Dois acontecimentos, ocorridos durante o mês de Junho, devem ser considerados no debate estratégico, que nos conduzirá à futura elaboração do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) ou Conceito de Segurança e Defesa Nacional (CSDN), tendo em conta as Bases, que foram elaboradas pelo IDN, mas que deixaram de ser assim referidas no Despacho do Senhor Ministro da Defesa Nacional, que cria a Comissão para a revisão do CEDN.
O primeiro foi a tomada de posse da Comissão que, de acordo com o referido Despacho, vai preparar uma proposta sobre as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (GOCEDN) para, nos termos da Lei, ser submetido à Assembleia da República para debate; espera-se que a Comissão conclua os seus trabalhos até 20 de Setembro deste ano, seguindo-se naturalmente a elaboração do CEDN pelo Governo, a emissão de pareceres pelo Conselho de Chefes de Estado-Maior (CCEM) e pelo Conselho Superior de Defesa Nacional (CSDN) e, posteriormente, a aprovação pelo Conselho de Ministros.
Saliento as palavras proferidas pelo Presidente da Comissão na cerimónia de posse que, com grande prudência, referia a propósito da defesa nacional e da sua definição estratégica e passo a citar: “É por isso necessário trazer também, para estas reflexões sobre a defesa nacional, a antropologia cultural portuguesa; o que fomos e como fomos, como fizemos as coisas, que razões e que linhas inspiraram e conduziram os nossos avanços pelo Mundo fora.” Atitude avisada, realista e coerente com a nossa identidade como nação, de quase nove séculos, da qual importa que se conheça bem a orientação estratégica ao longo dos tempos, pois quem a ignorar, certamente não compreende bem o presente e, muito provavelmente, prospectivará mal o nosso futuro.
O segundo corresponde à intervenção de Sua Exceléncia. o Presidente da República, na cerimónia militar do 10 de Junho, dirigida às Forças Armadas, mas também ao Governo, constituindo pelo seu conteúdo e pela sua qualidade de Comandante Supremo das Forças Armadas, uma inegável Directiva para a Tutela e para as Chefias Militares.
Mais tarde, mas também em Junho, com evidentes implicações para a futura orientação da estratégia geral militar, foi publicada pelo MDN, a Directiva para a Reorganização da Estrutura Superior da Defesa Nacional e das Forças Armadas que, no prazo de três a quatro meses, pretende reformar a estrutura superior do Ministério da Defesa Nacional (MDN), Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e Ramos, assim como racionalizar (leia-se reduzir), estruturas e efectivos, naqueles níveis. A mesma directiva tem como pressuposto para aquele trabalho, que o CEDN estará revisto, elaborado e publicado em Diário da República até Outubro p.f.
Parece ser uma expectativa optimista, realizar em cerca de um mês, após a apresentação pela Comissão da proposta das GOCEDN, o debate na Assembleia da República, obter os pareceres do CCEM e do CSDN, sobre o então CEDN, elaborado a partir daquela proposta, a sua aprovação em Conselho de Ministros e a sua publicação em Diário da República.
A verdade é que a Directiva do MDN lançou um exercício arriscado para a ponderação e coerência que deve existir no edifício estratégico, orientador das várias estratégias gerais, com especial incidência na estratégia geral militar, tanto mais que considera igualmente que se pode desde já (procedimento designado no documento por revisão concorrente) elaborar e concluir o Conceito Estratégico Militar, as Missões às Forças Armadas e o Sistema de Forças Nacional.
Estamos perante uma nova metodologia, em que uma visão organizativa e estrutural é suficiente para definir missões e sistemas de forças, numa expectativa seguramente alicerçada em pressupostos inovadores, certamente pouco difundidos no âmbito da Teoria Geral da Estratégia, de que as missões atribuídas e as capacidades levantadas serão capazes de responder às ameaças que venham a constar no CEDN e à defesa dos objectivos nacionais, permanentes e conjunturais, que forem identificados; cria-se assim uma situação, em que a estratégia estrutural determina objectivos, meios e capacidades de uma estratégia geral e condiciona, naturalmente, a estratégia operacional.
A referência ao documento elaborado pelo Instituto da Defesa Nacional, como de qualidade, de alcance e uma sólida referência para o CEDN, não faz dele um dogma estratégico e isento de uma apreciação crítica, como aliás já foi iniciada pela Revista Militar; certamente que a Comissão nomeada terá ideias e convicções próprias e também algo a dizer sobre o tema e, em última análise, será sempre positivo submetê-lo a uma prática tão cara ao MDN - o contraditório.
Seria igualmente positivo e enriquecedor neste processo, escutar as opiniões de entidades credenciadas que começam a pronunciar-se sobre a matéria, chamando a atenção para a necessidade e conveniência de um consenso alargado para as opções que vierem a ser tomadas, para que se pondere cuidadosamente aquilo que deve ser reformulado e para o carácter iminentemente político deste exercício e não instrumental, para legitimar uma qualquer opção reformista, influenciada por modelos importados, pela teoria ou por uma visão meramente economicista.
É também importante que neste processo não se perca de vista a Constituição e o que a mesma consagra relativamente às Forças Armadas e às prioridades das suas missões; poder-se-á falar de uma nova estratégia para a segurança nacional, mas não nos podemos esquecer que ela deve resultar de uma relação sistémica daquilo que compete à defesa militar, ao exercício da segurança interna e às acções de protecção civil - sinergias, carácter supletivo e complementaridade, são desejáveis, desde que salvaguardado o que a cada um compete fazer, em primeira prioridade.
Parece mais prudente e mais avisado que, relativamente, quer à calendarização anunciada, quer à sequência dos vários documentos, se aposte na coerência, na clareza e na consistência das opções e que sobretudo se tenha em atenção o alerta de Sua Excelência o Presidente da República, no seu discurso na parada militar de 10 de Junho e que passo a citar:
“A preservação da condição militar deve constituir uma obrigação claramente assumida pelo Estado perante a Nação e que deve ser cultivada com honra e sobriedade pelos militares. … Quaisquer reformas nas Forças Armadas devem basear-se num processo de responsabilidade e decisão política, envolvendo necessariamente, as chefias militares e ser objecto de um consenso alargado entre os diversos órgãos de soberania. É por isso que as decisões a tomar devem ser encaradas num horizonte temporal mais alargado, de modo a evitar a prazo, o enfraquecimento do desempenho e da capacidade operacional das Forças Armadas. É que, como afirmei há um ano, ‘a diminuição da capacidade de produzir segurança pode acarretar riscos não desprezáveis para o desenvolvimento e para o bem-estar social.”
Por último e no quadro das capacidades e reforma dos instrumentos militares, discutidos a nível da Aliança, considero ainda importante repetir o alerta do SG/OTAN, em Munique, que já reproduzi numa RM anterior: “é necessário dispormos da capacidade de resposta para situações decorrentes de uma possibilidade, ainda que indesejável, da actual crise financeira se transformar numa crise de segurança”.
* Presidente da Direção da Revista Militar.