Nº 2451 - Abril de 2006
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Para uma Tipologia da Guerra no Século XVII - A Batalha das Linhas de Elvas
Coronel Médico
António Paulo David Silva Duarte
Introdução
 
A batalha das Linhas de Elvas é um arquétipo das batalhas do século XVI e XVII. Toda a sua contextura, assim como o seu decorrer e desenlace, reflectem a Forma da Guerra no século XVII. Por Forma da Guerra entendemos o modo como se caracteriza e estrutura o “fazer a guerra” em determinada Era. Como já observava Clausewitz, a cada Era, a sua forma de fazer a guerra1. A Forma da Guerra inclui, não só, a acção militar propriamente dita, mas todos os elementos que congregados, contribuem para a acção das forças bélicas num dado espaço decisivo para a consumação do conflito. Na “realidade”, a Forma da Guerra deve incluir, para além dos elementos militares propriamente ditos, a dimensão política, económica, social e psicológica da guerra. É à luz desta concepção, a Forma da Guerra, que vamos analisar e dissecar os eventos que levaram à Batalha das Linhas de Elvas, seus antecedentes e suas consequências.
 
A leitura desta batalha não se delimitará assim ao choque de armas propriamente, mas analisará e escalpelizará igualmente os factos políticos e económicos, sociais e psicológicos que agiram por detrás e supervisionaram o embate bélico. Factor importante nesta análise, não obstante, é desde logo assumir uma visão contextualista e perspectiva. Se assumimos a noção de Forma da Guerra, é porque não é plausível falar em Estratégia para o século XVII, a não ser que esta apareça como um interpretação actual da acção político-militar do século XVII. O vocábulo não era, nem conhecido, nem usado, e o horizonte conflitual estava marcado em definitivo pela guerra no seu sentido mais puro e duro, de afrontamento entre duas forças bélicas, de choque entre massas armadas2. Longe de alguém pensar em formas conflituais não armadas ou em duelos ideológico-mediáticos ou tecnológicos-científicos para os quais não havia, nem condições materiais, nem possibilidades conceptuais - cognoscíveis. A luta era travada entre reis e reinos, sustentados em forças armadas mais ou menos mercenarizadas e profissionalizadas.
 
Por isso, no horizonte dos poderes, a guerra, e só a guerra, no sentido puro e duro do termo.
 
Este texto dividir-se-á em duas partes. Numa primeira, far-se-á uma descrição o mais detalhada que se puder da Batalha das Linhas de Elvas, tendo como objectivo, fornecer uma imagem do afrontamento bélico o mais clarificante possível. Numa segunda parte, e munidos da visão da batalha, procurar-se-á integrar esta nas batalhas da Restauração e na guerra do século XVII, fazendo sobressair tanto o que há de comum entre esta e as outras batalhas coevas, assim como as características típicas da batalha e da guerra no seiscentos. Para isso sistematizar-se-á esse capítulo em três partes, uma dedicada à arte da guerra, àquilo a que hoje denominamos de táctica e estratégia (militar), outra relativa à relação entre a sociedade e à guerra, sendo o último dedicado à interacção entre o que hoje chamaríamos de política e a guerra.
 
 
1.  Descrição da Batalha: Linhas de Elvas, 1659
 
Olivença tombara em mãos castelhanas em 1657. Como resposta à tomada dessa importante praça, D. Luísa de Gusmão decidira investir sobre Badajoz em 1658. mas a praça castelhana era uma das mais sólidas e fundamentais fortalezas da monarquia austríaca e resistiu a um cerco efectuado por cerca de 17 000 portugueses, que em Setembro, quando o exército de socorro castelhano se aproximava sob o comando de D. Luís de Haro, mais não continha que 8 000 homens. Nessas circunstâncias, nada mais restava que retirar para Portugal, o que sucedeu. D. Luís de Haro, forte de 20 000 homens, decidiu contudo perseguir os portugueses, entrando em Portugal e pondo cerco a Elvas, em Outubro de 1658.
 
A Ameaça da queda da fortaleza reverberou na Corte, desde logo se tomando providências para obstar a acontecimento tão funesto para a defesa do país. Elvas era a principal praça do Alentejo, ferrolho da defesa da região e do caminho mais curto para alcançar Lisboa a partir da raia. Duas preocupações assomavam a “cabeça de Portugal”. Que a fortaleza tombasse por falta de abastecimentos ou que fosse impossível socorrê-la. Para isso, intentou-se impedir a fuga de soldados do Alentejo, fechando as passagens do Tejo e remobilizando o mais rapidamente possível um novo exército de campanha, que permitisse pelo menos assegurar o abastecimento de Elvas.
 
Por fortuna, mas também derivado da importância militar da praça, Elvas estava bastante bem equipada. Duas cisternas recentes asseguravam o abastecimento de água, havia já alojamentos para assegurar o aboletamento de parte da guarnição militar. Além disso, a região era suficientemente rica para abastecer por algum tempo a população recolhida e as forças militares. Ajunte-se igualmente o facto de parte do Exército do Alentejo permanecer em Elvas, o que significava que havia uma sólida muralha humana protegendo a urbe. De facto, a guarnição de Elvas rondaria os 8 000 homens, entre forças de primeira linha, milícias e ordenanças.
 
Sucede que D. Luís de Haro não trouxera um exército suficientemente grande para assegurar um cerco sólido. 20 000 homens podia ser muita gente, mas eram insuficientes para assediar a urbe. É que não bastava dispor-se de uma força de primeiro assalto, era igualmente imprescindível vitalizar com novo sangue o cerco. Sem uma contínua linha de reforços, as forças em presença, desgastadas pelo assédio, pelo tempo e pelo clima, rapidamente esvaíriam-se. Foi o que lhes aconteceu. Com reforços a conta-gotas, D. Luís de Haro foi vendo os assediantes cambiarem de efectivos a rotações variáveis, chegando, a acreditar numa das fontes portuguesas sobre o cerco, a dispor somente de cerca de 10 000 homens, pouquíssimo para tão ingente tarefa3. Os reforços iam chegando, mas D. Luís de Haro, parco de homens e de audácia, não intentava um cerco cerrado, contentando-se com uma linha de bloqueamento da cidade, que pela fome e pela fraqueza da vontade teria de acabar com capitular.
 
A crença na impossibilidade de Portugal criar um novo exército de campanha, combinado com a confiança nas suas linhas de assédio, que iam sendo construídas, dava ao comandante-chefe habsburgo a esperança de ter uma vitória certa e fácil, com pouco custo, e muita reputação.
 
O assédio castelhano foi feito assim à distância, constituindo-se para o efeito cerca de 7 grandes quartéis que apoiavam as linhas de assédio. O Quartel da Corte, o quartel-general de D. Luís de Haro, situado a Sudeste da urbe elvense, cortando a via em direcção a Vila Viçosa, donde se julgava puderem vir reforços e socorros, por ser do terreno de mais fácil acesso a Elvas. O Quartel do Vale dos Marmelos, cota 288 a dois quilómetros a Sul de Elvas, face a Santa Luzia, o baluarte avançado que cobria a parte meridional de urbe, de mais fácil aproximação. O Quartel da Cocena, ou de Mesas de El-Rey, situado a Sudoeste, sob o comando do Duque de Ossuna, dispunha de uma grande força de cavalaria. O Quartel das Palmeiras, situado entre o Quartel das Cocenas ou de Mesas de El-Rey e o do Vale dos Marmelos, provavelmente como ponto de ligação entre ambos. O Quartel de São Francisco e quartéis de suporte afins, a Oeste da praça. O Quartel de Nossa Senhora da Graça, no outeiro do mesmo nome, situado a Norte da Praça. Destes últimos quartéis foi efectuado durante o assédio, fogo de artilharia, com vista à usura da resistência da praça. Contudo, ao que parece, os portugueses replicavam ao fogo que advinha de São Francisco, pelo que, os quartéis face ao Mosteiro, foram posicionados um pouco mais longe deste, fora do alcance da artilharia de Elvas. Por último, a Nordeste, estava o Quartel da Vergada ou Bargada, onde haveria numerosa cavalaria, expli­cável por este aquartelamento se encontrar no flanco da via que conduzia a Campo Maior.
 
Mas as medidas tomadas por Lisboa, começaram a fazer efeito. Em Estremoz, o Conde de Cantanhede, que ascendera ao cargo de Governador de Armas do Alentejo, suportado por André de Albuquerque Ribafria, um ousado comandante de cavalaria português, mobilizava abridamente um exército de campanha. Concentração de esforços foi a chave do seu sucesso. Todo o Alentejo foi mobilizado, fornecendo as suas diversas praças, forças para o exército de socorro. Da Beira vieram outros reforços, assim como do Norte, onde a praça de Monção, igualmente assediada foi deixada à sua sorte. Ao que parece, até da Madeira teriam sido remetidos soldados. Toda a força bélica portuguesa foi centrada no essencial, deixando um pouco mais desguarnecido o resto, mas com lógica, visto os cercos de Monção e Elvas deveram praticamente mobilizar o esforço militar habsburgo.
 
Em princípios de Janeiro de 1659, o exército de socorro estava pronto. Cerca de 11 000 homens, 8 000 infantes e 3 000 cavaleiros, dispondo ainda de 7 ou 9 bocas de fogo. Acompanhava-os um comboio de animais para abate (porcos e carneiros ao que parece) visando abastecer a cidade. Contra eles, um exército castelhano de cerca de 12 000 ou 13 000 homens, não mais. Efectivos maiores, como foram anunciados logo após a batalha em obras com claros fitos propagandísticos são de desconsiderar. D. Luís de Haro tinha imensa dificuldade em receber reforços, e o seu exército, acampado extra-muros, em pleno e duríssimo inverno alentejano, devia decompor-se a grande ritmo, mais rapidamente do que os substitutos que lhe iam enviando de tempos a tempos. Além disso, a sua qualidade não era das melhores, o que era natural, visto muito provavelmente substituírem-se tropa de linha ou já experimentada por mobilizações de carácter local, apressadamente constituídas, e mal treinadas e preparadas para a dureza da guerra e do cerco.
 
Nesta altura, a situação de Elvas perigara imenso. Não fora tanto a fome, mas a eclosão da peste que vulnerabilizara a cidade, visto a doença e a morte enfraquecerem irremediavelmente a guarnição. Para os finais de Dezembro, afirmava Sancho Manuel, as forças de primeira linha estariam reduzidas a cerca de 500 soldados. Face a isto impunha-se que o exército de socorro investisse sobre as linhas de assédio. A 11 de Janeiro partia de Estremoz o exército de socorro. Guarnições vindas de outras praças em redor juntaram-se a ele (Vila Viçosa, Borba, Campo Maior, Arronches e Monforte). A 13, ao entardecer, aproximou-se da praça de Elvas, fazendo-se anunciar com um tiro de canhão, e bivacando a coberto das linhas de assédio inimigas.
 
A noite foi longa. Foi decidido em definitivamente o plano de ataque. Um ataque maciço e concentrado sobre as linhas de assédio situadas no Vale dos Murtais, a noroeste da praça de Elvas. O ataque seria apoiado por 20 bocas de fogo postadas no Baluarte do Príncipe, perto do Castelo de Elvas, e por cerca de 600 (450 infantes e 170 cavaleiros) soldados que saindo de Elvas, ameaçariam os flancos e a retaguarda das defesas castelhanas. Do lado habsburgo, a indecisão era grande, e vários planos foram decididos e depois mudados. No fim, a guarnição manteve-se algo dispersa pelas linhas de assédio, concentrando-se contudo uma força de reserva perto do Convento de São Francisco, para qualquer eventualidade.
 
Ao amanhecer de 14 de Janeiro de 1659, a cavalaria espanhola efectuou um reconhecimento, visando observar as intenções portugueses, mas deri­vado do nevoeiro, e talvez, da sua excessiva prudência, nada detectou de anormal no acampamento português.
 
Estes, entretanto começaram-se a mover em ordem de batalha. As suas forças foram organizadas em “escalões”, numa terminologia actual, a avante-guarda, composta por cerca de 1 000 infantes pagos, experientes, divididos em companhias de 200, com o fito de assaltar as linhas de assédio, a guarda avançada, composta por cerca de 2 000 homens, apoiariam e empurrariam as forças da avante-guarda. O corpo de batalha, com 2 000 ou 3 000 infantes, as fontes são discrepantes quanto ao seu efectivo, e por último a retaguarda, com mais 2 000 infantes. A cavalaria cobria os flancos dos três últimos escalões, 1 200 cavaleiros na guarda avançada, o centro, o corpo de batalha, flanqueado por 900 cavaleiros assim como a retaguarda.
 
O nevoeiro cobria as suas intenções. O nevoeiro que habitualmente esconde dos olhos dos outeiros de Elvas e da Nossa Senhora da Graça o Vale dos Murtais, quando não blinda a vista das próprias sentinelas postadas nas fortificações de urbe elvense e do Forte de Lippe, que nos finais do século XVIII encimou o outeiro a norte da praça.
 
Descansados pelas notícias que indicavam o débil movimento do acampamento português, seguros nas linhas fortificadas de assédio, julgando que mais não faria o exército de socorro que tornear a praça de Elvas e as Linhas de assédio e dirigir-se a Campo Maior, os castelhanos baixaram a guarda. Do seu torpor foram acordados pelo tiro de artilharia.
 
Atónitos, viram então o exército de campanha português a marchar sobre as linhas dos Murtais, em ordem de batalha. A toda a brida, D. Luís de Haro e seus principais comandantes ocorreram a linha de confrontação e iniciaram a mobilização das suas forças. Na Linha dos Murtais estariam cerca de 1 000 infantes castelhanos, cerca de 1 600 cavaleiros, em pelo menos dois grupos, um visando a protecção da infantaria, virado para Oeste, outro, a tendo por fim, obviar a uma saída da guarnição de Elvas pela porta Leste. Havia ainda as guarnições dos quartéis da São Francisco e de Nossa Senhora da Graça. Contra eles se abateu toda a força portuguesa, 11 000 homens do exército de socorro e 600 defensores da praça.
 
Com fogo de artilharia cruzado sobre si, vindo da artilharia da praça e do exército de socorro, e investidos por 1 000 soldados experimentados, os defensores das linhas, após três descargas de fogo dos seus mosquetes e arcabuzes, apressadamente abandonaram as linhas e refugiaram em alguns dos cinco fortins que compunham a linha dos Murtais. A cavalaria castelhana vendo o rompimento da frente, moveu-se para contra-atacar, mas foi apanhada de flanco pela pequena força equestre de Elvas. A surpresa teria favorecido a cavalaria elvense, mas esta, por sua vez, arriscou-se ao baqueamento, quando a força castelhana foi reforçada com cavaleiros vindos do Forte da Bargada (provavelmente, os que deviam cobrir a porta Leste de Elvas). A fortuna da cavalaria elvense, foi a cavalaria do exército de socorro, que com as linhas rompidas, irrompeu adentro dos Murtais e forçou a equivalente inimiga a uma retirada apressada, em direcção ao outeiro de Nossa Senhora da Graça. As linhas de assédio nos Murtais foram apressuradamente rompidas e logo os portugueses iniciaram o assalto aos fortins da linha.
 
A batalha modificou a sua estrutura. Ao movimento de rompimento, feito em massa e cerrado, sucedeu um combate disperso pelos fortins. Apesar de disperso, a organização do combate decidiria da vitória. Os comandos portugueses, dentro do possível, organizavam a batalha, acorrendo de um lado ao outro, animando as suas forças, empurrando-as e empuxando-os contra o inimigo. Por sua vez, Os comandantes habsburgos, principalmente o Duque de San Gérman e o Duque de Ossuna, em desespero, iam lançando no combate as suas forças conforme eles chegavam ao campo de batalha.
O primeiro fortim a tombar, terá sido o à direita do assalto português. A explicação para o facto, deriva de o assalto português pretender aproximar-se o mais possível da urbe, e portanto, ser a esquerda castelhana da linha a mais pressionada pelo ataque. Além disso, este fortim teria também sido atacado pela retaguarda, por parte da infantaria que surtira de Elvas. Subsequentemente, tombaria o fortim do centro esquerdo da linha de defesa castelhana, que conteria alguma da mais importante nobreza vinda no exército de D. Luís de Haro. Os fortins nos flancos deram mais problemas. Outros, resistiam com mais empenho. Num destes, a guarnição pagou com a sua vida a sua renitência em capitular. Tomado de assalto pelo capitão Álvaro Barreto e seus soldados, os defensores foram todos degolados. No extremo direito da linha castelhana, contudo, a resistência teve um efeito moral. Um dos mais brilhantes comandantes portugueses, essencial na mobilização do exército de socorro, André de Albuquerque Ribafria, foi morto quando mostrava aos soldados como deviam romper as estacadas que protegiam o fortim e impediam o seu avanço. Ao empunhar o bastão para mostrar como deviam fazê-lo, foi mortalmente ferido. Dizem os panegíricos lusitanos, que galva­nizados, os soldados tomaram então de assalto o fortim. Pelo contrário, os textos dos derrotados, acentuam que o fortim resistiu e foi evacuado só à noite pela sua guarnição.
 
Esta fase da batalha é-nos algo inacessível. Que actos foram feitos? Como foi a sua sequência? Surgem-nos obnubilados pela distância do tempo e pelo reduzido legado que dos coevos dispomos. As imagens criadas pelos reduzidos textos e pelas reduzidas imagens, não nos permitem ter uma visão global e sistematizada desta fase do combate. Que das sombras do parco legado nos surge um combate confuso e desorganizado feito de uma multitude de acções, mais desconexas, assim parece, do lado castelhano que do português, não inibe estar-se perante uma dispersão do combate.
 
Contudo, mesmo na dispersão do combate, a centração no objectivo final e bem definido dos portugueses valeu-lhes a vitória, tanto mais que San Gérman e Ossuna, pouco mais parecem ter conseguido fazer que ir em­penhando desesperadamente as suas forças, conforme iam chegando ao campo de batalha, em ataques e contra-ataques desconexos, sem linha de rumo ou visão estratégico-militar coerente, não fosse a de ir aguentando a resistência. Pelo contrário, os portugueses parecem ter-se entreajudado mais. Perante situações mais desesperadas, havia sempre uma partida de portu­gueses que rapidamente ia em apoio da que estava em apuros. Além disso, os portugueses combatiam próximos uns dos outros, ao longo da linha, enquanto as forças castelhanas vinham de várias posições das linhas de assédio o que os vulnerabilizava ainda mais.
 
O ferimento de San Gérman e Ossuna teriam por fim feito colapsar o que restava da vontade combativa castelhana. Muitos soldados teriam desertado na marcha ou na aproximação ao campo de batalha e face à inevitabilidade da morte ou da derrota, muitos outros se poriam em fuga, tanto mais que a raia não estava longe. Por volta do início da tarde, D. Luís de Haro, que se limitara a observar a batalha de uma posição no outeiro de Nossa Senhora da Graça, retirou-se para Badajoz e o que restaria da resistência na linha dos Murtais esbarrondou. Os portugueses teriam entretanto feito entrar em Elvas o comboio de reses para abate com vista ao abastecimento da urbe.
 
Ao fim da tarde, ter-se-ia tentado um assalto ao outeiro de Nossa Senhora da Graça, mas sem sucesso. As obras avançadas e o alcantilamento e alteamento do outeiro teriam batido a força de assalto portuguesa.
 
Assim sendo, os portugueses isolaram-no e postaram-se nas aforas da cidade de Elvas, por um lado, para proteger esta de uma tentativa de renovação do combate no dia seguinte, por outro lado, provavelmente, para evitar o contágio do exército pela peste.
 
Mas não houve combate no dia seguinte. Durante a noite, as guarnições militares castelhanas que podiam, evacuaram as suas posições e retiraram ou debandaram para Castela. Quanto ao forte no Outeiro de Nossa Senhora da Graça, aceitou termos na manhã de dia 15, capitulando (600 soldados inimigos renderam-se). Então o Conde de Cantanhede avançou sobre o Quartel da Corte, que encontrou vazio, mas cheio de despojos que fizeram a felicidade dele e do seu exército. Sancho Manuel, por sua vez, resolveu efectuar um reconhecimento de cavalaria até ao Ribeiro do Caia, encontrando aqui e ali foragidos castelhanos em debandada, capturando-lhes duas Bocas de Fogo, que alguns, penosamente, procuravam arrastar para Badajoz, e “despiu-os”, querendo-se com isso dizer, que os seus soldados se apossaram dos seus mais úteis haveres, antes de os deixarem ir embora. A batalha estava consumada.
 
Custara aos Castelhanos 2 000/3 000 mortos e cerca de 3 000/5 000 capturados, 15 000 armas de infantaria e 25 armas da artilharia foram capturados (17 canhões, 3 trabucos e 5 petardos). Em Badajoz, dias depois, contabilizaram-se tão só cerca de 5 000 soldados sobreviventes. Do lado português, houve cerca de 600 mortos. Sancho Manuel disse mais tarde que teriam perecido em Elvas 4 000 pessoas.
 
Esta é uma descrição possível da batalha4. Mas para lá da descrição, há toda uma outra dimensão, bem mais vasta, imensa na abertura que permite a compreensão de uma dada realidade histórica, mesmo que esta realidade se chame batalha ou ainda de forma mais ampla e significativa, guerra, visão esta, que permite um olhar mais fundo e intenso sobre, não só propria­mente o acto em si, mas igualmente, da razão porque determinada acção desencadeou um específico número de acontecimentos, assim como do seu impacto no porvir.
 
 
2.  Para uma Tipologia da Arte da Guerra no Século XVII
 
2.1.     A Táctica e Estratégia (Militar) e a Guerra da Restauração
 
A Batalha das Linhas de Elvas decorreu de um assédio efectuado pelo exército castelhano à urbe elvense em Outubro de 1658. Assédio e batalha campal surgem interligados. Não se trate de um evento único. Na realidade, as três grandes batalhas da Restauração, Linhas de Elvas, Ameixial e Montes Claros5 estão ligadas a cercos e assédios a cidades. Mas o fenómeno não é recorrente só em Portugal ou na Península Ibérica. Ele é genericamente europeu. A poliocértica é uma arte plenamente desenvolvida na Europa desde os fins do século XV e os princípios do século XVI, intimamente ligada à formação do Estado Moderno e à criação dos exércitos régios/monárquicos na Era Renascentista.
 
A guerra, do ponto de vista militar, divide-se por conseguinte em duas grandes artes, a da batalha campal e a do cerco. No entanto, este último é mais relevante. Na realidade, um exército batido no campo, podia ainda assim preservar o Estado, se recolhido numa portentosa fortaleza que lhe asse­gurasse a existência e lhe permitisse lamber as feridas, deixando sempre o inimigo inquieto sobre o que ele faria quando a ocasião o proporcionasse.
 
E não se trata de mera retórica teórica. O caso mais paradigmático do valor da fortificação dá-se talvez com a denominada Guerra de Mântua em 1627-1629. Os Gonzaga, senhores do Ducado de Mântua tinham despendido uma fortuna colossal para criaram no seu pequeno reino duas grandes fortificações anti-artilharia, uma na própria cidade de Mântua, outra na vila de Casale, com o objectivo de aumentar a sua defensabilidade e prolongar a resistência, até que as negociações ou a usura expulsassem o atacante. Em 1627, por morte de Carlo Gonzaga, sucedeu-lhe a linha francesa da família, o Duque de Nevers, mais conhecido como Charles Gonzague. Disputas entre os Savoia e os Mântua deram lugar a uma invasão conjunta, savoiana e milanesa, fazendo entrar em acção os protectores de ambos os ducados, a França a respeito da casa Nevers e os Habsurgos espanhóis e germânicos, derivado do milanado. Só que a pequena casa Nevers demonstrou ser um osso duríssimo de roer, fortificada em Mântua e Casale, resistiu mais de um ano a um assédio espanhol, com o auxílio da peste que ajudou a dizimar os assediantes, no final, estes mais não conseguiram ter que uma vitória pírrica. Um pequeno Estado italiano enfrentara com êxito por um ano e meio as forças habsburgas combinadas6.
 
A fortificação era por conseguinte um elemento, um instrumento e um valor essencial da guerra no século XVII. É por isso que, uma das primeiras medidas de D. João IV fosse, para além do Conselho de Guerra e do Conselho Ultramarino, uma Junta das Fortalezas para lidar com a fortificação do país. A constituição de três grandes núcleos de fortificação correspondiam igual­mente à Forma da Guerra coeva. Ao núcleo fortificado da linha do Minho, com Valença e Monção, correspondiam na Beira, Almeida e no Alto Alentejo, o poderoso núcleo de Elvas - Campo Maior - Olivença. O objectivo era a defesa das linhas de comunicações mais directas, ou sobre Lisboa, ou no caso específico do Minho, sobre o Porto. Além disso, as fortificações tinham igualmente uma racionalidade ofensiva. Base de Operações, numa terminologia posterior, contra as posições fortificadas do inimigo, das quais, na raia, a mais importante era Badajoz, pela posição que tinha na via que ligava a fronteira a Madrid. As fortificações funcionavam assim como elementos defensivos e ofensivos, e eram sempre de ter em conta nos planos ofensivos e defensivos.
 
Na realidade, a fortificação era um elemento de flanqueamento e de ameaça ao flanco de qualquer exército em manobra. Esse flanqueamento não ameaça só o exército de campanha, mas toda a sua linha de abastecimentos e comunicações. É certo que os exércitos coevos eram pouco exigentes em termos logísticos, mas o seu abastecimento só em determi­nados casos podia ser superado com recurso ao saque e à aquisição forçada de bens em terras do inimigo. Era necessário que os camponeses os tivessem, facto pouco consistente no século XVII na Extremadura castelhana e no Alentejo, a despeito de bem mais rico. Por isso, era imprescindível assegurar a retaguarda e isso obrigava à conquista de algumas das praças que estavam no caminho.
 
