Nota Prévia
a. A construção da barragem de Cabora-Bassa representou, na altura, uma das maiores obras de engenharia realizadas no Continente Africano e tornou-se num desafio praticamente único nos anais da História Militar: garantir a segurança militar da construção de uma obra de engenharia com uma dimensão e especificidades excepcionais, na qual trabalhavam dezenas de quadros e milhares de operários oriundos de dezenas de países, ao serviço de várias empresas, integradas ou não no consórcio adjudicatário da obra (ZAMCO), numa zona de guerra (ainda que de baixa intensidade), inóspita, de difícil orogenia, com condições climáticas quase extremas, servida por comunicações rudimentares, distante centenas de quilómetros de um núcleo civilizacional significativo (Beira) e, por imposição política, com excepcionais limitações, não só à acção, mas à simples presença de forças ou elementos militares.
b. Chegado a Moçambique em fins de Setembro de 1970 e tendo assumido as funções de adjunto das operações, e alguns meses mais tarde de chefe, da 3ª Repartição (Organização, Operações e Instrução) do QG do Comando-Chefe, vivi intensamente, e acompanhei de perto e muito por dentro, todos os problemas relacionados com a segurança do empreendimento. Devido à pressão do tempo, dos acontecimentos e de condicionamentos que oportunamente serão referidos, a questão da segurança global do empreendimento não foi objecto de qualquer estudo escrito formal, mais ou menos completo. Sem prejuízo de uma visão global de todo o TO e do conjunto do empreendimento, os problemas específicos de Cabora-Bassa foram, em regra, apresentados oralmente e decididos em reuniões restritas do Comando e Estado Maior ou em diálogos informais com o comandante-chefe. Naturalmente, muitas das decisões parcelares concretizaram-se em “despachos” do comandante-chefe ou originaram “informações” das várias Repartições do QG, que podem (deveriam) existir nos Arquivos Militares.
c. Educado na velha escola que incutia uma ética exigente e rigorosa e, naturalmente, interiorizada e assumida, nunca fotocopiei ou fiquei com cópia, para arquivo pessoal, de qualquer documento oficial não tornado público, mesmo dos por mim elaborados. Mas, nos três anos em que servi na 3ª Rep/QG, reuni e guardei cerca de quatro dúzias dos clássicos “blocos de apontamentos”, do tipo A5, onde ia tomando “notas” colhidas nas centenas de reuniões, “briefings” e visitas em que tomei parte; de esquemas de exposições; de ordens verbais importantes que recebi ou dei; de dados de planeamento, etc... Acresce que o comandante-chefe, General Kaúlza de Arriaga, desenvolvia uma actividade externa bastante intensa, com vários contactos internacionais, dos quais muito raramente dava conhecimento, mesmo aos seus colaboradores mais próximos. E, neste quadro, recordo-me de, em três ou quatro ocasiões, ter tido conversas sigilosas e relativamente demoradas com personalidades estrangeiras, que o comandante-chefe me apresentava, de surpresa, sem me referir a identidade, como sendo altamente experientes e tecnologicamente qualificadas e que me encarregava de “espremer”, com vista á obtenção de ideias, sugestões, informações e dados sobre assuntos e questões operacionais que preocupavam o comando, em especial nos domínios da detecção e da interdição, como eram as relativas à detecção e à visibilidade nocturnas, à contra-infiltração, à sensorização, etc... Também nesses “blocos” tomei notas desses encontros, em que a problemática de Cabora-Bassa era sempre tema relevante.
Acontece, porém, que num dado momento dos anos 80, profundamente desiludido e chocado com o caos em que Moçambique caíra e com a evidência da inutilidade de um período da vida a que me entregara de alma e coração, decidi cortar cerce com tudo o que me recordasse aquele território, onde servira por duas vezes. E, consequentemente, numa atitude certamente mais emocional que racional, resolvi desfazer-me de várias coisas relacionadas com Moçambique, entre as quais os referidos “blocos-notas”, que queimei. (Por ironia do destino, coube-me, nos finais da mesma década e como comandante da AM, iniciar a cooperação com Moçambique, na formação de futuros oficiais daquele País...).
d. Assim, resisti durante largos anos a várias solicitações para que escrevesse algo sobre a segurança da construção de Cabora-Bassa. Fiz apenas, de passagem, um curto depoimento numa conhecida obra sobre a guerra ultramarina. Ora, dada a ausência de qualquer escrito global sobre o assunto (mesmo por parte do General Kaúlza de Arriaga, sem prejuízo dos vários comentários esparsos que publicou) e tendo em atenção o falecimento de todos os seus grandes intérpretes (generais Kaúlza de Arriaga e Duarte Silva e coronéis Martins Videira e Rodrigo da Silveira), sinto que sou o último sobrevivente que pode dar um testemunho global para a História. Escrevo, pois, este artigo em obediência a um imperativo ético. E, como começa a ser escrito no momento em que a barragem passa plenamente para as mãos do Estado de Moçambique, embora continue a ser, pelos tempos fora, um monumento indestrutível da capacidade de realização de Portugal, significa, para mim, o fecho definitivo de um parêntesis. Nele adoptarei, nas designações dos lugares, os nomes e as grafias que eram então utilizados no QG.
e. Devido ao referido em c., este artigo será exclusivamente memorialista, sem dados precisos, certamente com muitas omissões e provavelmente imprecisões relativamente a factos, datas, nomes, etc. com que lidei há quase 40 anos. Ser-me-ia fácil precisar alguns dados (potência da barragem, dimensões da albufeira, características da linha de transporte de energia, nomes de lugares, etc.). Mas tal poderia induzir em erro o leitor, incutindo-lhe a ideia de que outros factos eram igualmente completos e rigorosos. A fim de diminuir as insuficiências, procurarei, sobretudo, proporcionar as grandes linhas dos principais problemas securitários, encarados no nível do Comando-Chefe, referir os principais condicionamentos e testemunhar sobre as soluções que foram encontradas, referindo as que foram aplicadas, as que estavam previstas e estudadas para serem aplicadas no momento oportuno e as que estavam apenas esboçadas ou ainda eram objecto de estudo. Aspiro, sobretudo, a estabelecer o enquadramento que, em qualquer altura, permita a um investigador interpretar adequadamente aspectos parcelares referidos na história de uma Unidade ou em outros documentos, num livro de memórias de um participante de baixo escalão, etc..
1. Enquadramento Geral
1.1. Antecedentes
a. O empreendimento de Cabora-Bassa integrava-se num grande plano de desenvolvimento económico-social, que tinha por eixo o vale do rio Zambeze, e que, se levado a bom termo, revolucionaria as estruturas económico-social e demográfica de Moçambique e com reflexos significativos nos territórios vizinhos. O plano elaborado assentou em profundos trabalhos de reconhecimento do distrito de Tete e das regiões de parte do curso inferior daquele rio, que se iniciaram em finais da década de cinquenta do século passado. Os trabalhos de reconhecimento e de planeamento estenderam-se a todos os domínios de interesse económico e social (energia, agricultura, silvicultura, veterinária, prospecção do subsolo, potencialidades industriais, potencial fixação de colonos, reordenamento de populações e do território, vias de comunicação, etc.) e, pela sua dimensão e natureza pluridisciplinar, aqueles trabalhos foram um alfobre de pessoal técnico altamente qualificado e experimentado de que o país muito veio a beneficiar mais tarde, em especial no desenvolvimento do ensino universitário. Recordo-me de reportagens da época, que chegavam a caracterizar o distrito de Tete, no campo dos recursos energéticos e minerais, como um “escândalo da natureza”, com minérios de elevado valor económico e estratégico, alguns deles praticamente à superfície.
O pivô de todo o plano situava-se no domínio energético, com a construção, numa 1ª fase, de uma barragem em Cabora-Bassa. Esta forneceria a energia que, exportada para a República da África do Sul (RAS), dela carente, sustentaria o desenvolvimento das outras fases do plano: a montante, criaria um enorme lago artificial que, por um lado, seria uma auto-estrada por onde se escoariam, até aos locais de transformação, os minérios da maior parte das jazidas existentes no distrito e, por outro lado, poderia tornar-se a plataforma de um desenvolvimento turístico de eleição, num vasto espaço natural praticamente ainda virgem, tudo conjugado com uma substancial melhoria das condições de vida das poucas populações existentes, através do desenvolvimento de actividades agro-pecuárias e piscícolas; a jusante, proporcionaria uma regularização do Vale do Zambeze, onde o rio se espraia ao longo de centenas de quilómetros por solos aluvionares extremamente ricos, com a consequente possibilidade de exploração de enormes potencialidades nos domínios agro-pecuário, das indústrias alimentares, da construção e reparação naval ligeira, do turismo cinegético, etc...
Recordo-me do então major Charais, que comandara uma companhia em Mutarara, realizar, quando frequentava o curso de estado-maior, uma exposição prospectiva do que poderia ser a região do Vale do Zambeze, no ano 2000, e que parecia reproduzir o que era então a região do Mississipi, com Quelimane transformada numa outra Nova Orleans... E, se não erro, a região de Chicoa, quase no limite da albufeira, surgia como um novo Barreiro, como um poderoso centro industrial onde confluiriam o carvão de Moatize e os minérios de ferro e de outra natureza da margem esquerda da albufeira, em grande parte exploráveis a céu aberto e transformados com uma energia muito barata. No domínio energético estava previsto o substancial aumento da potência inicial, através da construção de uma segunda central e, ainda, de uma nova barragem na parte final do desfiladeiro, energia essa que poderia ser também exportada para a Zãmbia e Malawi. Mas sobre os resultados dos reconhecimentos e prospecções realizadas e sobre as potencialidades deduzidas existem os relatórios elaborados pela Missão do Vale do Zambeze, que o leitor mais interessado poderá facilmente consultar.
b. Em fins de 1969, após prévia decisão política sobre a construção da barragem, foi assinado um contrato entre Portugal, como fornecedor, e a RAS, como cliente, e adjudicada a construção a um grande consórcio internacional – a ZAMCO – constituído essencialmente com capitais franceses, alemães e italianos.
Nunca tomei conhecimento ou me foi referida a existência de qualquer estudo, ao nível do Governo Central ou outro, sobre as potenciais consequências da construção da barragem no curso da guerra, que desse resposta a questões como as seguintes:
(1) Possibilidade da FRELIMO transferir o seu esforço para uma nova frente de guerra, excêntrica em relação às existentes a norte, a fim de impedir a construção de uma obra que, se levada a bom termo, a poria gravemente em xeque. Reforços necessários e sua fonte. Eventuais reflexos noutros TO (Angola e Guiné). Efeitos no orçamento da defesa.
(2) Consequências de uma eventual conjugação de esforços entre a FRELIMO, a ZANU e a ZAPU. Possíveis reacções da então Rodésia do Sul e atitudes a adoptar.
(3) Articulação política, administrativa, militar e executiva mais adequada ás exigências do empreendimento.
Do comandante-chefe recebi a seguinte informação, pouco tempo após a minha chegada, quando naturalmente se começavam a adensar as preocupações quanto á segurança futura do empreendimento, e que reproduzo nas suas linhas gerais: “Não conheço qualquer estudo ao nível do Governo Central ou do SGDN. Não tenho conhecimento de que tenha sido apresentada qualquer exigência ou limitação de ordem militar no Conselho de Ministros em que foi decidida a construção. No âmbito regional, a ZAMCO impôs a não presença, ou mera visibilidade, de quaisquer forças militares na área do empreendimento, incluindo o ramal de acesso ao Songo, para não se criarem entre os milhares de quadros, operários e seus familiares, em grande parte estrangeiros, receios ou suspeições quanto à segurança, ou para se evitarem potenciais incidentes com elementos militares. O Governo aceitou essa exigência, que o Governo Regional comunicou ao Comando-Chefe. Neste quadro, ficou acordado com o Governo Regional a instalação de uma CCaç em Chiringa, o que já foi concretizado”. Este local situava-se num pequeno vale, muito discreto, imediatamente a norte da futura barragem e afastado desta pela imponente cadeia montanhosa que, por norte, definia o desfiladeiro do rio Zambeze. Era esta a óptica em que assentava a segurança militar do empreendimento...
Quanto à articulação de poderes, referirei apenas o seguinte:
(1) Localmente, o “dono” da obra era o Gabinete do Plano do Zambeze (GPZ), sediado em Tete – Lisboa, e que dependia directamente do Ministério do Ultramar.
(2) O “patrão” da obra, o grande executivo e operacional no terreno, era o chefe dos Serviços de Fiscalização (Eng.º Brás de Oliveira), instalado no Songo, e que dependia do chefe do GPZ (Eng.º Castro Fontes).
(3) O governador do distrito (na altura o Coronel Cecílio Gonçalves), dependente do governador-geral, tinha jurisdição apenas sobre a autoridade administrativa que havia sido criada no Songo.
(4) Foram instaladas no Songo forças policiais, de Moçambique, mas já não me recordo dos seus canais de dependência.
(5) A DGS reportava ao governador–geral mas mantinha os seus canais específicos com o Governo Central.
(6) Na área do empreendimento o comando-chefe, além de não poder agir, não tinha, pelos circunstancialismos acabados de referir, um interlocutor definido, tudo passando pela ventura (ou desventura...) de múltiplas relações pessoais.
c. É neste quadro político-militar que houve que desenvolver a segurança do empreendimento de Cabora-Bassa. Julgo, porém, de relevar, desde já, o seguinte: se é certo que a construção da barragem de Cabora-Bassa veio a desequilibrar estrategicamente o esforço de guerra que vinha a ser feito, com relativo sucesso, em Moçambique, o que originou consequências muito graves, certo é também que, se construída com sucesso, a mesma barragem se tornaria num poderoso instrumento estratégico a nosso favor, quer no campo político-diplomático, quer no campo militar, visto que o enorme lago que seria criado, fácil de controlar em face dos potenciais meios do adversário, se tornaria num poderosíssimo obstáculo, que levaria a uma “secagem”, por corte de correntes de abastecimento, de qualquer expansão adversa que se tivesse verificado a sul do rio Zambeze. E a expansão que se verificasse a norte, a oeste da barragem, além de não ter relevância estratégica, dadas a escassez de população e de actividades económicas, poderia ser progressivamente reduzida.
d. Resta referir que sob a designação “empreendimento de Cabora-Bassa” se tem em mente as seguintes obras:
(1) A barragem propriamente dita.
(2) A central a escavar na margem direita e a instalação dos respectivos equipamentos.
(3) A estação conversora no Songo.
(4) A linha de transporte de energia, entre o Songo e a estação Apolo (na RAS), com uma extensão de cerca de 1000 (?) km.
Mas, para levar a efeito estas obras, houve ainda que executar, entre outros, os seguintes trabalhos complementares mais significativos, uns da responsabilidade do governo regional e outros do GPZ:
(1) Beneficiação da ligação Moatize-Tete.
(2) Construção, em Tete, de uma ponte sobre o rio Zambeze.
(3) Construção ou grande beneficiação (alargamento e rectificação e posterior alcatroamento) da ligação, em terra batida, Tete-Songo.
(4) Construção de uma via de acesso entre Songo e a região de implantação da barragem.
(5) Vastos trabalhos de terraplanagem, na escarpa, em pequenas reentrâncias junto da via anterior, para a criação de parques de estacionamento de centenas de máquinas e de viaturas de carga e transporte de materiais, e respectiva rede de circulação.
(6) Construção, no Songo, de uma povoação para cerca de 10.000 habitantes, com instalações administrativas, de gestão e planeamento de obras, de manutenção de equipamentos, de alojamento e habitação, desportivas, sociais, etc.
(7) Construção de uma pista de aviação, no Songo, para aviões ligeiros e médios, de transporte.
(8) Reconstrução ou beneficiação do itinerário, em terra batida, rio Punguè – Vila Gouveia – Changara –Tete.
(9) Vastos trabalhos de desmatação e construção de troços de itinerários ao longo da linha de transporte de energia (a realizar mais tarde).
Do lado militar, destacam-se a construção de um aquartelamento e de uma pista de aviação em Estima (corruptela de Xtima), junto da “picada” Tete-Chicoa, e os vastos trabalhos de desmatação e de limpeza de vegetação em torno do aeródromo-base de Tete, da Força Aérea, mas que servia também a aviação civil.
1.2. Caracterização sumária da área de operações (distrito de Tete)
1.2.1. Factores geográficos
a. O distrito tem uma superfície semelhante à que seria a de Portugal Continental se prolongado até ao paralelo de Vigo e uma população (na parte a oeste do meridiano de Tete) então idêntica à do Alentejo. É dividido pelo rio Zambeze, que corre de forma quase rectilínea, numa extensão de cerca de 400 km entre a fronteira (Zumbo) e Tete.
b. A parte a norte do rio Zambeze é planáltica, com altitudes de um modo geral crescentes na direcção da fronteira norte com a Zâmbia e, por vezes, com características montanhosas. Na zona leste fronteiriça altiplanáltica Furancungo-Angónia as temperaturas chegam a ser bastante baixas, na época seca, em especial durante a noite. A região a sul do Zambeze é, pelo contrário, uma savana relativamente baixa e plana, pelo que, na época das chuvas, nela o rio se espraiava com mais facilidade. Pouco após a região de Chicoa o rio estrangulava subitamente e, durante cerca de 50 km, corria tumultuosamente ao longo de um estreito desfiladeiro, que cortava uma recortada cadeia montanhosa, de profundidade reduzida tanto a norte como a sul, mas que dominava, imponente, toda a região circundante. Enquanto que a serrania, a norte, caía praticamente na vertical para ambas as suas faces, o que a tornava muito dificilmente acessível, a serrania a sul, embora também caísse quase na vertical sobre o rio, descia, em alguns troços, mais suavemente sobre a região a sul. Foi no topo de uma pequena zona planáltica desta encosta sul, situada relativamente próximo da futura barragem, que nasceu a povoação do Songo.
c. Desde a fronteira, no Zumbo, o rio Zambeze recebia, pela margem esquerda, o contributo de vários afluentes que, em zonas de orogenia movimentada, corriam ao longo de vales em regra estreitos. Secos, ou reduzidos a um pequeno fio de água no seu troço final, na época seca, tornavam-se torrenciais e tumultuosos na época das chuvas e, de um modo geral, era ao longo dos mesmos que naturalmente se fixavam parte das populações e se desenvolviam as principais linhas de infiltração do adversário. Entre esses afluentes sobressaía o rio Capoche, de apreciáveis dimensões na época das chuvas, que dividia quase ao meio a parte a norte do Zambeze, e desaguava neste numa zona relativamente próxima da barragem. Em consequência, a linha de infiltração do rio Capoche constituiu sempre uma das principais preocupações do comando-chefe e dos comandos locais. Na margem direita do Zambeze não existiam cursos de água com algum relevo, excepto o rio Lugenda, com o seu afluente o Mazoe, que desagua no Zambeze já a leste de Tete.
d. A rede de comunicações, embora melhorada na década de 60 pelos trabalhos de reconhecimento da Missão do Plano do Zambeze, era escassa e rudimentar. No interior do distrito, além da linha de caminho de ferro Dona Ana-Moatize, que entroncava na linha da TZR Beira-Blantyre (Malawi), e era praticamente acompanhada por uma “picada”, existiam os seguintes itinerários principais (“picadas” em terra batida):
(1) Tete-Chicoa-Magoè-Zumbo, ao longo da margem direita do rio Zambeze, de utilização muito contingente na época das chuvas, a oeste de Chicoa. Dela derivava, na região de Estima, a estrada que foi feita para o Songo-Cabora Bassa, alcatroada se não erro na época seca de 1972, juntamente com o troço Tete-Estima.
(2) Tete-Furancungo-fronteira com a Zâmbia (Vila Coutinho ou Vila Gamito).
(3) Tete-Zobuè-Vila Coutinho.
(4) Chicoa (batelão)-Chipera-Fingoè-Zumbo ou para a fronteira com a Zâmbia, a norte.
(5) Tete-Sadzo-( ? ).
A ligação entre as duas margens do rio Zambeze era feita apenas em quatro locais:
(1) Ponte feroviária da TZR, em Mutarara, de grandes dimensões.
(2) Ponte rodoviária de Tete, em acabamento em 1970.
(3) Batelão em Chicoa.
(4) Pequeno batelão no Zumbo.
O acesso à cidade de Tete fazia-se:
– por via aérea, para um aeródromo-base da Força Aérea, na outra margem do rio;
– por via férrea Beira-Dona Ana-Moatize;
– por via rodoviária Beira-Vanduzi-rio Punguè (estrada alcatroada)-Vila Gouveia-Changara-Tete (“picada” beneficiada) ou Beira-Inhaminga-Vila Fontes e, seguidamente, ao longo da margem direita do rio Zambeze, por Sena-Chemba-Tambara-Tete, com circulação muito condicionada na época das chuvas.
Foram construídas pistas de aviação em todos os pontos do dispositivo militar.
e. De um modo geral, o distrito de Tete era o mais quente de Moçambique, com temperaturas que chegavam a ser tórridas nas zonas baixas ou mais áridas. Mas, embora de forma menos acentuada que nos distritos mais próximos da costa, aquele distrito era também afectado pelo regime de monções, que determinava fortemente o clima de Moçambique e que, do ponto de vista operacional militar, dividia o ano em dois grandes períodos: a época das chuvas, sensivelmente de Outubro a Abril, e a época seca, nos restantes meses. Este facto ditava um regime de contra ciclo entre a subversão e a contra-subversão. Na época das chuvas, intensas e por vezes com poucas abertas, o capim crescia descomunalmente dificultando a visibilidade e as movimentações das NT, os cursos de água tornavam-se caudalosos e de difícil transposição, as poucas “picadas” ficavam muito dificilmente transitáveis, a possibilidade de emprego dos helis era limitada, etc., pelo que a actividade operacional das NT era fortemente restringida, reduzida a operações de curta duração nas proximidades dos aquartelamentos, às operações de segurança dos movimentos logísticos necessários à subsistência e manutenção das tropas e equipamentos e a uma ou outra operação de assalto a instalações do In bem identificadas. Quanto ao adversário, aproveitava naturalmente esta situação para se infiltrar, tentar subverter as populações mais afastadas das nossas autoridades pela persuasão ou por demonstrações de violência geradoras de medo e impondo a “lei do silêncio”; para proceder a grandes reabastecimentos com menor risco de ser detectado e criar depósitos de armas, minas e munições; para minar os itinerários de utilização obrigatória pelas NT, com elevadas probabilidades de sucesso, etc. Assim, no final de cada época das chuvas havia sempre o receio de se enfrentar a surpresa de a subversão se ter alargado a novas áreas ou de o adversário fazer uso de novos e mais sofisticados meios. O grosso do esforço operacional das NT era, assim, limitado à época seca, com o qual se procurava retomar a iniciativa e corrigir qualquer evolução desfavorável da situação geral.
1.2.2. Factores estruturais
a. O grau de povoamento era muito baixo (uma populaçâo semelhante à do Alentejo numa superfície cerca de 10% superior à de Portugal). A população não-autóctone era relativamente reduzida, concentrando-se a de origem portuguesa em Tete-Moatize, com pequena mas crescente expressão em Mutarara e Angónia. O comércio estava quase todo nas mãos de naturais da Índia, incluindo os chamados cantineiros, que operavam o pequeno “comércio do mato”. Na década de 60, com os trabalhos da Missão do Plano do Zambeze, a cidade de Tete conheceu um apreciável surto de desenvolvimento, o qual se acelerou significativamente com o início da construção da barragem de Cabora-Bassa, devido á fixação de familiares de muitos quadros que trabalhavam na barragem, ao reforço do dispositivo militar e ao desenvolvimento de muitos serviços, desde os bancários, aos de educação, saúde, comércio, manutenção de equipamentos, etc. Com o natural aparecimento de bares, discotecas, etc. e o desenvolvimento da prostituição e de outras actividades do sub-mundo, aumentaram as preocupações com a ordem pública e os riscos de infiltrações de agentes do adversário. Nas proximidades da barragem, numa pequena zona planáltica a sul, nasceu a vila do Songo, com uma população inferior a uma dezena de milhar de habitantes, constituída por quadros e operários qualificados europeus e da RAS, ao serviço do consórcio ZAMCO, de empresas subsidiárias e do Estado, bem como uma grande colmeia de operadores de máquinas, condutores de viaturas, mecânicos, pessoal administrativo, etc. etc., e trabalhadores indiferenciados, na sua maioria moçambicanos, mas com largas manchas de pessoal proveniente de outros territórios africanos e não só. O Songo assemelhava-se, em certa medida, ás cidades emergentes americanas do tempo da “corrida ao ouro”.
Quanto á população autóctone, alguma, com expressão pouco significativa e oriunda das zonas fronteiriças, refugiara-se na Zâmbia, com o início das primeiras actividades subversivas no distrito, em fins da década de 60. O grosso da população encontrava-se, naturalmente, nas zonas de solo arável ou com maior actividade económica, ou seja, na “gola” do distrito (Changara-Tete-Moatize-Zobué), onde se destacava a exploração dos minérios de Moatize, que levou à construção do ramal de caminho-de-ferro Mutarara-Moatize; ao longo das margens do rio Zambeze (entre a fronteira e Chicoa e Tete-Mutarara), naturalmente fértil em termos agrícolas e piscícolas; no planalto da Marávia (Fingoè), onde há anos havia sido introduzida a cultura do algodão, com benefícios para o nível de vida das populações, mas também propiciadora de conhecidos abusos e desvios, geradores de tensões sociais; no planalto da Angónia (Furancungo-Vila Coutinho), onde se vinham fixando pequenos agricultores metropolitanos que, explorando as semelhanças do clima, iam introduzindo a cultura de produtos europeus, de escoamento garantido; e em pequenas manchas da zona fronteiriça com a Zâmbia, geradoras de um pequeno e pacífico comércio transfronteiriço. Refira-se que esta população se distribuía por várias etnias, potencialmente com posturas variáveis em relação às nossas autoridades e à FRELIMO. O resto do distrito (cerca de metade) era um grande vazio.
b. Como se referiu, a ocupação político-administrativa era limitada, excepto em torno de Tete: circunscrições de grande dimensão, com escassos recursos humanos, e com poucos postos administrativos, com capacidades ainda mais reduzidas; ausência de forças policiais, presentes apenas em 3 ou 4 locais; presença ainda mais incipiente da DGS (donde um conhecimento precário da região e das suas populações). Neste quadro geral, de que facilmente se deduzem outros aspectos, faço uma referência sucinta a duas áreas – a religiosa e a sanitária – pela sua influência no curso da guerra.
A grande maioria da população autóctone era, naturalmente, animista. Mas a Igreja Católica, nos seus notáveis esforços de evangelização em circunstâncias extremamente difíceis, dispunha de alguns instrumentos, de que relevaria os seguintes: a estrutura missionária e, nesta, as Missões de Mecumbura e de Boroma. Embora o bispo de Tete tivesse uma posição correcta em relação ás autoridades nacionais, os seus pastores eram, essencialmente, dos chamados “padres brancos” (não me recordo do nome da Ordem), estrangeiros e ostensivamente hostis às autoridades nacionais, especialmente às militares.
A Missão de Mecumbura situava-se quase na extremidade ocidental do distrito, a sul do Zambeze e perto da fronteira com a Rodésia do Sul. Dispunha de meios reduzidos, que apenas lhe permitiam uma acção rudimentar nos âmbitos da educação e da assistência sanitária às populações circunvizinhas, relativamente escassas. Até meados de 1971, acreditava-se que apenas prestava apoio, conforme denúncia das autoridades rodesianas, a elementos da ZAPU e da ZANU, como base de refúgio e de recuperação, o que levou à instalação de uma CArt nas suas proximidades e do rio Zambeze. Mas veio a tornar-se também num importante ponto de apoio, operacional e logístico, das infiltrações da FRELIMO provindas de norte do rio Zambeze.
Ficou sempre por esclarecer a articulação existente (se alguma havia, o que era considerado altamente provável) entre as infiltrações e movimentos logísticos da ZANU, ZAPU e FRELIMO, a partir da Zâmbia, através da fronteira norte do distrito. Quanto á Missão de Boroma, junto a Tete, dispunha de instalações modelares, que lhe permitiam desenvolver uma acção notável nos campos da assistência materno-infantil, enfermagem e primeiros socorros, formação profissional (carpintaria, serralharia, etc), ensino básico, etc. E embora fossem frequentes as baixas à Missão de crianças e adultos esfacelados por minas e armadilhas implantadas pela FRELIMO próximo dos aldeamentos de populações que se mantinham leais às autoridades nacionais, não tenho memória de qualquer denúncia de tais factos pelos “padres brancos”, sempre céleres a apregoarem quaisquer incidentes atribuíveis às forças militares nacionais. E era sabido que as visitas de alguns “padres brancos” a alguns aldeamentos, no quadro da sua missão religiosa, incorporavam também o apoio, inclusive sanitário, a elementos da FRELIMO neles dissimulados.
Quanto à área sanitária, julgo de relevar duas realidades:
– A primeira respeita ao extraordinário trabalho desenvolvido, durante anos, pela Missão do Zobuè, que permitiu a erradicação da mosca tsé-tsé (doença do sono), que historicamente flagelou e destroçou as populações da região e constituiu poderoso factor de estrangulamento das ligações entre Tete e a Angónia, na medida em que cada viagem se tornava num apreciável risco;
– O segundo facto a salientar foi o notável e original serviço de assistência sanitária desenvolvido pelo delegado de saúde (Dr. Paz), assente num pequeno serviço aéreo, prestado por um avião ligeiro, que permitia cobrir todo o distrito, quer para reforço temporário dos parcos meios existentes nas principais circunscrições (vacinações em massa, por exemplo), quer para fins de evacuação para o hospital de Tete.
Creio que esse serviço inspirou o primoroso sistema militar de apoio sanitário e de evacuação aéreos, que foi montado de forma a cobrir todo o dispositivo militar, conjugando as capacidades da Força Aérea e as de pequenas empresas de táxis aéreos, que se foram criando, e que desenvolveu também uma notável acção de apoio às populações civis, isoladas no mato.
1.3. Considerações gerais sobre o In
a. Inicialmente, em meados da década de 60, o distrito foi “ameaçado” por grupúsculos de pequenos movimentos independentistas moçambicanos, que na altura proliferaram (UDENAMO, COREMO, MANU, etc), que se fixaram na Zâmbia, junto da fronteira, na impossibilidade de o fazerem na da Tanzânia, já dominada pela FRELIMO, que se opunha a esses movimentos rivais. Com excepção, durante um certo tempo, da COREMO, a acção desses movimentos, com estruturas incipientes, sem apoios internacionais significativos e, por conseguinte, com meios reduzidos, situava-se exclusivamente no domínio da propaganda, sem qualquer actividade de cariz militar no interior do distrito. Junto da referida fronteira eram também reportadas actividades da ZANU e da ZAPU. Refira-se que a Zâmbia, embora apoiando abertamente todos os movimentos independentistas contra o domínio branco, exercia um apertado controlo sobre os mesmos, limitando-lhes as áreas de fixação, impondo regras às suas movimentações, etc...
A partir de 1968, a COREMO (ao que me foi referido) conseguiu meios, ainda que limitados, para levar a efeito uma infiltração, nas imediações do rio Capoche, a qual, dadas a ausência, então, de meios militares na área, bem como a escassa ocupação administrativa e o fraco povoamento, conseguiu atingir uma apreciável profundidade.
As autoridades militares de então conseguiram reforçar a área com um BCaç e, com essas forças e a intervenção de algumas forças especiais, neutralizar a ameaça e estabilizar a situação. Em princípios de 1970 a FRELIMO começou a fixar-se também junto da fronteira norte do distrito de Tete, de início com uma capacidade muito limitada, por um lado porque os seus esforços estavam centrados no distrito de Cabo Delgado e, por outro lado, pelas enormes dificuldades logísticas que tinha de enfrentar, dada a grande distância a vencer, a partir de Dar-Es-Salam, onde era desembarcado todo o material de guerra que lhe era fornecido pelos países apoiantes (Bloco Leste e China). Acrescia que, na altura, a FRELIMO parecia não dispor de quadros recrutados no distrito, pelo que tinha um conhecimento muito limitado das suas características. As tentativas iniciais da FRELIMO desenvolveram-se na cunha do rio Capoche que havia sido explorada pela COREMO, mas também sem qualquer sucesso. Este quadro geral manteve-se, do ponto de vista operacional, praticamente até quase ao final do 1º trimestre de 1971.
Decidida a construção da barragem de Cabora Bassa, cedo se tornou evidente que aquele quadro geral iria mudar num sentido desfavorável para os nossos interesses, devido à concorrência de duas situações: por um lado, a clara percepção pela FRELIMO da importância do empreendimento para o curso e resultado final da guerra, e que levou Samora Machel a declarar a necessidade de se impedir, a todo o custo, a construção da barragem; por outro lado, a clara definição do interesse estratégico da China em África, com vista ao acesso a certos minerais estratégicos e explorando, como via de penetração, sólida, o apoio à construção de um caminho-de-ferro que ligaria o porto de Dar-es-Salam à Zâmbia e que libertaria esta do constrangimento de um sistema de comunicações controlado por “brancos”.
Contrariamente ao que se passava em Angola, a China tornou-se, em detrimento do Bloco Leste, no principal apoio da FRELIMO, inclusive no campo da formação de quadros, aliás com uma doutrina político-militar, maoista, mais adaptada às especificidades da guerra em Moçambique que a doutrina, mais ortodoxa, do bloco Leste. E a penetração chinesa veio atenuar fortemente as dificuldades logísticas da FRELIMO, que, no antecedente, haviam limitado significativamente a sua actuação no distrito de Tete. Progressivamente, a FRELIMO foi acumulando recursos materiais junto da fronteira, bem como meios humanos, retirados, ao que se julgou, em grande parte da região do Niassa. E assim, ao chegar-se ao fim da época das chuvas, em 1971 (Março?), ocorre uma alteração significativa da situação no distrito, e que colhe de surpresa as nossas autoridades: a região da Marávia, centrada no Fingoé, até então considerada um seguro bastião contra as tentativas do adversário, surge, quase de repente, fortemente penetrada pela FRELIMO.
De facto, em poucos dias, grande parte da população da região planáltica abandona as culturas e refugia-se no mato, alguns chefes tribais são encontrados mortos, núcleos de populações mais próximas acolhem-se à protecção dos pequenos aquartelamentos militares existentes, enquanto que alguns dos principais itinerários utilizados rotineiramente pelas NT aparecem, pela primeira vez, com minas. Ao mesmo tempo havia indícios de que a “cunha” do antecedente existente no vale do rio Capoche alastrava à região de Furancungo.
O alastramento da área afectada pela guerra à Marávia abria o caminho à penetração da FRELIMO para sul do Zambeze, em virtude da fraqueza do nosso dispositivo militar, e aumentava as preocupações da Rodésia do Sul, visto que tal situação seria certamente explorada pela ZANU e ZAPU e o território deixava de ser um “tampão”. Durante algum tempo houve a percepção, optimista, de que a penetração da FRELIMO se limitara a uma “mancha” no planalto da Marávia e de que pequenas manifestações de presença militar na região de Mecumbura eram devidas a acções isoladas da ZANU ou ZAPU. Mas em fins de 1971 ou princípios de 1972, durante a época das chuvas, verificaram-se manifestações evidentes da presença da FRELIMO a sul do rio Zambeze, se bem me recordo na região de Magoè, o que significava que a FRELIMO poderia tentar envolver a área da barragem por sul, de modo a, no mínimo, dificultar o fluxo de abastecimentos para a barragem e tentar desestabilizar psicologicamente os que nela trabalhavam, e/ou, na pior hipótese, a tentar uma progressão em direcção ao distrito da Beira. Embora aquelas manifestações fossem pouco significativas e difíceis de caracterizar pelos SIM, fora criada uma situação preocupante.
Em meados de 1972, na sequência de um conjunto de operações desencadeadas durante a época seca na região do rio Mazoe, verificou-se a captura (rendição) de um importante quadro da FRELIMO – Zeca Caliate – juntamente com cerca de quinze outros guerrilheiros sob o seu comando. Era o chefe de um grupo de cerca de 40 homens que atravessara o Zambeze meses antes. Das importantes declarações que produziu, durante os interrogatórios, retenho, ainda, mais ou menos o seguinte: que haviam falhado as tentativas de atacar a barragem por norte, pelo que fora encarregado de, com o seu grupo, atravessar o rio Zambeze e atacar a barragem por sul; que, em virtude da escassez de informações, das características da região, da dificuldade de reabastecimentos devido à grande extensão das linhas de comunicações e da acção das NT, não conseguira levar a cabo a sua missão; que decidira dividir o seu grupo em dois, o outro com a missão de alcançar discretamente a cidade de Tete, aí obter apoios e, no mínimo, perturbar a circulação no itinerário Tete-Songo, por forma a atrasar a construção da barragem, enquanto que, com o remanescente do seu grupo, procuraria continuar as tentativas de ataque e criar condições a uma progressão em direcção à serra da Gorongosa; mas que a região em que vinha a operar há meses era muito escassa de recursos, situação que se agravara enormemente na época seca, lutando até com falta de água, pelo que o seu grupo estava esgotado, em termos físicos e militares, e decidira esconder-se no seio de um pequeno núcleo populacional.
Confirmavam-se, assim, as avaliações feitas na ZOT e no QG sobre as intenções, possibilidades e vulnerabilidades da FRELIMO. E uns tempos depois ocorreu um facto altamente preocupante – o rebentamento de uma mina nas proximidades de Vila Gouveia – o que parecia confirmar as intenções referidas por Caliate e teve efeitos psicológicos fortemente negativos na numerosa população branca da região de Vila Pery e não só. E em Novembro de 1972 verifica-se a primeira acção militar devidamente organizada no itinerário Changara-Tete: uma emboscada a uma força da 6º CCmds, do recrutamento local, e causadora de baixas, o que revelava que o adversário se sentia seguramente instalado na parte sul do “gargalo” de Tete. Esta emboscada deu origem à operação que produziu os internacionalmente explorados “incidentes de Wiriamu”.
A norte a situação também evoluíra desfavoravelmente. Discretamente, sem acções militarmente significativas, sentia-se a progressão da Frelimo pela colocação de armadilhas em lavras de populações leais, por pequenas alterações no comportamento das populações mais evoluídas, que se tornavam mais fugidias e reservadas, pela colocação, mais ou menos esporádica, de uma mina num itinerário, etc.. Em mês que já não posso precisar (Fev de 1973?) verificam-se as primeiras acções na linha de caminho-de-ferro Mutarara-Moatize, polarizadas na região de Doa, inicialmente sob a forma de pequenas flagelações dos comboios e, a breve prazo, pela colocação, com surpreendente intensidade, de minas na via-férrea. A via passava a poucas dezenas de metros da fronteira com o Malawi e a poucas centenas da margem esquerda do rio Zambeze, onde a ocupação humana era significativa. Tão fácil fluxo no abastecimento de minas só poderia ser assegurado ou recorrendo a base(s) no Malawi e/ou a almadias que descessem o Zambeze. Mas, apesar das variadas operações desencadeadas na área e do recurso aos serviços de informações do Eng.º Jorge Jardim, no Malawi, não foi possível aos SIM adquirirem uma ideia clara sobre as linhas de infiltração da FRELIMO e sobre a localização das suas bases. A 2ª Rep admitia como mais provável o abastecimento das minas através do Lago Niassa – Malawi, mas esta hipótese era contrariada pelo Comando Naval e pelo Eng.º Jardim.
b. No distrito de Cabo Delgado, a guerilha era relativamente numerosa, bem como a população por aquela controlada, as linhas de comunicações do adversário, a partir da fronteira, eram de poucas dezenas de quilómetros e, por conseguinte, a actividade militar da FRELIMO era relativamente frequente e variada, o que permitia contactos com o adversário, a detecção de instalações e de trilhos, a captura de guerrilheiros ou de elementos da população conhecedores do adversário que podiam ser utilizados como guias, etc., etc. Nestas condições, os SIM tinham um conhecimento razoavelmente pormenorizado sobre as linhas de infiltração, as “bases” e outras instalações do adversário, a sua organização militar, etc., o que permitia a realização de operações militares frequentemente com sucesso (abate e captura de guerrilheiros e armamento, destruição de instalações ainda que recentemente abandonadas, detecção de depósitos de armas e minas, apreensão de documentos, etc,). Pelo menos até ao início da época seca de 1973, era substancialmente diferente o ambiente operacional no distrito de Tete: adversário pouco numeroso e fluido, grandes extensões sem população, linhas de comunicações do adversário com centenas de quilómetros e acções adversas muito intermitentes e cingidas essencialmente à colocação de minas e de armadilhas, a tentativas, sem sucesso, de flagelação, á distância, de um ou outro aquartelamento a norte do Zambeze, etc. (Mesmo já numa fase em que a FRELIMO se encontrava bem equipada e numa situação em que, em princípio, não escasseariam os abastecimentos, se advertia essa relativa fragilidade organizativa, em Tete, que a conduzia quase sempre, a tentativas de flagelação a grande distância e à fuga ao contacto. Recordo-me, por exemplo, de uma tentativa de flagelação, em 1973, a uma pequena povoação fronteiriça (Vila Gamito?) feita com equipamento pesado, mas instalado na Zãmbia, e que nada atingiu...). Os SIM debatiam-se, por conseguinte, com grandes dificuldades.
Assim, o conhecimento das linhas de infiltração e do dispositivo adverso era precário e raramente se estabeleciam contactos estreitos e intensos, pelo que a maior parte das operações militares não tinham sucesso imediato significativo, limitado este à destruição de palhotas abandonadas, à apreensão de alguns documentos ou de uma ou outra arma, etc. Que me recorde, nunca no distrito foi destruída qualquer “base” ou encontrado qualquer depósito de armas, pelo que a operação de maior sucesso terá sido a que conduziu à captura de Zeca Caliate e de parte do seu grupo, em meados de 1972. Todavia, a intensa actividade operacional desenvolvida com os escassos meios disponíveis teve um apreciável efeito indirecto e de que muito beneficiou a segurança de Cabora Bassa: a de criar uma grande instabilidade ao adversário e a de garantir uma liberdade de acção quase total às NT, impedindo a FRELIMO de apregoar a criação de qualquer ”área libertada” ou de limitar a actividade das NT, mesmo em zonas fronteiriças.
Todavia, a FRELIMO soube explorar inteligentemente as vulnerabilidades próprias e as nossas, recorrendo a uma tactica de infiltração e de actuação discreta e insidiosa, que evitava o contacto. E assim, nos princípios de 1973, ao estender a área de operações para além do “gargalo” de Tete a FRELIMO alcançara um importante sucesso estratégico, que alterava significativamente o quadro da segurança do empreendimento de Cabora Bassa.
1.4. Considerações gerais sobre as NT
a. Como se referiu, os meios existentes no distrito de Tete, no final da época seca de 1970, à disposição do comando do então Sector “F” eram muito reduzidos (Fig 1), dado que se tratava de uma região que se tinha mantido passiva, excepto numa área relativamente limitada. Mesmo nesta, a intensidade da guerra era pequena, se comparada com o que se passava em Cabo Delgado ou até no Niassa. Regista-se que os batalhões do Fingoé e do Furancungo tinham, além de áreas de responsabilidade de elevadas dimensões, grandes extensões de fronteira, e que o batalhão de Tete, já de si com uma área de responsabilidade sensivelmente correspondente à parte de Portugal situada a sul do rio Vouga, não tinha real capacidade operacional ofensiva, visto que se tratava de uma Unidade da Guarnição Normal, praticamente absorvida pelas tarefas de instrução, de segurança de um importante núcleo populacional com várias instalações sensíveis, etc.
Quando cheguei ao QG do Comando-Chefe de Moçambique vivia-se ainda um período de uma certa euforia motivada pela operação Nó Górdio, realizada cerca de 2 meses antes, no distrito de Cabo Delgado. E cedo me apercebi de que a grande preocupação do comandante-chefe incidia agora na segurança do empreendimento de Cabora-Bassa, que avançava num excelente ritmo, mas sem qualquer estrutura de segurança militar minimamente consistente, pelas razões já referidas. Uma análise da situação apontava a que, no mínimo, era necessário reforçar preventivamente o distrito com um batalhão, exclusivamente destinado à segurança de Cabora-Bassa e integrado num Comando Operacional, a criar, na dependência directa do Comando-Chefe. Em princípios de Dezembro de 1970, se não erro, o comandante-chefe deslocou-se a Lisboa para tentar resolver vários assuntos, entre os quais a obtenção daqueles reforços, com base na importância vital da garantia da segurança do empreendimento. Mas no QG antevia-se que tais esforços não teriam sucesso.
De facto, um importante estudo da 1ª Rep/EME sobre a evolução do potencial humano recrutável, da Metrópole, concluíra que este tinha atingido o limite e decresceria nos anos seguintes; e, na sequência desse estudo, eu fora autor, então em serviço na 3ª Rep/EME, da proposta da chamada ”miscigenação” das Unidades metropolitanas operacionais mobilizadas: excepto no caso das CCmd e de pequenas formações especializadas, aquelas unidades partiam com apenas 2/3 dos seus efectivos orgânicos, sendo completadas com o restante 1/3 no TO de destino; e, dadas a forma rotineira de actuação do então SGDN e a influência dos comandantes-chefes de Angola e da Guiné, não era previsível que fosse superiormente decidido diminuir os meios existentes naqueles TO em benefício do de Moçambique. Por outro lado, o General K. de Arriaga tinha produzido, quando da operação Nó Górdio, declarações pouco prudentes e surpreendentes numa personalidade que teorizara, de forma superior, sobre o fenómeno da guerra subversiva, declarações essas que não favoreciam o pedido de reforços.
Assim, o problema teve de ser resolvido com a “prata da casa”, recuperando 2 CCaç em Cabo Delgado e desguarnecendo significativamente o Sul. Ainda recordo a dramática extinção do histórico BCaç de Inhambane, num fim de tarde em que o próprio comandante, raivosamente comovido, arrancava, com alguns subordinados, a instalação eléctrica do aquartelamento, na esperança de lhe ser útil no mato (Chipera)...
b. Já mencionei que a extensão da subversão à Marávia alterava significativamente o quadro da situação até então vivida no distrito de Tete. Em consequência desta evolução, o comandante-chefe propôs ao governador- geral (já não me lembro se em Conselho de Defesa) a adopção de três medidas, do âmbito das autoridades civis: o reordenamento das populações das áreas ainda não subvertidas, à semelhança do que havia sido feito com sucesso em Cabo Delgado; a criação de GE, financiados pelo Governo-Geral e recrutados pelas autoridades administrativas, medida que se revelara de apreciável sucesso, especialmente no Niassa; e a concentração dos poderes civil e militar no distrito de Tete. Refira-se, quanto ao reordenamento de populações, que este estava previsto pelo GPZ relativamente àquelas que seriam afectadas pela albufeira ou descargas da barragem, pelo que, neste caso específico, se tratava apenas de antecipar e acelerar o processo. Por razões que desconheço, apenas a última proposta parece ter tido acolhimento. Mas era voz corrente que, já do antecedente, havia uma tensão entre o comandante-chefe e o governador-geral. E as restantes propostas só tiveram acolhimento e seguimento após a chegada de um novo governador-geral (Eng.º Pimentel dos Santos), cerca de um ano depois. Mas então já foi um pouco tarde: a situação degradara-se e as probabilidades de sucesso revelaram-se, naturalmente, mais reduzidas.
c. Como referido, o agravamento da situação no distrito de Tete exigia mais meios (Fig. 2). Por outro lado, era cada vez menor a capacidade operacional das CCaç idas da Metrópole: comandos, de um modo geral, cada vez menos qualificados; enquadramento crescentemente mais reduzido e desmotivado, assente em elementos dos QC, frequentemente mentalizados pela propaganda contra a guerra que então grassava nos liceus e universidades; instrução crescentemente deficiente, devido à escassez de quadros profissionais nas unidades de instrução da Metrópole (a partir de 1968 vinha diminuindo significativamente, em quantidade e qualidade, o número de concorrentes à Academia Militar) e ao cansaço dos poucos existentes; equipamento das unidades cada vez mais deficiente, devido ao desgaste dos meios e á cristalização tecnológica (no Exército, em 1970 fazia-se a guerra praticamente com os mesmos tipos de equipamentos existentes no princípio da mesma, ao contrário do que se passava com o adversário, cada vez mais bem equipado a partir de 1972, embora, felizmente, com muitas limitações na correcta utilização do equipamento mais pesado). Pelos fins da época das chuvas de 1970-71, se não erro, o comandante-chefe decidiu-se abertamente pela “africanização” das forças mais significativas, por razões de necessidade, mas, sobretudo, pelo bom comportamento e extrema lealdade das forças que vinham sendo recrutadas localmente, em especial CCmds, GE e milícias de alguns aldeamentos, em que se podiam contar pelos dedos as deserções verificadas.
Do antecedente, havia sido criado o Centro de Instrução de Comandos, em Montepuez, para a formação de pessoal recrutado localmente. Se a memória me não falha, chegou a disponibilizar 6 CCmds, tendo sempre uma em formação. Agora eram criados os Grupos Especiais Paraquedistas (GEP) e o respectivo Centro de Instrução, no Dondo (nas imediações da Beira), decisão que criou alguns engulhos em certos sectores da população branca, bem como um Centro de Instrução de GE, também no Dondo, decisão que foi encarada com fortes reservas pelas 3ª e 5 ª Rep do QG, por constituir um desvirtuamento da filosofia que havia presidido à criação dos GE. Recordo-me do lançamento, em fins de 1971, dos paraquedistas que constituíam o 1º GEP, tendo como “madrinha” uma filha do Engº J. Jardim, em cerimónia pública presenciada, com grande entusiasmo, por milhares de elementos da população local.
d. Um estudo da situação elaborado na 3ª Rep/QG em fins de 1971 conduziu às seguintes conclusões gerais:
(1) A situação no Niassa continuava a evoluir favoravelmente, admitindo-se que não seria fonte de qualquer preocupação no futuro previsível.
(2) Em Cabo Delgado, o adversário recuperara apreciavelmente do desgaste produzido pela operação Nó Górdio e operações subsequentes. Mas a área de subversão activa mantinha-se estabilizada, as NT continuavam a gozar de satisfatória liberdade de acção e verificavam-se algumas pequenas apresentações, às NT, de populações que conseguiam fugir ao controlo do adversário e, cansadas da guerra, acolher-se à protecção das nossas forças, fenómeno que se considerava animador. Assim, a situação impunha uma atenção cuidada e a conservação da inicitiva táctica, mas permitia uma economia de forças e de esforços (defensiva estratégica).
(3) O esforço teria de ser exercido no distrito de Tete e com maior intensidade. Considerava-se como hipótese mais perigosa uma tentativa de envolvimento, por sul, da região de Cabora-Bassa, e como ano crítico o de 1993 (concentração de 3 grandes esforços securitários: construção da barragem, com consumos máximos de cimento; transporte das principais cargas críticas; construção da linha de transporte de energia).
(4) Em consequência, propunha-se, além da manutenção do esforço do antecedente exercido pelo CODCB:
– a instalação de um BCaç, a recuperar da Zambézia, em Changara;
– o emprego de um batalhão de forças especiais, durante um longo período indeterminado, na região a sul do Zambeze, até completa limpeza de elementos infiltrados;
– o emprego de um outro batalhão de forças especiais, durante um período indeterminado, a norte do Zambeze, para, em conjugação com os meios da ZOT e outras forças especiais postas à sua disposição, garantir a segurança do “gargalo “ de Tete e tentar a redução das infiltrações verificadas para leste do rio Capoche;
– o reforço de um Destacamento de Fuzileiros Especiais, a recuperar de outro Sector, para melhor controlo do rio Zambeze, a oeste de Chicoa.
E como o comandante-chefe estava a ser fortemente pressionado pelo Governo para prorrogar a sua comissão de serviço, em princípio até à conclusão da barragem, o General K. de Arriaga decidiu deslocar-se a Lisboa, a fim de, entre outros assuntos, “negociar” as condições dessa prorrogação.
e. Ora nas suas lições no IAEM o General K. de Arriaga havia expendido a tese de que o grosso do esforço militar em potencial humano devia recair nas possibilidades de recrutamento dos TO afectados, à semelhança do passado, já que tal pessoal era mais adequado ao desempenho das funções de quadrícula, que absorviam a maior parte do dispositivo militar; e que o esforço metropolitano deveria limitar-se ao fornecimento de tropas especiais, comandos e unidades e formações especializadas, cujas necessidades não pudessem ser satisfeitas pelo recrutamento local. Além disso, entendia que aquelas forças especiais, fornecidas pela Metrópole, deveriam ser integradas num Comando Estratégico, posicionado em Angola mas na dependência directa do CEMGFA, que balancearia essas forças entre os 3 TO, de acordo com as prioridades de esforços sazonalmente definidas. E o general entendia que, tendo presente a acentuada melhoria da situação que se verificava em Angola e que a Guiné tinha um reduzido valor estratégico, o esforço, numa visão global ao nível do Governo Central, devia ser temporariamente exercido em Moçambique, até à conclusão da construção da barragem e enchimento da albufeira. Na prática, tal traduzir-se-ia pelo reforço do TO de Moçambique com os 2 batalhões de forças especiais (Comandos ou Páras) acima referidos. Eram estas as teses que tencionava recordar em Lisboa, como condição da prorrogação da sua comissão.
Desconheço, evidentemente, o teor das conversações havidas entre o comandante-chefe e o MDN ou o CEMGFA. Mas sei que o General K. de Arriaga se mostrou satisfeito com a forma como decorreram e com as promessas de apoio recebidas. Mas tais promessas demoravam a concretizar-se. E quando, no troço final de 1972, se verificou a saída do General Venâncio Deslandes de CEMGFA (amigo de longa data do General K. de Arriaga), tornava-se evidente que, à luz do passado, a estrutura do poder político-militar na Metrópole evoluíra num sentido desfavorável às teses e interesses do comandante-chefe.
f. Os incidentes verificados no final da época seca de 72 no distrito de Vila Pery, foram objecto de interpretações variáveis no QG: para uns, tratava-se de um caso isolado, de grande efeito psicológico mas limitado significado militar; para outros revelavam uma presença efectiva e susceptível de se ampliar e intensificar na época das chuvas que se avizinhava, de difícil detecção dada a fragilidade da nossa ocupação administrativa, bem como a ausência de forças policiais e de elementos da DGS em tão vasta região. Na sequência desses incidentes, o comandante-chefe encarregou o Cor Costa Campos (comandante do Centro de Instrução dos GEP, oficial muito desembaraçado e experiente e muito apreciado pelo General K. de Arriaga) de, com um (ou 2?) GEP proceder a um cuidadoso reconhecimento e a uma avaliação da real situação psicológica das populações na parte dos distritos de Vila Pery e da Beira situada, sensivelmente, a oeste da Serra da Gorongosa e a norte do Rio Punguè. Findo, cerca de duas semanas depois de iniciado, o referido reconhecimento, o comandante-chefe promoveu uma reunião, depois do jantar, com o Cor C. Campos e os chefes das 2ª, 3ª e, se não erro, da 5ª Rep (TCor G. Passos). Expostas as várias acções desenvolvidas, o Cor C. Campos manifestou a opinião de que, excepto em dois ou três regulados que referiu, as populações se mantinham estabilizadas; que os elementos da FRELIMO infiltrados eram muito reduzidos, com escasso equipamento militar, e tentavam exclusivamente acções de aliciamento, aproveitando a fraca ocupação administrativa e militar; que a região que, pelas características do terreno e das populações, considerava mais preocupante era a dos Baruès; que, excluindo a reserva natural protegida da Gorongosa, o grosso da região reconhecida era de caça e em parte explorada por “safaris”, existindo por isso muitos pisteiros, com o grosso dos quais havia contactado e que estavam disponíveis para prestar a sua colaboração; e que, em consequência, estava convencido de que, com o empenhamento de 2 GEP (em grande parte bons conhecedores da região, por dela serem naturais) e o apoio de pisteiros, a ameaça seria facilmente neutralizada. (Aí nasceu a ideia de virem a ser criados GE de Pisteiros de Combate). Embora fosse admirador e amigo do Cor C. Campos (fora meu colega de curso na Escola do Exército), discordei claramente de várias das suas conclusões, tanto mais que, em anterior comissão, tivera oportunidade de conhecer, apreciavelmente bem, grande parte da região em apreço. Idêntica posição foi assumida pelo chefe da 2ª Rep. Finda a reunião, mantive-me na Sala de Operações a dar andamento a parte das decisões que haviam sido tomadas verbalmente pelo comandante-chefe. Todavia, depois de ter ido ao seu gabinete, o General K. de Arriaga decidiu passar pela Sala e falar comigo, antes de abandonar o QG. A certa altura, manifestou-se surpreendido e preocupado ?) com o que entendera como meu pessimismo. Retorqui que não era uma questão de estados de alma, mas de um esforço de análise frio e prudente dos factos. Lembro-me de que, na sequência da conversa havida e dos argumentos trocados, me disse, quase a concluir: “É muito provável que a atitude da Zâmbia mude, relativamente em breve. E isso alterará todo o quadro actual”.
g. Ainda em fins de 1972 (Novembro ?) foi obtida informação segura de que a FRELIMO se preparava para introduzir no distrito de Tete (nas proximidades do Natal ?) uma missão de observadores da ONU, a fim de apresentar a área visitada como uma “área libertada”. Feito o estudo da situação em colaboração com a 2ª Rep/QG, foram estabelecidas duas ou três modalidades de acção, assentes numa série de heliassaltos a levar a efeito por um BParaq em áreas fronteiriças, durante vários dias, conjugados com bombardeamentos por parelhas de aviões Fiat.
A grande questão que se punha, dada a escassez de meios e a grande extensão da fronteira, era a de tentar reduzir a duas ou três as prováveis áreas de infiltração, o que requeria informações pormenorizadas. Num certo momento, fui convocado, juntamente com o chefe da 2ª Rep (TCor Correia da Cruz), para uma reunião restrita com o comandante-chefe, à noite, na Sala de Operações, para a tomada de decisões. Tivemos a surpresa de ver também presente o Engº J. Jardim, que se deslocara de avião.
Fez uma exposição sobre o dispositivo geral da FRELIMO na Zâmbia e sobre o sistema de relações daquela organização com várias personalidades e autoridades zambianas e com a ZANU e ZAPU, bem como sobre algumas tensões existentes. Meses antes, tivera ocasião de trabalhar de perto com o Engº Jardim na concepção geral de uma vasta operação coberta que o comandante-chefe pensara levar a efeito na Tanzânia, explorando o refúgio de Oscar Kambone, importante líder tanzaniano da oposição, junto das nossas autoridades, via Engº J. Jardim, refúgio esse que fora mantido secreto. Tal operação veio a ser cancelada, creio que por falta de autorização do Governo Central. E assim, ainda que já não estranhasse a teatralidade, a imaginação e a criatividade que o Engº Jardim punha normalmente nas suas intervenções, não pude deixar de me impressionar com o seu grau de conhecimento pormenorizado sobre a Zâmbia. E associando esta verificação ao que o general me havia dito poucos meses antes, tornou-se-me evidente o bem-fundado de alguns artigos surgidos em imprensa estrangeira, em especial de origem francesa, que apontavam a existência de um Movimento, dinamizado pelo Engº Jardim e que incluiria várias personalidades de relevo local, de diferentes etnias e desafectas ao regime e ao comunismo, visando uma maior autonomia político-administrativa do território e que estaria a desenvolver fortes contactos na Zâmbia, além do Malawi, procurando as bases de uma paz honrosa e generosa com os sectores da FRELIMO mais genuinamente africanos, não enfeudados à corrente de origem indiana, então dominante.
Segundo alguns artigos, esse Movimento contaria com a compreensão discreta do comandante-chefe. Creio que a convicção, que se generalizava, de que a FRELIMO não conseguira opor-se à construção da barragem e de que a conclusão desta se verificaria dentro de alguns meses fora factor determinante da génese desse Movimento. E, na Zâmbia, existiam importantes sectores avessos à influência da China e que encaravam com interesse os benefícios que poderiam ser colhidos da conclusão da barragem e, provavelmente, prometidos pelo Engº Jardim. E, a esta luz, passava a interpretar melhor o facto de o General K. de Arriaga, numa decisão arrojada e psicologicamente espectacular, ter escolhido para seu ajudante de campo o Alferes Chissano, irmão de Joaquim Chissano, dirigente de topo da FRELIMO e futuro Presidente da Repúbçica de Moçambique.
No final, o comandante-chefe tomou as necessárias decisões, depois transmitidas á ZOT e à Região Aérea. E embora as operações que foram realizadas tivessem tido um limitado sucesso táctico, com um reduzido número de baixas, de armamento apreendido ou de documentos capturados, foi excelente o seu sucesso estratégico, visto que a missão da ONU se manteve dois ou três dias nas imediações da fronteira, na Zâmbia, mas desistiu de entrar no TN, por falta de condições de segurança, gorando-se dessa forma a tentativa de propaganda do adversário, na esfera internacional. E essas operações, durante as quais não se verificaram praticamente contactos com o adversário, apesar de se ter admitido um forte empenho daquele em manifestar sólida presença na região, vieram confirmar a impressão existente sobre a grande rarefacção do dispositivo operacional da FRELIMO no distrito de Tete e das suas limitações logísticas, ao contrário do que se passava em Cabo Delgado.
1.5. Relações com o Exército rodesiano
Era evidente e compreensível o interesse com que os governos da República da África do Sul (RAS) e da Rodésia do Sul acompanhavam a evolução da situação em Moçambique, certamente acrescido após ter sido decidida a construção da barragem. A fronteira da Rodésia com Moçambique era, tradicionalmente, segura, pelo que, relativamente às tentativas de infiltração da ZANU e da ZAPU, o exército rodesiano apenas tinha de se preocupar com a fronteira com a Zâmbia, sobre o Zambeze, a oeste de Zumbo. O adido militar de Portugal na Rodésia (TCor Inocentes) deslocava-se, em regra, mensalmente ao QG, em Nampula, para troca de informações sobre a situação militar em Moçambique e na Rodésia e planos dos respectivos comandos.
A partir da alteração da situação na região da Marávia (princípios da época seca de 1971) as preocupações das autoridades militares da Rodésia do Sul aumentaram e começaram a alegar que a fronteira com Moçambique deixara de ser segura, verificando-se infiltrações de elementos isolados da ZANU ou da ZAPU, e que a Missão de Mecumbura prestava apoio e refúgio a esses elementos, quando perseguidos. Em consequência, as autoridades militares rodesianas começaram a pressionar o Comando-Chefe no sentido de forças militares rodesianas, especialmente helitransportadas, poderem penetrar em território moçambicano, no caso de operações de busca e perseguição contra elementos adversos. O comandante-chefe não aceitou tal pedido essencialmente por três razões: porque na altura não havia indícios de que a FRELIMO estivesse em condições de se infiltrar para sul do Zambeze; porque qualquer acção de forças rodesianas na zona seria facilmente detectada pelos padres da Missão, que nos eram hostis, e que certamente desencadeariam uma campanha nos meios de comunicação internacional; e, finalmente, porque dadas as limitações dos meios de transmissões e dos seus operadores e as consequentes dificuldades de coordenação, se receava o risco de qualquer eventual colisão com forças nacionais que estivessem a operar na área. Todavia, em face da evolução da situação, por razões do nosso interesse operacional o dispositivo foi reforçado, colocando-se uma companhia em Magoè, com a missão de tentar impedir infiltrações para sul do Zambeze e de controlar as actividades da Missão de Mecumbura.
Mas, em virtude do alastramento da subversão e da consequente revisão do esforço estratégico, a atitude do comandante-chefe veio a alterar-se em relação à crescente pressão das autoridades rodesianas, tanto mais que perdiam relevância alguns dos argumentos anteriormente considerados. De facto, na luta contra-relógio pela conclusão, sem atrasos, da barragem o esforço militar foi concentrado, desde o princípio da época seca de 1972, no “gargalo” do distrito, pelo que toda a actividade operacional das NT a Oeste, grosso modo, do meridiano de Chicoa ficou circunscrita às possibilidades, cada vez mais limitadas pelas razões já referidas, do dispositivo militar permanente do antecedente existente, apenas reforçado com um Destacamento de Fuzileiros, que foi instalado na margem sul do Zambeze e onde este rio mais se estreitava, e por alguns GE. Existiam, assim, vastas áreas onde as forças rodesianas poderiam temporariamente actuar, sem risco de colisão com operações das NT ou de detecção pela Missão de Mecumbura.
A cooperação entre as autoridades militares nacionais e rodesianas aprofundou-se institucional e qualitativamente. Assim, em momento que já não recordo (fins de 1972 ?) foi acordada a colocação no QG de um oficial de ligação rodesiano: tinha naturalmente um comportamento discreto, falando praticamente só comigo; trajava civilmente, pelo que se confundia com os muitos civis que trabalhavam no QG; foi instalado num pequeno espaço quase fronteiro ao meu gabinete e que servira de arquivo, onde utilizava uma carta da região de interesse e um emissor-receptor, explorado apenas em Morse; diariamente, antes do jantar e depois de todo o restante pessoal ter saído, trocávamos informações; era dado conhecimento imediato de qualquer informação relevante para a outra parte.
A zona a sul do rio Zambeze entre Mecumbura e a região de Nura (?), excepto numa pequena faixa junto à margem, tornou-se praticamente numa “área de intervenção livre”, para as forças rodesianas, sujeitas quaisquer operações apenas a prévia informação ao QG. Uma ou duas vezes foi autorizada a “perseguição” a norte do Zambeze, creio que a norte de Carinde. Diga-se de passagem que foram relativamente poucas as operações realizadas na zona por forças rodesianas e muito limitados os resultados alcançados, o que indicia que a ZANU ou a ZAPU não utilizaram a fronteira de Moçambique com a intensidade que era apregoada pela Rodésia. Nunca se realizaram operações combinadas, nem se verificaram quaisquer contactos ou incidentes com as NT. Além disso, a colaboração com forças rodesianas não foi objecto de especulação mediática significativa.
1.6. Dimensões da problemática da segurança.
A segurança do empreendimento de Cabora-Bassa, implicava, do ponto de vista militar, os seguintes problemas específicos:
- da construção da barragem;
- do transporte das chamadas “cargas críticas”;
- da linha de transporte de energia e das instalações da barragem;
- da vigilância e controlo da albufeira.
Os dois primeiros problemas respeitaram à fase de construção da barragem; o terceiro, embora se enquadrasse na fase de exploração, tinha de ser concluído na fase de construção; o último só tinha expressão após a conclusão da barragem.
2. A segurança da construção da barragem
a. Como referimos, o General K. de Arriaga exprimira os conceitos de que as forças especiais, de intervenção, deviam ser colocadas sob um único comando e que toda a missão fundamental específica devia ser atribuída a um comando específico. Assim, após assumir as funções de comandante-chefe, criou o Comando Operacional das Forças de Intervenção (COFI), com a “prata da casa”, que, pelas razões que referiremos, foi de curta duração e só teve aplicação prática na Operação “Nó Górdio”, bem como desde logo entendeu que a segurança da construção da barragem de Cabora-Bassa deveria, dada a sua fundamental importância, ser confiada a um comando específico, na dependência directa do comando-chefe.
Nesta conformidade, pouco depois de ter sido concluída aquela Operação, colocou temporariamente a parte mais operacional do COFI comandada pelo seu 2º comandante) em Chicoa, com a missão de reconhecer e propor um local para a futura instalação do chamado “Comando Operacional da Defesa de Cabora-Bassa” (CODCB) e acompanhar a construção das instalações adequadas, que incluiriam a de uma pista para aviões do tipo Nord-Atlas. Simultaneamente, o comandante-chefe tentaria conseguir que o SGDN fornecesse os quadros necessários para o novo Comando e que fossem revistas as limitações à presença de forças militares nas vizinhanças da futura barragem. Escolhido o local de Estima, próximo da “picada” Tete-Chicoa e do desvio deste itinerário para o Songo, as instalações do novo Comando – pequeno quartel e pista – foram construídas num prazo de tempo extremamente curto, aproveitando o máximo do resto da época seca. Mas Lisboa não forneceu o Comando solicitado e, desta forma, o que havia sido encarado como temporário passou a definitivo e o TCor Cav Rodrigo da Silveira, que era o 2º comandante do COFI, passou a ser o primeiro comandante do CODCB.
b. Já salientámos que, desde logo, fora entendida a necessidade de se dispor de um batalhão ao longo do sopé da cadeia montanhosa que, por norte, delimitava o desfiladeiro em que ia ser implantada a barragem e que não tiveram sucesso os esforços destinados a obter esse reforço. Houve, assim, que recorrer às possibilidades locais. Com a extinção do BCaç de Inhambane, no sul, e a recuperação de 2 CCaç, permitida pela melhoria da situação em Cabo Delgado, organizou-se um BCaç, cujo Comando e uma CCaç foram instalados em Chipera e uma outra em Cantina Dias e que absorveu ainda a CCaç de Chiringa, já existente do antecedente. Além deste BCaç, o CODCB dispunha, no mínimo, como força de intervenção de reacção rápida, de 2 companhias de forças especiais (Comandos ou Pára-quedistas) e de um pequeno destacamento de hélis, com várias configurações de armamento. Acresce que a Região Aérea tinha em permanência, no AB de Tete, no mínimo, uma parelha de Fiat e aviões ligeiros de reconhecimento e observação, além de outro destacamento de hélis para apoio da ZOT.
Sem prejuízo de ter sempre disponível uma força de reacção rápida, o CODCB desenvolvia diariamente uma intensa actividade operacional na sua área de responsabilidade, especialmente a norte do Zambeze. Por outro lado, o AB 7 procedia a um regular mas não rotineiro patrulhamento aéreo de toda a região a norte da área de trabalhos e que interessasse à segurança próxima do empreendimento. Todavia, toda a actividade era desenvolvida utilizando rotas ou eixos não observáveis da zona de trabalhos, de forma a preservar-se a tranquilidade psicológica no Songo e nas frentes de trabalho. Quanto à segurança afastada era, naturalmente, assegurada, em princípio, pela actividade operacional da ZOT.
O enorme volume de abastecimentos necessários ao empreendimento, incluindo operações de manutenção, e às populações e organizações estabelecidas no Songo eram encaminhados para Tete essencialmente por via ferroviária. O caminho de ferro da TZR Beira-D. Ana-Blantyre (com a espec-
tacular ponte sobre o rio Zambeze) e o caminho de ferro D. Ana-Moatize tinham, assim, uma importância crucial. Durante muito tempo (até meados de 1972 ?) a circulação fez-se normalmente, praticamente com muito reduzidas medidas de segurança e apenas no troço D. Ana-Moatize. Mas, como já referido, tendo concluído que não tinha possibilidade de se opor directamente à construção da barragem, a FRELIMO tentou alcançar a mesma finalidade através do corte dos abastecimentos necessários à sua construção. Após obter o sucesso estratégico de conseguir envolver o “gargalo“ de Tete, a via ferroviária D. Ana-Moatize passou a ser um alvo prioritário da acção da FRELIMO.
Inicialmente, as acções traduziram-se por pequenas flagelações, a média distância, contra as composições, que obrigaram à criação de escoltas, nos comboios, capazes de reagirem às flagelações e garantirem a marcha sem interrupções. Mas, a breve trecho, foi detectada a implantação de minas na via, o que obrigou a uma profunda reorganização dos horários e dos métodos de circulação e à adopção de mais rigorosas medidas de segurança, que incluíam o recurso a patrulhas de abertura em zorras blindadas e a um planeamento militar de cada movimento. Apesar dos esforços desenvolvidos, a situação foi-se agravando de tal forma que a circulação ferroviária foi cancelada, em meados de 1973. Quando, em fins de Set 73, terminei a minha comissão, a FRELIMO chegara ao ponto de neutralizar fortemente a ponte de Mutarara, para desdouro da CCaç ali instalada. Felizmente, pelas autoridades responsáveis haviam sido constituídas elevadas reservas de cimento em Tete, que permitiram garantir a regularidade no ritmo de construção da barragem. Os abastecimentos passaram a ser feitos essencialmente por via rodoviária, com o apoio, em caso de necessidade, da via aérea. O alcatroamento da estrada Tete-Songo, concluído no final da época seca de 1972, veio a contribuir significativamente para uma maior segurança da circulação.
c. Duas questões mais ou menos objecto de controvérsia, e respeitantes à fase de construção do empreendimento, relacionam-se com a existência ou não de obstáculos na periferia do conjunto Songo – barragem, para reforço da segurança próxima e imediata daquele conjunto, e com as reais intenções da FRELIMO relativamente á construção do empreendimento.
Quanto à primeira questão, começo por recordar que iniciei as minhas funções no QG como adjunto de operações da 3ª Rep e que nunca o chefe desta Rep (TCor Santos Costa) me referiu a existência de quaisquer obstáculos, já construídos ou em fase de construção, integrados em qualquer plano de defesa de Cabora-Bassa, nem nunca vi qualquer despacho do comandante-chefe, estudo, plano ou qualquer outro documento relativo ao assunto. Por outro lado, o General K. de Arriaga, apesar de ser uma personalidade aberta e extrovertida, era um cuidadoso gestor da informação e era pouco ortodoxo relativamente aos processos de tomada de decisão e do exercício do comando.
E assim, talvez duas ou três semanas após a minha chegada, quando me encontrava no seu gabinete a tratar de um outro assunto, perguntou-me inesperadamente o que eu pensava sobre a defesa próxima e imediata de Cabora-Bassa, em especial sobre obstáculos. Respondi, em linhas gerais, que, do ponto de vista teórico, ele era certamente pessoa mais qualificada do que eu em tal matéria e que, no caso concreto, não podia emitir qualquer opinião objectiva, porque não conhecia devidamente as características da região. Passadas uma ou duas semanas, fui informado de que integraria uma pequena comitiva do QG que acompanharia o comandante-chefe numa visita ao AB7, ao Comando do Sector F e a Cabora-Bassa. Chegámos a Cabora-Bassa, de helicóptero, logo a seguir ao almoço no AB 7, sendo aguardados pelo Engº Brás de Oliveira, que não conhecia. Na sua companhia visitámos todas as zonas de trabalhos e acompanhei as suas pormenorizadas explicações sobre as obras em curso e sua sequência futura e prazos previstos. Regressados ao Songo, acompanhei o general e o comandante do Sector F (Brig Henrique Calado) num reconhecimento de helicóptero de todo o desfiladeiro e das regiões imediatamente envolventes, com especial atenção à zona norte. Depois da aterragem, já perto do fim da tarde, o comandante-chefe manteve uma conversa a sós com o Engº Brás de Oliveira.
Algum tempo depois, vi chegar, com surpresa por desconhecer que estivesse de serviço no Songo, o TCor Cav Andrade e Silva, meu contemporâneo na Escola do Exército. Manteve, também, uma conversa a sós com comandante-chefe. Regressei a Tete, onde pernoitámos, impressionado com a personalidade e capacidade de liderança do Engº Brás de Oliveira (imediatamente detectável através da forma como era saudado por todos os trabalhadores com que se cruzava, desde simples condutores a quadros qualificados, e pela maneira como se lhes dirigia) e com o gradiente térmico que se verificava entre o Songo e a zona de implantação da barragem e esmagado pela imponência da paisagem, pela dimensão e frenesim dos trabalhos em curso, pela variedade e dimensões de muitos equipamentos de engenharia e de transportes e pelo formigueiro humano e sua diversidade.
Passados poucos dias, no seu gabinete, o General K. de Arriaga perguntou-me qual era, então, a minha opinião sobre a segurança próxima de Cabora-Bassa, no respeitante a obstáculos. Respondi, em linhas gerais, o seguinte: dadas as características do desfiladeiro e das cadeias montanhosas era muito provável que o desfiladeiro fosse, até há pouco tempo, um espaço virgem de presença humana e sacralizado, pelo que a FRELIMO muito dificilmente encontraria um guia capaz de a orientar com vista a qualquer acção directa contra o local de implantação da barragem, além disso de acesso quase impossível, dadas as características físicas do terreno; assim, só admitia, como possíveis, tentativas de flagelação da região com meios de apreciável alcance, sem preocupações de precisão, exclusivamente com vista à obtenção de efeitos psicológicos; considerando como mais provável o recurso a morteiros pesados, para esse efeito, era de opinião que, a norte, deviam ser implantados campos de minas anti-pessoal, descontínuos, nas faixas de terreno, mais próximas do sopé, onde os escarpados delimitassem zonas de passagem obrigatória para qualquer tentativa de acesso á parte média da montanha; esses pequenos campos de minas poderiam ser reforçados com frisas de arame farpado.
Quanto à região a sul do Zambeze, manifestei a opinião de que a sua extensão e características tornavam incomportável a implantação de qualquer obstáculo, razoavelmente eficaz, pelo que entendia que apenas deveriam ser aplicadas medidas de segurança passiva muito rigorosas. Depois de me pedir que pormenorizasse essas medidas de segurança passiva, o General K. de Arriaga apenas me disse, como comentário, que o meu ponto de vista em relação à segurança a sul lhe parecia pouco prudente.
Num período de tempo não superior a um mês, detectei a presença no QG, com acesso directo e recepção imediata pelo comandante-chefe, do TCor Andrade e Silva, em reuniões demoradas, uma delas, pelo menos, também com a presença do Cor Carreiras, comandante da Engenharia, oficial muito considerado pelo comandante-chefe, que nele depositava grande confiança.
Nas conversas que tive com entidades estrangeiras sobre problemas de segurança, e que referi no início deste artigo, o General K. de Arriaga chegou a instruir-me quanto à inclusão de perguntas sobre a possibilidade de emprego, pelo adversário, de veículos portadores de misseis ou de minas que pudessem ser lançadas nas águas do rio Zambeze, mais ou menos na proximidade da região de implantação da barragem, bem como sobre outras ameaças pouco ortodoxas. Todavia, nunca mais se referiu a preocupações com a segurança próxima convencional.
Numa operação realizada na região de Furancungo foi encontrada, numa palhota abandonada, parte de uma carta (ou diário ?) em que um guerrilheiro dizia que tinha feito parte de um grupo encarregado de destruir Cabora-Bassa, mas que tinham desistido porque ao começarem a subir tinham encontrado as carcaças de dois animais, quase juntas, e concluíram que o terreno estava minado. No “briefing” em que este episódio foi apresentado, a 2ª Rep relacionou o facto com a substituição, recente, do anterior responsável operacional da FRELIMO, na Província de Tete, pelo comandante Mai Tai, prestigiado chefe da guerrilha no Niassa, se a memória me não falha (veio a ser, após a independência, CEMGFA de Moçambique), e considerado mais capaz de levar a efeito um ataque. O comandante-chefe não fez qualquer comentário.
Tempos mais tarde, num outro documento capturado, o seu autor noticiava ao destinatário que dois amigos comuns tinham morrido, ao pisarem minas, quando integravam um grupo que se destinava atacar, com morteiros, Cabora-Bassa e que, em consequência, a operação não prosseguira. No “briefing”, não foi feito qualquer comentário pelo comandante-chefe.
Era voz corrente em sectores civis ligados ao empreendimento e em alguns sectores militares que o comandante-chefe tinha concebido e promovido a implantação de um poderoso obstáculo nas imediações da região Songo – Cabora-Bassa e que impediria a aproximação do adversário a, no mínimo, 10 km da área protegida. Nunca vi o comandante-chefe promover tal notícia, mas nunca detectei, também, qualquer empenho seu em desmenti-la.
Ligando progressivamente estes factos, gerou-se-me a convicção de que: pelo menos nas faldas de parte da região montanhosa a norte do rio Zambeze, foram estabelecidos obstáculos descontínuos assentes em campos de minas anti-pessoal; o assunto era apenas do conhecimento do comandante-chefe, do Cor Carreiras e do TCor Andrade e Silva e, provavelmente, do Engº Brás de Oliveira; o TCor Andrade e Silva teria sido o responsável pela sua execução, embora eu nunca tenha chegado a uma ideia clara sobre a mão-de-obra utilizada; a tarefa deve ter sido concluída até fins de 1970 e, provavelmente, iniciada algum tempo antes da minha chegada a Moçambique. Poderá parecer estranho que, depois de assumir as funções de chefe da 3ª Rep, matéria tão significativa não tenha sido objecto de um esclarecimento claro entre mim e o comandante-chefe. Direi, como hoje soe dizer-se, que eu estava convencido de que o General K. de Arriaga estava convencido de que eu estava convencido da existência de tais obstáculos, pelo que nunca, nenhum de nós, sentira a necessidade de qualquer explicação complementar.
d. Quanto às reais intenções da FRELIMO relativamente ao empreendimento, estou absolutamente persuadido de que, pelo menos até ao fim da minha comissão, aquela tentou opor-se, por todos os meios ao seu alcance, à construção da barragem, ciente das consequências político-estratégicas resultantes. Basta ter presentes as várias declarações de Samora Machel sobre o assunto, as declarações de Zeca Caliate (encarregado, com o grupo que comandava, de atacar a barragem por sul, reconhecida a incapacidade de a atacar por norte) e a actuação persistente contra a via ferroviária, incluindo a neutralização da monumental ponte de Mutarara, de crucial importância para o desenvolvimento futuro de Moçambique, bem como atentar nos dois episódios anteriormente referidos, denunciadores de tentativas concretas de acções ofensivas contra a barragem em construção.
e. Em síntese, as medidas de segurança adoptadas relativamente à construção da barragem revelaram-se inteiramente eficazes. Os trabalhos desenvolveram-se conforme o previsto, sem qualquer interrupção devida a acção adversa.
3. A segurança do transporte das cargas críticas
“Cargas críticas” foi a designação dada aos equipamentos ou componentes fabricados especificamente para o empreendimento e que, se objecto de qualquer dano, tal impediria a conclusão da obra nos prazos contratuais e implicaria vultosas indemnizações. Fiel aos seus princípios, o General K. de Arriaga decidiu criar um Comando, na dependência directa do Comando-
-Chefe, com a missão exclusiva de planear a segurança do transporte de tais cargas. O pedido de atribuição de um reforço de uns poucos quadros para a constituição desse comando teve um sucesso muito limitado, cingindo-se ao comandante (Cor Cav Craveiro Lopes) e, se bem me recordo, mais dois ou três oficiais e sargentos. O Comando das Cargas Críticas (Cmd Cg Crt) foi instalado na Beira, porto de destino dos navios que transportavam os equipamentos, provindos essencialmente da Alemanha. Como é evidente, tratava-se de um órgão temporário, cuja missão terminaria com a realização do último transporte de cargas críticas. Enquanto as cargas se encontravam no porto, a responsabilidade da sua segurança cabia às autoridades portuárias, em colaboração com a PSP e a DGS. Procurava-se que fosse o mínimo possível o tempo de permanência no porto. Conforme as dimensões e peso das embalagens, a sensibilidade (demora numa eventual substituição) e a vulnerabilidade das cargas o transporte entre a Beira e o Songo era feito ou por via aérea (civil e/ou militar); ferroviária, até Moatize, e depois rodoviária; ou, excepcionalmente, apenas rodoviária. O esquema de funcionamento era, sensivelmente, o seguinte: com, pelo menos, um mês de antecedência, o GPZ informava o Cmd Cg Crt sobre as datas de chegada dos navios e sobre a natureza das cargas e dimensões e peso das embalagens; em coordenação técnica com o GPZ, aquele Cmd decidia quanto ao tipo de transporte e, se houvesse que recorrer a transportes militares, providenciava pela disponibilidade dos respectivos meios; em coordenação com os comandos terrestres envolvidos, eram decididas as medidas de segurança específicas a adoptar durante as várias fases do transporte.
A execução dessas medidas era da exclusiva responsabilidade dos comandos das várias subunidades, conforme as missões que recebiam. As operações mais espectaculares, complexas e delicadas foram as relativas aos transportes dos “rotores” das turbinas, evidentemente por via terrestre. Tiveram de ser utilizadas plataformas especiais, fornecidas pela RAS. “Passear” peças de dimensões descomunais, pesando dezenas de toneladas, ao longo de centenas de quilómetros, cerca de três quartos dos quais em terra batida e com um troço final, de cerca de 150 km, em território com um elevado grau de probabilidade de acção do adversário não foi tarefa fácil de levar a bom porto. Implicou uma rigorosa coordenação no emprego de meios de segurança relativamente elevados, incluindo a realização de operações de diversão e de cobertura aérea e a colocação, em alerta permanente, duma CEng estacionada em Vila Gouveia, para eventual intervenção em operações de conservação do itinerário ou de remoção de obstáculos. Mas também indiciou uma limitada capacidade de acção do adversário.
Também neste domínio o sucesso foi absoluto: todas as cargas chegaram ao seu destino sem qualquer atraso, dano ou percalço.
4. Segurança da linha de transporte de energia
a. A linha de transporte de energia (LTE) ligava a estação do Songo à estação Apolo, na RAS, numa extensão de cerca de 1000 (?) km. Tratava-se, na realidade, de duas linhas, que corriam paralelamente distando 50 (?) metros entre si, se a memória me não falha, e com corrente contínua. Com uma orientação norte-sul, paralela à fronteira, atravessava, de um modo geral, um terreno pouco acidentado, excepto na região dos contrafortes da serrania dos Baruès, e de savana, com pouca vegetação de elevado porte.
Em data de que já me não recordo (1º trimestre de 1971?), fui encarregado de estudar a segurança da futura linha, cuja montagem se previa que fosse iniciada em meados de 1973. Para o efeito foram-me postos á disposição, como adjuntos técnicos, dois alferes de Eng do QC, recentemente mobilizados, e que haviam sido colocados no Comando-Chefe. Eram, ou tinham sido, dois alunos distintos do IST, do curso de engenharia electrotécnica. Durante o estudo, a LTE foi dividida em 3 troços: Songo-região de Changara; desta até á região de Vila Gouveia; parte restante. No 1º troço, as medidas de segurança estudadas seriam postas em execução; no 2º, a execução das medidas dependeria da evolução da situação; o 3º troço não foi considerado no estudo.
b. O plano esboçado assentava, essencialmente, nas seguintes medidas:
(1) Construção de duas vedações com cerca de 3m de altura, de redes electrificadas e sensorizadas relativamente a tentativas de corte, enquadrando as LTE e afastadas destas, para ambos os lados, de ceca de 50 m, criando-se assim uma faixa protegida com cerca de 150m (?) de largura, que deveria ser mantida limpa de qualquer tipo de vegetação. As vedações seriam interrompidas, se bem me recordo, pelo menos na zona do itinerário Tete-Chicoa, do Rio Mazoe (?) e de uma “picada” que permitia a circulação da população de pequenos núcleos existentes a oeste. Essas aberturas de passagem seriam vigiadas e protegidas em permanência por destacamentos militares, a instalar.
(2) Construção, no interior dessa faixa, de uma “picada”, para fins de patrulhamento, de manutenção das linhas ou das redes ou de rápida deslocação de uma força de reacção.
(3) Previsão de instalação, na base dos postes, de pequenos campos de minas anti-pessoal, rigorosamente picotados, em quadrados de 15 m (?) de lado, nos quais seria deixada livre, de forma variável, uma faixa com cerca de 2 m de largura, destinada a permitir o acesso com segurança aos postes, para fins de manutenção. Para cada poste seria elaborada uma ficha, com o esquema do respectivo campo de minas. A decisão sobre se estes campos de minas seriam instalados ou não, e de forma sistemática ou aleatória, seria deixada para altura oportuna, em função da evolução da situação.
(4) Disponibilidade de forças de controlo de circulação e de patrulhamento e de uma força de reacção capaz de actuar rápida e eficazmente contra qualquer tentativa de violação das vedações, detectada e localizada pelos sensores.
Refere-se que, embora se previsse que as LTE só começariam a ser construídas em meados de 1973, a lógica do sistema impunha que as vedações e a “picada” deveriam estar concluídas antes do início daquela construção, pelo que, no mais tardar, os trabalhos deveriam ser iniciados em princípios de 1973, embora o estudo aconselhasse, como mais adequada e favorável, a época seca (Abril-Outubro) de 1972. Salienta-se, ainda, que a implantação das redes electrificadas e sensorizadas tinha méritos por si própria, independentemente das LTE, já que constituiriam um poderoso obstáculo, que facilitaria a acção destinada a fazer face à hipótese que era considerada mais perigosa (envolvimento, por sul, da região Tete-Cabora-Bassa).
A convicção sobre o mérito intrínseco da medida, sobre a qual existia grande experiência internacional, consolidou-se durante alguns dos contactos que tive com peritos internacionais, já referidos. Lembro-me de um deles ter comentado que a táctica a adoptar em Cabo Delgado, desde o início da guerra, deveria ter assentado na construção de uma rede electrificada e sensorizada entre a “picada” Pundanhar-Negomano (?) e o rio Rovuma e duplicada por uma outra a uma distância, para o interior, correspondente ao percurso admitido para uma coluna de reabastecimentos do adversário, durante uma noite. (Creio que esta opinião se baseava em experiencias, de contra-infiltração, colhidas na Argélia). Este tema mereceu sempre a atenção do comandante-chefe, que pediu ao TCor Eng Vaz Pinto (oficial que muito apreciava e havia sido Secretário Regional em Moçambique) o estudo dos sensores que considerasse mais adequados para o fim em vista. Lembro-me de na última vez que acompanhei o General K. de Arriaga numa missão de serviço em Lisboa (Março de 1972?) ter assistido, nos terrenos da então EMEL, em Paço de Arcos, a uma discreta demonstração, dirigida por aquele oficial, de uma rede electrificada e com vários tipos de sensores.
O plano tinha implicações no futuro do CODCB e do dispositivo do Sector F (ZOT). Em teoria, o CODCB seria extinto, logo que concluída a construção da barragem. Mas passava a considerar-se a hipótese da sua manutenção, embora com uma nova missão – a da segurança da LTE e das instalações eléctricas – e com uma nova zona de acção, a qual seria orientada pelo eixo Songo-Changara. Além disso, o CODCB cederia á ZOT o BCaç da Chipera e absorveria um outro BCaç, que se previa fosse instalado em Changara (o que veio a acontecer, embora por outros motivos).
c. Mas o plano comportava ambiguidades e contradições que o bloqueavam. Referirei as principais.
Havia, em primeiro lugar, o problema do interlocutor, isto é, da entidade a quem deveria ser apresentado o plano. É evidente que a questão da protecção da LTE não respeitava às Forças Armadas, mas ao dono da obra ou da futura exploração. Envolveria encargos financeiros e meios materiais e humanos vultuosos, que deveriam ser atempadamente contemplados e não cabiam às Forças Armadas: ao Comando-Chefe competiria apenas dar parecer sobre qualquer solução que fosse considerada (em virtude das suas potenciais consequências na actividade operacional) e, quando muito, prestar apoio técnico na busca da melhor solução. Mas sabia-se que, no nível de decisão sobre o conjunto do empreendimento, ninguém tinha pensado ou manifestado preocupação com o problema. Apenas o comandante-chefe o considerou atempadamente. Mas, concluído o estudo duma possível solução, a quem apresentá-lo? Ao MDN, para o submeter ao Governo? Ao GPZ, relativamente ao qual não havia um canal institucional? Ao Governador-Geral, que não tinha responsabilidades directas no empreendimento? A solução mais curial seria a de suscitar-se o assunto num Conselho de Defesa e daqui desencadear o processo, fazendo-o seguir pelos canais adequados. Mas, por um lado, anteviam-se percursos morosos, sujeitos a consultas e especulações e a manobras dilatórias e diluidoras de responsabilidades; e, por outro lado, dado que não eram as melhores as relações com o governador-geral, o comandante-chefe não mostrava entusiasmo por tal solução.
Em segundo lugar, o plano continha, implícita, a ideia de que, por meados de 1973 ou depois, a FRELIMO poderia estar a operar na parte sul do “gargalo” de Tete. Ora o General K. de Arriaga era um chefe militar, mas também um político. Como estratega militar, pensava, naturalmente, em possibilidades e vulnerabilidades das nossas forças e do adversário, em hipóteses mais prováveis e hipóteses mais perigosas, em prazos, etc., etc. (E admitir, em princípios de 1971, quando o adversário operava, de forma pouco intensa, apenas em áreas fronteiriças do distrito, que em fins de 1973 a situação poderia ser substancialmente diferente, representava, indiscutivelmente, uma manifestação de grande frieza, de rigor intelectual e de elevada prudência). Mas a política prefere cenários mais cor-de-rosa, pelo que não duvido de que tinha consciência de que tomar a iniciativa de apresentar um tal plano seria demolidor em termos políticos e mesmo profissionais.. Além disso, o general terminava a sua comissão de serviço normal durante o 1º semestre de 1972. Embora para mim fosse perceptível que estaria disponível para a prorrogar até à conclusão do empreendimento, tal a forma como vivia o problema da sua segurança, o que o realizaria plenamente como chefe militar, é evidente que tal hipótese dependeria de vontades e de condições que não controlava. Admito, numa opinião meramente pessoal, que o general se interrogasse sobre a utilidade de, em 1971, se empenhar pessoalmente num problema controverso, que provavelmente seria outro general a ter de enfrentar ou não em 1973.
Finalmente, sendo o troço Songo-Changara, da LTE, aquele que era considerado, potencialmente, mais crítico, por que não propor que a construção da LTE fosse iniciada de sul para norte, a partir da RAS, de forma a ganhar-se mais tempo para contrariar eficazmente a ameaça considerada mais perigosa, no caso de a mesma se concretizar, como veio a acontecer ? Acresce que a conclusão da barragem arrastava o enchimento da albufeira e o quadro securitário alterava-se significativamente.
d. Em consequência destas circunstâncias, entre outras menores, o problema da segurança da LTE acabou por não passar de um interessante exercício intelectual, de uma ideia-projecto do conhecimento apenas do General K. de Arriaga, de mim, do TCor Vaz Pinto e, provavelmente, do Cor Carreiras, de um plano esboçado num mero bloco de apontamentos e do qual, provavelmente, não ficou qualquer rasto...
Em princípios de 1973, se bem me recordo, iniciava-se a construção da LTE. E, naturalmente, iniciavam-se também as acções de sabotagem e as tentativas de destruição dos postes que iam sendo implantados.
5. Vigilância e controlo da albufeira
a. Já dissemos que a albufeira se tornaria no maior lago artificial de África, com cerca de 250 km de comprimento, uma largura média de 40 km e mínima de cerca de 20 km, num pequeno estrangulamento. Já salientámos que, se devidamente vigiada e desde que as áreas marginais, a norte, fossem devidamente patrulhadas, inclusive por meios aéreos, por forma a serem detectadas e neutralizadas quaisquer embarcações suspeitas, por relativamente sofisticadas que viessem a ser (o que dificilmente poderia vir a ser o caso), a albufeira seria um obstáculo intransponível, o que permitiria “secar”, por falta de correntes de abastecimentos, quaisquer infiltrações que, em toda aquela vasta região, se tivessem verificado para sul do Zambeze. Seguidamente, o combate à subversão, a norte, seria um processo que iria decorrendo, sem preocupações de maior. Mesmo assim, admitia-se que o processo sofresse apreciável aceleração, não pela acção militar, mas, por um lado, pelas consequências político-estratégicas da conclusão do empreendimento, relativamente à FRELIMO, aos países vizinhos e ao ambiente internacional; e, por outro lado, pela passagem a uma 2ª fase do Plano do Vale do Zambeze, com o acento tónico num forte desenvolvimento económico-social, em vários domínios, inclusive na região de influência da albufeira. Era esta a visão prevalecente no Comando- Chefe e que fazia com que a albufeira adquirisse, por assim dizer, um significado mítico: o que era preciso era controlar a situação até ao começo do enchimento daquela.... E daí a atenção prestada, com a adequada antecipação, à questão da vigilância e controlo da futura albufeira.
Acresce que a albufeira iria alterar profundamente a fisionomia de uma vasta área, com significativos reflexos militares, inclusive no dispositivo e articulação de Comandos. As populações ribeirinhas teriam de ser deslocadas para aldeamentos com melhores condições, previstos pelo GPZ, e, em especial a sul, vastas áreas seriam submersas e muitos dos parcos itinerários existentes desapareceriam, etc. . Esperava-se que as populações reordenadas nos novos aldeamentos, dotados de melhores equipamentos, desde que fossem devidamente enquadradas e doutrinadas constituiriam um tampão humano contra a subversão, à semelhança do que acontecera em Cabo Delgado.
b. Dedicadas à análise da problemática da vigilância e controlo da futura albufeira realizaram-se no QG/Comando-Chefe duas reuniões, se a memória me não falha, nas quais também participaram o Comando e EM Naval e o Comando e EM da Região Aérea.
A primeira reunião, realizada talvez em Abr ou Mai de 1972, destinou-se a uma descrição (feita pelo EM Naval) das características da albufeira e das áreas afectadas, dos aldeamentos e novos itinerários pevistos, etc. e a um levantamento dos principais problemas a analisar, sobre os quais haveria que tomar decisões ou definir linhas de orientação para estudo e decisão futura. Os principais tópicos da agenda respeitavam, essencialmente, ao tipo de Comando a criar e sua localização, à sua dependência, área de responsabilidade e missão e a uma primeira aproximação da tipologia e volume dos meios necessários.
Na exposição introdutória do comandante-chefe, foi perceptível o seu distanciamento em relação a vários aspectos em apreço, consciente de que caberiam a outros as decisões a tomar na altura oportuna. Mas deixou bem claro que entendia que o Comando a criar no devido tempo deveria ficar na dependência do Comando-Chefe e se deveria localizar em Chicoa; que as instalações a construir para o efeito deveriam inserir-se numa perspectiva a médio e longo prazo, no quadro do plano do Vale do Zambeze, e que tal facto poderia aconselhar que os vários Comandos apresentassem com a possível brevidade, aos respectivos EM centrais, as propostas adequadas; que se deveria ter presente que a albufeira seria, não apenas um obstáculo, para o adversário, mas também uma enorme autoestrada, que permitiria movimentações rápidas e seguras em benefício das nossas forças e autoridades, o que poderia vir a aconselhar alterações no sistema de apoio logístico das forças, a norte e sul da albufeira; e que o que urgia definir era a tipologia e o volume dos meios necessários à vigilância e controlo da albufeira, em especial dos que tivessem de ser adquiridos e fornecidos pela Metrópole, de forma a estarem disponíveis em 1974.
c. A questão do tipo de comando acabou por ser condicionada pela definição da sua área de responsabilidade. A princípio, foi defendida a ideia de que todo o território a sul da albufeira deveria ser incluído na área de responsabilidade do futuro Comando, o que aconselharia um comando conjunto. Mas acabou por prevalecer o conceito de que aquela área deveria manter-se à responsabilidade da ZOT, dado que o seu comandante era também o governador do distrito e que conviria manter as relações com a Rodésia nos canais civis tradicionais, além de que a intervenção das autoridades civis na região seria acrescida, com o progressivo desenvolvimento do Vale do Zambeze. E como foi considerado que os meios aéreos teriam também um importante papel a desempenhar na vigilância e controlo da albufeira, a par, naturalmente, dos meios navais, acabou por se consensualizar o conceito de que deveria ser constituído um comando aero-naval na Chicoa, sem prejuízo da manutenção do Cmd de BCaç, na dependência da ZOT, cujo dispositivo teria de ser reajustado.
Tornou-se também evidente que a área de responsabilidade deveria incluir, além da albufeira, uma faixa de território marginal, pelo menos a norte, com uma profundidade variável e, portanto, com um traçado a definir ulteriormente, de modo a permitir ao Comando da Albufeira a livre realização de acções de fiscalização nas áreas marginais e a rápida neutralização de actividades ou de meios suspeitos. As populações locais só poderiam utilizar as tradicionais almadias, para actividades piscícolas ou deslocamentos junto às margens.
Em relação com o tipo de Comando a criar foi dado relevo ao papel que deveria ser assumido, com oportunidade, pelas autoridades civis. Foi chamada a atenção para os seguintes pontos, a tratar oportunamente em Conselho de Defesa:
(1) Rectificação do traçado e alcatroamento do troço de estrada Estima-Chicoa.
(2) Melhoria do aeródromo, na Chicoa, que servisse o previsível aumento do tráfego civil e as necessidades de um aeródromo de manobra militar (AM), capaz de permitir a operação de aviões Fiat.
(3) Substituição do batelão existente por um sistema mais moderno, para assegurar a ligação entre as duas margens da albufeira (Chicoa-região de Chipera).
(4) Planeamento de instalações portuárias adequadas e sua programação, a qual, numa 1ª fase, devia contemplar as necessidades dos meios da Armada, que vierem a ser considerados, incluindo as de natureza logística, com especial atenção ao armazenamento de combustíveis.
d. A 2ª reunião realizou-se uns meses mais tarde e foi praticamente dedicada à definição dos meios.
Quanto à Força Aérea, verificou-se que os novos meios com que estava a ser dotada (helis Puma e aviões ligeiros Aviocar) eram adequados às missões previstas. Considerava-se, porém, conveniente dispor-se da capacidade de detecção de movimentos suspeitos, na albufeira, durante a noite. Ora, creio que através de diligências do comandante-chefe, a Região Aérea de Moçambique (RA Moç) tinha sido dotada com um moderno equipamento de detecção, a partir de radiações de infravermelhos. Lembro-me de, com o general comandante-chefe, ter participado numa demonstração nocturna no planalto de Mueda. Eram surpreendentes os indícios de uma enorme actividade humana e que escapavam à observação diurna, em virtude da densa cobertura florestal. Esperava-se que com este novo equipamento, instalado num DC-3, fosse progressivamente possível delimitar, com mais precisão, as bases da FRELIMO. Recomendava-se, pois, idêntico equipamento para a vigilância da albufeira. Diga-se de passagem, que a célula que foi criada na RA Moç permitiu o treino e especialização de pessoal que, mais tarde, esteve na base da criação, na FAP, de uma mais desenvolvida unidade de detecção, que veio a prestar relevantes serviços no mapeamento de recursos piscícolas, em especial nos Açores, em trabalhos de fotogrametria, em reconhecimentos fito-sanitários, etc..
Quanto à Marinha, foi estabelecido que deveriam ser considerados dois tipos de meios navais: para operarem nas faixas marginais ou em toda a extensão da albufeira. O EM do Comando Naval apresentou, por assim dizer, um catálogo dos tipos de meios que poderiam ser analisados, e que iam desde os conhecidos “Zebro” a lanchas de fiscalização, passando por “lanchas voadoras”, “overcrafts”, “hydrofoils”, etc. Visto que os meios teriam de ser fornecidos pelo EM da Armada, foi entendido que este era a entidade mais qualificada para estudar e decidir sobre a matéria. Foi ainda referida a conveniência de se dispor de 3 Destacamentos de Fuzileiros Especiais, um dos quais a sediar em Chicoa, como força de reserva do Comando. Em face das necessidades no Lago Niassa (e mesmo em Cabo Delgado), o Comando-Chefe não dispunha daqueles meios. Mas, por um lado, entendia-se que a reserva de intervenção poderia ser satisfeita com outras forças especiais, de preferência paraquedistas, a atribuir pelo comandante-chefe; por outro lado, talvez com o acicate da existência de forças especiais, de “comandos” e “pára-quedistas”, recrutadas e formadas localmente, o Comando Naval começava a acalentar a ideia de criar um Centro de Formação de Fuzileiros.
6. Consideraçôes finais
a. Decorreram 40 anos sobre os factos relatados. O tempo obnubila acontecimentos, datas, nomes cronologias e outros dados. Mas também opera uma filtragem que facilita a distinção entre o importante e o secundário, esbate as emoções com que certas situações foram vividas contribuindo para um relato mais frio e objectivo e proporciona um distanciamento que possibilita um melhor enquadramento global. Em trabalhos de história militar, termina-se, em regra, com uma análise crítica, através da qual se retirem ensinamentos. Mas tal não é a finalidade deste artigo, Como referi no seu início, pretendi sobretudo dar um testemunho, circunscrito essencialmente à problemática de Cabora-Bassa, sobre a forma como, ao nível do comandante-chefe e à luz das informações existentes e do ambiente geral então vivido, foram encarados e avaliados acontecimentos e situações, sobre os racionais subjacentes a importantes decisões (ou indecisões) ou que fundamentavam certas expectativas, sobre dúvidas e incertezas sob as quais houve que agir (o “nevoeiro” de que fala Clausewitz), sobre objectivos que se julga terem sido atingidos ou que não foram alcançados, sobre dificuldades que se revelaram insuperáveis, sobre erros e omissões.
b. Pretendo, ainda, que este artigo constitua como que uma pequena homenagem: ao Engenheiro Brás de Oliveira, que creio ainda vivo, que foi o português de lei que, com uma energia férrea e invulgares capacidade técnica, de decisão e de liderança, dirigiu a obra no terreno e que pode ser considerado o último grande construtor do Império; ao General Kaúlza de Arriaga que, como comandante-chefe, foi o grande responsável pela segurança do empreendimento, a qual foi garantida sem que a obra sofresse qualquer atraso imputável a acção do adversário, e que superou incompreensões por vezes graves e soube colmatar os efeitos negativos da irresponsabilidade ou da indiferença de altos escalões políticos e político-militares da época; aos então coronéis Rodrigo da Silveira e Duarte Silva, que foram os comandantes do Comando Operacional de Defesa de Cabora-Bassa (CODCB), no período mais crítico da construção da obra, a que este artigo se reporta; e a todos os oficiais, sargentos e praças, ao serviço do Exército e da Força Aérea, que, com sentido do dever e espírito de missão, sacrificaram a vida ou deram o melhor do seu esforço para que Cabora-Bassa seja, hoje, um monumento imperecível do património que espalhámos pelo Mundo e promessa de progresso para todos os moçambicanos.
N. B. – Sem observância do A. O., por imposição do autor.
* Sócio Efetivo da Revista Militar.
Nasceu em Mateus, Vila Real, em 11 de Março de 1932, onde fez o curso de liceu que terminou em 1949, com 18 valores.
Cursou Artilharia, na Escola do Exército (1949/1953). Depois fez outros cursos: Geral e Complementar de Estado-Maior, do Instituto de Estudos Militares (IAEM); Emprego de Armas Especiais, na Escola do Exército dos Estados Unidos da América, em Oberamergau e Superior de Comando e Direção, do IAEM.
Frequentou o curso de licenciatura em Ciências Físico-Químicas da Faculdade de Ciências de Lisboa.
Atualmente, é general do Exército na situação de reforma.
Professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (desde 1987) e membro do Conselho