11 de junho 2012
Conferência
“Os Combates por Portugal - passado recente e futuro”
I
Objetivos
A Conferência teve por objectivo enunciar alguns dos desafios que o Pais poderá vir a enfrentar no futuro, caracterizar os combates previsíveis para os ultrapassar e confrontar estas situações possíveis com a aparente tendência evolutiva dos conceitos de segurança e defesa nas sociedades de risco da actualidade. Em particular, procurou-se colocar ênfase na possibilidade lógica de ocorrência de situações de última instância e reforçar o papel da força institucionalizada na prevenção dos conflitos potencialmente violentos. Pretendeu-se debater a evidência da necessidade de uma Nação se defender contra ataques explícitos ou subtis, que ponham em causa a sua forma de viver, os seus valores, os seus objectivos. Partiu-se do princípio óbvio de que todos os portugueses são combatentes, o que significa que esse combate tem várias vertentes e não apenas a da aplicação institucional da força, como instrumento de última razão.
Objectivo do Tema 1
Analisar os princípios em que se deverá basear a relação entre entidades civis e militares, aos diferentes níveis, em particular numa situação de crise ou guerra. Pretende-se estudar este problema com base em experiências históricas concretas, analisando-se a relação entre a estrutura militar e a administração dos territórios, assim como as relações entre as forças no terreno e as populações locais, nos mais diversos domínios. Importa sublinhar não só os aspectos legais ou doutrinais, mas também a experiência espontânea que ajudou a construir uma doutrina.
Objectivo do Tema 2
Caracterizar o estado do debate actual sobre a natureza dos pilares fundamentais das sociedades actuais, sobre a natureza dos riscos e das forças que os pretendem transfigurar, e sobre o papel da força institucional neste contexto. Pretende-se debater o perfil ideal do combatente e confrontá-lo com a expresso das situações de ambiguidade que se desenham nas sociedades de risco.
Objectivo do Tema 3
Situar o combatente actual nas operações militares do tempo presente e nas relações com as sociedades onde é chamado a desempenhar o seu papel, assim como o desenho de uma perspectiva nas situações previsíveis do futuro próximo, em termos de atitude e de comportamento do elemento militar.
II
Programa
14H00 – Sessão de Abertura
– Professor Engenheiro Eduardo Marçal Grilo (Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian)
– Tenente-general Manuel Fernando Vizela Cardoso (Comissão Executiva do XIX Encontro Nacional de Combatentes)
– Tenente-general Frutuoso Pires Mateus (Presidente da Direcção da Associação de Auditores dos Cursos de Defesa)
– General José Luís Pinto Ramalho (Presidente da Direcção da Revista Militar)
14H40 – Painel (Coordenador: Almirante Nuno Vieira Matias)
A Caracterização dos Combates
Tema 1 - General Gabriel Augusto do Espirito Santo
As relações civis-militares
Tema 2 - Dr. Nuno Rogeiro
Os valores do combatente num quadro de pós-modernidade - as dissonâncias sanáveis
Tema 3 - Tenente-coronel Luís Fernando Machado Barroso
O combatente do presente e do futuro
– Debate
17H00 – Considerações finais
Tenente-general António de Jesus Bispo
Intervenções
Professor Engenheiro Eduardo Marçal Grilo
(Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian)
- Sr. General Vizela Cardoso, Sr. General Pinto Ramalho, Sr. General Pires Mateus, Senhores Generais, Senhores Oficiais, Sr. Professor Adriano Moreira, - nosso muito querido amigo - Senhores convidados, minhas senhoras e meus senhores
Eu queria, em nome do Conselho de Administração e no meu próprio nome, dar as boas-vindas a todos os participantes nesta conferência e dizer da grande honra que é para nós acolher, na Fundação, esta iniciativa dedicada às Forças Armadas e ao papel passado, presente e futuro. Gostava também de dizer, a título pessoal, da enorme importância que atribuo ao papel das Forças Armadas e ao seu contributo para a continuação de Portugal, como um país integrado num espaço alargado, mas que mantém a sua independência e a sua soberania em áreas sensíveis, como a defesa ou a politica externa.
O General Loureiro dos Santos, há relativamente poucos dias, dizia na apresentação do seu livro “Forças Armadas em Portugal” que um "País não pode esperar que outros o protejam e defendam, se ele próprio não tiver a vontade e os meios para se defender por si próprio".
Eu fui reler Maquiavel. Maquiavel dizia, há mais de 500 anos, uma frase e eu passo a citar: "Lembrai! Uma pessoa não pode estar sempre dependente da espada do outro, deve estar preparada para lutar pela própria causa e para estar preparada para tal tem de dispor de meios". Isto foi escrito, há mais de 500 anos, e tem uma enorme atualidade. Hoje, ninguém protege o seu semelhante se não defender os seus próprios interesses. Era verdade, há 500 anos, como o é hoje. Daí que eu seja um grande apologista e defensor de umas Forças Armadas que tenham a capacidade de intervenção que devem ter nos momentos mais difíceis e, sobretudo, num País em que os portugueses começam a conhecer mal as suas Forças Armadas.
O fim do serviço militar obrigatório, tive ocasião de dizer isso, há relativamente poucos dias, numa cerimónia na Academia Militar, afastou os portugueses das Forças Armadas. As Forças Armadas são hoje uma entidade um pouco mítica para uma grande parte da população e este é um aspeto que eu penso e que o próprio General Loureiro dos Santos focou na sua intervenção. É necessário que nós façamos uma reflexão profunda sobre isto, sobre o modo como somos capazes de reaproximar as Forças Armadas dos cidadãos, sobretudo dos mais jovens.
Houve uma grande mudança nas ameaças. As ameaças não são aquelas que tivemos, durante a guerra, a seguir à guerra, sobretudo na 2ª Guerra e o período da détente e da guerra fria. Hoje, as ameaças são muito diferentes daquelas que tivemos, mas existe um conjunto vasto de ameaças em que as Forças Armadas têm um papel essencial e precisamos talvez, de um serviço cívico, em que os cidadãos, sobretudo os jovens, possam passar, nem que seja meteoricamente. Mas, passar pelas Forças Armadas é muito interessante porque eu que sou um observador das Forças Armadas e tive o privilégio de trabalhar numa delas durante alguns anos. Percebi que as Forças Armadas têm uma forma, eu que sou um “civilório” como se diria, mas sempre percebi que as Forças Armadas têm uma lógica de funcionamento e uma lógica de organização que é um exemplo das instituições portuguesas.
Eu julgo que essa partilha, do que são os valores das instituição militar e da atitude dos militares, devia ser mais partilhada com a sociedade civil, e portanto aquilo que, há umas décadas atrás, não muitas, era um pouco o isolamento das Forças Armadas, hoje, na minha modesta opinião, deveríamos caminhar para uma maior interação entre as Forças Armadas e a sociedade civil, a todos os níveis: a nível das escolas, quer as do ensino não superior, quer as escolas de ensino superior designadamente aquelas onde se formam os oficiais, mas também ao nível daquilo que é a capacidade de reflexão que as Forças Armadas têm e a capacidade de racionalização que as Forças Armadas têm.
Poucas instituições em Portugal têm a capacidade para racionalizar os nossos problemas como são as Forças Armadas, nos seus diversos níveis e nas suas várias áreas de intervenção e deste serviço cívico, que eu me permito propor, os rapazes e as raparigas deveriam ter este contacto com as Forças Armadas e deveriam perceber que há alguns valores que são cultivados e que fazem parte das Forças Armadas, que eram muito importantes na sua formação como cidadãos de parte inteira. Não se trata de militarizar o país, trata-se de trazer para a sociedade civil muitos dos valores que os militares defendem e praticam.
Era esta reflexão que gostava de vos deixar a título meramente pessoal e isto não tem nenhuma conotação com a Fundação Gulbenkian, não estou autorizado a dizer isto pelo Conselho como podem imaginar, não é propriamente um tema que nós debatamos no Conselho, mas a título pessoal, gostava muito de dizer isto.
Desejo que este Seminário tenha o sucesso que os seus organizadores esperam e que colocam e ficamos todos a aguardar as conclusões. Espero que se sintam bem na Fundação durante a tarde de hoje.
