabilidade de quem detinha o comando, direcção ou chefia militar, que igualmente tinha competência para proceder disciplinarmente perante o cometimento de infracções disciplinares não merecedoras de tutela penal. As autoridades militares acumulavam, assim, o exercício da autoridade judiciária com a competência para instaurar procedimento disciplinar e averiguar a prática de ilícitos disciplinares. No âmbito do código de justiça militar então em vigor, que tinha sido publicado em 1925, a primeira fase do processo criminal militar era conhecida por corpo de delito e as atribuição dos agentes de polícia judiciária militar eram exercidas pelos Comandantes das Unidades militares. Assim, a instrução do corpo de delito pelo cometimento de crimes de natureza militar era da competência e responsabilidade dos comandantes que podiam delegar esse exercício em qualquer oficial ou aspirante a oficial seu subordinado, designado ad hoc. Frequentemente os instrutores designados tinham pouca ou nenhuma preparação jurídica, pelo que essa instrução era ineficiente e morosa. Assim, era urgente a criação de um Serviço que se dedicasse exclusivamente à investigação criminal, com pessoal habilitado com os necessários conhecimentos técnico-jurídicos e militares, actuando com exclusividade de forma célere e eficiente e impondo uniformidade de actuação em todo o território nacional.
Após Abril de 1974 e na expectativa de uma Constituição que consagrasse princípios democráticos e impusesse regras de procedimento e normas de direito penal militar com eles compatíveis, foi criado pelo Decreto-lei n.º 520/75, de 23 de Setembro de 1975, o Serviço de Polícia Judiciária Militar (SPJM) na directa dependência do Conselho da Revolução, com a finalidade de investigar os crimes sujeitos ao foro militar e instruir os respectivos processos. Em 09 de Abril de 1977, com a publicação do Decreto-lei n.º 141/77, o Código de Justiça Militar (CJM) foi harmonizado com os novos princípios consagrados na Constituição de 1976. Com esta revisão do CJM, alterou-se a dependência tutelar do SPJM, passando este a ficar subordinado hierarquicamente ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e foi reestruturada a organização judiciária militar sendo introduzida uma fase processual inteiramente jurisdicionalizada - a instrução - da competência e sob exclusiva direcção de Juízes de Instrução Criminal, que eram magistrados judiciais em comissão de serviço junto do SPJM. Com a publicação da Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, aprovada pelo Decreto-lei n.º 47/93, de 26 de Fevereiro de 1993, o SPJM transitou para a dependência do Ministro da Defesa Nacional (MDN) com a designação de Polícia Judiciária Militar (PJM).
Em 1997, a Lei de Revisão Constitucional n.º 1/97 operou uma radical transformação no foro militar ao extinguir os tribunais militares em tempo de paz. Esta reforma do sistema de justiça militar teve necessariamente repercussão na investigação processual dos crimes estritamente militares. Assim, com a publicação da Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar, aprovada pelo Decreto-lei n.º 200/2001 de 13 de Julho, e do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003 de 15 de Dezembro, ambos com entrada em vigor a 14 de Setembro de 2004, foi estabelecido um novo quadro legal para a actuação da PJM, definindo esta como um Corpo Superior de Polícia Criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Defesa Nacional e funcionalmente dependente do Ministério Público para efeitos da investigação criminal3. Com esta Lei Orgânica da PJM foi regulado o funcionamento deste Órgão de Polícia Criminal (OPC), adoptando-se disposições tendentes a clarificar a sua natureza, competência e princípios de actuação, estrutura e funcionamento e assegurou-se a aproximação entre os modelos previstos para a Polícia Judiciária Militar e para a Polícia Judiciária, uma vez que são os únicos órgãos de polícia criminal que têm a investigação criminal como actividade exclusiva. Para a investigação dos crimes estritamente militares, o legislador atribuiu competência específica à Polícia Judiciária Militar em face da especificidade dos ilícitos em questão e da sua evidente preparação para desempenhar as funções de investigação e de coadjuvação das autoridades judiciárias, pois é uma polícia especializada e vocacionada para actuar nas unidades militares onde se colocam questões de segurança e disciplina militar. A lei atribui-lhe igualmente competência reservada para a investigação de crimes cometidos no interior de unidades, estabelecimentos e órgãos (U/E/O) militares, em prejuízo de outros OPC, nomeadamente a Polícia Judiciária e a Polícia de Segurança Pública, mas sem prejudicar a competência já atribuída à Guarda Nacional Republicana (GNR) para a investigação de alguns tipos de crime ainda que cometidos no interior das suas U/E/O. Como se explicou na exposição de motivos do CJM, a mesma preparação que qualifica a PJM para investigar crimes estritamente militares, qualifica-a para a investigação de crimes que, não tendo aquela natureza, estão estritamente conexos com a actividade das Forças Armadas por serem cometidos no exercício de funções militares ou no interior de Unidades, Estabelecimentos ou Órgãos militares. E porque afectam a Instituição Militar, a sua investigação deve estar a cargo de um OPC especializado em função da matéria e sob dependência funcional do Ministério Público, evitando-se assim multiplicidade, sobreposição e conflito de competências entre OPC na sua investigação. As competências de investigação e coadjuvação das autoridades judiciárias relativamente aos crimes da competência da PJM são desenvolvidas através das equipas de investigação. Estas equipas de investigação são constituídas por um oficial investigador, chefe de equipa, e por outros investigadores, que podem ser oficiais ou sargentos das Forças Armadas ou, também agora, da Guarda Nacional Republicana.
Acresce dizer que estes investigadores militares são igualmente competentes para investigar os crimes de natureza militar cometidos no âmbito das operações de paz, no estrangeiro, e em tempo de guerra quando, neste caso, são obrigatoriamente constituídos tribunais militares ordinários ou extraordinários, foro que assenta quase exclusivamente em juízes militares. Ora, não se perceberia que os investigadores da PJM não tivessem, face a todo este circunstancialismo, a condição de militar.
Porém, têm sido noticiadas intenções de se alterar a dependência hierárquica da PJM que, conforme referido, é do Ministro da Defesa Nacional.
Que futuro para a PJM?
A justiça penal militar é direito penal especial porque tutela bens jurídicos especiais, isto é, valores não tutelados pelo código penal, que justificam mesmo a constituição de tribunais de composição especial para os julgar e de assessoria especial ao Ministério Público para os investigar. Assim, a PJM investiga os crimes estritamente militares que tutelam uma espécie de bens jurídicos: os interesses militares da defesa nacional, isto é, os interesses socialmente valiosos que se ligam às funções militares especificas de defesa da Pátria e outras cometidas pela Constituição às Forças Armadas. Pela natureza dos bens jurídicos tutelados, o órgão da administração que melhor poderá entender a relevância da disciplina e da hierarquia militar será, sem dúvidas, aquele que tutela a própria defesa nacional e as Forças Armadas.
Ainda se poderia entender que outra fosse a solução se no nosso país o sistema de investigação criminal fosse concentrado. Mas não é. No nosso sistema de investigação criminal, além dos OPC de competência genérica e reservada são muitos os OPC de competência específica sob a tutela administrativa de vários ministérios. Na verdade, não existe concentração de OPC no sistema de investigação criminal porque a sua desconcentração tem a ver com a matéria específica investigada por cada um na garantia de bens jurídicos directamente relacionados com as atribuições dos ministérios da tutela.
Por isso, como já referimos atrás, salvo alguns poucos anos após a sua criação em que o SPJM esteve na dependência do Conselho da Revolução, sempre a PJM esteve sob tutela hierárquica do MDN. Isto é, sempre a investigação criminal militar foi tutelada pelas Forças Armadas ou pelo órgão que tutela estas. Assim, não encontramos justificação para essas intenções de transferir a tutela da Polícia Judiciária Militar, atendendo também ao contexto referido de desconcentração dos órgãos de investigação criminal. Consideramos que uma verdadeira reforma de concentração ou fusão de OPC, como encontramos plasmada no programa do governo, não poderá passar pela extinção da PJM enquanto OPC subordinado à hierarquia administrativa do MDN, porque seria, no nosso entender, uma solução sem sentido face à natureza dos crimes investigados e aos bens jurídicos tutelados pela lei penal militar. Trata-se de um tipo de decisão normalmente irreversível apesar dos danos que venha a produzir no sistema de justiça militar. Só por isto seria exigível que passasse por um processo de análise e estudo com participação das várias entidades envolvidas e com interesse no sistema, mas nunca por um processo perfunctório e oculto daqueles. Mais a mais quando completamente omisso no programa de governo.
Mas, a acrescer a estes factos, parece não se ter em consideração que, no âmbito da justiça militar em caso de guerra, serão criados tribunais militares ordinários e extraordinários, podendo estes ser constituídos essencialmente ou exclusivamente por juízes militares, conforme o caso. Nesta organização judiciária militar, em que as próprias funções de Ministério Público são desempenhadas por oficial das Forças Armadas, julgamos evidente a necessidade de o OPC encarregue da investigação criminal estar sob a dependência hierárquica do MDN. A excepcionalidade das circunstâncias vividas no ambiente de guerra dá mais força à exigência de um órgão de polícia judiciária constituída por investigadores militares, na dependência do órgão que tutela as Forças Armadas.
Porém, preocupa-nos ainda o facto de, a acompanhar estas notícias sobre intenções de mudança tutelar da PJM, assistir-se à aparente degradação da componente administrativa e de investigação deste órgão de polícia criminal, podendo esta depois servir de justificação para a alteração e apresentar-se esta como facto consumado. Podemos ilustrar esta preocupação com uma pequena análise da situação actualmente existente na PJM. Em 26 de Agosto de 2011 o anterior director-geral da PJM cessou as suas funções por ter requerido a sua passagem à situação de reforma, pelo que este cargo se encontra vago. Assim, nos termos do estipulado no n.º 2 do art.º 41.º do Código de Procedimento Administrativo - e porque a tutela não demonstrou interesse na resolução desta situação por vias da nomeação em substituição - desde aquela data até 1 de Fevereiro, data de entrada em vigor da actual Lei Orgânica, aprovada pelo Decreto-lei n.º 9/2012, de 18 de Janeiro, o exercício de funções competiu ao subdirector-geral em funções. Porém, com a publicação deste diploma o lugar de direcção superior de 2.º grau (subdirector-geral) foi extinto e ainda assim o titular deste ex-cargo mantem-se em funções, desempenhando a substituição de um director-geral que cessou funções há oito meses. Parece-nos ser duvidosa a legalidade e validade dos actos administrativos e processuais que o mesmo oficial tem praticado enquanto responsável pela PJM. Evitar-se-ia esta situação se este oficial tivesse sido nomeado para exercer o cargo de direcção superior de 1.º grau em regime de substituição, nos termos do art.º 27 do Estatuto do pessoal dirigente da administração central, regional e local (Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, alterada pela Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto); o que não aconteceu. Ainda relativamente à componente de investigação, existe carência de investigadores, oficiais e sargentos, em virtude das saídas já efectivadas acompanhando a tendência também de outros de deixar a efectividade de serviço durante o ano anterior, sem que o curso de formação de investigadores previsto tenha sido realizado.
Assim, a falta de informação descendente e alguns artigos que têm surgido esporadicamente na comunicação social, têm provocado algum mal-estar e muita preocupação entre os funcionários. Não ficamos surpreendidos por a direcção da PJM e por a hierarquia das Forças Armadas não conhecerem os estudos que, presumimos, tenham estado a ser realizados, e ainda menos surpreendidos ficamos por aos mesmos não ter sido solicitado qualquer contributo para tal estudo. É que já a respeito dos diferentes projectos de diplomas que vieram alterar o sistema de justiça militar, esta Revista Militar, em Editorial de 25 de Junho de 2009 tinha denunciado o facto de o Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas lamentar a reduzida ou quase nula participação solicitada às Forças Armadas e a inoportunidade do Parecer pedido, da seguinte forma: “Dir-se-á que, na fase avançada em que eles [Projectos] se acham, praticamente acabados, e divulgada como já foi pela comunicação social a sua próxima aprovação pelo Governo, esta declaração é flagrantemente inoportuna e porventura incómoda, mas não quero deixar de reiterar perante este Conselho [CCEM] a discordância do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas pela forma apressada e ligeira como todo este assunto foi tratado, esquecendo que a disciplina militar é o mais forte esteio da coesão e da eficácia das Forças Armadas”.
Conclusão
Assim e resumindo, não encontramos justificação para a alteração da tutela administrativa da PJM e na integração desta na PJ. Esta não está vocacionada para assuntos relacionados com a defesa nacional e não tem o conhecimento nem a experiência institucional que é fundamental para entender os interesses jurídicos em jogo. Apesar de a PJM e a PJ terem em comum o facto de ambas terem por actividade exclusiva a investigação criminal, nada justifica a assumpção pela PJ das competências da PJM. Apesar do referido, convém realçar que o espirito de cooperação entre a PJM e a PJ é uma realidade e que tanto as capacidades da PJM como da PJ sempre estiveram ao dispor de ambas, não sendo conhecido qualquer atrito ocorrido digno de relevo, o que significa que a eventual mais-valia de utilização de melhores capacidades, por via da integração, também não será maior do que a atualmente existente.
Repetimos que as atribuições da PJM integram-se no âmbito da defesa nacional porque os factos ilícitos que investigam estão conexionados com os objectivos de defesa nacional. Tal como existe um foro próprio militar que em tempo de paz se reflecte na existência de juízes militares na composição dos tribunais criminais que julgam crimes estritamente militares, mas que em tempo de guerra é maioritariamente ou exclusivamente constituído por juízes militares, e tal como existe uma forma especial de assessoria do MP na fase do inquérito, constituída pelos assessores militares com intervenção através da emissão de parecer relativo às conclusões da investigação e na aplicação de medidas de coacção, também existe e faz todo o sentido que continue a assim ser, um OPC constituído por oficiais e sargentos investigadores na dependência hierárquica do MDN.
Não faz sentido que se altere esta dependência que compete ao órgão da administração pública que tutela a defesa nacional e as Forças Armadas, isto é, que é o garante da prossecução dos interesses militares da defesa nacional e dos valores fundamentais que devem ser a base da Instituição Militar. Acresce que, em matéria de prevenção criminal, a PJM deve preocupar-se em efectuar a detecção e dissuasão de situações propícias à prática de crimes estritamente militares, bem como dos crimes comuns ocorridos no interior de unidades, estabelecimentos e órgãos militares, pelo que tem o dever de manter ligação com as autoridades militares. Ora, neste âmbito é compreensível que a tutela responsável pelas Forças Armadas e pela defesa nacional - e tendo em consideração que estas desempenham missões no exterior reflectindo o interesse nacional e a política externa do Estado - tenha uma função essencial de orientação tutelar da actividade da PJM. É que, nos termos da Lei de Defesa Nacional, o Ministro da Defesa Nacional é responsável politicamente pela componente militar da defesa nacional, pelo emprego das Forças Armadas e pelas suas capacidades, meios e prontidão e, assim, possui poderes de coordenação e orientação das acções necessárias para garantir a participação de destacamentos das Forças Armadas em operações militares no exterior do território nacional.
Assim, atendendo a que a justiça militar tem por fim tutelar juridicamente os valores e interesses militares da defesa nacional onde se integram o valor da missão e da segurança militares, mas também o interesse da manutenção da capacidade e efectividade das Forças Armadas, aquela constitui um instrumento da própria defesa nacional. Não faz sentido que o órgão com competência específica para investigar factos que ponham em causa estes valores intrinsecamente relacionados com a defesa nacional não dependa da tutela do primeiro responsável político por esta.
* Coronel de Infantaria/Pára, na Situação de Reserva. Licenciado em Direito.
1 Dos crimes contra a Independência e a integridade nacionais; crimes contra os direitos das pessoas; crimes contra a missão das Forças Armadas; crimes contra a segurança das Forças Armadas; crimes contra a capacidade militar e a Defesa Nacional; crimes contra a autoridade; e crimes contra o dever militar e o dever marítimo.
2 No art.º 4.º da Lei n.º 97-A/2009, de 3 de Setembro, que revogou os art.ºs 1.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 200/2001, de 13Jul, Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar, alterada pela Lei n.º 100/2003, de 15Nov.
3 Actualmente, a Lei n.º 97-A/2009, de 03 de Setembro, combinada com o Decreto-lei n.º 9/2012, de 18 de Janeiro, constituem a Lei Orgânica, em vigor, da PJM, revogando as normas do Decreto-lei n.º 200/2001.