Introdução
A música, através do seu carácter funcional e da sua dimensão artística, é uma das actividades mais antigas ligadas à vida militar; e na idade moderna quando a simples bravura deu lugar à inteligência, a “arte da guerra” passou a utilizar a música para, além do efeito psicológico, esta assumir uma função verdadeiramente operacional na coordenação dos movimentos, na execução de acções em combate e na rotina diária nos quartéis.
O objectivo deste trabalho é caracterizar a utilização da música no contexto funcional na actividade militar e fazer um inventário dos toques da ordenança militar portuguesa, apresentando a sua finalidade e como reflectiram a evolução da organização e das tácticas militares, sendo que do conjunto de cerca de duas centenas de toques identificados, foram seleccionados os quarenta mais representativos para serem objecto de uma análise musical da sua estrutura tonal e rítmica.
Foram considerados os toques utilizados no Exército Português no final do século XVIII e inicio do século XX, por constituírem os limites do período em que melhor se pode observar a função “operacional” da música; pois foi na segunda metade do século XVIII que surgiu a infantaria ligeira como nova especialidade, complementar à infantaria de linha e quando foram organizados os primeiros regulamentos militares com os sinais sonoros que serviam para traduzir as ordens tácticas padronizadas (dadas à voz pelos comandantes) para se fazerem ouvir durante o ambiente confuso em combate.
Os tambores na Infantaria de linha e os clarins na Cavalaria
Apesar da utilização da música na actividade militar remontar à antiguidade, foi a partir da idade moderna que as tácticas militares passaram a utilizar a música como meio de transmissão de ordens e de coordenação rítmica dos movimentos e acções tácticas. Nos séculos XVI e XVII, o Terço era o escalão fundamental da organização militar e na sua organização já existiam trombetas nas forças de Cavalaria e tambores nas tropas apeadas, para marcarem a cadência de marcha e transmitirem ordens. Os toques com esta função operacional surgem no inicio no século XVII, em França e na Itália1, com os toques de clarim na cavalaria e com toques de tambor na Infantaria de linha. Portugal, a obra de João Brito de Lemos de 16312, também refere as funções dos tambores para mandar “dar carga e disparar”, tal como acontecia na célebre ordenança militar do Ministro da Guerra francês, Michel Tellier, Marquês de Louvois (1641-1691)3. Durante o século XVIII, as célebres escolas militares francesa e prussiana adoptaram, na Infantaria, a táctica da ordem linear, usando a marcha cadenciada pelos tambores para coordenar a aproximação e os disparos das sucessivas fileiras de Infantaria, enquanto a Cavalaria actuava nos flancos da Infantaria à ordem dos toques de guerra das suas trombetas4.
A táctica da Infantaria de linha recorria à música para assegurar a difícil tarefa de coordenar as manobras e as acções das extensas fileiras de atiradores, que tinham que fazer a marcha de aproximação e os sucessivos disparos, de forma coordenada ao som da cadência do tambor, que também traduzia as ordens verbais (para fazer fogo, atacar, retirar etc.). Mas foi no inicio do século XIX, com as novas tácticas da infantaria ligeira, de actuação mais flexível e maior capacidade de manobra, que os sinais sonoros em combate assumiram maior importância, para que as ordens dos comandantes das unidades de infantaria ligeira fossem reproduzidas através de sinais pré estabelecidos, interpretados pelos corneteiros5, que eram inseparáveis dos seus comandantes. Os ruídos dos disparos da artilharia e das armas ligeiras, no ambiente confuso do combate, não permitiam que as ordens verbais fossem escutadas pelos soldados, pelo que os sinais sonoros dos Corneteiros (na Infantaria) e dos clarins (na Cavalaria) eram necessários para transmitirem as ordens dos comandantes.
Os Exércitos Inglês e Prussiano foram pioneiros na utilização da Infantaria ligeira e a influência destas escolas militares, em Portugal, através da reorganização militar do Conde de Lippe (1762-64) e depois nas guerras napoleónicas (1808-1815) foi muito importante. Podemos assim sintetizar que numa primeira fase a função operacional era assegurada pelos tambores na Infantaria de linha e pelos clarins na Cavalaria e, numa segunda fase que corresponde à transição para a idade contemporânea, temos a utilização dos corneteiros na Infantaria ligeira, precisamente quando esta função da música adquire maior importância6. Os instrumentos musicais da ordenança militar eram assim distribuídos: Os regimentos de infantaria de linha e de artilharia tinham tambores e pífaros, os regimentos de cavalaria tinham clarins e timbales e as unidades de infantaria ligeira, como os batalhões de caçadores, tinham cornetas.
Entre as obras de referência que regulamentavam os toques militares, devemos ainda referir o manual elaborado pelo Coronel David Dundas (1735-1820)7 do Exército Britânico, intitulado “Principles of Military Movements” de 1788 e que foi adoptado oficialmente em 1798 como regulamento (“Rules and Regulations for the Formation, Field Exercices and Movements of His Majesty's Forces”) e que definia diversos aspectos ligados à música militar, como as seguintes três cadências de marcha para a Infantaria:
- Passo ordinário (“ordinary march”): 75 ppm (passos por minuto), que representava 4 Km/hora;
- Passo “quick march”: 108 ppm;
- Passo “quickest” ou “wheeling step”: 120 ppm, usado para manobrar ou rodar o dispositivo.
O tambor era usado pela Infantaria de linha, o clarim pela Cavalaria e a Corneta (Bugle) passou a ser usada pela Infantaria Ligeira, que pela sua forma de actuação mais flexível, não precisava de tambor mas sim de uma forma de transmissão de ordens, semelhante aquela que já era usada também pela Cavalaria. No manual de 1806 do Capitão Cooper “Thomas Cooper's Light Infantry Manual” surge a curiosa indicação “A good bugle may be heard at the distance of three miles (4,8 Km)”8 que nos mostra a importância operacional desta função e nele também podemos verificar que alguns dos toques (sinais) eram comuns entre os diversos exércitos, tal como se verifica em Portugal com a regulamentação de Beresford, em 1810, que reflecte a influência dos toques ingleses regulamentados, em 1806, no referido manual da autoria de Thomas H. Cooper: “A Practical Guide for the Light Infantry Officer”. Em diversos toques de ordenança estabelecidos para a Infantaria em Portugal, como os toques para”avançar”, “fogo” e “cessar-fogo” verifica-se a semelhança entre as melodias, que serviam para dar essas ordens, nos diversos exércitos aliados. Os seguintes três toques, carregar (fazer o assalto), fogo (disparar) e cessar-fogo (parar de disparar), pela sua natureza, tinham que ser entendidos pelos exércitos aliados na Guerra Peninsular e, por isso, eram iguais, quer fossem tocados por cornetas quer por clarins.
Neste aspecto, a escola militar inglesa também exerceu grande influência em Portugal, no contexto da aliança contra Napoleão e contribuiu para as semelhanças dos toques de ordenança no seio dos exércitos aliados da Prússia, Inglaterra, Itália e Portugal. Através da análise dos regulamentos de toques de ordenança dos Caçadores Napolitanos (1843), da Infantaria de Piemonte (1816), da Infantaria Ligeira Prussiana (1846) e da Infantaria Inglesa9, verifica-se que são semelhantes entre si, assim como os respectivos toques portugueses, enquanto os equivalentes toques franceses são muito distintos. No que diz respeito aos sinais de ordenança para os tambores já não se verificam tão nítidas semelhanças, pois a sua expressão era circunscrita ao nível das subunidades de infantaria de linha, constituídas por militares do mesmo exército, não havendo por isso a necessidade de uniformizar esses sinais. Neste âmbito, como vimos anteriormente a escola militar inglesa usava três cadências para tambor (75 ppm, 108 ppm e 120 ppm) enquanto que a francesa usava quatro cadências (76 ppm, 80 ppm, 100 ppm e 120 ppm)10.
No Arquivo Histórico Militar encontramos diversos documentos com música manuscrita, com diversos toques regulamentares usados no final do século XVIII e no inicio do século XIX11 sendo que os mais antigos são dois conjuntos de toques de clarim para cavalaria, sendo um datado de 1797 e o outro sem data, que admitimos ser mais antigo com o titulo “Toques de Estado e Guerra de Clarins e Thimbales para o serviço de Cavalaria Ligeira dos Mandamentos Regulares”12 que tem 36 toques (19 indicativos de serviços e continências e 17 de Guerra). No documento de 1797, com o titulo “Toques de guerra concernentes aos clarins dos Regimentos de Cavalaria”13, além das marchas e outros trechos usados no cerimonial, podemos observar os toques de combate como “Às armas” (tocado em caso de surpresa ou de fogo), “Montar a Cavalo”, “Sinal de Atacar”, “Retirada”, “Retreta” (sinal para recolher, apagar luzes no quartel para dormir), “Diana” (para despertar as tropas e dar ordem para levantar ao amanhecer) e o toque de “Ave Marias”, que se tocava sempre depois dos toques de “Retreta” e de “Diana”. Estas duas colecções de toques regulamentados no século XVIII estão escritas em “Ré Maior”, certamente por se destinarem a serem tocados pelos clarins em “Si b” e assim serem regulamentados formalmente na tonalidade de efeito real, que era em “Dó Maior”, como todos os toques militares desta natureza14.
Do século XVIII temos várias referências que testemunham a existência de tambores nos regimentos de Infantaria e de Artilharia, enquanto na Cavalaria existiam os timbales e os clarins. A organização dos regimentos em Portugal de 179615 estabelecia que um Regimento de Infantaria tinha um tambor-mor e em cada uma das Companhias tinha 4 tambores, um Regimento de Artilharia tinha um tambor-mor e 2 tambores em cada companhia e um Regimento de Cavalaria tinha no comando, 1 timbaleiro e 1 clarim e em cada Companhia tinha um clarim. Curiosamente este cargo de timbaleiro foi extinto em 1806 através do decreto de 19 de Maio de 1806: “Hei por bem abolir a Praça de Timbaleiro que até agora havia em cada hum dos Regimentos de Cavalaria; e crear em seu lugar hum Trombeta Mór…[…] e será empregado no ensino dos Clarins, exercendo a respeito delles as mesmas funções, que a respeito dos Tambores exercem os Tambores Mores dos Regimentos de Infantaria.”16
No Arquivo Histórico Militar encontramos ainda outro documento com “Toques do Campo que se fazem com a Corneta” para a Cavalaria, onde podemos observar um conjunto de 28 toques de campanha para clarim, com diversos sinais para indicar o tipo de passo a adoptar, “Passo”, “Trote” ou “Galope”, o sinal de “Atacar”, “Retirar”, “Fazer-fogo”, “Cessar-fogo”, “Apear” etc. Além destes 28 toques para uso em situação de campanha, o documento tem ainda outros 25 toques de quartel para clarim, desde os sinais indicativos de “Alvorada”, “Rancho”, “Recolher” até marchas para continências como a “Marcha a Estandartes” e a “Marcha de Guerra”17.
Toques de campanha para clarim usados no Exército Português (Toques de campo que se fazem com a Corneta - Documento 3/28/2/41 AHM)
Clarim de Cavalaria do Exército Português
As cornetas na Infantaria ligeira
Em Portugal, a introdução da corneta na Infantaria aconteceu com a criação dos Batalhões de Caçadores, em 180818 cujo modelo orgânico inicial (o Batalhão tinha 4 Companhias de Caçadores e uma Companhia de Atiradores) já contemplava um corneteiro em cada uma das Companhias de Caçadores e outro na Companhia de Atiradores19. Esta reorganização de William Beresford reflectia a influência inglesa e os 21 Toques de Corneta que a seguir se apresentam regulamentados, em 181020, eram semelhantes a alguns dos britânicos regulamentados, em 180621, e são exactamente iguais aos toques do manual “Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field” de 181422.
Estes toques para Corneta de Caçadores, eram todos para emprego em combate para indicar as seguintes acções tácticas, próprias das tropas Caçadores:
Nº 1 Estender
Nº 2 Unir
Nº 3 March
Nº 4 Alt
Nº 5 Fogo
Nº 6 Cessar o fogo
Nº 7 Retirada
Nº 8 Assembleia
Nº 9 Dispersar
Nº 10 Para escaramuçar
Nº 11 Inclinar á direita
Nº 12 Inclinar à esquerda
Nº 13 Avançar
Nº 14 Inclinar a direita e esquerda
Nº 15 Fogo avançando (combinando o toque de fogo após o de marcha)
Nº 16 Fogo retirando-se (tocar primeiro o retirar e depois o de fogo)
Nº 17 Marchar e estender
Nº 18 Retirar e estender
Nº 19 Marchar e unir
Nº 20 Retirar e unir
Nº 21 Toque para annular
Este regulamento para os Caçadores de 1810 foi o primeiro em Portugal a regulamentar os toques para corneta e a importância dos toques para a Infantaria ligeira é testemunhada pela própria estrutura do manual que tem três partes, sendo a 3.ª parte dedicada exclusivamente aos toques, com a seguinte redacção: “São óbvias as vantagens, que se podem tirar do uso do Corneta nos terrenos cobertos; ou quando se obra na ordem extensa, e que as vozes não se podem ouvir”.23 Além dos toques também faz referência às cadências de marcha das manobras, apresentando as seguintes cadências: passo ordinário, passo dobrado e passo dobrado ligeiro. O passo ordinário também designado de passo grave, era a 75 ppm, o passo dobrado era o mais comum na manobra de Caçadores, quando não se determinava o tempo todos os movimentos de uma linha de caçadores na ordem unida deveriam ser em passo dobrado24. Também mais tarde esta cadência era a forma habitual das manobras da infantaria como testemunha a ordenança de infantaria, distribuída ao exército libertador na ilha S. Miguel antes do embarque para o continente, que também refere que habitualmente as evoluções da infantaria de linha eram em passo dobrado indicando que à voz “dobrado-marcha” as forças iniciavam o deslocamento e referindo no entanto que “todos os movimentos que nesta ordenança se mandão fazer, a passo dobrado, se poderão fazer a “marche, marche” quando as circunstâncias o pedirem”.25 O passo dobrado ligeiro era também uma cadência dos Caçadores e, sendo 150 ppm, era duas vezes a rapidez do passo grave26.
Além da apresentação das pautas dos toques, são ainda referidas algumas normas, tal como a regra de serem usados quando a voz não se pode ouvir, que devem ser poucos e simples e que os toques para marchar, retirar, a assembleia e para se dispersarem eram os únicos toques que devem ser repetidos por todos os Cornetas em todas as ocasiões. Para indicar a cadência de marcha também se usavam toques, eram dados 3 ou 4 arpejos no tempo do passo ordinário quando se está em marcha indicando que o tempo deve ser mais devagar e os mesmos arpejos se estiver em passo dobrado querem dizer para acelerar. O regulamento tem diversas informações sobre a função dos corneteiros, como por exemplo a indicação para os atiradores colocarem o joelho em terra: ”Quando se toca a fazer fogo, todos os atiradores sobre o joelho direito, carregarão e farão fogo naquela posição” e a forma de estender: “ A extensão sempre principia desde o lugar em que tocar o Corneta. No instante em que se ordenar a extensão, ou seja por meio da voz ou do toque do Corneta, os soldados pegam na arma com a mão direita, volvem para os lados, marcham em passo dobrado”. ”Os Sinais para marchar e para estender serão dados a toque de corneta, sendo necessário.” E quando uma partida de Atiradores for surpreendida por Cavalaria em terreno aberto[…] devem correr principalmente dos flancos para o centro (donde o Oficial deve mandar tocar à Assembleia), e formar um circulo”.
O regulamento fornece diversas explicações como por exemplo sobre o toque de retirada que queria dizer meia volta à direita e retirar em passo dobrado e define que quando os militares estivessem fazendo fogo e ouvissem qualquer toque, deveriam cessar por hum instante, a fim de o ouvirem mais distintamente e se duvidar, o comandante pode mandar repetir o toque. O Corneta deveria repetir o toque como se respondesse à ordem do corneta do comandante27, o que servirá de advertência e depois repetirá segunda vez o toque, o que evitará os enganos.
Em Portugal, foi com este regulamento de 1810 que foram estabelecidos os primeiros toques de corneta para Infantaria, o que aconteceu também em Espanha em 1811 quando foi regulamentada a introdução de cornetas na Infantaria e em 1814 foram impressos os primeiros toques de corneta da Infantaria espanhola. Outro testemunho da influência britânica em Portugal, no inicio do século XIX é o “Manual sobre a Manobra da Infantaria”, da autoria de J. English, (oficial do 9º Regimento de Infantaria britânico) que foi traduzido para português em 181028 e também o manual “Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field”29, de 1814, cujos toques apresentados a seguir confirmam a semelhança com os toques portugueses regulamentados em 1810.
Toques para Caçadores: Anexo da obra de William Carr Beresford, Systema de Instrucção e Disciplina para os Movimentos e Deveres dos Caçadores, Lisboa, 1810.
Toques do Exército Britânico para Infantaria ligeira in “Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field”, Printed for the War Office, 1814.
Os clarins na Artilharia e na Cavalaria
Na sequência da primeira invasão francesa (1807-1808) e no âmbito da reorganização da cavalaria portuguesa, no final do ano de 1808 e em 1809, foi criada no Regimento de Cavalaria nº 4 (Lisboa) uma escola para aprendizes de clarim que era dirigida pelo trombeta-mor daquele regimento30 e logo depois com o Regulamento para a Cavalaria de W. Beresford31 foram regulamentados 24 toques de clarim para a Cavalaria e foram definidas as atribuições dos trombetas dos regimentos de cavalaria estabelecendo que o trombeta mor tinha a graduação de sargento e era responsável por todos os 8 trombetas32 (soldados) do Regimento (O Regimento tinha 8 Companhias e cada uma tinha um trombeta) em especial pela sua instrução, assegurando que todos sabiam tocar os 24 toques regulamentados e que a seguir se apresentam33:
Toques de Clarim regulamentados em 1816 e publicados no Regulamento para a Disciplina e Exercício dos Regimentos de Cavalaria do Exército, Impressão Régia, Lisboa,1825.
Antes desta regulamentação de 1816, as Instruções Provisórias para a Cavalaria de 181034 já referiam a missão dos clarins quer em operações quer no cerimonial, indicando que quando o Regimento de Cavalaria formava para prestar continência, os clarins tocavam o toque de continência enquanto o estandarte do regimento fazia a continência e durante a revista: “A música e os clarins tocão música alegre, ou fanfarras durante a Inspecção.”35 o que nos dá indicação da existência de um agrupamento musical além dos clarins revelando ainda que os clarins desfilavam montados em cavalos, tal como actuavam nas operações, como demonstra o quadro orgânico, que indica que o trombeta mor e os trombetas das companhias tinham cavalo distribuído.
Em 1816, após a segunda reorganização militar de W. Beresford, existiam no exército as seguintes especialidades de militares envolvidos nesta prática musical36: O tambor-mor e o corneta-mor eram os mais graduados das respectivas classes de tambores (na Infantaria e na Artilharia) e dos cornetas (Caçadores) e clarins (na Cavalaria), depois tínhamos o cabo de tambores, os pífaros e os tambores de Infantaria e Artilharia, os cornetas de Caçadores, cornetas de Cavalaria e trombetas, cornetas de Artilheiros condutores e tambores de artífices Engenheiros. Um Regimento de Infantaria com 1.552 homens, tinha um tambor-mor, 1 cabo de tambores, 2 pífaros e 20 tambores (2 em cada uma das 10 companhias), um Batalhão de Caçadores, com 693 homens, tinha 1 corneta-mor e 12 cornetas (2 em cada uma das 6 companhias), um Regimento de Cavalaria com 597 homens e 532 cavalos, tinha um trombeta-mor e 8 trombetas (1 em cada Companhia) e um Regimento de Artilharia tinha 1 tambor-mor, 2 pífaros e 10 tambores37. Antes de 1837, os Regimentos de Artilharia ainda não tinham clarins, sendo que foi com a organização do Visconde de Sá da Bandeira que passaram a ter clarins, com um clarim-mor e um cabo de clarins no Comando do Regimento e 2 clarins em cada Bateria,38 para tocarem os toques regulamentados para a Artilharia, em 1842:
Tabela dos toques de Clarim do Regulamento para os Exercícios, Manobras e outras
instruções dos Corpos de Artilharia do Exercito Portuguez (Lisboa, Imp Nacional, 1842)
Considerações finais
Os toques da ordenança militar portuguesa no inicio do século XIX reflectindo a tendência que se verificava nas doutrinas militares da época, desempenhavam uma verdadeira função “operacional”, ligada à actividade militar operacional, para regular a cadência de marcha e as acções da infantaria de linha em combate e para transmitir ordens à “infantaria ligeira” de actuação mais flexível e rápida, que pela sua forma de combater, dispensava os tambores (da infantaria de linha) e usava os sinais dos corneteiros, tal como a cavalaria já antes usava os clarins. No período da guerra peninsular em que ocorreram diversas reformas militares sob a influência britânica, foi nítida a influência dos toques do exército da nossa aliada junto do nosso exército, tal como confirmam os nossos regulamentos: O Systema de Instrucção e Disciplina para os Movimentos e Deveres dos Caçadores de 1810 com os primeiros 20 toques para Corneta adoptados em Portugal e o Regulamento para a Disciplina e Exercicio dos Regimentos de Cavalaria do Exército, de 1816 e publicado em 1825 com 24 toques para Clarim.
No conjunto dos toques estudados, podemos considerar uma classificação geral quanto à sua tipologia, em dois grupos grandes grupos: Os toques de guerra, usados em combate e os toques usados no serviço interno nos quartéis e no cerimonial militar, pois além da necessidade dos sinais sonoros em combate, mesmo em situação de paz, na rotina diária dos quartéis os sinais de ordenança eram indispensáveis para indicar os horários dos serviços aos soldados, que na época não usavam relógio nem sabiam ler informações escritas.
* Tenente-Coronel de Artilharia, Professor na Academia Militar. Mestre em História pela Universidade de Lisboa, Doutorando na Universidade Nova de Lisboa. Autor do livro “História da Música Militar Portuguesa” (2008) e co-autor da obra “Hinos Militares e Patrióticos Portugueses (2010) é membro da International Military Music Society desde 2011.
1 Na Itália, os toques de ordenança de 1638 da autoria de Girolamo Fantini da Spoleti (Clarim Mor do Duque da Toscana, Ferdinando II) e na França os toques regulamentados em 1636 por P. Mersenne, no reinado de Louis XIII, são as mais antigas referências conhecidas, tal como apresenta G.Kastner na sua obra de 1848, “Manuel General de Musique Militaire”, Paris, p 384.
2 “Abecedário Militar”, Imp de Pedro Graesbuck,Lisboa,1631.
3 Tomo XXII da colecção “Ordennances Militaires” de la Bibliothéque du Dépot de La Guerre, Années 1668-1672 in “Manuel General de La Musique Militaire (1848)”, p 393.
4 A ordenança estabelecida pelo Marechal de Saxe em 1754: Ordennances Militaires, 1754-56 in “Manuel General de La Musique Militaire (1848)” p. 395 e a Ordenança Real de 1 Junho 1766 (“Signaux pour la Cavalerie française”. (Louis XV) App12-13 G.Kastner, de 1791 a regulamentação “L`Instruccions pour les Tambours”, App 14 “Batteries d`Ordenance avec les Airs de hautbois ou fifres”(Louis XVI).
5 Na Infantaria passaram a existir os corneteiros e na Cavalaria e na Artilharia os clarins, segundo um critério que perdurou em Portugal, até ao final do século XX (1995).
6 São do Exército Britânico as primeiras regulamentações dos toques de bugle (corneta) para infantaria Ligeira, como “Regulations for the exercise of Riflemen and Light Infantry, and Instructions for their Conduct in the Field” .London 1798 e “The Sounds for Duty & Exercise fot the Trumpet & Bugle Horns of His Majesty`s Regiments & Corps of Cavalary”. London. 1799. As principais referências sentidas em Portugal com a reorganização militar de W. Beresford em 1809 foram a regulamentação feita para o exército britânico em 1806 pelo Cap Thomas Cooper “A Pratical Guide for the Light Infantry Officer”. London, T.Egerton,1806 e de 1814 “Signals of the Bugle Horn in the Movements of Light Troops” in Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field. Printed for the War Office (1814).
7 O General David Dundas (1735-1820), oriundo da Arma de Artilharia, participou na Guerra dos Sete Anos e já depois da guerra participou em exercícios com os exércitos da Prússia, Áustria e França, pelo que este seu trabalho tinha uma forte influência do Manual da Prússia de 1784 “Taktik der Infaterie” de Friedrich Christoph von Saldern.
8 “A Practical Guide for the Light Infantry Officer” by Thomas Henry Cooper, London, Printed by R.Wilks,1806. p 98.
9 Toques de ordenança dos Caçadores Napolitanos (1843), da Infantaria de Piemonte (1816), da Infantaria Ligeira Prussiana (1846) e do Exército Inglês (1821) in “Manuel Géneral de Musique Militaire (1848)”.
10 Apd 24 (“Batteries et Sonneries de Infanterie Française”) por Melehor (1831) in “Manuel Géneral de Musique Militaire”, de G. Kastner, Paris, 1848.
11 Na 3ª Divisão/ 28ª Secção nas caixas 2/ 38, 2/ 39, 2/ 40, 2/ 41 do Arquivo Histórico Militar (AHM).
12 Documento do Arquivo Histórico Militar: Cota AHM3/28/2/39.
13 Documento do Arquivo Histórico Militar Cota AHM Div 3/28/2/40.
14 As trombetas da cavalaria nesta época eram habitualmente em Fá ou em Si bemol.
15 Decreto de 1 de Agosto de 1796.
16 Decreto de 19 de Maio de 1806.
17 Documento do Arquivo Histórico Militar (Cota AHM 3/28/2/41) com 28 toques de Campo e 25 de Quartel.
18 Através do Decreto de 14 de Outubro de 1808 foram criados os primeiros 6 Batalhões de Caçadores em Portugal e em 1811 através da portaria de 20 de Abril foram criados mais seis Batalhões.
19 Com a orgânica inicial de 1808 os Batalhões de Caçadores ainda tinham Tambores, mas com a reforma de 1809 (Decreto de 20 Novembro de 1809) passaram a ter apenas Cornetas.
20 William Carr Beresford, Systema de Instrucção e disciplina para os movimentos e deveres dos Caçadores, Lisboa, 1810.p 67.
21 A Practical Guide for the Light Infantry Officer by Thomas Henry Cooper, London, Printed by R.Wilks,1806.
22 “Signals of the Bugle Horn in the Movements of Light Troops in Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field”, Printed for the War Office 1814.
23 Parte III - Dos toques do corneta, com a sua aplicação às parte I e II. Entre as páginas 64 e 72 a 3ª Parte do Manual é totalmente dedicada à explicação e apresentação das pautas dos 21 toques regulamentados.
24 Nesta época a “ordem unida” dizia respeito a uma forma de actuação táctica e não como actualmente que designa os movimentos executados numa formatura em parada.
25 “Marche, marche” era a cadência de Acelerado.Parte quinta da Ordenança de Infanteria, Porto, Imprensa Gandra e filhos, 1833. p 81.
26 Systema de Instrucção e Disciplina para os Movimentos e Deveres dos Caçadores, Lisboa,1810, p 20.
27 A ordem (toque) dado pelo Corneta mor do comandante de Batalhão era repetido pelos Corneteiros das Companhias pertencentes a esse Batalhão, distribuindo assim a ordem por todas as forças do Batalhão.
28 “Explicação do Plano que mostra de hum golpe de vista as principais manobras dos Regimentos de Infanteria de Sua Majestade Britânica” Lisboa ,Impressão régia, 1810.
29 “Signals of the Bugle Horn in the Movements of Light Troops in Regulations for the Exercise of Riflemen and Light Infantry and Instructions for their conduct in the field”, Printed for the War Office, 1814.
30 O Regulamento para a Escola de Trombetas de Cavalaria de 18Fev1809, (Documento do AHM 3/28/2/58) organizava a escola para aprendizes de clarim no Regimento de Cavalaria nº 4 e nomeava Manoel dos Santos, Trombeta Mor deste Regimento para dirigir a escola. O Reg.Cavª nº 4 era nesta época a unidade de cavalaria mais completa da capital.
31 Decretado em 6 de Março de 1816 pelo Príncipe Regente D. João no Rio de Janeiro e publicado no Regulamento para a Disciplina e Exercicio dos Regimentos de Cavalaria, Impressão Régia, Lisboa,1825.
32 Trombeta era a designação do cargo (especialidade do militar) mas o instrumento era já designado de Clarim.
33 Idem pp 22-24.
34 Instrucções provisórias para a Cavallaria de Ordem, de Guilherme Carr Beresford (2ª Edição), Imp. Régia, Lisboa,1810.
35 Idem p 112.
36 Não são considerados os músicos das bandas que existiam nos Regimentos de Infantaria, pelo facto de não serem utilizados nesta função operacional, mas no caso dos pífaros, embora não fossem também usados no âmbito operacional, são aqui referidos apenas por pertencerem organicamente às unidades referidas.
37 Organização do Exército de 29 Fevereiro de 1816.
38 Decreto de 13 Janeiro de 1837 (Organização do Visconde de Sá da Bandeira).