Tenente-general Manuel Fernando Vizela Cardoso
(Comissão Executiva do XIX Encontro Nacional de Combatentes)
- Excelentíssimos membros da mesa de honra desta Sessão (Senhor Prof Dr Eduardo Marçal Grilo, Senhor General José Luís Pinto Ramalho, Senhor Ten General Frutuoso Pires Mateus);
- Excelentíssimos Senhores Moderador do painel que se irá seguir (Senhor Almirante Nuno Vieira Matias) e Conferencistas que irão expor cada um dos 3 temas que constituem o mesmo painel: Senhor General Gabriel Augusto do Espirito Santo, Senhor Dr Nuno Rogeiro e Senhor Ten coronel Luís Fernando Machado Barroso.
- Excelentíssimos convidados
Permitam-me que comece por agradecer ao senhor Prof Marçal Grilo - Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian - que generosamente nos permitiu levar a efeito esta iniciativa e nos distingue com a sua presença nesta sessão de abertura. E justo será evocar também a figura do fundador desta insigne instituição, o Senhor Calouste Gulbenkian, a quem o País que o acolheu em período mundialmente conturbado, deve o extraordinário património cultural e artístico de que todos podemos desfrutar.
Os agradecimentos vão igualmente para os restantes membros da mesa, pela honra que nos concedem com a sua presença e que testemunham a colaboração, já habitual, entre as instituições que representam - Revista Militar e Associação de Auditores do Curso de Defesa Nacional - e a organização destas conferências, que desejamos possa manter-se.
As personalidades que constituem o painel intitulado os “Novos Combates por Portugal” são sobejamente conhecidas para nos garantirem a elevação e o muito interesse com que os temas irão ser abordados e merecem o maior reconhecimento pelo esforço adicional as suas absorventes actividades, que esta participação lhes causou. As suas intervenções despertarão, seguramente, a inquietação necessária para provocar e promover o debate sobre matérias tao importantes e atuais para Portugal.
O Encontro Nacional de Combatentes, cuja comissão organizadora tutela esta conferência, tem como objectivos:
- Celebrar o Dia de Portugal;
- Homenagear os combatentes que tombaram ao serviço de Portugal, em qualquer época da sua história e em qualquer local.
Pretende-se com estas iniciativas, prestar justiça ao esforço dos portugueses que morreram nas muitas campanhas com que se construiu e consolidou o país que somos e, simultaneamente, fortalecer o espírito patriótico em especial da juventude e de todos os que se preocupam e lutam por um futuro melhor para Portugal.
A origem destes encontros, que vem sendo promovidos há quase 20 anos e levaram à construção do Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Belém, deveu-se ao facto de se constatar que, princípios e valores que são temas que integram a educação e a formação cívica de qualquer nação que queira manter-se e progredir, eram considerados sentimentos passadistas por sectores influentes da sociedade politica e/ou politizada.
O Dia de Portugal era celebrado à porta fechada e as Forças Armadas eram contempladas com a entrega de umas medalhas a uma restrita representação, perdida na imensidão de sábios, economistas, artistas, intelectuais e hábeis políticos, que se tem empenhado pelo progresso deste Portugal … cada vez mais empenhado.
Este era o triste retrato de um Portugal, “começado a fazer-se na escola de onde desapareceram o culto da pátria. Da bandeira e do hino nacional, escola onde se escamoteia e ate se deturpa uma parte importante da nossa história” como disse ontem o Professor Manuel Antunes na cerimónia junto ao Monumento aos Combatentes, em Belém.
Este esquecimento do esforço dos combatentes constituía um ultraje à sua memória que importava corrigir, sob pena de, perdendo as nossas raízes não termos futuro como Nação.
Nesse sentido, um grupo de portugueses, numa iniciativa da sociedade civil tem vindo a promover, complementarmente com o encontro de nacional de combatentes, a abordagem de temas onde sejam evidenciados motivos de que nos possamos orgulhar, (e não temos dificuldade em encontrá-los) ou outros cuja oportunidade e interesse aconselhem a tratar.
A atual situação do nosso país, sugeriu-nos uma reflexão partilhada sobre “Os combates por Portugal - passado recente e futuro“ que os distintos moderador e conferencistas irão, de seguida, passar a desenvolver, depois de eu deixar uma palavra de agradecimento justamente devido ao senhor Tenente-general António Jesus Bispo, ao Senhor Major-general José Ferreira Pinto e ao Senhor Coronel Rui Balacó, a quem se deve, uma vez mais toda a organização destas conferências.
A todos o muito obrigado pelo estímulo que a vossa presença nos confere para continuar.
General José Luís Pinto Ramalho
(Presidente da Direcção da Revista Militar)
Exmo. Sr. Prof. Doutor Marçal Grilo
Exmo. Sr. Ten. general Vizela Cardoso
Exmos. Senhores Moderador e Conferencistas
Exmos. Senhores Generais e Almirantes
Exmos. Senhores Oficiais
Minhas Senhoras e Meus Senhores
As minhas primeiras palavras são para saudar todos os Combatentes, assim como esta iniciativa e felicitar a escolha do tema desta Conferência, pela sua atualidade e pela necessidade de se abordar, com clareza e profundidade, os desafios que se nos colocam como Povo e como País.
Na qualidade de Presidente da Revista Militar manifesto também o nosso apoio a esta iniciativa, na linha da natureza editorial e Estatutos da nossa Revista que, ao longo da sua história, de 164 anos, sempre encarou os Combates por Portugal, como um tema de permanente atenção, estudo, memória, divulgação e, especialmente em momentos difíceis, de alerta e de motivação.
Este é o momento em que não podem ser esquecidos os combates do passado recente, na passagem dos cinquenta anos da Guerra em África e, dentro de dois anos, na comemoração do centenário da nossa participação na 1ª Guerra Mundial; mas é também o momento de se avaliarem os combates de hoje, quer os que se situam no âmbito da segurança cooperativa, da OTAN, da UE e da ONU, quer os que decorrem do Plano de Assistência Financeira ao País, no quadro económico, financeiro e do desenvolvimento, quer ainda aqueles que estão no domínio da ética e dos valores que nos enformam como nação soberana e independente de quase nove séculos.
Estes são combates de todos os portugueses, quer no apoio às nossas FND, quer na avaliação, escrutínio e adequação de todos os outros, em que civis e militares são parte indissociável da vontade de defesa, da afirmação da consciência e determinação nacionais, do Patriotismo e da nossa identidade nacional, de um país que quer afirmar todos os seus atributos de estado soberano e independente, no seio da Comunidade Internacional.
A importância acrescida dos instrumentos militares decorre da perceção estratégica de que têm de estar associados a uma inequívoca vontade de defesa e possuidores de credibilidade operacional, quer no seio das Organizações e Alianças a que pertencem, quer no contexto das coligações multinacionais em que, em termos políticos, se decide participar. Nessa perspetiva, constituem um fator de liberdade de acção do Estado, que lhe permite uma opção política de participação ou não em determinado acontecimento da segurança cooperativa e não a sua ausência inevitável, por manifesta incapacidade militar para o fazer.
É uma realidade dos nossos dias que as opiniões públicas são sensíveis e muito críticas aos gastos com a defesa, designadamente em situações de crise financeira como a atual, evidenciando uma aversão a empenhamentos militares prolongados e a sua não preparação psicológica para aceitarem baixas nacionais. Qualquer conflito ou operação humanitária está debaixo de uma observação mediática contínua, em tempo quase real, cuja mensagem passa nos telejornais diários, com uma perspetiva de que o que se dá a conhecer transmite toda a realidade do fenómeno violento, da crise ou da guerra.
Esta é uma questão extremamente sensível para as lideranças políticas, quando perdem de vista que os combates de hoje têm, para além da realidade conflitual, causas e objectivos, uma componente mediática e psicológica, em que as operações táticas são conduzidas com uma visão estratégica, propiciadoras da propaganda pelo “facto”, materializando ações contra as instituições sensíveis para a sociedade e para as opiniões públicas nacional e internacional, que procuram atingir e inibir os níveis estratégico e político de decisão.
A ameaça e as ações espetaculares, grandes destruições ou elevado número de baixas, são utilizadas como fator intimidatório, combinando a violência com os efeitos psicológicos, procurando influenciar as opiniões públicas, quanto à incapacidade do poder político para garantir a segurança ou resolver os acontecimentos em causa. A acção tornou-se global, os “media” dão-lhe essa dimensão, de carácter político e estratégico, deixando os TO de estar confinados geograficamente.