Esse facto, explica a concentração do esforço militar na conquista de fortificações. Fortaleza conquistada era um passo no avanço em território inimigo. Mas a sua conquista era muito difícil.
 
A arquitectura da fortificação quinhentista e seiscentista aperfeiçoara-se de tal modo, que criara um sistema defensivo em profundidade com elevada capacidade anti-artilharia, denominado de Trace Italienne (pela sua origem italiana) ou de Fortificação Abaluartada (como era conhecida terminologi­ca­­mente em Portugal - por via dos baluartes que eram a essência da defesa), do qual o sistema Vauban é um modelo de elevadíssima perfeição. Abandonara-se o torreão e os altos muros, sensíveis ao impacto dos projécteis, por sistemas de construção amplos, longos e mais baixos, adaptáveis à morfologia do terreno, do qual Elvas é um belíssimo exemplo, dispondo de parapeitos, de terraplenos donde se poderia bater com fogo pesado o avanço de um ataque inimigo. A própria estrutura da construção era muito sofisticada, seguindo princípios similares aos usados hoje, com outros materiais (e claro, tecnologia muito mais complexa), nas blindagens dos carros de combate e outras viaturas blindadas, assentavam numa sólida muralha de pedra (enrocamento), sustentada e apoiada num terrapleno de terra, com vista a que o projéctil, de ferro ou bronze maciço, amolgasse, mas não rompesse, nem fizesse tombar a parede da fortificação.
 
Para aumentar ainda mais a eficácia da fortificação, as fortalezas eram construídas em forma estrelar, com vista a que do topo do terrapleno se pudesse bater com fogo todos os cantos das suas paredes. O objectivo era pôr o inimigo sob um intenso fogo cruzado. Reforçando a defesa, constituíram-se baluartes avançados, nas portas, denominados de revelins e redentes, assim como cortinas, que como o nome indica, eram linhas avançadas abaluartadas dos baluartes principais da fortificação. Em redor da fortificação era escavados fossos, que tornavam um assalto um pesadelo, visto as paredes alcandorarem-se, tal como as dos castelos, vários metros acima do solo. No fundo, à distância, a obra fortificada era baixa, mas chegando à sua proximidade, o que era habitualmente só feito pela infantaria, encontrava-se de novo um muro alto, como nos castelos.
Refira-se que para aumentar a complicação do assediante, se desenvol­veram depois pequenas fortificações avançadas, como as coberturas avan­çadas, que defendiam a aproximação ao fosso e às portas, aparecendo depois, fortes e fortins, cobrindo determinadas posições vulneráveis da fortificação principal, mas que obrigavam o atacante a ter primeiro de lidar com eles, antes de investir sobre a posição central. O forte de Santa Luzia, construído em 1644-48, era um belo exemplo desse sistema. Cobria, a Sul, a zona mais vulnerável de Elvas.
 
Para atacar estas fortificações, exigia-se duas coisas, em falta em qualquer guerra, mas que afectava os exércitos com particular virulência nos séculos XVI-XVII, tempo e homens.
 
Os exércitos do século XVII eram forças “mercenarizadas”, tendendo é certo, para exércitos mais nacionais que internacionais. Eram forças pagas, e por isso, habitualmente, eram de pequenas dimensões. Os exércitos que combateram na Guerra dos Trinta Anos rondavam usualmente os 30 000 homens, para cada um dos lados. Na raia luso-castelhana, as grandes confrontações produziram-se entre forças rondando, de 15 000 a 25 000 homens, em cada um dos contendores. Era raro haver na Europa exércitos superiores a 30 000 homens. Só para os fins do século XVII, os exércitos se alçam habitualmente aos 50 000 a 75 000 homens. Com forças reduzidas, as fortalezas ganhavam uma muito maior relevância.
 
Não havia condições operacionais para isolar uma fortaleza e simultanea­mente encunhar-se a fundo no território inimigo. As forças, parcas como eram, divididas, enfraqueciam-se de forma fatal automaticamente. A solução era, assumir um cerco, ou arriscar, e penetrar a fundo no espaço adverso, com o risco de as fortalezas deixadas à margem e livres de ameaças, fenderem a linhas de comunicações e de abastecimentos.
 
Por isso, e derivado disso, o papel da poliocértica. Excepcionalmente, poderia arriscar-se a grandes cunhas no terreno do inimigo, mas como demons­trou a tomada de Évora, as hipóteses de sucesso, a não ser, através do fraccionamento interno do adversário, eram quase totalmente nulas. Assim, as campanhas do século XVII estavam no fundamental ligadas às grandes operações de cerco. E como observava há já várias décadas Geoffrey Parker, a cronologia dos campos de batalha pode visualizar-se pela data de arquitecturação das fortalezas. No século XVI, primeiro, na Itália do Norte, a partir de meados do século, o Norte da França e a linha fronteiriça da Holanda e da Bélgica, no século XVII, a Alemanha, Portugal, desde a Restauração, e já no século XVIII, o Báltico e a Europa Central7.
 
Não foi por absurdo, mas por perfeita consciência da Forma da Guerra no século XVII, que um dos primeiros empenhos militares de D. João IV e dos Restauradores, foi a arquitecturação de um conjunto de fortes fortalezas na raia. Elvas foi de facto, uma das primeiras preocupações de D. João IV e desde cedo, logo com o primeiro Governador de Armas do Alentejo, se iniciou a fortificação da urbe, aproveitando-se inicialmente o velho castelo medievo. Duas outras personagens estiveram ligadas à construção da fortaleza, o jesuíta holandês Pascaccio Cosmander e o mercenário francês Nicolau de Langres. Curiosamente, ambos se bandearam a alturas diferentes para Espanha e ambos acabaram mortos por balas portugueses.
 
Aquando do cerco de 1658, a fortaleza de Elvas estaria praticamente completada, o que demonstra à sociedade, a importância da cidade para a defesa de Portugal, e a visão que os castelhanos dela teriam tido, não seria muito distinta da que hoje temos, afora, a maior construção urbana exterior. De igual modo, Santa Luzia lá estava, cobrindo a parte Sul de Elvas e muito dificultando um assalto por esse lado, obrigando o inimigo a redobrados esforços. Segundo rezam os especialistas, o terreno menos alcantilado e o solo menos rígido, tornam mais fácil um assalto a Elvas pelo lado Sul. Uma belíssima gravura do livro de Cosme de Médici de 1669, com imagens de urbes de Espanha e Portugal, onde se incluía Elvas, pode ser vista na Biblioteca Nacional de Lisboa. Vislumbra-se como Elvas, à distância de três séculos e meio, pouco mudou, as sólidas muralhas da fortaleza, aprisionando-a.
 
A fortaleza compunha-se de sete baluartes e quatro meios-baluartes, três portas, a de Olivença a Nordeste, a Porta da Esquina a Leste e a Porta de São Vicente, virada para o Convento de São Francisco a Oeste. Nicolau de Langres arquitectara uma poderosa cisterna que assegurava que não faltaria água à guarnição e à população aquando do cerco. A urbe estava por isso plenamente arquitecturada para sustentar um assédio prolongado.
 
Tomar uma fortaleza era por isso tarefa ingente que exigia homens quando baste. Era o problema que Luís de Haro tinha de resolver.
 
Dois planos foram postos em consideração. Um, evitando um assalto directo a Elvas, visava tomar as fortificações mais débeis, Estremoz, Vila Viçosa, Borba e Évora, isolando a urbe elvense, para no final, com ela bloqueada, a conquistar facilmente. Outro, a de aproveitar a derrota de Badajoz e o desgaste do exército de campanha português, tomando a cidade de Elvas, após assediá-la, na esperança da impossibilidade de Portugal formar um novo exército em pouco tempo. Mas o cerco, obrigava, exigia suficientes homens para ser eficiente, e bloquear efectivamente a urbe, algo bem difícil de assegurar, e até ao final, houve sempre a possibilidade de contactos entre Elvas e o resto do país.
 
De facto, os 20 000 homens que D. Luís de Haro trouxera, não bastavam. A sua força foi-se arruinando num cerco à distância. A guerra no Alentejo tinha uma peculiaridade muito especial. Só eram boas estações para as grandes operações militares, a Primavera e o Outono, o Estio e o Inverno, terríveis climas, obstavam a grandes actos. Ora, conforme o Outono se ia, o exército de D. Luís de Haro ia desgastando-se debilitando-se, esvaindo-se. Sem reforços suficientes, nunca se arriscou a investir a sério sobre a urbe, e esta, bem abastecida de água e alimentos, ia sustentando-se, só a peste enfraquecendo as suas possibilidades defensivas.
 
Para assaltar uma cidade, um exército não fazia só um cerco. Tinha de se aproximar, para dar a estocada final. Bloqueio e combate combinavam-se na usura da resistência de uma urbe. Em geral, após bloquear à distância uma cidade, e instalados os principais quartéis, um exército iniciava sua ligação, construindo linhas de circunvalação e contravalação. As primeiras visavam impedir a saída da cidade assediada, as segundas proteger os assediantes da chegada de um exército de socorro. No meio, ficava a linha de interligação entre os quartéis de campanha dos assediantes. Estes quartéis era arquitec­tados como se de fortalezas abaluartadas fossem, só que construídos em madeira e terra, e não em terra e pedra. Estacas eram montadas nas suas muralhas para dificultar o assalto inimigo, e com o tempo, posições avançadas eram estruturadas para aumentar a sua defensibilidade e aproximarem-se da urbe cercada.
 
De facto, bem protegido, o exército iniciava a aproximação à urbe isolada. Linhas de trincheiras ziguezagueando, evitando o fogo de flanco ou de enfilada, eram construídas, permitindo que a infantaria e a artilharia se aproxi­massem das muralhas da urbe. A um assalto de distância, e no ponto focal escolhido para a ruptura, posições de fogo era montadas, para abrir a brecha na muralha e cobrir o assalto final à urbe. Aberta a brecha, regra geral, os defensores procuravam termos honrosos para a rendição, e a cidade capi­tulava. Caso se tivesse de fazer o assalto, a cidade ficava a cargo dos soldados, e sofria as amarguras e os horrores da guerra, mortes, saques, violações, torturas e o mais que tenebrosa mente humana pode imaginar. Era o preço a pagar pelo terror e bruteza do assalto final a uma fortaleza.
 
A maioria das fortalezas, na Europa quinhentista e seiscentista rendeu-se quando se considerou como inviável a sua defesa. Mas os cercos bem sucedidos eram terrivelmente custosos em finança e em vidas. Todo o trabalho de assediante era continuamente batido e violentado pelo defensor. Como fazia Sancho Manuel, batidas de infantaria e cavalaria, golpes de mão, razias, efectuavam-se com vista a arruinar as vidas, os recursos, o trabalho e a moral dos atacantes, atacados. Era por isso fundamental que um contínuo fluxo de reforços sustentasse o cerco.
 
D. Luís de Haro não os tinha. Tinham-lhe prometido 900 homens de reforço por mês, vinham 20 a 30 por dia, quando vinham, e o seu valor era desprezível. Forçados, camponeses estremenhos, fugiam mal podiam, com suas terras tão perto. Mal treinados, esfomeados, débeis física e moralmente, eram quase inúteis como combatentes. Os efectivos foram declinando abrupta­mente, ainda mais quando o Inverno tombou.
 
As fontes conhecidas e consultadas não nos permitem ainda, se é que alguma vez o permitirão, dizer do real efectivo de D. Luís de Haro. É contudo provável que o seu exército tenha-se ficado pelos cerca de 10 000 a 12 000/13 000 homens ao longo de todo o cerco e não mais, muito pouco para um perímetro calculado em 15-18 quilómetros. As brechas nesse espaço seriam por demais evidentes. As possibilidades de um cerco em regra, muito difíceis, a sua única esperança é que o exército de socorro jamais viesse, e que Elvas tombasse pela fome ou, o mais provável, pela descrença.
 
As batalhas campais do século XVII eram muitas vezes resultado de assédios. Face ao aparecimento de um exército de socorro, os assediantes, ou retiravam, ou davam batalha. Rocroi, a famosa batalha que diz-se marcar em definitivo o declínio do poderio militar austríaco-espanhol, resultou de um assédio e do aparecimento do exército de socorro francês. Em Elvas, foi isso que aconteceu. Os assediantes ficavam sempre num dilema; na prática, face ao exército de socorro, teriam de enfrentar duas grandes forças inimigas. Claro, uma delas estava empenhada na protecção da fortaleza, mas a despeito disso, poderia sempre enviar uma massa de manobra, maior ou menor, consoante a dimensão da guarnição, para apoiar o ataque da força salvadora. Não obstante, a derrota do exército de socorro poderia ser benéfica, desanimando a guarnição da fortaleza e facilitando os termos de capitulação. De qualquer maneira, para obstar à ameaça que representava a guarnição à retaguarda, usualmente, os assediantes, deixando uma pequena força co­brindo a fortaleza, procuravam travar batalha a alguma distância desta, numa posição que lhes fosse favorável e barrasse a ligação do exército de socorro com os assediados.
 
Os exércitos de campanha eram compostos por três Armas (na termino­logia actual), Infantaria, Cavalaria, Artilharia. Na realidade, só as duas eram efectivas forças bélicas, a última, era uma função técnica, uma arte, que acompanhando as forças de batalha e usada nas fortificações, era controlada por artesãos especializados, muitos deles, simultaneamente, construtores e operadores das armas. Propriamente militares, eram a Cavalaria e a Artilharia. A Cavalaria era a arma mais nobre, mas também com menos efectivos. A Infantaria, o grosso dos combatentes, originários das classes mais baixas da sociedade, dividiam-se em duas grandes “sub-armas”, os piqueiros e os mosqueteiros/arcabuzeiros, combatendo interligados e inter-relacionados. Formavam-se grandes quadrados, os terços na nomenclatura hispânica dos séculos XVI e XVII, com os piques no centro e os mosquetes nos vértices, cobrindo-se mutuamente. Os mosquetes batiam com fogo os quadrados adversos, os piques na fase do assalto, apontando para a frente, quais falanges seiscentistas, pela força física empurravam o inimigo para lá do campo de batalha. Igualmente, formavam um ouriço de piques contra a acção da cavalaria inimiga.
 
As forças no campo de batalha eram organizadas em vários escalões de quadrados, que se movimentavam com vista ao choque com os seus adversários. Nos flancos das linhas de quadrados, estava a cavalaria, que cobria a infantaria dos cavaleiros inimigos, e aproveitava as oportunidades para atacar os flancos e a retaguarda do adversário, incluindo, e muito importante, a sua artilharia. A artilharia tinha igualmente uma importante função, a de bater os quadrados, de abrir brechas, por impacto directo, ou indirecto, i.e., desmoralizando o adversário. O choque dos quadrados era físico, tal como o dos seus predecessores helénicos. Na realidade, o quadrado de piques, inventado pelos suíços nos fins do século XV, tinha uma origem arcaica na falange grega da idade de ouro heládica. Contudo, derivado da inovação gerada pelas armas pirobalísticas, nos séculos XVI e XVII, muitas vezes o fogo substituiu o choque da falange, o inimigo cedendo à desmoralização gerada pelos canhões e pelos arcabuzes/mosquetes.
 
Em Elvas, foi isso que em boa medida aconteceu aquando assalto. Não parece ter chegado a haver confronto físico. Face ao fogo dos canhões da praça e das forças de socorro, os infantes habsburgos, sitos na linha, debandaram para os fortins. Esta foi quebrada, num sentido estrito militar, pela possibilidade do choque, mas na verdade, resultado do efeito desmoralizador do fogo das “bombardas”.
 
Depois o combate, desmultiplicou-se em numerosas acções. Contraria­mente ao que era classicamente considerado na historiografia militar, os terços eram unidades bem mais flexíveis do que em tempos se pensou. Em termos de orgânica, os terços deveriam ter 3 000 homens, organizados em compa­nhias de 300, num total de dez. Contudo, pelo efeito da guerra e das dificuldades de recrutamento, os efectivos dos terços eram muito variados, che­gando, no século XVII a formar-se terços de 600 e 900 homens. Isto significa que o terço era uma estrutura mais flexível do que se suponha em tempos. Podia por conseguinte, ser utilizado numa ampla série de missões operacionais, para além da batalha campal.
 
Assim, em Elvas, os combates miscigenaram combates frontais, com acções de assalto a fortins, com duelos confrontando cavalaria e infantaria. Em qualquer dos casos, piques e mosquetes trabalhariam em conjunto. Os assaltos aos fortins seriam cobertos por fogo dos mosquetes. Em determi­nados casos, adagas e punhais completariam o trabalho final do assalto, num feroz corpo-a-corpo.
 
No final do choque, as baixas eram pesadas. 2 000 ou 3 000 castelhanos e 600 portugueses juncavam o campo de batalha. O desequilíbrio nas baixas pode advir de muitos dos soldados castelhanos seriam bisonhos e pouco treinados, favorecendo os portugueses. De facto, uma parte do exército português era experimentando, pelo menos metade da força de socorro. O resto era composto por milícias e ordenanças. A despeito de estas forças poderem não ser de uma grande qualidade, quando bem enqua­dradas, eram elementos não depreciáveis no potencial relativo de combate nacional. Mas isto remete-nos para a relação entre sociedade e guerra.
 
2.2.     Guerra e Sociedade no Seiscentos Português
 
A Restauração nasceu da junção de duas parcialidades, afirmavam à época, os agentes de Olivares. É a conjunção do povo e da nobreza que permite a Restauração da independência de Portugal. A historiografia da Restauração, de uma ou outra forma, tem vindo nas últimas décadas a questionar o sentido nacional da Restauração e a propugnar por uma relação entre a fiscalidade e a rebelião regional do ocidente peninsular. No fundo, nobreza e povo ter-se-iam conluiado contra a Monarquia Habsburga madrilena por causa da pressão fiscal. É claro, que mesmo a mais tradicional historiografia portuguesa sobre a Restauração sempre reconheceu o peso da pressão fiscal nos eventos de 1640, conquanto lhe desse um cunho nacional, a da libertação de um povo, oprimido, opressão que se tornava visível nos impostos, e contra a qual, os restauracionistas se alevantaram.
 
Não deixa contudo de ficar no ar uma questão. Sendo a carga fiscal muito mais pesada em Castela que em Portugal ou na Catalunha, e havendo igualmente uma contraposição entre Olivares e a maioria da alta nobreza castelhana, porque foi nas margens e não no centro que se produziram os levantamentos anti-fiscais, levantamentos estes, onde se deve incluir igualmente o de Nápoles de 1648. Mais, não se reconhecendo um sentido nacional, como explicar que estes levantamentos não perpassam avulsamente pelos territórios da Monarquia, mas sejam delimitados geograficamente a entidades histori­camente constituídas há séculos. Retornaremos a este tema mais tarde.
 
O que não parece oferecer hoje dúvidas é o papel central da nobreza na liderança, quer no golpe restaurador, quer na guerra que desde esse momento se desencadeou. Autores como Fernado Dores Costa8 e Rafael Valladares9, este espanhol, têm defendido, na esteira de António Manuel Hespanha10, o papel central da nobreza em todo o processo que conduz à independência de Portugal. O facto não seria de surpreender. Na realidade, mesmo nas sociedades mais “burgueses” da Europa, como a Nederlândia e a Inglaterra, o predomínio de uma sociedade hierárquica e estamental era evidente e natural à ordem social existente. As elites advinham quase sempre e naturalmente, de uma determinada “nobreza”, burguesa ou titular, dependendo das regiões onde viviam, e subordinava, naturalmente ordenada por Deus, a grande massa do povo. Todas as rebeliões funcio­navam assim como uma ruptura da ordem natural, mas na verdade, a própria afirmação da plena soberania régia no Estado (reino), era uma subversão da ordem instituída por Deus. Daí as resistências mais ou menos intensas que a nobreza opunha à centralização régia. A junção das parcialidades nobreza e povo era assim antevista como de uma enorme periculosidade para a afirmação do poderio e da soberania régia. Mas como já observaram há décadas John Elliot11 e António Oliveira12, foi a conglutinação da nobreza e do povo que possibilitou a Restauração de 1640.
 
Neste universo estratificado, cabia o papel director à ordem nobiliárquica. Esta ordem foi contudo ela própria convulsionada pela subversão da ordem monárquica gerada pela fenda peninsular. Uma parte, uma boa parte da mais alta nobreza portuguesa permaneceu fiel a Filipe IV, o que significou uma ascensão social de uma média nobreza, da nobreza territorial lusa, a mais comprometida com a Restauração, aos altos cargos do Estado português. De igual modo, e por via da ordem natural estamental, a ela cabia a direcção da guerra.
 
A estratificação da sociedade sentia-se na organização social militar portuguesa. As ordenanças de D. Sebastião tinham estruturado, de acordo com a ordem tradicional, a organização social militar, segundo um modelo hierárquico que expressava a estratificação geral da sociedade. Recuperadas logo em 1640, elas estruturaram a mobilização “nacional” segundo uma “milícia” tripartida. Um corpo de soldados profissionais, teoricamente forte, composto por 20 000 infantes e 4 000 cavaleiros pagos, organizados em terços. Uma força de milícias e forças auxiliares, também organizada por terços, de comando e recrutamento local. As ordenanças, resultado da mobilização de todos os homens válidos da nação, dos 16 aos 70 anos, com mero fito de defesa local. A elite desta força era o exército profissional, as outras forças, tendo uma mera função de defesa local e regional. Este exército profissional, comando por nobres, seria a força de grande campanha, a força destinada às grandes operações bélicas.
 
Não obstante, raramente atingiu o efectivo estipulado, e as necessidades da guerra, bem depressa obrigaram os comandos militares a juntar-lhe milícias e ordenanças para efectuar as diversas operações necessárias e compor os efectivos dos exércitos de campanha. Na realidade, a mobilização de forças para o exército de socorro que deveria libertar Elvas, só foi possível porque metade da força era composta por milicianos e ordenanças, mesmo na cavalaria.
 
O fraccionamento da organização social em estamentos também irrompia na mobilização dessa força. Sistematicamente, os esforços de mobilização de milicianos e ordenanças caía sobre os elementos menos protegidos e mais desfavorecidos das comunidades. A necessidade de mobilizar para longe dos espaços vivenciais as forças militares impunha um esforço bélico às comunidades, em que normalmente, quem mais sofria, eram os que menos possibilidades tinham. A deserção era por isso recorrentíssima, e segundo Fernando Córtes Córtes, as taxas desta rondariam 35% a 50% da força que mobilizada numa dada região, jamais chegava ao seu destino13. Mas como observa Fernando Dores Costa, era muito mais barato levantar para a guerra as milícias e as ordenanças, que pagar a um exército profissional, conquanto se achasse conveniente que o comando destas formações devesse ser profissional14.
 
É quase natural pensá-lo, visto para soldados tão mal mobilizados, tão relutantes a serem enviados para a guerra, ser essencial um excepcional enquadramento, que só comandos profissionais e experimentados poderiam oferecer. O comando militar era apanágio da nobreza. Não era obrigatório ter grande ou nenhuma experiência militar. O Conde de Cantanhede não a tinha quando foi nomeado Capitão-General e Governador de Armas da Província do Alentejo. Claro que teve a inteligência de apelar ao apoio dos experimentados cabos-de-guerra do Exército do Alentejo, como André de Albuquerque Ribafria. De qualquer modo, o próprio estilo de comando, pelo que se pode deduzir da campanha de Elvas, não se coaduna com uma lógica hierárquica pura. Não parece haver uma última palavra, uma última decisão do “Coman­dante-Chefe”. Este opera mais em conselho, como seria apanágio da relação estamental nobiliar. Não estamos face a um Estado-Maior moderno, com uma hierarquia de comando, onde a decisão final é da exclusiva responsabilidade do “Comandante-Chefe”, mas perante um conselho de pares, que em combinação, decidem da acção militar a efectuar. Observe-se que mesmo no final, ainda se requer a opinião de Sancho Manuel, a sua acordância à operação de socorro e libertação da urbe.
 
Se bem que esta perspectiva possa exigir uma mais elaborada inves­tigação, repare-se que a própria organização central, criada por D. João IV, para enfrentar a guerra, assentava numa ordem conciliar, em conselhos (compostos por nobres) que apoiariam a decisão régia e facilitariam a sua execução.
 
Na realidade, apesar de toda esta ideia necessitar de uma mais aprofundada e sistemática investigação, os próprios planos de socorro de Elvas emergiram de diversas reuniões conciliares. Os planos de socorro a Elvas foram dis­cutidos em vários Conselhos de Guerra em Estremoz e ainda na noite de 13 de Janeiro houve uma última reunião para se assentar em definitivo se o ataque se processaria tal como fora delineado anteriormente, o que foi confirmado. Não parece, pelo pouco que nos foi legado, que o Conde de Cantanhede tenha tido uma palavra definitiva sobre o assunto, todo o planeamento derivou de um acordo geral dos membros presentes no Conselho de Guerra.
 
Três planos foram então considerados. Dois visavam atacar directamente as linhas de assédio. Um visava bloquear os reforços e abastecimentos de D. Luís de Haro. Curiosamente, ou não, este último, que passava por cortar as linhas de comunicações dos habsburgos no Caia, com Badajoz, era o que se pensava como tendo maior efeito no campo inimigo, forçando-o a levantar o cerco.
 
Os outros dois planos distinguiam-se pela modalidade do ataque, um único ou dois assaltos simultâneos a diferentes partes da linha de assédio. Inicialmente, veio a ideia de atacar simultaneamente a linha castelhana nos Murtais e no Quartel da Corte. Visava-se com isso dividir o esforço defensivo castelhano e ganhar uma margem de surpresa, sobre qual seria o ataque principal. Contudo optou-se pela última proposta, um ataque concentrado e directo de todas as forças do exército de socorro sobre a linha castelhana dos Murtais. Esta proposta foi posta na mesa, di-lo Gastão de Mello de Matos15, por Diogo Gomes de Figueiredo, comandante de um terço. É interessante observar que Diogo Gomes de Figueiredo seria à altura Mestre de Campo, ou seja, comandante de um terço, contudo, a despeito do seu posto não ser dos mais elevados, nem dos de maior responsabilidade, teria participado no Conselho de Guerra, que para todos os efeitos seria razoavelmente alargado. Seria este o plano escolhido.
 
As razões expostas por Diogo Gomes de Figueiredo justificaram a escolha do seu plano. Mantinha concentrada a força portuguesa, permitindo que ela atacasse com toda a força e simultaneamente o inimigo. Assegurava a sua coesão, frágil, devido às debilidades habituais de muitos dos soldados, milicianos e ordenanças, bisonhos e mal preparados. Simplificava a manobra do ataque, um simples e maciço assalto. Pelo contrário, a divisão de forças, com vista a atacar em dois pontos distintos da linha de assédio, que estavam distantes entre si, podia fazer com que em vez de um único assalto, sucedessem dois a horas diferentes, possibilitando ao inimigo reforçar-se e batê-los, concentrado. Foi por isso, que também se abandonou a ideia do bloqueamento do Caia. Obrigaria à dispersão da força portuguesa pelas várias passagens, em pleno inverno, debilitando a sua coesão, arriscando-se mesmo à sua ruína, por efeito do tempo.
 
De igual modo, os planos castelhanos derivaram mais do Conselho de Guerra que da visão estratégica e da decisão de D. Luís de Haro. Contudo, o conselho de guerra castelhano aparece-nos bifacialmente. De um lado estavam os experimentados comandantes estremenhos que optaram sempre por planos distintos dos que representavam o outro lado, os conselheiros que D. Luís de Haro trouxera com ele de Madrid.
 
Os primeiros, recusaram inicialmente o assédio a Elvas. Sabiam dos reduzidos recursos de que dispunham e do valor defensivo da urbe, muitíssimo bem fortificada desde o início da guerra. Tinham pretendido atacar primeiro as praças menos fortificadas e mais vulneráveis, como Estremoz, Vila Viçosa, Borba e Évora, com vista a isolar Elvas e Campo Maior e em seguida fazê-las tombar num mais seguro assédio. Obcecado com a reputação e com a rapidez de uma decisão vitoriosa, D. Luís de Haro, a conselho do filho do velho general Ambrósio de Spínola, que desconhecia por completo o terreno que eles pisavam, investiu sobre Elvas. Quando o exército de socorro se aproximou, novo Conselho de Guerra foi feito pelos castelhanos. Também aqui, os “generais estremenhos” prefeririam levantar o cerco e ir travar batalha de forte a forte, em campo aberto. D. Luís de Haro optou por aguardar o Conde de Cantanhede nas suas supostamente bem mais protegidas e fortificadas linhas, o que em vez de lhe dar segurança, foi um catastrófico erro, visto que, obrigado a dispersar pelas suas longas linhas as suas forças, e deixando a iniciativa ao inimigo, viu-se atacado de surpresa, quando menos esperava e sem forças em suficiente número para aguentar o ataque português.
 
A definição dos planos, por sua vez, elucida as características políticas da guerra. A autonomia da decisão dos comandos era muito ampla, contudo, obedecendo a algumas directivas políticas gerais. A estrutura conciliar dos conselhos locais de guerra16, por sua vez, reflectia a predominância da nobreza na definição das políticas do Estado. Contudo, seria simplista assumir que a monarquia nada significava na vontade geral e na guerra. Ela congregava vontades e definia identidades, e nesse campo, o papel político de condução da guerra era central, conquanto procurasse e fosse obrigada a ceder nas margens ao papel militar da nobreza.
 
2.3.     Guerra e Política nas Guerras Seicentistas
 
Num pequeno estudo, há tempos publicado, António M. Hespanha e Ana Nogueira da Silva, referiam que o ser português no século XVII era muito mais plural do que hoje e que a sua identificação perpassava por, desde os particularismos locais e regionais às perspectivas civilizacionais étnicas e reli­giosas. Assim, um português era simultaneamente ser da sua aldeia, vila ou cidade, da sua região, da Península Ibérica (hispânico), da civilização latina e da civilização católica. E claro está, também era português17. Curiosamente, nada é dito sobre a sua identificação com o Rei, a despeito de no século XVII, o Estado, cada vez mais, identificar-se com a monarquia. O Estado era o Rei, o Rei era o Estado.
 
Este fenómeno gerava uma idiossincrasia muito própria e dificultava, de certo modo, a autonomia da nação, identidade abstracta, da figura régia. Pode observar-se a complexidade e mesmo esquizofrenia que esse facto gerava na política dos últimos Áustrias espanhóis. Os denominados “partido espanhol” e “partido austríaco”, mais não realçavam a incómoda situação dos habsburgos ibéricos, reis, na verdade, de Espanha, condicionados pelos laços familiares a uma intervenção cada vez mais onerosa e desgastante na Europa central, quando tudo indicava que os grandes valores da monarquia e a sua perviência se situavam a Ocidente, em Portugal e no Atlântico.
 
Mas enlaçados na teia familiar, no valor dinástico, incapazes de uma opção difícil, deixaram aos acontecimentos o resultado do enredo, e paradoxal­mente, o enredo empurrou-os fatalmente para a geopolítica, sem que dela pudessem tirar todas as suas vantagens. Não foram capazes de largar a Europa central, se não excessivamente tarde, quando tudo demonstrava o absurdo do esforço e do dispêndio sem retorno aí feito, e quando reconheceram que toda a monarquia só tinha a ganhar oceanizando-se, Portugal escapulira-se-lhes irremediavelmente.
 
Seja como for, a identificação Estado-Monarquia é um valor a ter em conta. Não será que também é um valor a ter em conta na identificação da “Nação”, isto é, na identitização do povo e do Estado. O rei, enquanto figura central do Estado, identifica a comunidade, os diversos estamentos consigo. A lógica paternalista do poderio e da soberania régia jogavam precisamente com essa identidade. As imagens encarnadas, corporizadas do Estado, reflectiam igualmente isso. O povo nada era sem o rei, mas o rei, exprimia a identidade do povo.
 
Claro está, estamos ainda no domínio da hipótese, que estudos mais sistemáticos poderão comprovar o não.
 
Mas, no século XVII, o rei é o soberano. Por isso, foi tão essencial aos restauradores arranjaram um rei com e de linhagem. Os Braganças, ligados por laços sanguíneos aos Avis, foram pressionados sistematicamente a assumir a Coroa. De facto, literalmente empurrados para a cingir na cabeça. Nesta situação, D. João IV foi, de algum modo, obrigado a compartilhar com a nobreza, o poder do Estado.
 
Mas, para lá disso, tornou-se símbolo da independência, de um Estado revivificado. Esta centralidade da figura bragantina nos destinos e na identidade do novo Estado, esta miscigenação entre a figura régia e o Estado (reino) explicam alguns dos troços da história diplomática e da política exterior da Guerra da Restauração, nomeadamente, as tentativas de acordar um outra reunificação, com base em Lisboa, e com base no casamento de D. Teodósio com a herdeira de Filipe IV de Castela, Maria Teresa, que não passaram contudo de intenções sem real correspondência na casa habsburga.
 
Na realidade, para Filipe IV, o golpe de 1640 subvertia a ordem consti­tucional e a própria herança dinástica dos Áustrias espanhóis, surgindo como uma autêntica amputação. Acto subversivo, configurava por conseguinte uma traição. Para os Braganças, pelo seu lado, o discurso “restaurador” convertia-os a “salvadores” do Estado, em vias de desaparecimento, movido pelos maus actos de governação de Olivares e de Madrid. D. João IV não subvertera a ordem constitucional existente, mas a restaurara, impondo nos trilhos correctos a história do reino de Portugal.
 
Face a tão discrepantes posições, a guerra emergia como solução para a resolução do conflito. Contudo, ela rompia inequivocamente com uma ordem anterior, com um sentido histórico, que reconheça-se, de certo modo, Olivares, já intentara subverter. A amputação da monarquia habsburga expressava a fenda que marcaria indelevelmente até hoje a Península Ibérica.
Ela consubstanciaria a formação de duas entidades distintas na Península Ibérica, contudo, no caso específico de Portugal, com fundadas raízes históricas. Surge agora a questão levantada no início deste texto. Não haverá, para lá da conjunção de duas parcialidades e de uma questão fiscal, por muito funda que ela seja, algo mais, que explica o Dezembro de 1640.
 
Há alguns anos, numa reflexão sobre a História e sobre a história que fez, Jacques Le Goff observava que o peso do passado, o peso que os nossos antepassados nos legaram, era muito mais que um mero passado, mas na verdade, exprimia uma identidade de que nós dificilmente escapávamos, e mais, que era uma importantíssima bagagem de libertação e criação18. É certo, que o defensor da História-Ciência, das Estruturas fundas e de longa duração, não podia deixar de expressar na sua concepção de História, os fundamentos da sua teorização sobre a mesma. E rematava, realçando que a força e dinamismo da China e da Índia advinham desse longínquo passado, da força e enraizamento das suas civilizações na História da Humanidade.
 
Mas hermenêutica e heuristicamente, a visão de Jacques Le Goff está muito longe de ser facilmente questionada. O passado marca. O passado consolida e sustenta.
 
Ora, 1640 não é um mero acto do presente. O discurso restaurador, por muito que sirva para justificar e legitimar, por muito que esconda interesses nobiliares e responda a uma pressão fiscal considerada como intolerável, assenta igualmente numa história, numa linhagem, numa tradição. Portugal pré-existira e afirmara-se como um grande Estado, anteriormente à união. Essa realidade existia como existiam e existem outras realidades identitárias peninsulares, que dois séculos e meio de pressão centralista e uma das mais terríveis guerras civis e ditaduras do devir europeu não conseguiram apagar. Elas saltaram da caixa, mal a mão pesada que segura o cadeado esbarrondou. No fundo, o peso do legado histórico, demonstrou uma resistência que não pode ser apenas produto da imaginação fértil do presente, visto nenhum presente se sustentar por si próprio, como não poderia sustentar-se em 1640, não houvessem outros fundamentos a legi­timar a Restauração.
 
É talvez por isso, que 1640 não é um fenómeno avulso, mas regional e identitariamente delimitado. Não é uma mera rebelião anti-fiscal, mas um levantamento, que se delineia em identidades geográfico-políticas precisas, a Catalunha e Portugal. Mais. É certo que houve famílias da nobreza e burgueses que se expatriaram para Castela e para Madrid. Contudo, se não houve exaltação pela aclamação de D. João IV e pela aceitação dos Braganças em Lisboa, tão pouco, houve resistências de monta ao novo governo bragantino, como se um rei de sangue português em Lisboa fosse natural.
 
Claro que mais estudos serão necessários. Que será talvez necessário ir mais a fundo na investigação, que se imporá ir mais longe do que foi a historiografia espanhola e inglesa da década de sessenta e setenta, quando destapou a importante questão da oposição nobiliar à política de Olivares, e o duelo entre o centralismo e o pactismo, para simplificar o nosso discurso, e que tão bem é retratado na excepcional obra de John Elliot sobre o valido de Filipe IV19. Tal como já não podemos resumir, nem simplificar a questão de 1640 ao nacionalismo português, absurdo se pensarmos em 1580, também se deve ir mais longe que as disputas centro-periferia, centralismo-pactismo, opressão fiscal-liberdades estamentais.
 
Mas esta última questão remete para o problema a ter em conta, para a questão a responder. Essa identidade histórica, não nacionalista, nem etnicista, mas “nacional”, delimitada geograficamente e historicamente substanciada há séculos, não influi na decisão final? Nem influenciou o processo de ruptura? No fundo, o levantamento é feito e justificado em nome das “antigas liberdades”. Claro, a nobreza portuguesa tem nele um papel director. Mas em qual Estado da Europa não tinha a nobreza um papel director? Suportando o Rei. Para isso, é igualmente imprescindível renovar o discurso e a teoria. Não opor a um universo não nacionalista um outro a-nacionalista. Pelo contrário, perceber o que se esconde por detrás das diversas identidades, percepcionar a identificação dos indivíduos com a sua identidade. Colocar no centro da questão e talvez da resposta, a figura régia como unificador de uma identidade, como farol de um ser de algo.
No fundo, abrir as portas a uma outra visão de 1640 e do significado da Guerra da Restauração.
 
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* Texto-base para uma conferência efectuada na Academia Militar no âmbito do Mestrado de História Militar (2005).
 
**     Doutor em História Institucional e Política Contemporânea pela FCSH da UNL.
 
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 1 Cf. Karl Von Clausewitz, On War, Oxford, 1984 (1832), pp. 586-589.
 2 Cf. Hervé Coutau-Bégarie, Traité de Stratégie, Paris, 1999, pp.176 e 188-193.
 3 Cf. Gastão de Mello de Matos, “As notas do licenciado Luís Crispim e outras relações da Aclamação”, Anais das Bibliotecas e Arquivos, XV, 1942.
 4 Sobre a descrição a mais detalhada possível no estado do conhecimento histórico actual, veja-se Cf. António Paulo David Duarte, Linhas de Elvas, Prova de Força, 1659, Lisboa, 2003, 83 pp., e Cf. Idem, Linhas de Elvas, Prova de Força, 1659, Lisboa, 2005 (Edição Revista e Aumentada), 100 pp.
 5 Sobre a Batalha de Montes Claros, veja-se a recente obra de Cfr. Gabriel Espírito Santo, Montes Claros, 1665, A Vitória Decisiva, Lisboa, 2005.
 6 Esta guerra é muito bem descrita em Cf. Thomas F. Arnold, “Fortifications and the Military Revolution: The Gonzaga Experience, 1530-1630”, in Clifford J. Rogers, Ed., The Military Revolution in Debate, Readings on the Military Transformations of Early Modern Europe, Oxford e Boulder, 1994, pp. 201-225.
 7 Cf. Geoffrey Parker, El Ejército de Flandes y el Camiño Español (1567-1659), Madrid, 1985, pp. 48-52.
 8 A sistematização mais abrangente do seu trabalho pode encontrar-se em Cf. Fernando Dores Costa, A Guerra da Restauração, 1641-1668, Lisboa, 2004.
 9 Da obra do autor, por exemplo, Cf. Rafael Valladares, La Rebelión de Portugal, 1640-1668, (s/l), 1998.
10 Uma síntese da sua visão em Cf. António M. Hespanha, “As Faces de uma Revolução”, Penélope, Nº 9/10, pp. 7-16.
11 Veja-se a obra de Cf. John Elliot, Olivares (1587-1645), L´Espagne de Phillippe IV, Paris, 1992.
12 Melhor sistematizado na sua obra, Cf. António Oliveira, Poder e Oposição em Portugal no Período Filipino (1580-1640), Lisboa, 1990.
13 Cf. Fernando Córtez Córtez, Guerra e Pressão Militar na Fronteira, 1640-1668, Lisboa, 1990.
14 Cf. Fernando Dores Costa, “Formação da força militar durante a guerra da restauração”, Penélope, Nº 24, 2001, pp. 87-120.
15 Cf. Gastão de Mello de Matos, “André de Albuquerque Ribafria” in Anais da Academia Portuguesa de História, 1ª Série, XII Vol., 1954, p. 270.
16 Observe-se que estes Conselhos de Guerra são efectuados por comandos operacionais, com vista a uma acção operacional. E são, parece, alargados à maioria dos comandantes locais. Compare-se isso com o Conselho de Guerra instituído por Churchill em 1940, para travar uma Guerra Total e Global. Apenas era composto por seis pessoas, mas a sua função era dirigir a nível supremo a Guerra, não lidar com problemas operacionais. Sobre o Conselho de Guerra de Churchill, Cf. Winston S. Churchill, Memórias da Segunda Guerra Mundial (Versão Condensada), Rio de Janeiro, 1995 (1959), pp. 268-269.
17 Cf. Ana Nogueira da Silva e António M. Hespanha, “A Identidade Portuguesa”, in António M. Hespanha, Coord., O Antigo Regime (1620-1807), José Mattoso, Dir., História de Portugal, Lisboa, 1993, pp. 19-29.
18 Cf. Jacques Le Goff, “O Desejo Pela História” in Ensaios de Ego-História, Lisboa, (s/d), (1987), pp. 219-220.
19 Cf. John Elliot, Op. Cit., passim.
 
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2006-06-06
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia