1. Introdução
O MDN criou um grupo de trabalho, constituído na sua quase totalidade por gente notável do pensamento, da cultura e da intelligentsia portuguesas, com a finalidade de pensar e produzir um novo conceito estratégico.
O conceito estratégico, como grande quadro referencial das preocupações de segurança e defesa e de matriz das orientações dos vários vectores estratégicos, da política externa à política interna, do económico ao mediático, do psicológico ao militar, e por dever ser resultante de largo consenso por parte dos partidos políticos, deve, como a Constituição, caracterizar-se pela sEm nosso entender, só quando sucedam alterações muito significativas de âmbito interno, como foi o 25 de Abril, ou de âmbito externo, como quando aconteceu a implosão da União Soviética ou se concretizaram acções terroristas como a de 11 de Setembro de 2001, o conceito deve ser alterado, por forma a considerar essas novas situações. É certo que depois de 2003 houve alterações que não podem ser esquecidas quando se pensa em estratégia. São os casos da actual notoriedade da China; do desgaste americano e da maior deterioração da sua imagem; da “primavera árabe”; do problema Irão; da fraqueza europeia; do universo hostil financeiro, politicamente intencional ou errático; e da cada vez mais notória demissão da direcção política em fazer opinião pública e, ao contrário, ser comandada por ela. Mas casos como este, ainda que muito importantes, não alteram significativamente o quadro conceptual estratégico de 2003, antes sugerem que a acção política lhes dê uma particular atenção.
Assim sendo, não vemos razão suficiente para que o documento que contém o quadro conceptual estratégico tenha de ser alterado, apesar de ter sucedido há pouco tempo uma mudança na direcção política (por isso podem mudar as políticas, o que é diferente de mudarem os conceitos), e ainda menos para que se “fabrique” um documento que contenha um racional para que se faça certas alterações para as quais não existem argumentos suficientemente válidos. Dada a constituição do grupo de trabalho, isto não deve acontecer, podendo o documento a produzir ser apenas para “português ver”, seguindo-se-lhe o seu arquivamento e nomeação de um novo grupo de trabalho mais propenso a “fazer esse favor”. Estamos cansados de ver isto em Portugal!
Pelo que foi dito, gostaríamos de apresentar algumas breves considerações sobre o assunto, porque, não sendo o conceito estratégico tudo o que deva ser pensado e feito sobre a segurança e defesa, é porém um documento suficientemente importante para que não deva ser adulterado.
2. Algumas considerações
– Sophia escreveu:
“Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo balouçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
….
Só de Preste João não vi sinais…”
E o reino de Preste João está para Sophia de Mello Breyner como a paz universal está para nós… não há sinais, não vemos sinais. Pelo contrário, o que vemos são as tensões, as crises, as pulsões belicosas e a guerra.
A estratégia e a guerra (esta como a sua manifestação mais violenta e indiciadora da falha dos outros vectores estratégicos) fazem-nos lembrar o trivium das artes liberais da universidade medieval – a dialéctica, a gramática, a retórica. De facto, há na estratégia uma dialéctica entre entidades políticas, que pode subir até à exaltação máxima, a esse paroxismo que é a guerra. Clausewitz disse-o por outras palavras: “As relações entre Estados são como um comércio, mas por vezes é exigido o pagamento em espécie” (leia-se: em sangue).
Mas há também uma gramática. Há regras que devem ser seguidas. A estratégia, como ciência-arte, procura essas normas, e as ciências militares, que servem a guerra, buscam as regras que conduzam às melhores soluções. Como disse Clausewitz, “na guerra não há uma lógica, mas há uma gramática a ser seguida”.
E, como nas disciplinas do trivium, há também uma retórica cada vez mais evidente nos discursos políticos que comandam a estratégia, na dissuasão, na gestão das percepções, nas crises, na guerra.
– Para a noção de conceito estratégico nacional, devemos ter em atenção que existem duas ideias principais sobre aquilo que é a estratégia. Numa, aquela que perfilhamos, a estratégia, dirigida superiormente pela política, é o conjunto de ideias, atitudes e acções em que, pela coacção, se visa fazer face a um universo hostil e se procura a consecução dos nossos objectivos políticos. Na outra, resultante de uma derrapagem semântica, identifica-se a estratégia com o grande “projecto político”, ideia que é frequente na nossa classe política, dando-se-lhe o nome de “a grande estratégia”. Até o Professor Adriano Moreira, que no seu livro sobre relações internacionais, se refere à estratégia como nós a entendemos, disse numa entrevista relativamente recente, que “… havia um conceito estratégico nacional que durou séculos. Com a Revolução, o corte foi definitivo.” Nesta frase e naquela entrevista, trata-se de algo diferente daquilo que designamos por estratégia, é o grande projecto nacional. Ora, sendo a estratégia subordinada da política, este último entendimento inverte as posições, colocando não o conceito estratégico a condicionar a política (o que é lógico), mas a estratégia a comandar a política, o que, não significando “colocar Clausewitz na gaveta”, atitude que agora está na moda, antes parece querer suprimi-lo, o que julgamos manifestamente inapropriado.
– Lembrando o “projecto”, pensamento eminentemente político a que não devemos estar alheios e que, apesar de muitos e modernos problemas, existe – chama-se Europa, NATO, CPLP – merece alguma reflexão o cada vez mais pronunciado e doentio deslumbramento com a nossa Zona Económica Exclusiva, que se começa a pintar como se fosse o mare lusitanorum. De facto, quase como a austeridade e talvez como antídoto dela ou sinal de esperança, não há dia em que se não fale do mar, não há presidente, político ou qualquer outro orador ou falante que o não lembre, gabe, “promova” a território nacional e pretenda encher o nosso orgulho com a sua extensão. Somos os maiores, maiores que a Europa…
– Esta nova “epopeia” merece-nos os seguintes reparos. Primeiro, estamos cheios deste discurso patriótico, mas quase nada tem sido feito para beneficiarmos daquilo que, pelo direito actual, temos razões para usufruir. Segundo, de acordo com a Convenção de Montego Bay, este espaço não é território nacional – é algo entre o mar alto e o mar territorial, um tertium genus. Terceiro, continuamos na senda da expansão, da segunda dimensão, quando deveríamos estar a cuidar atentamente da quarta dimensão – do saber e da tecnologia que nos permitisse conhecê-la e explorá-la. Quarto, lembramo-nos de outras grandes ambições e utopias da nossa História, tais como o Tratado de Tordesilhas em que queríamos meio mundo e que levou Francisco I a inquirir-se se se tratava do testamento de Adão; o Mapa Cor-de-Rosa, largo como a largura de África, rosa como os sonhos; o Império que se foi esboroando, do comércio à soberania, ao longo de quase cinco séculos. Quinto, recordamos que, naqueles casos, as outras nações, o mundo, combateram-nos ou, face à nossa incapacidade para desenvolver e explorar a riqueza dessas áreas geográficas, mudaram as regras, como na Conferência de Berlim, ou apresentaram-nos um ultimato. Sexto, a Zona Económica tem consequências no quadro estratégico, particularmente quanto à acção a desenvolver pelo vector diplomático e na vigilância a exercer.
– Congratulamo-nos por no grupo de trabalho estarem distintos antigos Ministros da Defesa Nacional, porque pensamos que ninguém melhor do que eles está em condições de julgar como é impossível ao Ministro da Defesa Nacional fazer com que um conceito estratégico global, no qual ele é apenas responsável pelo vector estratégico militar, tenha efeito prático. Parece-nos óbvio que o conceito estratégico não deve ser do âmbito do Ministro da Defesa Nacional, mas do âmbito do Primeiro-Ministro ou de um Vice-Primeiro-Ministro. Por outro lado, estranhamos a pequena representação de militares (apesar da estatura do General Loureiro dos Santos) porque, se é verdade que o conceito estratégico abrange todas as estratégias gerais e não apenas a militar, também é verdade que os militares têm desde sempre elaborado sobre a estratégia e é na estratégia militar que se encontra o mais forte meio de coacção e até a ultima ratio.
– Devemos revisitar a nossa história sempre que pensamos na estratégia. Ela fala-nos, entre outras coisas, das justas preocupações apresentadas por D. João I aquando da preparação da conquista de Ceuta e dos avisados conselhos do Infante Dom Pedro sobre a malograda aventura de Tânger. Estes exemplos dizem-nos da atenção que devem merecer aos decisores políticos a situação e as condições para as hoje tão comuns intervenções no exterior do território nacional em apoio da política externa, em que é normalmente fácil entrar mas difícil sair… Do nosso Império do Oriente, em que são de realçar as instruções de D. Manuel a D. Francisco de Almeida, pelo que demonstram de raciocínio que procura o ponto de encontro das nossas potencialidades e limitações com os nossos interesses; da importância do vector diplomático para a obtenção de aliados; e, como resultante que é do “experiencialismo português”, veio reforçar o valor da experiência e da história quando tratamos de assuntos da estratégia.
– Ainda do século XVI devemos lembrar que a estratégia não conseguiu acompanhar o gigantismo da ambição política e económica que a expansão, o poder e o lucro suscitaram; o sonho tornou-se maior do que o braço armado. A relação entre meios e fins é essencial na estratégia. Se os meios são poucos, há que reduzir os fins, ser menos ambicioso. Mas, para os fins que não podem ser reduzidos, por essenciais, há que ter os meios que os garantam. No pensamento estratégico português depois do século XVII esteve quase sempre presente a consciência da limitação do poder, o que levou a direcção estratégica a procurar a neutralidade e a desenvolver a utilização do vector diplomático. Porém, como a geografia é determinante da nossa posição e o Império se estendera pelo mundo e se ligara por rotas marítimas, nas alianças procurámos logicamente a potência marítima dominante. Esta colmatava, por vezes, as nossas insuficiências. Mas, porque tinha objectivos próprios, frequentemente atingia-os esquecendo ou até contrariando os nossos interesses.
– Do estudo do potencial e estratégico, sobressaem alguns elementos positivos e negativos que ainda hoje têm expressão e deverão ser considerados. Como valores positivos, a capacidade de ligação a outros povos, a tendência para o ecumenismo, a compreensão e a empatia, e a capacidade de adaptação às mais variadas situações – aquilo a que Jaime Cortesão chamou de “plasticidade amorável”; além disso, a existência de um forte sentimento nacional que é factor de coesão numa “comunidade de sonhos” (como Malraux definiu a nação) e é apelativo do espírito de defesa em situações críticas. Como valores negativos, um individualismo que domina nos períodos em que a consciência social está menos desperta; uma tendência para se esperar em vez de fazer; para traficar em vez de produzir; para improvisar em vez de prever; e, além disso, uma quase endémica inabilidade para organizar e manter o que foi criado.
– De tudo isto, fica-nos a ideia de que um conceito estratégico moderno exige que se explicite os caminhos a percorrer por cada um dos vectores estratégicos e que permita que se venha a dar uma orientação clara ao vector militar, na qual constem os cenários em que o poder político pretende utilizar o braço armado, porque a obtenção e a preparação dos meios e das doutrinas decorrem dessas referências. Além disto, porque a opinião pública tem hoje muito maior peso do que a voz do velho do Restelo e o ecoar dos meios de informação pode inflectir e até subverter as decisões políticas e estratégicas, há que procurar que as orientações do conceito estratégico nacional sejam suportadas por um largo consenso. Se tal não acontecer, se não houver consenso, poderemos ficar com o conceito sem senso…
– Do mesmo modo que sabemos que a história é importante para a reflexão estratégica, temos que aceitar que na marcha do tempo surjam novos acontecimentos que a história ainda não tratou. Até hoje dominou na cena internacional, como principal actor, o Estado Soberano. Mas têm surgido recentemente centros de poder, não estatais, que se revelam como agentes estratégicos, possuidores de elevada capacidade de coacção, em campos como a economia, as finanças, a ideologia, a informação, o terrorismo. As ameaças provenientes destes centros de poder têm de ser contrariadas pela diminuição das nossas fragilidades exploráveis; por um sistema de informações que permita conhecê-las com oportunidade, por medidas diplomáticas, por alianças, por capacidade dissuasória; por uma bem nutrida imaginação. Há pois considerações sobre o conceito estratégico nacional para as quais a história ainda não nos dá elementos para reflectir.
– Por formação e pendor, sublinhámos a necessidade da história para melhor nos conhecermos e para suporte da estratégia. De facto, através da história podemos ver as principais “tendências pesadas” que devem informar o nosso conceito estratégico, bem como algumas potencialidades a explorar e fragilidades a acautelar. Mas cabe lembrar aqui uma ideia, que apresentei há já alguns anos no IDN, como provocação, e que me parece cada vez mais importante e actual. Quando Gama chegou à Índia, terá dito ao Rei de Calecute: “Portugueses somos, do Ocidente viemos.” Se Gama o viesse a fazer no futuro, poderia talvez vir a dizer: “Ocidente somos, de portugueses viemos.” E com esta imagem apenas quero dizer que, hoje, que domina a interdependência e se vai diluindo a soberania, continuamos a debater-nos com o problema já existente no início da nacionalidade e que se tem mantido ao longo dos ´seculos: “Como conseguir a independência nacional?”
– A situação económica e financeira nacional, com as restrições daí resultantes, não sendo razão suficiente para alterar o conceito estratégico, pode limitar as despesas a fazer com alguns vectores estratégicos, nomeadamente o vector militar, as Forças Armadas. Daí, porque parte significativa das suas missões sucede como participação num quadro de alianças em que as forças e meios são disponibilizados à la carte, há que concretizar, dentro das capacidades, o que é que o poder político quer concretamente que elas estejam em condições de fazer. Só assim será possível compatibilizar um quadro de redução de meios e despesas com aquilo que elas podem fazer e responsabilizar o poder político pelos riscos que essas decisões comportam. Isto mais não é do que compatibilizar meios com objectivos, o que, quanto a nós, é o primeiro princípio da estratégia. Tratando-se de uma pormenorização e limitação, cuja apresentação pública é, desde logo, uma vulnerabilidade, julgo que isto deverá constar de um outro documento, que não o do conceito estratégico, um documento de difusão muito mais restrita.
* Sócio Efetivo da Revista Militar.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.