A realidade dos atuais conflitos obriga a que o treino dos quadros e tropas e a organização das unidades sejam conduzidos como se prospetiva combater, que sejam capazes de enfrentar a surpresa e a incerteza, sendo necessário habilitar as tropas e os comandantes, em particular dos baixos escalões, a lidar com a ambiguidade e a fomentar o espírito de iniciativa e de autonomia de decisão, no quadro do objetivo final das operações e das campanhas.
É indispensável continuar a estimular a competência e o profissionalismo, o rigor e os valores castrenses, de quadros e tropas, pois o adversário continuará, como sempre, a tirar partido e a capitalizar na nossa fragilidade humana e material e nos nossos erros, especialmente naqueles que possam gerar danos colaterais, potenciando a sua acção.
As Forças Armadas devem continuar a assumir uma presença efectiva, no quadro das suas missões constitucionais e na adequada prioridade de empenhamentos, junto da Sociedade em geral e das populações em particular, onde se constituam como seu valor estrutural e vejam reconhecido o seu carácter de instituição nacional.
Quanto ao futuro próximo, importa reconhecer que vivemos num mundo marcado pela incerteza e pela mudança acelerada, em que um arco de instabilidade se estende pelo Norte de África e se prolonga pelo Médio Oriente e pelo Sudoeste da Ásia e que convive com o crime internacional e com o terrorismo transnacional; paralelamente, assistimos à proliferação das tecnologias que permitem o acesso aos mísseis balísticos e às armas de destruição maciça, atitude do Irão e da Coreia do Norte e temos interrogações, quanto ao potencial comportamento futuro de grandes poderes, como a China e a Índia.
Manda a prudência que o treino, a organização militar e o reequipamento, sejam conduzidos para responder aos cenários conflituais mais prováveis, prevendo-se contudo, os mais perigosos, o conflito convencional simétrico entre unidades políticas.
Para um país com a dimensão estratégica nacional, capacidades militares que se eliminem, dificilmente serão reconstituídas e nunca o serão no curto prazo e com oportunidade, quer no domínio do material, quer no da preparação e aptidão dos recursos humanos, quer ainda no da própria doutrina de emprego, com implicações decisivas na defesa da soberania, em caso de necessidade.
Os trabalhos relativos à elaboração do futuro Conceito Estratégico de Segurança e Defesa Nacional são uma oportunidade excelente para clarificar as relações interministeriais, no domínio da segurança e defesa e estabelecer orientações objetivas para a Estratégia Militar e consequentes Missões para as Forças Armadas. Concretizado esse objetivo, ficará facilitada e tornada evidente, quer a perceção do papel da Instituição Militar, no Estado e na Sociedade, quer os recursos humanos, materiais e financeiros, necessários ao seu desempenho, seja em termos nacionais ou internacionais.
A presente Conferência, através do tratamento dos vários subtemas que irão ser aprofundados, constitui-se num importante momento de reflexão e clarificação de conceitos, que ajudam a reforçar a perceção da importância da Instituição Militar, como elemento estruturante do Estado, como fator de coesão nacional e instrumento indispensável de parceria estratégica, designadamente no quadro da segurança cooperativa e de aplicação do Poder, no contexto internacional, determinado pela atual conjuntura estratégica, quer na Paz quer na Guerra.
Tenente-general Frutuoso Pires Mateus
(Presidente da Direcção da Associação de Auditores dos Cursos de Defesa Nacional)
O Instituto da Defesa Nacional (IDN), no âmbito da sua Missão ministra vários cursos considerados de Formação e, de entre eles, sobressai o Curso de Defesa Nacional (CDN).
Com este curso, o IDN proporciona aos Cidadãos que o frequentam:
- um conhecimento aprofundado dos problemas de segurança e de defesa nacionais e internacionais;
- uma formação e uma cultura estratégica de segurança e de defesa que os habilitará com uma consciência cívica mais plena e real;
- uma consciencialização da sociedade civil para as questões da segurança e de defesa;
- um desenvolvimento das capacidades analíticas e críticas; e,
- apetência para o estudo e a investigação nos domínios da segurança e da defesa, bem como em domínios conexos.
Os Auditores dos Cursos de Defesa Nacional, terminado o Curso, podem incorporar-se, livremente, na Associação de Auditores dos Cursos de Defesa Nacional (AACDN).
Os Auditores, conscientes da sua responsabilidade, são Cidadãos, que tendo frequentado o Curso de Defesa Nacional, aprenderam, sentindo, que sem segurança o bem-estar e a liberdade não existirão. E, também, que em última instância, caberá aos SOLDADOS, aos MILITARES, cuidarem dessa segurança.
Nós, Auditores, reconhecemos que a temática da Segurança e Defesa, pelo seu carácter transversal na vida das sociedades do nosso tempo, tem cada vez mais de estar presente no quadro das preocupações de todos os Cidadãos. Por isso, nós entendemos que a nossa Associação, com as valências de que dispõe, concretizadas pelo conjunto de especialistas que foi incorporando, tem de sentir especiais responsabilidades na divulgação pública daquilo que é, realmente, a Defesa Nacional … colocando, para isso, todo o seu saber ao serviço de Portugal.
Os Auditores, visando o prestígio da Associação, têm sempre presente que é preciso manter o rumo que a criou …
- preservando e projectando os valores culturais que contribuam para o reforço da identidade nacional;
- participando, activamente, no estudo e na difusão de todas as acções que visem a Segurança e a Defesa de Portugal;
- cooperando, objectiva e eficazmente, com o Instituto da Defesa Nacional.
Ao abordar o tema …
Os Combates por Portugal - passado recente e futuro
poderemos perguntar …
Portugal terá futuro?
Por mais desanimados que muitos de nós nos encontremos, com a situação de austeridade em que o País vive, a verdade é que a vida continua.
Porque somos Portugueses e amamos a Terra onde nascemos desejamos honrar o legado dos nossos Pais.
Nós, na AACDN, desejamos, entendo-o, que os combates pelo futuro não poderão, não podem, esquecer uma aposta concreta no ensino e na educação real da população; incluindo na educação para a cidadania temas de segurança e de defesa, porquanto, nesta vertente é fundamental existir uma integração de valores nacionais e de desenvolvimento de uma consciência comunitária.
Para nós, na AACDN, a crise deverá ser enfrentada numa perspectiva de quem não está em declínio acentuado e à beira do abismo, mas que na verdade, tal como no passado, encontraremos uma trajectória ascendente. Intervenções imaginativas de construção de um novo futuro para o desenvolvimento, são necessárias, mantendo-nos ligados à Europa mas dando forte atenção à diáspora luso-afro-brasileira.
O combate, para a criação de áreas e lugares de trabalho, passa pela génese de oportunidades em todo o território nacional e não só no litoral, procurando actividades produtivas sérias e duradouras no tempo, que permitam a fixação das populações.
O combate para a afirmação e defesa dos interesses nacionais, na área internacional, obriga a marcar presença activa nas Organizações Internacionais das quais fazemos parte; aqui, é preciso centrar as nossas acções na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; pois, é cada vez mais importante (e fundamental) a defesa da cultura e da língua portuguesas, definidoras da identidade nacional e do modo de Nós, os Portugueses, estarmos no Mundo.
Portugal, um País que, exceptuando os sessenta anos do domínio filipino, conseguíu manter-se independente ao longo dos seus mais de oito séculos de História e que dispõe de um património humano e edificado espalhado por todo o Mundo, não merece que se coloque em dúvida o seu futuro.
PORTUGAL… SIM… TEM FUTURO!
Está na hora, este parece ser o tempo, de se voltarem a fazer ouvir o QUERER e a VONTADE NACIONAIS.
Nós, porque temos Fé cultivamos a Esperança e acreditamos no Futuro de Portugal.
Comunicações
Painel
A Caracterização dos Combates
Coordenador: Almirante Nuno Vieira Matias
Tema 1 - O combatente e as relações civis-militares numa sociedade em mudança
General Gabriel Augusto do Espírito Santo
I
Há cerca de 40 anos, Portugal desenvolvia operações militares visando proporcionar segurança a populações em territórios sob a sua administração. A nação portuguesa via-se envolvida numa Grande Estratégia, contrária aos ventos da história, para manter um império. O Estado despendia cerca de 15% do seu orçamento para conduzir essa estratégia e a sociedade vivia um conflito para que mobilizava anualmente a maioria da sua juventude masculina que atingia a idade adulta. Famílias e jovens viveram treze anos sob a expectativa dessa mobilização e a um certo fatalismo aceite para esse facto, na fase inicial do conflito, sucedeu-se uma revolta baseada em razões mais compreendidas que levou à rutura das relações civis-militares na sociedade, à queda do regime político e a um processo de descolonização que, tal como a guerra, não foi conduzida como se desejava mas como foi possível.
Se juntarmos o número de mobilizados em Portugal ao dos jovens mobilizados dos territórios em conflito, cerca de um milhão de portugueses foi combatente. Foi uma geração de portugueses que se aproxima do inverno da vida, comandada por uma geração de Quadros Permanentes das Forças Armadas que há anos abandonou o serviço ativo.
Com sentimentos diferentes sobre as razões porque combateram, ficou a uni-los a vivência de perigos em conjunto e terem reconhecido que no seu grupo ninguém seria deixado para trás. Por isso se reúnem com frequência para recordar.
Hoje recordamos também o combatente. Aqueles ou aquelas, mais recentemente, que não por sua vontade, mas porque voluntariamente escolheram a condição militar se veem envolvidos em situações de combate, não por ideologia ou crença, mas por sentimento de cidadania, no que isso significa nação, estado e partilha com os seus concidadãos.
E porque recordamos o combatente, propormo-nos nesta curta intervenção recordar, também, as relações da Nação e do Estado com o combatente e com a Instituição que o justifica, o forma e o enquadra: a Instituição Militar. Abordando um tema que hoje merece atenção reavivada nas sociedades
democráticas e abertas, que são as relações civis-militares nessas sociedades e que estão a viver um processo de mudança acelerado.
II
Entendemos por relações civis-militares numa sociedade democrática e aberta “o relacionamento, em tempo de paz, da sociedade como um todo (Estado, Instituições, sociedade civil, cidadãos) com a Instituição Militar (força militar e seu emprego, sua formação, organização e condição militar)”.
Na história desse relacionamento (passando pela evolução da sociedade, pela evolução do conceito de política, pelo desenvolvimento do conceito de cidadania e pela própria evolução do conceito de força armada e a sua institucionalização como força do Estado) podemos distinguir, na idade moderna, dois tempos.
O primeiro começa com o final das guerras napoleónicas na Europa e a Paz de Viena de 1815 e vai estender-se até ao momento em que às Forças Armadas foram cometidas “outras missões para além da guerra”. Foi um período longo em que dois conflitos globais e de guerra total ensinaram que a condução da guerra não é uma competência exclusivamente militar mas que deve ser orientada por Grandes Estratégias, em que a estratégia militar é uma das suas componentes. Foi um tempo em que a força militar foi concebida para defender ou coagir, combatendo, com o seu emprego ligada ao conceito de soberania nacional e foi organizada com base no recrutamento e mobilização de efetivos crescentes. A força militar estava ligada a um conceito de relações internacionais baseado no equilíbrio de poderes.
A arma nuclear veio introduzir um novo conceito de dissuasão no emprego da força e abrir o caminho para um tempo que alguém caracterizou de guerra improvável e paz impossível. O denominado tempo da Guerra Fria levou a mais uma divisão entre o ocidente e os outros, à manutenção de aparelhos militares tendencialmente crescentes em efetivos e tecnologias e a uma sociedade com uma razoável cultura de defesa. Durante este período as relações civis-militares no mundo das sociedades democráticas e abertas caracterizaram-se por:
- Uma tendência progressiva para o controlo político da força militar do Estado, materializado nos textos constitucionais, na organização do Estado com os Ministérios de Defesa a substituírem os Ministérios da Guerra, com a administração e orçamento das Forças Armadas mais inseridos na administração e o orçamento do Estado - o controlo objetivo da força militar pelo poder político do Estado afastava os militares do seu controlo subjetivo por outras forças, evitando a sua interferência na vida política;
- Controlo político que foi seguido pelo desenvolvimento de um conceito de profissionalismo militar entre os quadros das Forças Armadas especialmente dos seus corpos de oficiais - profissionalismo militar entendido pelos militares e a sociedade como uma via de dois sentidos.
Por um lado, significava o total cometimento daqueles corpos a uma ocupação que servia a Nação, que requeria uma preparação contínua e uma disponibilidade permanente, que obrigava a compromissos de honra, dever e vida. Por outro lado a sociedade entendia a condição militar como limitadora de direitos e de deveres acrescidos e reconhecia a organização militar regulada por regras específicas de disciplina, hierarquia e valores a quem se reconhecia alguma autonomia.
O profissionalismo militar foi entendido e desenvolvido por algumas escolas da sociologia militar como fator de estabilização das relações civis militares nas sociedades. O controlo político dos militares não significava interferir no conceito de comando e dos seus pilares estruturantes, como a hierarquia e a disciplina. No desempenho de missões, os militares respondiam perante a Nação e os seus representantes, numa forte ligação das instituições militares à sociedade, resultante da quase generalização do serviço militar para os cidadãos masculinos, à cultura de defesa ligada à integridade territorial e aos dispositivos militares que cobriam os territórios.
O conceito de emprego da força militar pelos estados na denominada ordem interna foi sendo progressivamente abandonado, cometendo-se essa missão a forças de segurança; os estados entendiam a força militar e o seu emprego para defender a sua soberania ou prosseguir objetivos nacionais, combatendo. Para quem integrava as Forças Armadas Jurar Bandeira significava, se necessário, morrer combatendo.
Concluindo, pode afirmar-se que as relações civis–militares, nas sociedades democráticas, ainda que com múltiplos exemplos de interferência dos militares na vida política de algumas sociedades que não se incluíam naquele grupo, se processaram com regras bem definidas e mutuamente entendidas.
Um segundo tempo das relações civis-militares, de acordo com a opinião de alguns analistas, é mais recente e desenvolve-se a partir do final da Guerra Fria. O conceito de relações internacionais mudou, as ameaças à segurança multiplicaram-se, a globalização acarretou modificações no conceito da soberania dos estados e a força militar sofreu também modificações na sua conceção, conceito de emprego e organização. Estas modificações apontam para algumas tendências:
- Diminuição progressiva da cultura de defesa em algumas sociedades;
- Abandono progressivo do conceito de conscrição para obtenção de recursos humanos para a força militar, substituindo-o pelo serviço voluntário incluindo pessoal feminino;
- Utilização frequente das Forças Armadas para “outras missões para além da guerra” ou “para missões de interesse público”, onde algumas vezes se incluem funções policiais e outras de competências civis e muitas vezes restringem as operações de combate, levando à degradação e treino da função principal da força militar: combater se necessário;
- Interferência excessiva da direção política na condução de operações que envolvem a força militar, pondo em causa o comando. Crescentes críticas de militares fora da cadeia de comando à forma como são conduzidas as operações;
- Sinais de degradação na institucionalização da força militar no estado, abandono do conceito de profissionalismo militar e tendência para a sua substituição por uma burocracia armada, havendo já força militar organizada fora do controlo político dos estados;
- Permanente adaptação das forças armadas a desafios novos e em constante mudança: novas ameaças, orçamentos restritivos e novas tecnologias, entre outros, obrigam a organizações e conceitos de emprego diferentes do passado.
Concluindo pode dizer-se que se vivem tempos de distensão ou afrouchamento das relações entre o Estado-Nação e a Instituição Militar.
III
Portugal, reafirmou a sua independência, reforçou a sua identidade nacional, consolidou o estado e começou a construir a sua instituição militar com a Restauração, que decorreu de 1640 a 1668. Esteve presente nos Tratados de Vestefália, em 1648, quando a Europa moderna se afirmava com o conceito de soberanias nacionais. Nação, Estado e Instituição Militar iniciaram um caminho na História que seguiu os modelos europeus.
Após as invasões francesas (que marcam também a última invasão do território português na Europa), indefinições da política e resistências dos militares iniciaram um longo período de relações civis-militares perturbadas, com uma interferência anormal e frequente dos militares na vida política da Nação, mobilizações para constituir uma força militar para proteger direta ou indiretamente o Império sem um consenso nacional e utilização da força militar na ordem interna. Relações civis-militares que não foram orientadas por um verdadeiro profissionalismo militar, no que isso significava de alguma autonomia da instituição militar face ao poder político e por algum afastamento da instituição da Nação que via nas sortes um fatalismo imposto. O comando das Forças Armadas era exercido pelos ministros que faziam colocações e promoções e nomeavam comandantes, o Estado mantinha a força militar com orçamentos de sobrevivência e o serviço militar e o dispositivo territorial das Forças Armadas tentavam manter a ligação à Nação.
A mudança de regime em 1974 deu origem a uma Constituição e, após o período de transição, a um conjunto legislativo que, com algumas falhas e muitas críticas, tenta regular as relações civis-militares de uma forma correcta e moderna. A análise de como tem sido observada essa intenção leva-nos a formular as seguintes considerações:
- Permanente adaptação das Forças Armadas a novos conceitos de emprego e a sucessivas reorganizações derivadas de formas diferentes do serviço militar, reduções de dispositivo, indefinições no seu reequipamento e restrições orçamentais - observadores imparciais reconhecem que as Forças Armadas se “democratizaram”, com quadros altamente profissionalizados e competentes e sem objeções ao controlo político do Estado;
- Controlo político sobre as Forças Armadas muito centrado no Governo com pouca visibilidade da Assembleia da República, que representa a Nação e detém a exclusividade de legislação sobre o seu instrumento militar - o Conselho Superior de Defesa Nacional, presidido pelo Presidente da República, tem centrado muita da sua atuação mais em aspetos administrativos das Forças Armadas do que com nos seus fundamentos genéticos ou organizativos;
- Tendência crescente por parte dos executivos para interferência em assuntos do comando das Forças Armadas (gestão de pessoal, ensino, organização);
- Continuada tolerância do poder político relativamente a organizações de militares, na situação de serviço ativo, que se reclamam de representatividade em assuntos do comando e que afetam a disciplina.
Como afirma a Professora Doutora Maria da Saudade Baltazar, na sua tese de doutoramento na Universidade de Évora, em 2004, As Forças Armadas Portuguesas - Desafios numa sociedade em mudança: “Porém o relacionamento civil-militar na sociedade portuguesa não se pode considerar, em toda a sua extensão, configurado em relações tensas e conflituais. Se assim é entre políticos e militares o mesmo não se pode afirmar acerca das relações entre Forças Armadas e a sociedade em geral, em que a indiferença associada à falta de reconhecimento público acerca da utilidade social dos militares, não tem provocado ligações do tipo conflitual.”
IV
Vivem-se tempos de mudança. Mudanças na sociedade, nos conceitos de nação e de estado, nas relações internacionais e nos arranjos geopolíticos, na linha de demarcação entre paz e guerra, na força militar, nos princípios do seu emprego e de organização. Abundam estudos prospetivos tentando adivinhar o futuro, com prazos cada vez mais curtos para avaliar as tendências e os prováveis resultados finais.
Também se elaboram cenários sobre uma guerra do futuro, tentando adivinhar como será combatida e com que meios. Nos cenários prevalecem aqueles que preveem guerras híbridas, que poderão incluir insurreições generalizadas, guerras convencionais de teatro, a guerra nuclear e a guerra no espaço e ciberespaço. Se estivéssemos em tempos, como no passado, de as mesmas causas produzirem os mesmos efeitos, os alertas e avisos que se vivem já teriam conduzido a um conflito generalizado. Mas vivemos tempos com outros instrumentos para gerir as crises, como a comunicação em tempo real, a cooperação internacional, as organizações globais e regionais de segurança e uma pluralidade de centros de poder que vão procurando manter uma paz virtual enquanto desenvolvem esforços para conquistar aliados que lhes permitam atingir uma situação estratégica de vantagem inicial, para lutar, mais uma vez, por ódio, honra, medo ou interesses.
Não sabemos como será o combatente do futuro. Não erraremos se dissermos que num conflito futuro generalizado, entre populações e combatentes não haverá uma linha de fronteira. Todos terão de resistir.
E para resistir será importante que nações, estados e alianças mantenham um relacionamento saudável e sem querelas com as instituições militares. Sem uma ameaça bem definida e percebida tem-se privilegiado ameaças e riscos à segurança esquecendo a defesa. Os conceitos estratégicos e revisões estratégicas, dando realce a esses novos riscos e ameaças, esquecem que para defender é necessário combater. Para se justificar a força militar perante as opiniões públicas cometem-se missões de interesse público para as forças armadas. Nas missões de apoio à paz empenham-se forças, desde que não tenham de enfrentar situações de combate ou sejam colocadas em áreas de probabilidade de essas situações ocorrerem.
Pensamos, e não estamos sós nesta observação, que percorremos caminhos perigosos. Não foi atingida a paz universal e poderemos ter de defender um estilo de vida, recursos e valores que constituem o nosso legado cultural. para que será necessário combater.
Neste Encontro em que recordamos o combatente será importante não esquecer que para dispormos de combatentes em tempos de crise ou conflito será necessário, desde os tempos de paz, criar e manter um espírito de defesa e a vontade de combater. Manter relações correctas, e sem complexos, entre a nação, o estado e a instituição militar ajudará a estar preparado para eventualidades futuras.
Tema 2 - Os valores do combatente num quadro de pós-modernidade - as dissonâncias sanáveis
Dr. Nuno Rogeiro
O COMBATE COMO ANTÍDOTO À GUERRA
Um dos objectivos expressos dos organizadores é o de reflectir sobre o Dia de Portugal. Não é uma má ideia comemorar o 10 de Junho um dia depois, numa semana de trabalho. Mostra que as datas marcantes - civis ou religiosas - não se esgotam nas 24 horas de um feriado. E que, assim como o hábito não faz o monge, não é o feriado que faz a data, mas a data que faz o feriado.
Muito se poderia dizer sobre a escolha - por estados e regimes, sistemas de governo e até dirigentes - de determinadas datas como símbolo de grandes eventos. Essa opção pode ser historicamente consensual, quase evidente, mas também controversa, sobretudo quando se confundem interesses de magnatas, ou celebrações ideológicas, e os padrões fundamentais, sedimentados, de povos com memória, tradições, cidadania enraizada e nacionalidade demonstrada1.
Quando a escolha do feriado nacional é uma consequência lógica, irresistível, do significado de uma data - seja esta da batalha ganha ou perdida, catástrofe que alerta ou vitória que orgulha - ou da demonstrada importância de um acontecimento, o que fica é a importância social, popular, cultural, do dia, e só depois o recorte jurídico-laboral do mesmo.
O que quer dizer que, mesmo que desapareçam os feriados, por decreto administrativo, ficam as datas e os seus significados, dir-se-ia que por decreto do espírito2.
Do espírito e, espera-se, pela constante mobilização de corpos e almas, numa espécie de vigília permanente que antecede as grandes decisões e as grandes pugnas.
o combatente em sentido lato
O que nos conduz à ideia central deste encontro, sobre o combatente e os seus valores, na era dita da “pós-modernidade”, que corresponde ao tempo presente. Podíamos começar por observar que, para além da equivalência episódica aos actos bélicos, a noção de “combate” tem uma dimensão espiritual, em quase todas as culturas.
Historicamente, politeístas e monoteístas aludiram sempre a um combate entre o Bem e o Mal, algures nas alturas ou nas profundezas da mente humana. Remorso, dúvida, reconciliação, escolha, foram sempre elementos dessa fricção.
O Islão, como se sabe, tem as noções “grande” e “pequena” Jihad. A primeira, mais ampla e mais satisfatória para o homem, significa o combate pela libertação e aperfeiçoamento, e só a segunda possui o sentido mais prosaico de guerra física.
Ideia de combater o “bom combate” está, para a Cristandade, em S. Paulo e no Novo Testamento. Trata-se alcançar a paz de espírito, através de opções sempre difíceis mas justas, por oposição à paz podre dos regimes tirânicos, das concordâncias impostas, dos consensos sentenciados por leis ilegítimas. O próprio Jesus afirmava trazer não essa paz, mas o combate, a necessidade de, na hora certa, optar pela certeza da hora.
Erupção do Herói
O combatente é assim, antes de mais, nesta acepção, que iremos seguir, um ser mobilizado para uma ideia e um projecto. Pode entrar aqui, claro, o arquétipo do herói. Em 1945, escrevia o antigo trotsquista convertido ao tradicionalismo ocidental, Sidney Hook3, que o herói, aquele que muda a história pelo exemplo pessoal, é, geralmente, filho da crise dos valores e das desgraças. Pode significar anseio de liderança, de mudança, mas também sacrifício, fuga à rotina e à vulgaridade, s sobretudo espelho das virtudes e aspirações nacionais, reais ou imaginadas. O herói é sublimação e romance, e mistério, mas muitas vezes simples tradução da mais simples humanidade. Por outro lado, uma narrativa baseada no heroísmo é sobretudo uma visão do passado pela lupa da filosofia moral, onde, como dizia o grande Romanista Karlheinz Stierle, se vê “a história como exemplo, e o exemplo como história”.
O herói pode, claro, ser decisivo na cadeia de comando. A ideia de fracos reis fazerem fraca a forte gente, estava em Camões, ou na menos famosa frase de Napoleão: “um exército de coelhos comandado por um leão é melhor que um exército de leões comandado por um coelho”. Mas isto não é quantificável. Por outras palavras, não sabemos quantas divisões é que, aritmeticamente, vale um Napoleão. E se o candidato a herói conduz a sua comunidade à derrota, ou a um território mais pequeno do que aquele com que começou, ou à pobreza extrema, revela-se como a negação do herói (“anti-herói” tem outro significado, maior e mais nobre), ou um real desastre.
O herói mede-se assim, como em tudo na história, pelas intenções, pelos projectos, pelas obras e pelos seus frutos. E se há povos que inventam os seus heróis, desejando um futuro melhor que o triste presente, há heróis que inventam os seus povos, criando nação do quase nada.
Por outro lado, o herói pode não ser o líder, mas o servidor. Eis outro elemento que conviria salientar, naquilo que poderíamos chamar de “ética do combatente”, no sentido extra-bélico que utilizamos. No combate, o herói é sempre o mais humilde e o mais sacrificado dos seguidores. Pode ser canonizado, como o Condestável, ou ficar meramente na memória de uma estátua de pedra, como o soldado desconhecido4.
Portugal e os combatentes, 1996 - 2012
O combatente pode ser herói, no sentido de transformar a história com o seu acto, mas para as sociedades decentes e estruturadas, basta que incarne valores simples de integridade, solidariedade, serviço e entrega. Foi assim durante séculos, com combatentes - civis e militares, laicos ou confessionais - cujo exemplo lembramos ou cujo nome já esquecemos, e foi assim no empenho português nas operações de pós-guerra dos últimos 16 anos.
Podíamos centrar-nos nelas por um momento, dado que todas ocorreram, precisamente, no período da “pós-modernidade”.
Diplomatas, soldados, cooperantes, cientistas, cartógrafos, marinheiros, aviadores, professores e operários, polícias e estudantes, mulheres e homens, mais ou menos jovens, estiveram na linha da frente das operações de monitorização, observação e apoio à paz, nas acções de manutenção de paz e de medidas de restauração de confiança, nas operações de resgate e de ajuda humanitária, nas campanhas domésticas contra a fome, a pobreza, o subdesenvolvimento e o analfabetismo, nas guerras de baixa intensidade do exterior, e na segurança comunitária do interior.
Tivemos fardas e civis nos Balcãs, na Bósnia-Herzegovina e Kosovo, e antes na Croácia, a partir de 1992. Tivemos de fazer das tripas coração, e de reciclar e desenterrar material militar, de armas individuais a veículos blindados apropriados (aliás, o que seria “apropriado” nos rigorosos invernos balcânicos, para forças que ainda transitavam de teatros africanos?). Em Timor, tentámos exorcizar os demónios de uma fuga de pé descalço vergonhosa, em 1975, e apoiar uma causa que não era longínqua, porque vivia como fantasma em muitas mentes. Quando um oficial de ligação de um serviço de informações ocidentais me perguntava, algum tempo depois do massacre de Santa Cruz, o que faziam - cito - “elementos brancos” no meio da guerrilha de libertação, fiquei a saber que na Europa se tomava a sério a possibilidade de Portugal se reconciliar com a história, e seguir um caminho próprio, por exemplo no campo do que em Espanha se chama de “ameaças não comparticipadas”, ou operações de “chapéu atípico” (nem UE, nem ONU, nem OTAN)5.
Na Guiné-Bissau, contra muitas maledicências e obstáculos de potências presumidamente amigas, fizemos, também civis e militares, difíceis resgates debaixo de fogo, a partir de 1998, e os combatentes ofereceram aos políticos a possibilidade de um mundo melhor, que estes não souberam, puderam ou quiseram construir.
No Afeganistão, sugadouro histórico de impérios, estivemos sempre na primeira linha, também com civis e militares de boinas e camuflados de todas as cores, de todos os ramos, de todas as armas. Tivemos mortos e feridos, mas andámos sempre de cabeça erguida. No Iraque, num conflito impossível, a GNR mostrou a face portuguesa de uma força que protege, que chega a arriscar o pescoço para salvar tropas de escol amigas, que educa, cura e ajuda. O mesmo heroísmo sereno, que não pede louros, aliou-se à competência técnica, nas campanhas de combate à pirataria no Índico, flagelo derivado da miséria e da cupidez, que devasta até os recursos que deviam chegar ás zonas de martírio. A presença portuguesa ficou assinalada, por exemplo, no editorial do britânico The Economist, insuspeito de lusofilia, a 7 de Maio 2009.
Formámos a FRI e a Brigada de Reacção Rápida, resgatámos civis, sem perguntar a nacionalidade, nos dois Congos, fizemos operações especiais em Kinshasa, com comandos suecos, para garantir eleições pacíficas. Tivemos diplomatas que naufragaram à vista de Brazzaville, e que nadaram num rio infestado, para salvar documentos importantes.
Treinámos com a NATO e a União Europeia, e mostrámos competências insuspeitas: o CTOE de Lamego emboscou com sucesso uma das mais sofisticadas forças do Ocidente, na neve da Europa do Norte, e um dos novos submarinos da Marinha afundou, em exercício, um porta-aviões aliado, apesar de todas as contra-medidas. Mantivemos, com exércitos feitos de homens que tínhamos combatido até 1974, missões de cooperação técnico-militar, que permitiram forjar laços que, afinal, nunca se tinham perdido. Nos exercícios da série “Felino”, da CPLP, treinaram-se as chamadas novas missões de Petesberg, onde se anteciparam sinais de caos, dos cenários de catástrofe onde o combatente tem de optar, serenamente.
As novas missões do combatente
Claro que, dos campos de Marte aos campos da morte civil, das escolas aos campos, das cidades às fábricas, o combatente tem novas missões. Não falamos aqui, convém relembrar, no combatente militar num campo de batalha tradicional, mas de um elemento que é cidadão consciente de duas coisas: da sua condição de ligação a um património político comum, laço voluntário e actualizado, e da verificação de um meio ambiente internacional que não se compadece com uma visão idílica das relações entre estados, infra-estados, para-estados e meta-estados.
O combatente pode ser, nesta perspectiva, o votante que muda de regime, o militante mobilizado contra a ocupação, o soldado regular ou o guerrilheiro, mas também o praticante realista da ciência académica, o universitário com consciência “nacional”, o investigador que, sabendo separar estudo, dúvida e fé, consegue, no fim do esforço, aliar o saber ao patriotismo, incarnado assim, ao lado de expressões como smart defense, o smart nationalism.
Que tarefas tem esse combatente em sentido lato? Missões retrospectivas e prospectivas. E missões do presente.
Missões retrospectivas
As primeiras, por exemplo, podemos incluir o que se chamaria de “combate cultural”. Implica, também a título exemplificativo, não certamente refazer a história, mas refazer a historiografia, corrigindo-a e enriquecendo-a. Refazer fazendo justiça, honrando os mortos, re-estudando sem complexos as guerras recentes, do uso da técnica e da ciência à descrição objectiva de operações, com as suas luzes e as suas sombras.
Para isso é preciso sair das manchetes fáceis e enquadrar a história, compreender o meio, perceber o tempo com os olhos do mesmo, e não de outro. E importa interpretar e concluir sobre os factos: apesar de termos perdido mais homens na Primeira Guerra do que em treze anos de guerra de África, entre 1961 e 1974, perdemos proporcionalmente mais homens em África, durante a Primeira Guerra, do que no pantanal da Flandres. Significa isto que, independentemente do regime, estivemos dispostos a sacrificar mais pelo que se entendia como território nacional, do que pela ideia nobre, mas abstracta, de travar uma progressão imperial no solo europeu.
Por outras palavras, o “para Angola, depressa e em força”, não foi o grito de um regime, mas uma continuidade com a Monarquia Constitucional e a Primeira República. Só isso pode explicar que, entre 1915 e 1918, tenhamos deslocado 32 mil homens para Angola e Moçambique6.
Podemos também, nas tarefas retrospectivas, especular razoavelmente a hipótese de uma história alternativa. Não apenas sobre a “possibilidade objectiva” dessa outra série de eventos, como referia Max Weber, mas sobre a relação entre o que sucedeu, e o que seriam as consequências de um outro sucedido. Tudo isto reforça a compreensão.
E devemos investigar a ciência e a micro-técnica das coisas. Só para o campo militar, poderiamos re-esudar o sucesso das operações contra o míssil SA-7 Strella, na Guiné, o uso eficiente de helicópteros em complexas operações combinadas, a magnitude das operações ribeirinhas, o uso precursor do duo espingarda de assalto/lança-granadas, com a combinação Armalite AR-10/ENERGA, a sofisticação do combate anti-minas, que defendeu militares e civis, adultos e crianças, a coragem e a mestria de engenheiros e comandantes, técnicos e administradores, simples peões e os seus responsáveis, o uso de forças especiais locais, como os GE, os GEP, os Flechas, os Comandos Africanos, depois abandonados, espezinhados e lançados para valas comuns.
Em 2007, como em 1918 (quando os populares saudaram 400 homens do CEP e do CAP), houve desfile, no 14 de Julho, pelo centro de Paris, de militares portugueses (29 fuzileiros, 1 marinheiro, 2 aviadores, 1 soldado de terra). Simbolicamente, isso correspondeu a um pouco conhecido reforço do interesse internacional pelos pormenores combatentes - civis e militares - da nossa história.
Era de justiça salientar aqui uma continuação de gerações de observadores estrangeiros que nos fizeram justiça, acima dos preconceitos, e que incluem Charles Boxer, Daniel Boorstin, David Spencer, Bernard Trainor, John Cann, Nigel Cliff, Olivier Ikor, David Corkill, Glyn Stone,Anthony Disney, Malcolm Jack, Jay Levenson, Malyn Newitt, Charles Raymond Beazley, Walter de Gray Birch, A. J. Russell-Wood, Patrick Wilcken, Glenn James, Shihan da Silva Jayasuryia, Daviken Studnicki-Gizbert, W. S. Van der Waals, Patrick Rouveirol, Norrie Macqueen, ou até a historiografia popular e iconográfica das séries Osprey, com David Nicolle, Otto Van Pivka, Rene Chartrand, William Younghusband, Peter Abbot.
Nestes autores das últimas décadas, de várias orientações doutrinais, ascendências, interesses e nacionalidades, há, das Descobertas às guerras napoleónicas, das campanhas das Índias às campanhas das Áfricas, da matemática à artilharia, da botânica às ciências da navegação, uma recolocação da excelência portuguesa, às vezes obscurecida por problemas de propaganda do momento7. E não deixa de ser sintomático o trabalho recente de um núcleo de investigadores da Universidade de Stanford, em 2009, sobre a base científica das aventuras imperiais portuguesa e espanhola8. Não será certamente o último.
Missões prospectivas
Falávamos de novas tarefas do combatente. Tarefas prospectivas, voltadas para o futuro. Incluem-se aí a solidificação do espírito de cidadania, de entre-ajuda comunitária, de acções voluntárias de apoio social, de aculturação, de transmissão de conhecimento sobre os elementos permanentes da identidade soberana. Isso faz-se em solo pátrio, mas também por toda a parte onde haja trabalhadores, estudantes, pós-graduados e portugueses integrados noutros meios e sociedades.
Incluem-se aqui a renovação de documentos conformadores essenciais, da área jurídico-constitucional ao domínio geopolítico e à estratégia, dos conceitos de defesa e segurança aos planos de expansão da plataforma continental, dos projectos de desenvolvimento científico e tecnológico aos esquemas de apoio à “internacionalização” e “modernização” de empresas, ou de melhoramento da aculturação individual, grupal, regional, nacional.
A sedimentação dessas opções, formalizadas solenemente em diplomas, não pode existir sem que antes exista acordo entre grupos activos que podem garantir tais escolhas. E este assentimento não pode dar-se sem debate informado, amplo e livre. E não há debate sem fortalecimento do espírito cívico, crítico, exigente, de independência face aos poderes do momento e de fidelidade às grandes linhas da existência nacional.
O combatente é também aquele que, neste projecto, semeia e colhe, projecta e executa.
Missões imediatas
Há ainda, claro, as tarefas presentes. Como as de procura dos caminhos estratégicos mais benéficos, que podem ser os menos evidentes, ou o rigor no empenho de forças armadas no exterior, e na sua planificação interior, que não as banalizem, não as fragilizem e não as coloquem ao serviço de interesses que traem a sua razão de ser.
Nas tarefas presentes há que entender a vertente de defesa nacional da protecção dos interesses económicos, do ecossistema e das condições de independência. Protecção e projecção da língua, da investigação, do desenvolvimento económico e humano. Protecção e alargamento do escol nacional, dado que por trás de um homem capaz há sempre outros homens capazes. Protecção do esforço de legitimação das instituições, para que representem cada vez mais, e não cada vez menos. Protecção do esforço de internacionalização positiva, que se traduz na importação de progresso e aprendizagem, e na exportação de produto nacional qualificado. Falamos de internacionalização positiva, dado que a negativa é a ocupação e a exploração pelo exterior.
Nas tarefas presentes cabe incentivar uma noção digna, completa, operativa da CPLP e da Lusofonia, que permita a todos os povos da mesma matriz cresceram e enriqueceram juntos, e não à custa uns dos outros. Nas tarefas presentes está, claro, a plantação de instituições e ideias. É sempre assim: como ontem com os pinhais de D. Diniz, uma geração tem de plantar as árvores. A outra pode viver à sua sombra, ou projectar mais florestas.
Há, no esforço presente do combatente, uma necessidade imperiosa de re-nacionalização, no sentido de fazer regressar à comunidade o que não pode ser só de poucos, porque foi construído por muitos. No presente, a crise financeira aconselha a que se sofra para que se construa. Como dizem alguns economistas (ou a directora do FMI, nem sempre feliz nas suas certezas), no pain, no gain: sem sofrimento não há ganho. Os Antigos diziam ad augusta per angusta. A questão, porém, é a de saber quem sofre e quem ganha: o combatente deve esforçar-se para zelar por que sejam os que sofrem que venham a ganhar.
Porque a luta pela justiça social, pela equidade, pela transformação do estado em pessoa - colectiva - de bem, pela meritocracia, pela igualdade de oportunidades, é também uma tarefa hodierna do combatente. É que o combate na área económico-social, apostando no desenvolvimento sustentado e justo, é uma forma de actividade mais urgente e mais produtiva do que qualquer aventura bélica, ou sonho de poder militar sem sentido.
Claro que, num mundo pós-bipolar, em que os cenários de conflito são sobretudo mistos (de infra, intra e supra estaticidade), regionalizados, de resultado parcial e de consequências limitadas, sem legitimações absolutas, o combatente estritamente militar possui missões ideais bem precisas.
Estas incluem a necessidade de estudo teórico e preparação técnica operacional, de apetrecho com elementos suficientes de colheita e tratamento de informações, e manutenção de competências mínimas para conflagrações assimétricas, operações expedicionárias, conflitos virtuais (no ciber-espaço, no domínio da imagem, da palavra, da informação e da propaganda), outras operações para além da guerra e missões onde a cooperação policial-paramilitar-militar será chave.
Há, no combatente, como é claro, resistência. E a resistência é sempre mais admirável quando a noite parece mais escura, e quando quase todos já perderam a esperança. Pode dizer-se aí que bem-aventurados sejam os que não viram, mas acreditaram. Como os portugueses que, no Rossio e no Castelo de S. Jorge, sob ocupação francesa, sem rei nem roque, hastearam a bandeira nacional, em acto de desafio. Ou como o digno comandante da cidadela de Cascais, executado pela sua resistência para além do impossível, em 1580.
Se queres paz, prepara o combate
O que nos reconduz, singelamente, ao tema desta reflexão. Assim como um mecanismo de defesa de dissuasão inteligente pode evitar a guerra, um espírito combatente permanente e activo pode assegurar uma paz justa.
Esse espírito tornará as tentativas de agressão económico-financeira, ambiental, cultural, informática, e os ensaios de agressão física imediata, menos remuneratórios e mais destrutivos para o putativo ofensor.
Uma sociedade sólida nas suas instituições, espírito de entreajuda, identidade, condições de segurança interna e externa, padrões de crescimento e distribuição de riqueza, será sempre menos vulnerável às aventuras predatórias de qualquer guerra.
No cerne de uma sociedade destas está o combatente. Pode parecer, pelo que ficou dito, que este é o principio e o fim de tudo, na ordem política. Pode parecer que dele depende quase tudo, na mesma ordem. Pode parecer que as tarefas históricas - passadas, presentes e futuras - que lhe cabem são demasiado exigentes, e demasiado pesadas.
Mas esse é o ónus que cabe sobre o combatente, outra face da sua condição de cidadão consciente, atento, pró-activo e informado.
Um cidadão assim dirá como Timóteo, citando São Paulo: Bonum certavi certavi, cursum consumavi et fidem servavi: combati o bom combate, terminei o caminho, mantive a fé.
NOTAS:
1 Sobre o uso político dos feriados, a sua construção histórica e a sua relação com o simbolismo nacional, cf. M. Billig, Banal Nationalism, Sage 2004; A. Confino, The Nation as a Local Metaphor, UNC Press Books 1997; A. Dieckhoff, C. Jaffrelot, Repenser le Nationalisme, Paris 2004; E. Weber, Peasants into Frenchmen, Stanford U.P. 1976.
2 A história das celebrações nacionalistas do 10 de Junho, entre 1975 e o meios dos anos oitenta, ficou a dever-se, em primeira linha, à “despromoção” da data de “Dia de Portugal” para “Dia das Comunidades”, logo a seguir ao chamado PREC.
3 Em The Hero in History, Londres, Secker & Warburg, 1945, uma pequena publicação cartonada hoje rara.
4 Sobre o herói e o seu uso político, tantas vezes ambíguo cf. S. David, Cioran: Un heroisme à rebours, Monteral 2006; M. G. Kendrick, The Heroic Ideal, N. Carolina 2010.
5 Cf. S. Pérez Díaz, “Amenazas No Compartidas de España”, em Atenea - Seguridad y defensa, Ano V, nº35, pp. 19 e segs.
6 Sobre as campanhas de África durante a Grande Guerra de 1914-1918, cf. R. Anderson, The Forgotten Front, Tempus, Michigan, 2004; B. Farwell, The Great war in Africa, Norton 1989; C. Miller, Battle of the Bundu, McMillan 1974, e os clássicos portugueses M. Gomes da Costa, A Guerra nas Colónias, A. Brandão ed. 1925, Ferreira Martins, Portugal na Grande Guerra, Vol. II, Ática 1934, A. J. Pires, A Grande Guerra em Moçambique, Tip. CPE 1924, A.F. Varão, Investidas Alemãs ao Sul de Angola, Imprensa Lucas 1934.
7 Entre as muitas obras de autores referidos, de clássicos a pós-modernos, com qualidades diferentes, podemos lembrar, por exemplo, W. de G. Birch, The Commentaries of the Great Afonso de Albuquerque, Hakluyt Society, vários volumes, 2005-2010 (reedição do original de 1877); D.J. Boorstin, The Discoverers, Vintage 1985; C.R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire, Alfred Knopf 1969; J. Cann, Counterinsurgency in Africa: The Portuguese Way, Hailer Pub. 2005; M.A., Brown Waters of Africa, Portuguese Riverine Warfare, Hailer 2008; N. Cliff, Holy War, Harper Collins 2011; A. Disney, A History of Portugal and the Portuguese Empire, 2 vols., Cambridge Univ. Press, 2009; O. Ikor, Caravelles, J-C Lattés Ed., 2010; M. Jack, Lisbon: City of the Sea, Tauris 2007; S.S. Jayasuriya, The Portuguese in the East, Tauris 2008; J. Levenson, Encompassing the Globe, Smithsonian 2007; N. Macqueen, The Decolonization of Portuguese Africa, Longman 1997; M. Newitt, Portugal in European and World History, Reaktion Books 2009; P. Rouveirol, Les Portugais et la Première Guerre Mondiale, Dualpha 2010; A. J. Russell-Wood, The Portuguese Empire, JHU Press 1998; D. Spencer, M. Machado, The Unknown War: Portuguese Paratroopers in Africa, ADH Publishing 1992; D. Studnicki-Gizbert, A Nation Upon the Ocean Sea, Oxford Univ. Press 2007; W.A. Van Der Waals, Portugal’s War in Angola, Protea Boekhuis 2012; P. Wilcken, Empire Adrift, Bloomsbury 2005.
8 Cf. D. Bleichmar, K. Sheehab, e.a., eds., Science in the Spanish and Portuguese Empires, 1500-1800, Stanford Univ. Press, 2009).
Tema 3 - O combatente do presente e do futuro
Tenente-coronel Luís Fernando Machado Barroso
Falar sobre o combatente do presente e do futuro, sobretudo este, não é uma tarefa fácil nem é um empreendimento sem risco. Todavia, as delimitações colocadas pela organização facilitaram o meu trabalho. Pediram-me que “situasse o combatente nas operações militares do tempo presente nos cenários estratégicos da atualidade e nas relações com as sociedades onde é chamado a desempenhar o seu papel”.
Parece cada vez mais óbvio que a determinação do que será o conflito do futuro é um fator de extrema importância na abordagem ao combate e no papel do combatente. Por isso, é central identificar as tendências, ideias e princípios que moldarão o conflito num futuro próximo que desafiam os comandantes e os seus homens. Por essas razões, o que vamos transmitir tem aplicação do soldado ao general
Seja qual for a tendência, em face dos determinantes estratégicos do período pós-Guerra Fria, os conflitos mais prováveis com que as forças ocidentais terão de lidar serão caracterizados pela multidimensionalidade de efeitos dos instrumentos que os adversários podem utilizar, nomeadamente os políticos, sociais e militares, em áreas de operações onde as vantagens tecnológicas dos exércitos ocidentais podem ser facilmente mitigadas.
O atual domínio militar do Ocidente, liderado pelos EUA, não tem precedentes na História e nunca outra potência deteve poder militar tão esmagador que torna improvável a possibilidade de confronto direto. Todavia, não é lógico ser-se eternamente imbatível e os seus adversários vão procurando estratégias para diminuírem a sua vantagem.
Desde as guerras napoleónicas até 1945, assistiu-se principalmente a conflitos entre as grandes potências. Foi numa época caracterizada pela guerra total, exércitos de massa, guerras entre Estados-nação e conflitos prolongados. Durante os cinquenta anos da Guerra Fria aquelas guerras passaram a ser menos prováveis e foi-se ampliando o emprego de forças militares em espectros operacionais de menor intensidade, sendo atualmente a franja do espectro do conflito onde ocorrem mais empenhamentos de forças.
Existe um conjunto de autores que propõem novos paradigmas para explicar as novas guerras. Um dos mais relevantes é Mary Kaldor que, em muitos aspetos, exemplifica uma corrente de pensamento que propõe um novo tipo de guerras. Argumenta que o pensamento de Clausewitz deixou de ser relevante porque não há lugar para uma confrontação direta entre Estados com meios exclusivamente militares. Defende que os conflitos atuais não se resolvem através do resultado de uma confrontação militar porque é a mobilização política com uso da violência que é o seu principal objetivo. Muitas vezes, os objetivos políticos estão ausentes porque os contendores pretendem manter um estádio de conflitualidade permanente para gerar lucro financeiro, um argumento que considera como sendo o responsável por desintegrar a centralidade do Estado-nação no fenómeno da guerra. Por essa razão, M. