Na primeira semana de Setembro teve lugar a Conferência “Portugal, País Produtor de Segurança”, num quadro que se designou de grande debate nacional, com vista à revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN); lamentavelmente, face ao tempo sempre escasso, o grande debate reduziu-se a quatro questões, com as respetivas respostas dos Conferencistas e a uma intervenção curta do Senhor Ministro da Defesa Nacional, no final.
Considero de salientar, de forma breve, as conclusões apresentadas pelo General Loureiro dos Santos, moderador da referida conferência - a necessidade de preservar o saber militar e o saber fazer, para além de que, na atual conjuntura estratégica, o emprego de forças militares no quadro da política externa que, parafraseando Clausewitz, passou a ser a continuação da política por outros meios.
Desta conclusão, fica implícito que se o país quiser continuar a ser relevante, de acordo com a sua dimensão estratégica, sendo co-autor e co-responsável das decisões que interessam à preservação da paz e à gestão internacional das crises que a podem pôr em causa, as nossas Forças Armadas têm de continuar a ter a capacidade para atuar nas missões que, legitimamente, vierem a ser conduzidas pelas organizações e alianças a que pertencemos e que se assumem hoje como referências da garantia da estabilidade internacional - a ONU, a OTAN, a UE e, eventualmente, a OSCE.
Foi, aliás, o reconhecimento da importância estratégica desta participação que determinou o nível de ambição nacional, no domínio de emprego de Forças Nacionais Destacadas (FND), constante do Conceito Estratégico Militar (CEM) em vigor e que tem permitido o emprego de forças terrestres em três TO distintos, de nível batalhão ou, em alternativa, o empenhamento prolongado de uma brigada, garantindo o seu reforço ou a sua substituição em teatro.
O Senhor Ministro da Defesa tem referido que aguarda a revisão do CEDN para decidir um conjunto de acções subsequentes; é importante que assim aconteça e que tenha esse aspecto em consideração, designadamente nos desenvolvimentos da Diretiva que recentemente enviou às Forças Armadas e sobre a qual me referi na Revista Militar anterior. Contudo, há razões de preocupação do Estado, relativamente às Forças Armadas nacionais, que são estruturais, permanentes e inerentes à sua condição de actor internacional, livre, soberano e parceiro nos grandes acontecimentos da segurança e da paz e que devem merecer, em continuidade, uma acção consequente.
Assim, importa recordar que as Forças Armadas constituem um dos atributos essenciais do Estado, o “jus ad bellum”, a par do “jus legationis” e do “jus tractum” (contribuindo para evitar a sua condição de exíguo), tornam evidente a expressão visível da vontade de defesa e a disponibilidade para defender o interesse nacional, pelo emprego da coacção militar (o que implica serem credíveis, mas isso favorece igualmente a dissuasão), evitam os vazios estratégicos e as situações de facto consumado (o que associado aos aspectos anteriores, tem em vista obrigar a caracterizar a agressão e torná-la evidente em termos do Direito Internacional e também, a inscrição na Constituição da República, do dever de passar à resistência, em caso de ocupação estrangeira, pretende demonstrar que essa situação será tudo menos pacífica) e, ainda em termos internacionais, constituiem-se como instrumento credível para apoio à Política Externa (ser co-autor e co-responsável das decisões assumidas e garantir liberdade de acção política ao Estado).
Em termos internos, a sua correcta organização, motivação, prestígio e inserção na sociedade, fazem dela a única instituição com a disponibilidade e auto sustentação para funcionar, em situações limite, de risco ou de grande exigência, em permanência e por tempo indeterminado; estão especialmente vocacionadas para a vigilância e protecção da estabilidade, constituindo-se como instrumento privilegiado para a gestão de crises e para a proteção e neutralização de situações de perturbação do “sistema” e isso, porque se rege por um quadro de valores, em que predominam a disponibilidade, a prática do segredo, a isenção, a determinação, a legitimidade da gestão da violência, o espírito de sacrifício, perante situações extremas de risco de vida, o sentimento de reserva moral e o patriotismo.
Voltando às preocupações levantadas pela Conferência, no domínio da "produção de segurança" e o seu significado em termos internacionais, decorrente da capacidade do Ator ser ou não, um interveniente credível e as consequências desse reconhecimento, em termos de afirmação nacional, no seio das Organizações e Alianças a que pertencemos, o balanço aponta para que, até hoje, temos estado à altura desse desafio.
Comprovam-no o prestígio e o reconhecimento internacional, trazido ao País, por força do desempenho das nossas FND no Afeganistão, na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo, no Líbano, no combate à pirataria, e isto para referir apenas as mais recentes; será, assim, importante que as tão faladas reformas não retirem, às Forças Armadas, as capacidades para continuarem a fazê-lo.
Estamos a lidar com o emprego das Forças Armadas no domínio da Política Externa, podendo, inclusive, ampliar a conclusão da conferência de “emprego de Forças Armadas” para “participação nas Operações de Apoio à Paz, como continuação da política, por outros meios”; a experiência colhida no emprego das FND, já referido, deu excelentes indicações, a ter em conta na futura orientação para a estratégia geral militar, relativamente ao tipo de forças militares necessárias, ao ciclo operacional do seu empenhamento, ao seu carácter expedicionário e ao treino e tipos de armamento e equipamento de que devem dispor. Igualmente devem ser garantidas as capacidades militares que permitam acorrer em auxílio e protecção de nacionais, em áreas de crise e, não menos importante, a continuação da cooperação técnico-militar.
Nessa participação nas Operações de Apoio à Paz, são previsíveis os níveis de empenhamento operacional e o que isso representa nas capacidades militares necessárias, as quais vão desde as operações humanitárias (melhorar ou conter uma determinada situação), às operações de combate convencional, “o Peace Enforcement” (compelir comportamentos, desorganizar estruturas e/ou capacidades, impor uma situação), prevalecendo ainda o princípio de que para se ser parceiro é necessário ter capacidades para o ser.
Qualquer processo de reforma estrutural das forças armadas, quer em termos de efectivos, quer de estruturas, quer ainda de capacidades, tem de assegurar a sua possibilidade de emprego com oportunidade, adequação, eficiência e eficácia; garantir a segurança das tropas empregues, conferindo-lhes o treino que lhes é devido e o armamento e equipamento necessários e adequados; tornar evidente que o emprego da força militar, face à missão atribuída, tem condições de êxito; permitir a actuação integrada com os aliados ou amigos, nas Organizações e Alianças em que nos inserimos, ou nas formações multinacionais que decidimos integrar; por último, proporcionar a capacidade logística para participar na projecção da força e para garantir a sua sustentação no TO, em pessoal e material (reservas de guerra).
No que toca à intervenção do Senhor Ministro da Defesa Nacional e à questão que deixou à audiência, - “se estamos preparados para trabalhar de uma forma diferente do que se fez historicamente com a Espanha… … um desenvolvimento estratégico mais forte, inclusivé de edificação de capacidades militares”, - a resposta óbvia é a de que a Espanha está disponível e, certamente mais do que isso, interessada; desde o século XIV, pelo menos, que do ponto de vista geopolítico, lamenta que não seja o único interlocutor ibérico.
Face à dimensão estratégica relativa entre os dois países, Portugal não pode ter dúvidas relativamente ao que pode ser tratado em termos bilaterais e o que só deve ser feito num contexto multilateral e, quando está em causa a defesa militar, as inerentes capacidades e o emprego do instrumento militar, aspectos mais sensíveis da soberania do Estado, essas relações devem ser conduzidas, como tem acontecido, no seio da OTAN, ou eventualmente, na UE/PESD; esta postura e visão estratégica, que tem tido o empenho de militares e diplomatas, não impedem uma cooperação, mutuamente, vantajosa e recíproca, entre as forças armadas dos dois países
É no reconhecimento desta assimetria de capacidades que, em termos de planeamento de defesa, se tem de perceber a importância do equilíbrio estratégico entre atores, evitando vazios e vulnerabilidades perigosas e tornando clara a definição onde é indispensável fazer o máximo, no âmbito da defesa dos interesses nacionais vitais ou muito importantes e onde é admissível aceitar uma repartição do trabalho estratégico, porque isso nos potencia capacidades para o empenhamento anterior.
Em termos do poder nacional, o país não pode alienar quaisquer espaços de afirmação, no quadro da Política Externa e de Defesa dos seus interesses neste domínio, incluindo a visibilidade militar em formações multinacionais, pelo que isso representa de esbatimento da perceção da diferenciação geopolítica peninsular.
Sobre esta matéria, no sentido de precaver deslumbramentos, espontaneidades e opções inconsequentes, é oportuno recordar o pragmatismo e realismo anglo-saxónicos, de que o “Reino Unido mais do que amigos, tem interesses nacionais e que são estes que determinam a sua estratégia nacional” e o princípio estratégico, de que o conceito de ameaça envolve dois fatores: as capacidades e a intenção. As primeiras determinam potencialidades e vulnerabilidades e levam tempo a alterarem-se, a segunda, pode mudar de um momento para outro.
O MDN tem continuado a fazer referência aos conceitos apresentados a nível da OTAN de “smart defense” e “pooling and sharing”, sem se entender até agora o que é que isso representa para as nossas Forças Armadas, uma vez que aquilo a que se assiste é a uma política de redução de efectivos, de constrangimentos organizacionais e orçamentais e à dilação, redução ou cancelamento de programas de reequipamento estruturantes; mais parece continuar a existir a visão irrealista de que o “sharing”, será a solução para problemas e insuficiências que só a nós compete resolver e que, paralelamente, estamos dispensados de uma qualquer contribuição para o “pooling”.
O reconhecimento de que a nova estratégia americana se afasta da Europa e o que isso representa de responsabilidades acrescidas para os parceiros europeus, em termos de capacidades militares, no caso nacional, parece produzir efeitos contrários no planeamento estratégico de defesa.
É também, no mínimo, surpreendente, que uma permanente intenção política de redução de capacidades militares, humanas e materiais, não seja acompanhada pela regulamentação da Lei da Mobilização e da Requisição, elaborada no tempo em que ainda existia a conscrição e que não tem merecido qualquer atenção ou preocupação, por parte do MDN.
Parece também que se ignora que a “smart defense”, resulta de uma associação inteligente, entre “hard power” e “ soft power”, combinando os recursos da diplomacia, da negociação e da persuasão com uma estratégia eficaz de emprego do instrumento militar, com vista à credibilidade daqueles recursos.
Esta sim é uma fórmula que deveria ser considerada e estimulada por Portugal, no âmbito da CPLP, um espaço que representa para nós uma diferenciação estratégica, dentro da OTAN e da UE, onde nos inserimos. Ganhar uma efetiva capacidade para a prevenção e gestão de crises, semelhante à que se vive na Guiné Bissau, seria uma maneira de credibilizar e potenciar a acção política da CPLP, quer junto das NU, quer ainda junto de outros países não lusófonos que, já hoje, demonstram ter atracção pelo desempenho e potencialidades da Comunidade.
Termino, com uma reflexão sobre a importância da capacidade militar, em termos internos e externos, na relação Segurança versus Desenvolvimento, de Joseph S. Nye, antigo Secretário Adjunto para a Segurança Internacional dos EUA: ”Um estado moderno, bem organizado, define-se em termos do monopólio do uso legítimo da força e isso permite que os mercados domésticos funcionem; nas condições caóticas ou de grande incerteza os mercados colapsam. Metaforicamente, a capacidade militar providencia um grau de estabilidade e segurança, quer interna quer externa, que está para a ‘ordem’, como o oxigénio está para a respiração: mal se nota até que começa a ra-rear - assim que isso acontece, a sua ausência, sobrepõe-se a tudo o resto”.
* Presidente da Direção da Revista Militar.