Nº 2523 - Abril de 2012
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Interesse Nacional e Soberania no plano europeu: Ainda são compatíveis?
Tenente-coronel
Reinaldo Saraiva Hermenegildo
“A sociedade já não é o que foi, não pode tornar
a ser o que era - mas muito menos ainda pode ser o que é.
O que há-de ser, não sei. Deus proverá”
(Garrett, cit., Homem, 2006, p. 233)
 
1. O Interesse Nacional
 
No presente ensaio abordamos os conceitos de interesse nacional, da evolução da soberania, a soberania e a integração europeia, as novas formas de interpretação e configuração da soberania no espaço europeu e apresentamos as conclusões do ensaio.
 
Entendemos o interesse nacional como a prossecução dos objectivos que um Estado pretende prosseguir e atingir no plano interno e externo, no curto, médio e longo prazo. O interesse nacional surge por regra associado às relações entre Estados1, ou seja, no âmbito das relações internacionais, embora nos dias de hoje, este seja delineado tendo por base não apenas as relações entre Estados, mas antes as relações entre actores das relações internacionais.
 
A forma como interesse nacional é perspectivado, varia intrinsecamente de acordo com a óptica de análise, assim iremos fazer uma breve passagem pelas duas principais teorias das relações internacionais - realista e liberal, para compreender que o interesse nacional é entendido de acordo com a perspectiva teórica que usamos.
 
No âmbito das relações internacionais, o interesse nacional emerge associado especificamente à teoria realista das relações internacionais, com Hans Morgenthau (2003) e anos mais tarde com Kenneth Waltz (2002), para não recuar a outros teóricos das relações internacionais ou da estratégia e para citar apenas dois dos mais conhecidos. Para estes, as políticas externas dos Estados são regidas pelo interesse nacional, dado este terem interesses egoístas no âmbito do sistema internacional, que é anárquico por natureza.
 
Para os realistas as acções sejam elas de que natureza forem são tomadas tendo por base o interesse nacional, ou seja, pretendendo salvaguardar ou aumentar a sua segurança, seja através de acções conduzidas de forma individual, em cooperação com outros Estados ou através de formas de integração política e/ou económica. Para esta escola, os Estados desenvolvem políticas de cooperação e de integração como forma de prosseguirem o seu interesse nacional, dado que estas permitem-lhe prossegui-lo. Não se trata assim de uma integração enquanto fim em si mesmo, mas como meio para atingir um fim, ou seja, o do seu interesse nacional.
 
Já para as correntes liberais, os Estados mantém relações entre si de cooperação para além das relações dos meros interesses egoísta. Os Estados têm interesses comuns possíveis de conjugar de forma harmoniosa, através de organizações internacionais que lhes permitem garantir a sua segurança, em virtude do recurso à diplomacia e à negociação fruto da participação nestas instâncias.
 
Nesta medida, podemos verificar que embora o conceito de interesse nacional varie conforme o campo de abordagem teórico, o que ele pretende alcançar é a manutenção da segurança e a prossecução dos fins do Estado, mesmo tendo formas diferentes de os atingir conforme as perspectivas de análise o entendem e expliquem.
 
De acordo com Sergio Pistone (2004, p. 642) «o conceito de interesse nacional, referido ao contexto das relações internacionais, indica uma tendência assaz relevante, mas de carácter geral - a busca prioritária da própria segurança - cujas manifestações concretas são extremamente variáveis e exigem, para ser claramente compreendidas, uma atenta consideração da situação histórica concreta».
 
Mesmo na actual vida política contemporânea é recorrente o uso abusivo, indiscriminado e por vezes vazio de conteúdo da denominação «interesse nacional», por parte de alguns políticos. Trata-se de um uso discursivo, por vezes sem substrato, mas o interesse nacional está lá, interpretado e dado a interpretar como a razão última para uma acção, plano ou política adequada que vai melhorar um determinado domínio. Paradoxalmente, por vezes, evoca-se o interesse nacional sem se dizer ou definir o que é em concreto.
 
Por isso consideramos o interesse nacional como situacional, varia de acordo com o contexto específico; discursivamente legitimador, na medida em que é usado como forma de legitimar uma acção; congregador de objectivos, estejam ou não definidos; adaptativo, pois os Estados procuram adoptar os seus interesses ao dos outros actores, para o redefinirem e optar pela melhor via de prosseguir.
 
No âmbito da estratégia, os Estados têm interesses permanentes e conjunturais. Permanentes são aqueles que são perenes no tempo, conjunturais aqueles que mudam de acordo com as conjunturas. O interesse nacional não é sempre o mesmo, ele varia consoante os contextos, se parte dele é permanente outro é mutável e ajustado consoante as conjunturas. No caso português, é notória essa evolução, ao estudar a posição de Portugal perante as questões europeias, este evoluiu ao longo dos tempos, se numa fase inicial da integração europeia o interesse nacional era dirigido para as matérias económicas, numa segunda fase, sobretudo depois de 1996, esse interesse é alargado às matérias políticas2.
 
No que concerne ao interesse nacional e europeu, «constate-se neste caso uma constante dialéctica entre o interesse comum europeu (…), interesses que podem ter um carácter essencialmente particularista e estar em contradição com o interesse comunitário ou, ao invés, tender à coincidência com tal interesse, como parece ser o caso (…) da exigência, manifestada pelos Estados mais pobres, de uma maior solidariedade por parte dos Estados mais ricos. A diferença entre a situação da comunidade e a de cada Estado consiste, sob este aspecto, no fato de que, enquanto nos Estados os órgãos institucionalmente incumbidos de fazer prevalecer o interesse comum, ou seja, um Parlamento directamente eleito e um Governo com poderes efectivos, se acham plenamente desenvolvidos, na Comunidade Europeia eles são por ora muito mais débeis (…), possuindo ainda, por isso, um peso excessivo os interesses nacionais de tipo particularista» (Pistone, 2004, p. 642).
 
 Por outro lado, o interesse europeu não é um interesse isolado ou antitético do interesse nacional. Este é definido pelos Estados-membros, na qual estes colaboram na definição do interesse europeu, sendo assim, um interesse alheio aos Estados-membros, mas definido com os contributos deles. É óbvio que estas relações também são relações de poder, e quem tem mais poder tem mais capacidade de influenciar à partida a definição do interesse europeu em função dos seus próprios interesses.
 
 
2. Soberania: o conceito e as interpretações clássicas
 
Torna-se fundamental abordar a conceptualização do termo soberania, a sua história e as respectivas reivindicações que têm sido feitas a respeito da soberanias dos Estados, para verificar a sua eventual desactualização contemporânea, pois sem a compreensão dos contextos e dos respectivos processos é difícil entender o conceito nos dias de hoje (Morris, 2005).
 
O Estado moderno de tipo europeu, nascido depois da guerra dos trinta anos (1618-1648), que veio a dar origem ao Tratado de Vestefália (1648), tem especificidades próprias: Estado Nacional, Secularização ou laicidade, soberania. É sobretudo nesta última que nos vamos concentrar. Aqui o conceito soberania compreendido como «poder supremo e aparentemente ilimitado dando ao Estado capacidade não só para vencer as resistências internas à sua acção como para afirmar a sua independência em relação aos outros Estados» (Miranda, 2003, p. 64).
 
O conceito de Estado e de soberania são indissociáveis, estes tal como hoje os conhecemos surgiram no séc. XVI, principalmente com Jean Bodin, entendida a soberania como poder supremo na ordem interna e poder autónomo e independente na ordem internacional. Para este, o conceito de «soberania integra as características do poder absoluto com uma unidade que se sobrepõe à complexa rede se suseranias e de homenagens, de laços hierárquicos pessoais, ao parcelamento da autoridade, à confusão entre poderes públicos e privados existentes no feudalismo» (Santos, 2005, p. 59). O poder soberano era entendido como estando acima de tudo, num plano superior.
 
Bodin entendia que soberania como sendo «aquele poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado. Ela é a força de coesão, o instrumento político imprescindível à República. Portanto, a soberania, na visão do seu principal formulador, é um poder absoluto, auto-suficiente, isto é, não se sujeita, de forma alguma, a outro poder (summa potestas superiorem non recognoscens). A soberania, conforme Bodin, seria ainda perpétua, transcendente, pois é exercida para sempre; indivisível, na medida em que na sua essência é una, isto é, o soberano é a única autoridade com poderes para promulgar a lei para todos, ordenar ou proibir o que quiser, não responde perante qualquer outro poder sobre a terra. Não há hipótese de soberania delegada, pois, se vier a ser, estará integralmente em cada delegação. O poder de fazer a guerra, celebrar a paz e, principalmente fazer ou revogar a lei, é exclusivo do soberano, pois esta qualidade só a tem quem não está ligado por vínculo algum de sujeição pessoal a quem quer que seja» (Pereira, 2003, pp. 17-18).
 
Entendia-se a soberania como fonte última da autoridade política dentro de um domínio. Subdividindo-se em soberania interna no tocante à governabilidade num domínio, externa relativa à independência de outros Estados (Morris, 2005).
 
O conceito de soberania não foi sempre o mesmo, este já existia mesmo antes do actual Estado moderno (Ibidem). Surgindo como forma de um determinado poder se legitimar na ordem interna e externa - dessa forma seria um poder sem igual na ordem interna e que não admitia poder superior na ordem externa.
 
Esta forma de legitimação tem as suas origens na Europa medieval, em que o poder político do monarca encontrava-se limitado pelo poder Papal e do Imperador, a qual consideravam-se como tendo o monopólio da autoridade suprema nos seus domínios, a espiritual e a temporal respectivamente (Bessa e Pinto, 2003).
 
Este conceito também se desenvolveu, sendo nós que os utilizamos e adoptamos. Os Estados é que reivindicam a soberania, em parte para se legitimarem, interna e externamente (Hermenegildo, 2006). A soberania é um atributo de determinados poderes políticos, que se arrogam em função disso soberanos (Morris, 2005).
 
A sede da soberania nem sempre foi a mesma, nem consensual tão pouco, pois mesmo entre os clássicos houve divergências, para Hobbes a soberania era o monarca, para Rousseau era o «povo», para a Declaração dos Direitos do Homem era a Nação, para a Grã-Bretanha a soberania era a Rainha no Parlamento, no continente era o Estado (em oposição ao governo).
 
Mesmo entre os autores clássicos e tributários das origens da soberania o entendimento do conceito não é o mesmo. Bodin entendia-a como o poder de «fazer e revogar a lei», pois este integraria todos os outros poderes. Já Hobbes, considerou-a como o monopólio da força ou da coerção física. Anos mais tarde, Carl Schimtt entendia a soberania como o poder de decidir em estado de excepção, que é diferente do monopólio da lei ou da sanção, mas entendia que a soberania residia no monopólio em última instância, da decisão de decretar do estado de excepção, dado esta só aparecer em casos limites e excepcionais (Bessa e Pinto, pp. 64-65). Segundo o próprio autor «a autoridade demonstra não ter necessidades de direito para criar direito» (Carl Schimtt, 1972, p. 40. Cit., Bessa e Pinto, p. 65)3.
 
António C. Alves Pereira (2003, p. 16) salienta que «com a formação dos grandes Estados nacionais no século XVI desenvolveu-se o moderno conceito de soberania, para expressar a extensão do poder estatal em toda a sua plenitude. A partir do fim das guerras religiosas organizou-se a nova sociedade internacional com base no Direito Internacional resultante dos Acordos de Vestefália (1648), compreendendo, desde então, um sistema interestatal centrado na teoria da igualdade soberana dos Estados. O conceito de soberania configura uma categoria histórica, portanto, variável no tempo e no espaço».
 
 Com os Estados modernos vieram-se a consagrar os conceitos de soberania ilimitada, apesar de o conceito de soberania em Bodin não consagrar a existência de um poder soberano ilimitado. Tendo em vista cessar com alguns dos paradoxos à volta do conceito Charles Rosseau, defende a sua substituição pelo conceito de Independência. Para Rosseau, a soberania é o poder absoluto e incontornável do Estado de agir (tanto nas questões internas como externas).
 
No entanto, algumas teorias contemporâneas não aceitam o termo de soberania absoluta, e preferem em função da actual conjuntura internacional, «o princípio da soberania como poder limitado pelo direito». Ainda para Rosseau, «o Estado não dispõe de um poder ilimitado e incontornável, a noção de soberania não serve para critério do Estado. Por isso propõe o conceito independência - que, habitualmente, se identifica com o conceito de soberania externa» (ibidem).
 
O exercício pleno dos poderes soberanos por parte de um Estado, são logo limitados desde o início, uma vez que para um Estado ser aceite na ordem internacional tem de ser reconhecido pelos outros Estados, «a importância do facto resulta de que um Estado apenas adquire a personalidade internacional e pode exercer as inerentes prerrogativas se tiver sido reconhecido pelos outros Estados; cada Estado é livre de reconhecer ou não reconhecer um Estado que aparece» (Moreira, 1997, p. 293). O que se compreende facilmente que o Estado está desde o inicio limitado por outros Estados, já que uns podem reconhecer ou não outros.
 
Numa das suas obras Adriano Moreira (1997, p. 292) refere que «o conceito de soberania é o elemento organizador, ao mesmo tempo ideológico e estrutural. Trata-se do “poder absoluto perpétuo de uma República” (Bodin), esta última palavra significando Estado. O seu corolário é a independência de cada um em face de todos, e portanto a igualdade jurídica. A evolução do modelo para Estado nacional». Princípio este que hoje está posto em causa.
 
A noção de soberania caracteriza-se por ser absoluta, inalienável e indivisível. A soberania é inalienável, pois não pode ser delegada ou “representada”. É indivisível dado não poder ser dividida. Porém, para Carl Schmitt atribuía a soberania a quem quer que decida em circunstâncias especiais. O poder ilimitado é a soberania absoluta, segundo Hobbes na sua obra o Leviathan. O raio de acção soberano é diferente de ser ou não soberano. Um estado pode ser limitado (ou não absoluto) e mesmo assim manter a prerrogativa de ampla autoridade (Morris, 2005).
 
 
3. Soberania e integração europeia: desactualização ou evolução do conceito?
 
Segundo Morris (2005, p. 254), «a dupla preocupação com a autoridade interna e externa reflecte o contexto histórico das concepções clássicas de soberania». Nos tempos actuais, essa necessidade não faz sentido, pois muitas vezes no seio da União Europeia, o que é interno é externo e o que externo é interno. É uma organização sui generis, onde não há uma distinção precisa entre o que é política interna e política externa.
 
Ser soberano é ser a fonte final de autoridade política dentro de um Reino, como defendiam alguns clássicos - Bodin, Hobbes, Rouseau, embora com variações entre eles em alguns aspectos (ibidem).
 
Hobbes afirma que se desejarmos ter um Estado, não podemos evitar a soberania (clássica), pois limitar o poder acarreta estabelecer um poder maior, e este último será ilimitado, a menos que ele próprio seja limitado por um poder ainda maior, e assim por diante. Segundo ele a soberania tem como fim assegurar a paz e a segurança, para os quais os Estados são constituídos, nessa medida, necessitam de poder e autoridade ilimitados e indivisíveis, pois os poderes divididos destroem-se mutuamente (ibidem). De acordo com os partidários da soberania clássica, a soberania não está sujeita à lei, ela é a própria lei, a máxima lei.
 
Soberania implica fronteiras bem delimitadas. Porém, hoje as fronteiras dentro da UE são mais um «apontamento administrativo» do que uma separação física de territórios nacionais. Os controlos fronteiriços entre Estados-membros da União praticamente desapareceram, bem como o controlo policial. Por outro lado, institucionalizaram-se agências de controlo externo das fronteiras da União (FRONTEX), passaram-se a realizar mais controlos móveis entre forças policiais de países da UE, aumentou-se a cooperação policial no que toca à troca de informações e prevenção de ameaças comuns à UE. Esta evolução é significativa, dado que as preocupações fronteiriças da UE deixaram de ser as fronteiras entre Estados-membros, mas sim a fronteira comum da União, perante ameaças de um «outro» externo.
 
A soberania requer em primeiro lugar uma hierarquia de autoridades. O plano europeu, apresenta-se como um sistema sui generis, existindo hierarquia de autoridades diferenciadas conforme os domínios. Não existe, todavia, é uma hierarquia e uma autoridade com controlo total em todos os domínios. Se no âmbito das matérias sujeitas ao método de decisão comunitário estamos perante uma autoridade supranacional, tendo inclusive competências a União para emitir Regulamentos, com aplicação directa e imediata nos Estados. Em áreas da política externa e de segurança, a autoridade permanece nos Estados-membros, políticas sujeitas em geral ao modelo de decisão intergovernamental, onde prevalece a regra da unanimidade nas decisões. Por fim, nas temáticas da cooperação policial e judicial em matéria penal, estamos a meio caminho entre as duas áreas ora referidas, em que permanece um misto de método comunitário e intergovernamental. A hierarquia da autoridade existe, porém, não é sempre a mesma em todos os domínios.
 
Nos governos modernos a soberania é directa e sem intermediários, em contraste com o controlo indirecto, característico da Europa medieval. Tem autoridade sobre todos os níveis da hierarquia (ibidem). No contexto europeu actual, em parte regressamos ao período medieval, pois mutatis mutandi, não existe uma entidade com autoridade sobre todos os níveis da hierarquia e em todos os domínios. Na actualidade assistimos a múltiplas autoridades e vários centros de decisão, com interdependências múltiplas.
 
Segundo Blackstone «há e deve haver em todos (as diversas formas de governo) uma autoridade suprema, irreversível, absoluta, incontrolável, na qual residam os “jura summi imperii” ou os direitos de soberania» (idem, p. 260). Porém, o que não existe no âmbito europeu é uma autoridade que tenha essa autoridade em todos os domínios, existem sim autoridades diferenciadas consoante os domínios das matérias.
 
Os Estados limitados admitem que são assim apenas por aquelas restrições que reconhecem; quando limitados por normas externas, é porque as reconhecem e incorporam. Há limites para a autoridade dos Estados, mas somente aqueles reconhecidos pelo Estado, (Morris, 2005). Os limites que os Estados reconhecem e admitem não são verdadeiros limites, dado que estes foram feitos por vontade própria dos Estados, porque estes limites são parte integrante do Estado e do seu interesse nacional.
 
Estados limitados alegam ser limitados apenas e “tão-somente” pelas restrições que reconhecem. Para os clássicos já não existiria soberania, pois esta é ímpar e unificada. Porém, há poucas matérias para considerarem os Estados, ainda que justificados, como classificando-os soberanos em termos clássicos.
 
Mesmo na perspectiva weberiana, o Estado como monopólio da força legítima dentro do seu território, ficou com esta capacidade fragilizada, não apenas pela incapacidade de se defender de ameaças externa isoladamente, mas também porque não controla outras forças no interior do próprio território. A tipologia (das novas) ameaças4 veio colocar em causa o monopólio da força legítima dos Estados.
A possibilidade da existência de Estados federais significa que a soberania não necessita de estar unificada (nas mãos de uma pessoa ou organismo). No caso de Estados federais5 ou a caminho deste a soberania não está unificada, o que para alguns clássicos não existiria, dado estar dividida. Porém, a estas concepções teóricas a experiência empírica comprova que alguns actores das relações internacionais, não sendo Estados, nem soberanos, tem mais poder que a generalidade de Estados soberanos. Vejamos o caso de Portugal, seria o país mais soberano se não fosse membro da UE? Pois se não o fosse não teria de abdicar de parcela da sua soberania. Poderia continuar a emitir moeda; não estar sujeito aos Regulamentos comunitários; não ter de cumprir critérios de convergência impostos pelas instâncias comunitárias; cumprir as decisões do Tribunal de Justiça Europeu; ter o controlo das fronteiras, entre outras. Tendo estas prerrogativas tipicamente soberanas seria Portugal mais soberano, ou soberano segundo os entendimentos clássicos? A resposta parece-nos óbvia e imediata, Portugal não seria mais soberano caso não estivesse integrado na UE. Considerar o inverso, ou seja, não sendo membro da União, é apenas ver parte dos factos e olhar desleixadamente para os contextos. Pois as vantagens de ser membro da UE são esmagadoramente superiores de não o ser. Veja-se a quantidade de Estados que pediram a adesão à UE e que aderiram nos últimos anos, se o fizeram é porque é benéfico estar dentro da União. Quanto maior for o nível de integração de Portugal na União maior será o seu poder no seio da mesma. Um pequeno Estado tem mais poder se partilhar competências com Estados de maior dimensão, do que estar isolado.
 
Mesmo limitada a autoridade dos Estados pode ser a «máxima, final e suprema» de um domínio (Morris, 2005), segundo o entendimento de Hobbes e Kant. Mas o que isso lhe vale? Ser a entidade máxima, final e suprema, se depois não tem poder efectivo na cena internacional? Será este o ponto mais importante par um Estado? Defendemos que não.
 
As concepções clássicas são precisamente «clássicas» e construídas tendo por base os contextos de um determinado período. Aliás, mesmo entre os clássicos, não existe entendimento quanto à definição de soberania.
 
Como salienta António Marques Bessa e Jaime Nogueira Pinto (2003, p. 67) «a construção europeia, ao caminhar para a Federação, não pode evitar (…) a resistência das soberanias tradicionais, mas se surgir um poder europeu, este não pode deixar de ser um poder soberano, de modo que a crise da soberania dos antigos Estados deve ser considerada com toda a cautela porque se transmuta na soberania de um super-Estado. Há soberanias em crise e isso é óbvio, mas há seguramente outras na forja - e o tempo, esse espaço de afirmação dos deuses novos - há-de oferecer-nos exemplos disso mesmo».
 
Porém, «essa soberania encontra-se também limitada no plano externo pelas Organizações Internacionais, que encontram meios para veicular as duas decisões sobre Estados soberanos, pela presença de multinacionais fortíssimas que não raro aparecem no horizonte do soberano e impor comportamentos, e pela própria existência de grandes poderes na conjuntura que instrumentam e condicionam os pequenos poderes só ilusoriamente podem reivindicar uma pretensa igualdade formal num universo político hierarquizado» (ibidem). Os autores ora referidos falam em «limitação», porém, os Estados são quase obrigados a aceitarem essa limitação, pois se não forem membros de certas organizações internacionais, mais limitada ficará a sua soberania. Ou seja, é uma limitação negativa porque os limita; positiva, porque é a melhor forma que eles têm de perder o menos poder possível e ganhar importância a nível internacional.
 
Como sublinhou Christopher Morris (2005, p. 313) «as fontes de autoridade políticas são múltiplas e nenhuma precisa de ser suprema», quando falamos em espaços de integração europeia, temos de ter em mente esta afirmação, dado que no seio da União o que verificamos é várias autoridades políticas, sem por vezes nenhuma ser suprema.
 
Segundo o mesmo autor, os estados não são, nem precisam ser, soberanos (ibidem); Pois o que mais importa é sim o poder que os Estados possuem, mais importante do que afirmar que um Estado é soberano, apenas por uma questão de orgulho ou de amarras históricas.
Para Adriano Moreira (1997, 329) «a crise do estado soberano é o principal desafio político deste fim de século, e o modelo político a reinventar não afecta o valor da Nação obriga sim a rever os modelos políticos para responder simultaneamente a dois valores essenciais: respeito pelas identidades nacionais, étnicas e culturais, e a relação dos Direitos do Homem». Nessa medida, o que está em crise é a autenticidade do conceito de soberania (Maltez, 1996).
 
O Estado tem de ser funcional, mais importante do que procurar ser «virtualmente soberano», e ser funcional implica adaptar-se constantemente, de forma a dar continuidade ao Estado, pois «o que não permanece é a funcionalidade do Estado soberano, que não é sempre a resposta procurada para a defesa da identidade nacional» (Adriano Moreira, 1997, p. 329).
 
Para além das discussões teóricas e filosóficas que se possam gerar em torno do conceito de soberania e da sua compatibilidade com o interesse nacional no plano europeu, no cômputo pragmático, a soberania é compatível com o interesse nacional no contexto europeu, sendo inclusive a sua integração neste espaço que reforça a soberania dos Estados e lhe permite prosseguir os seus interesses. Caso não o fosse, os Estados não aderiam nem aumentavam a sua participação nas instâncias comunitárias, como é o caso de Portugal6.
 
Continuar preso às amarras de conceitos teóricos clássico, que pouco servem em termos concretos, para além de debates teóricos, é um exercício que pode não conduzir a nenhum caminho concreto final. Nessa medida, «se a natureza da soberania jurídica do Estado começa a criar mais problemas do que resolve, é natural que haja um processo de gradual erosão da soberania estatal, pelo menos de acordo com os moldes actuais» (Cravinho, 2006, p. 260).
 
Por outro lado, muitas vezes por um objectivo de tentativa de legitimação olha-se para a soberania essencialmente numa perspectiva normativa. Todavia, «o estatuto jurídico de soberania não significa que o aparelho estatal em causa tenha automaticamente controle sobre a distribuição de poder a nível interno nem significa que tem liberdade para escolher aquela que lhe parece mais conveniente no plano internacional. Em termos políticos, “soberania” é um termo relativo; em termos jurídicos, é absoluto» (ibidem).
 
Segundo João Gomes Cravinho (2006, p. 269) «há circunstâncias em que o comportamento do Estado (as decisões tomadas pelo aparelho estatal) é de tal forma condicionada por forças políticas internacionais que apenas no sentido formal de responsabilização jurídica é que podemos falar de responsabilidade de uma decisão».
Enquanto qualidade jurídica, a soberania é absoluta: ou se tem ou não se tem (ibidem). Esta é uma questão central, dado que em termos normativos os Estados até podem ser soberanos, e por regra fazem questão de prever mesmo essa essência em termos legais e constitucionais. Porém, em termos políticos e de facto dificilmente existem na contemporaneidade Estados soberanos, nomeadamente no espaço europeu….
 
Declarar a guerra, fazer justiça, criar impostos e cunhar moeda, foram durante muitos anos atributos essenciais da soberania do Estado. No entanto, paulatinamente o Estado tem perdido alguns destes atributos, ou pelo menos o seu controlo total.
 
A UE faz leis, cobra impostos, emite moeda, isto é, tem alguns dos poderes soberanos, que alguns Estados já nem possuem. Este último atributo supra mencionado, Portugal já deixou de ter moeda nacional e de a cunhar, após adesão ao Euro. E percorrendo a linha de pensamento de Gilberto Dupas (cit., Pereira, 2003, p. 22) o Estado-nação «está cada vez mais limitado para decidir plenamente a sua política monetária, definir seu orçamento, organizar a produção e o comércio e cobrar impostos sobre as empresas». O caso particular da União Europeia sobre o «prisma da soberania, conforma uma situação particular», uma vez que passou, por exemplo a poder «cunhar moeda, pois esta competência é um dos apanágios da soberania estatal» (Pereira, 2003, p. 25).
 
Havendo essa repartição originária de poder político por todos os corpos sociais perecias, não há uma soberania una, inalienável, individuais e imprescritível. O próprio poder supremo é plural, contratualizável, divisível e susceptível de extinção (Maltez, 1996).
 
As grandes decisões já não são tomadas dentro do Estado mas entre Estados. Os Conselhos de Ministros da UE e os Conselhos Europeus passaram cada vez mais a tomar decisões (importantes) com impacto directo nos Estados-membros e em áreas antes reservadas ao poder decisional dos Estados.
 
Os Estados ao participarem nas questões políticas, revigoram a sua política, aumentam o poder, ganham visibilidade internacional. Portugal ao longo da integração europeia, foi aumentando gradualmente a sua participação e aproximação às instâncias comunitárias, passando progressivamente a participar activamente em todas as matérias comunitárias, com destaque para as de carácter político.
 
A soberania foi um conceito inventado pelos homens, num determinado contexto e com um determinado fim, o qual hoje já não se encontra actualizado, tal como foi definido. Os Estados evoluíram, o sistema internacional transformou-se completamente, a soberania hoje a existir não é da mesma espécie.
 
O Estado não está em crise, «está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótica ou jacobina, a qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais» (Maltez, 1996, p. 383).
 
Se uma sociedade transfere poder para outra entidade é porque lhe é mais vantajoso. A União Europeia não é uma instituição autónoma dos Estados, estes são a própria UE, fazem parte integrante da mesma e são elas que decidem o futuro da União. Nela existem uma pluralidade de centros de decisão, consoante as temáticas, repartidos e/ou distribuídos pelas instituições europeias, pelos Estados-membros, ou por estes e as instituições comunitárias.
 
Quando se fala em soberania ou na perda desta, olha-se em geral para a eventual perca de soberania externa. No entanto, a nível interno os Estados também não são soberanos em sentido clássico, dado haver forças que não controlam. Segundo Adelino Maltez (1996, p. 386) «a soberania tanto é divisível para cima como para baixo», com efeito, é no mínimo redutor afirmar que os Estados não são soberanos quando perdem ou partilham algumas das suas premissas soberanas no campo externo, quando por regra já partilharam ou descentralizaram competências no âmbito interno.
 
Há mais vida política para além do Estado soberano, o mundo hoje funciona em redes sobrepostas, entrecruzadas e múltiplas. O que implica outras formas de organização política para além do tradicional Estado soberano, de forma a dar resposta aos interesses do próprio Estado e acima de tudo das suas populações.
 
Por outro lado, olhar para a soberania em termos clássicos, implicaria praticamente afirmar que os pequenos Estados não são soberanos em termos concretos, porém, o normal é reconhecê-los como soberanos formalmente, sem grandes preocupações em termos de saber se em termos políticos o são. Na nossa opinião, são-no em termos políticos, quando integrados em espaços como os da EU e participam de forma activa nos principais assuntos das instituições.
 
Porque se dá esta evolução? Porque o «mero» Estado não consegue dar respostas às necessidades da população e cumprir as suas responsabilidades na prossecução dos seus fins enquanto estado. Por outro lado, um Estado não ser soberano, não implica o seu fim, nem o «fim da histórica política» (Maltez, 1996, p. 375), pois surgem novas formas de organização política, como os grandes espaços.
 
Verificamos actualmente uma proliferação de centros de decisão, com várias «sedes» do poder, como é o caso particular da União. Nessa medida, a UE não elimina os Estados, mas integra-os em áreas de interesses comuns.
 
 
4. Novas interpretações e configurações da soberania
 
Na actualidade entendemos que o conceito de soberania em termos clássicos não faz sentido ser usado, nem interpretado, está desactualizado em relação à sua génese. Por isso, não se pode usar conceitos do passado para compreender, explicar e interpretar contextos actuais.
 
O conceito de soberania surge num determinado contexto e com um determinado fim, sendo à luz desse contexto que deve ser compreendido. Por outro lado, tal conceito procurava legitimar acções concretas, que na actualidade já não existem.
 
Nos tempos actuais, existem várias e varáveis sedes de poder consoante o domínio das questões. O Estado não consegue ter um controlo efectivo sobre todas as áreas, no plano interno e externo, nessa medida tem de cooperar e partilhar parcelas de soberania. Hoje os estados tem mecanismos de cooperação e de integração colocando em comum interesses, que lhe permite alcançar em conjunto e harmonia.
 
Temos assim quatro vias: a primeira, o conceito de soberania é o clássico, e dessa forma não há Estados soberanos; a segunda, consideramos o conceito de soberania desactualizado e sem qualquer utilidade nos dias de hoje, deixando-o de parte; a terceira, a soberania em si não está afectada, o que está é o seu raio de acção; a quarta, consideramos o conceito como evolutivo e adaptativo aos contextos, e desta forma temos um conceito de soberania diferente do termo clássico. Porém, seja qual for a opção esta será sempre mais uma discussão essencialmente académica e filosófica, pois na verdade seja qual for a via preferencial, a actividade política continuará a desenvolver-se, independentemente dos conceitos e da forma como são interpretados… pois como afirmou o Marechal Castelo Branco na prática a teoria é outra…
 
Os conceitos em ciência política não são neutros, e o de soberania também não excepção, bem pelo contrário, está carregado de uma carga ideológica, quer se queira manter o conceito ou considerá-lo desadequado na contemporaneidade.
 
António Marques Bessa e Jaime Nogueira Pinto (2003, p. 72) são claros nesta matéria: «não há que ficar perplexo. Há antes que entender que se trata sempre e em todo o caso de vigência ou acaso de fórmulas políticas tendentes a estabelecer uma plataforma legitimadora - e não apenas legal - para quem manda, e nunca de investigações empíricas sobre a origem ou a sede real da soberania e os modos mais eficazes de lhe dar expressão».
 
Continuando a acompanhar os referidos autores, «como se pôde verificar, o debate sobre a soberania e o seu destino está longe de estar concluído. A polémica prosseguirá ao sabor das práticas políticas e dos interesses ideológicos, mas resta uma certeza: a soberania não é mais nem menos que um poder político qualificado. E o que se sabe é que o poder nunca cede algo. Daí que constitua uma perplexidade o Estado pós-moderno estar disposto, segundo alguns, a dar de barato capacidades e privilégios que até hoje defendeu, preservou e alargou» (idem, p. 73).
 
Nos tempos modernos verificamos que existem entidades com mais poderes do que os Estados (apesar de ainda se designarem soberanos), que embora não sejam soberanos tem mais poder do que estes, podendo inclusive condicionar o comportamento de Estados ditos soberanos. Sendo assim, fará sentido continuar agarrado a esses conceitos?
 
O facto de existirem vários Estados pertencentes a múltiplas organizações internacionais de natureza diferenciada, quer de cariz política, económica quer militar, limita e impede até a acção dos Estados, deixando de ter o poder de querer e comandar, tal como o tiveram no passado» (Pereira, 2003, p. 20).
 
Segundo Adriano Moreira (in Santos, 2005, p. 10) presentemente assistimos, no que concerne aos vários tipos de soberanias, a «transferências de competências soberanas para modelos de soberanias cooperativas, participadas, ou até hierarquizadas, é de regra inevitável sem modelo final padronizado».
 
Actualmente os Estados tendem a transferir poderes para múltiplas organizações internacionais às quais pertencem, de tal forma que os Estados «parecem compelidos por diversas ordens de factores (…) a prescindir de sucessivas e crescentes parcelas da sua soberania» (Calheiros, 2003, p. 23).
 
As mutações existentes no sistema internacional, em parte devido ao processo de globalização em curso, tornaram as relações internacionais mais fluidas, tornando-se por vezes difícil saber onde está o centro de decisão, porque este, também em boa verdade deixou de existir na verdadeira acepção da palavra, o que obrigou os Estados a repensar as suas funções. De acordo com Habermas (cit., Rebelo, 2005, p. 55) «a deslocação da organização da comunidade política para novos níveis de decisão - revela a União Europeia como resposta dos Estados Europeus a essa sua contemporânea incapacidade organizativa».
 
As interacções criadas nas relações internacionais no actual «mundo novo dos “fluxos internacionais” privilegia as relações informais entre indivíduos e grupos, funciona mais com a eficácia do que com a legitimidade, tende a alargar permanentemente a sua autonomia em relação ao universo das regulações estatais» (Boudouin, 2000, p. 90), conduzindo a que os Estados percam o controlo sobre todos os fluxos. O aumento dos fluxos internacionais conjuntamente com o aumento das interdependências a nível global, implica que os «problemas internos tendem com frequência crescente para se transformarem em internacionalmente relevantes, e que estes por sua vez tendem para internacionais» (Moreira, 1997, p. 296).
 
Neste novo cenário internacional, os conceitos de soberania e fronteira tendem a diluir-se, mesmo para países que sempre tiveram as sua fronteiras estáveis há vários séculos como Portugal, e presentemente «a soberania do Estado Português dilui-se há muito em questões maiores ainda do que a definição da ZEE: as nossas fronteiras têm a dimensão de 25 países europeus; a moeda é única, por ora a 12; o PEC é de todos; a segurança é cada vez mais uma tarefa «comum»; o nosso universo jurídico é (quase) um ditado que nos chega aos ouvidos desde Bruxelas, o poder de fazer a guerra é, cada vez mais conjunto; a organização económica segue o modelo da cartilha de Roma; e os impostos são cada vez menos domínio estadual» (Rebelo, 2005, p. 10).
 
Com a integração na UE, Portugal vai de futuro continuar a transferir atributos essências da soberania nacional para a União, não que esta seja, eventualmente, uma opção nacional, mas sim uma necessidade de poder acompanhar o processo de integração europeia da forma mais activa e participada possível. Com o desenvolvimento da PESC e da Cooperação Policial e Judicial em matéria penal, apesar de não fazer cessar os sistemas nacionais, tem implicações directas nestas áreas fundamentais do Estado.
 
Manuel Castells (cit., Pereira, 2003, p. 26) referindo-se ao conceito de Estado-rede assinala que a União Europeia «está organizada como uma rede que implica compartilhar soberania, em vez de transferir soberania a um nível superior (…) que não elimina o Estado-nação e sim o redefine (…) este tipo de Estado parece ser o mais adequado para processar a complexidade crescente de relações entre o global, o nacional e o local, a economia, a sociedade, a política, na era da informação».
 
Adriano Moreira (2003, p. III) no prefácio de uma das suas obras refere que «houve uma alteração fundamental nas circunstâncias que antes apontaram para a autonomização da ciência política e das relações internacionais, que foi a crise do Estado soberano acompanhada pela multiplicação de outros agentes na vida internacional».
 
Não podemos omitir o facto de que a «sustentação jurídica da União Europeia está na transferência de soberania por parte dos Estados membros» (Pereira, 2003, p. 25). Para Joana Stlezer (cit., Pereira, 2003, p. 25) a transferência de parcelas de soberanas «tornou-se possível em virtude da mutação que o próprio conceito de soberania sofreu ao longo do tempo. Ora, se a conceituação de soberania continuasse atada à sua ideia e poder absoluto e intangível, a partir de um acto de transferência de soberania, o Estado deixaria de existir ou a transferência não se completaria (…) Antes una e absoluta, a soberania passou a se demonstrar divisível».
 
Actualmente, como refere António C. Alves Pereira (2003, p. 20) «não há, definitivamente, que falar em soberania absoluta, uma vez que este é um conceito desenvolvido è época do fastígio do eurocentrismo (…) sendo uma categoria político-jurídica de natureza eminentemente histórica, portanto, variável no tempo e no espaço, a soberania passa, nos dias actuais, por uma completa transformação (…) torna-se cada vez mais difícil formular uma definição abrangente de soberania».
 
Para Celso D. de Albuquerque Mello (cit., Pereira, 2003, p. 21) o conceito de soberania trata-se de um «“conceito jurídico indeterminado e cujo conteúdo e limites vai variar com a consciência jurídica e as circunstâncias políticas em cada época histórica”. Trata-se, pois, de uma das noções mais obscuras e mais polémicas no âmbito do Direito Público e da Ciência Política».
 
Para uma panóplia diversificada de autores, o conceito de soberania não perdeu importância, já que «a soberania tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica única. Esta nova forma global de economia é o que chamamos de Império» (Pereira, 2003, p. 27). Já para outros autores como Anthony Giddens (cit., Pereira, 2003, p. 46), «a soberania não é indivisível, mas regular e caracteristicamente moldada pelas posições geopolíticas dos Estados, suas respectivas forças militares e, em um grau menor, pela sua situação na divisão internacional do trabalho».
 
Adriano Moreira (2003, p. 398) refere que «numa conjuntura em que a interdependência é a regra, e em que a soberania, como vimos, muda de conteúdo, parece mais viva do que antes a reivindicação da igualdade efectiva dos Estados, o que parece contrário à natureza das coisas. Nunca aconteceu que essa igualdade fosse efectiva, nem é de esperar que, mantendo-se o Estado como modelo do agente político internacional por excelência, isso venha a acontecer. O elitismo, baseado no poder efectivo ou no poder funcional, é que parece ser a regra da comunidade internacional». Para este autor os Estados continuam a ser soberanos, apesar de o conteúdo da soberania ter mudado. Ou seja, pode-se falar em soberania, mas não nos mesmos moldes como foi concebida. A soberania afastou-se paulatinamente do seu conceito clássico, perdendo a sua essência.
 
Para António Celso Alves Pereira (2003, p. 26), «os Estados-nação estão deixando de ser sujeitos soberanos e passando a ser actores estratégicos que se ocupam dos interesses daqueles que supostamente representam, em sistema global de interacção. Trata-se de uma situação de soberania partilhada sistematicamente».
 
Os Estados modernos deixaram de ser soberanos na sua essência, perdendo concomitantemente, parte do «monopólio da força legítima» para usar a terminologia de Max Weber. Contudo, o conceito de soberania não desapareceu, porque os Estados continuam a ter soberania, com uma particularidade - só têm a soberania possível, que é limitada. Na mesma linha de pensamento, Noberto Bobbio (1988, p. 172), refere que o «Estado não só não desapareceu como cresceu e se alargou de modo a suscitar a imagem de um polvo de mil tentáculos».
 
 
Conclusão
 
Verificamos ao longo deste pequeno ensaio que o conceito de soberania emergiu num determinado contexto e foi definido em função do mesmo. Embora não haja um consenso, mesmo entre os clássicos quanto à sua definição, é evidente que ele foi destinado a caracterizar e legitimar um determinado tipo de organização política.
 
A soberania tem sido a justificação constitucional do poder político absoluto. Uma espécie de proclamação jurídico-legal do poder político supremo. É complexo determinar o que é soberania. Se em termos jurídicos a sua definição é objectiva e precisa; em termos políticos é complexo, subjectivo e politicamente ideológica. Logo, possui um carácter discricionário, que não é neutro, na forma como é interpretada e utilizado ao longo dos tempos. Esta dificuldade de precisão da sua definição é devida em parte à sua descontextualização nos tempos contemporâneos.
 
Como facilmente já se percebeu os princípios invocados por Bodin quanto ao conceito de soberania, perderam na sua essência o verdadeiro sentido clássico. Com a integração europeia, estes princípios desactualizaram-se, já que a UE também por exemplo, promulga leis, algumas mesmo (Regulamentos) com aplicação directa e imediata nos seus Estados- membros. Noutras áreas como a política externa, a UE tem muitos domínios mais fortes que a dos seus Estados-membros individualmente.
 
No que concerne ao interesse nacional concluímos que este não é imutável, mas adaptativo aos contextos, havendo interesses que são permanentes e outros conjunturais. Concomitantemente relacionado com o interesse nacional surge o interesse europeu, onde o primeiro se encaixa. Consideramos que o interesse europeu não é incompatível com o interesse nacional, especialmente no caso português, pois este é parte do interesse nacional. Existem muitos pontos em comum entre os dois tipos de interesses. O que os Estados procuram é ajustá-los. Ou seja, fazer com que os seus interesses nacionais passem a europeus para os prosseguir nesse plano posteriormente. Por outro lado, após definido o interesse europeu, os Estados tentam encaixar os seus próprios interesses no europeu.
 
A compatibilização do interesse nacional e da soberania no contexto europeu é possível. O plano europeu, não limita a soberania dos Estados, mas pelo contrário fortalece-a. O problema da crise da soberania, não é um problema da integração europeia, mas sim um dificuldade é bem mais longínquo e profundo. A integração europeia, é sim uma resposta a essa mesma crise e uma forma de revitalizar os Estados soberanos, pois sem essa participação/integração a soberania seria mais afectada.
A evolução dos contextos obriga a adaptar os conceitos, nesta medida para continuar a afirmarmos que os Estados são soberanos, não podemos usar o conceito clássico de soberania, pois nesse caso teremos de afirmar que efectivamente os Estados (onde se inclui Portugal) não são soberanos. Se pelo contrário, adaptarmos os conceitos às realidades, podemos verificar que hoje a soberania mudou de conteúdo, sendo partilhada de forma a que os Estados prossigam os seus interesses e aumentem o seu poder.
 
Nessa medida, o que os Estados têm é uma soberania possível, dado não controlarem todo as forças que actuam no seu espectro de acção interno e externo. A preocupação dos Estados é (e deverá continuar a ser) ter mais poder e procuram ser um actor estratégico, em vez de procurarem ser soberanos na sua forma clássica, quando isso não lhe traz nenhum poder efectivo. Pois se em termos normativos os Estados ainda se podem apelidar de soberanos, em termos políticos dificilmente o serão, se não estiverem integrados em espaços de integração, como o da EU, e participarem de forma activa nas suas políticas.
 
Nos dias de hoje, o corolário da soberania está no mínimo fragilizado, em função do actual processo de globalização em curso, um Estado muito dificilmente é independente, dadas as constantes, mas também necessárias, mutações do sistema internacional. Acrescido da volatilidade e da incerteza do sistema internacional, os Estados são cada vez menos independentes, e cada vez mais interdependentes, quer em relação a outros Estados quer em relação a outras Organizações Internacionais. Nessa medida, a melhor forma de salvaguardarem algumas prerrogativas da sua soberania é através da participação em organizações internacionais, especialmente em organizações como a União Europeia.
 
Portugal, ao longo dos anos adaptou uma estratégia de participação nas questões comunitárias, que foi sendo gradualmente mais activa a alargada. O interesse europeu foi considerado interesse nacional, pois prosseguir esse interesse é defender os interesses de Portugal. Dessa forma, aderiu e esteve na primeira linha a todos os núcleos duros da UE, à medida que a União ganhou e fortaleceu a sua dimensão política, Portugal acompanhou e participou nessas novas dimensões comunitárias, pois ao participar activamente nelas, melhor defende o seu interesse nacional7.
 
Em suma, tendo em linha de conta o que fomos afirmando e defendendo ao longo do presente ensaio concluímos que o interesse nacional e a soberania são compatíveis no contexto europeu.
 
 
Bibliografia
 
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 * Texto enviado ao I Congresso Nacional de Segurança e Defesa de 2010.
 **    Capitão de Infantaria da GNR. Docente da Academia Militar de Teoria das Relações Internacionais e Organização das Forças e Serviços de Segurança. Doutorando em Relações Internacionais, pela FCSH-UNL. Membro/investigador do projecto “O debate sobre State-building e State-failure nas relações internacionais: análise do caso de Timor-Leste” (PTDC/CPO/71659/2006), financiado pela FCT, sediado no Instituto do Oriente/ISCSP-UTL.
 
 
1     No âmbito nacional é comummente designado de interesse geral ou interesse público.
2 Ver: (Hermenegildo, no prelo).
3 Ver: (Fernandes, 2009).
4 Ver: (Garcia, 2006).
5 Vejamos o caso dos EUA que é um Estado Federal e praticamente não se questiona se é um Estado soberano. Ou será, que em geral confundimos soberania com o raio de acção da soberania?
6 Ver: (Hermenegildo, no prelo).
7 Ver: (Hermenegildo, no prelo).
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2012-06-11
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Tenente-coronel

Reinaldo Saraiva Hermenegildo

Tenente-coronel de Infantaria da GNR. Docente da Academia Militar de Teoria das Relações Internacionais e Organização das Forças e Serviços de Segurança. Doutorando em Relações Internacionais, pela FCSH-UNL. Membro/investigador do projecto “O debate sobre State-building e State-failure nas relações internacionais: análise do caso de Timor-Leste” (PTDC/CPO/71659/2006), financiado pela FCT, sediado no Instituto do Oriente/ISCSP-UTL.

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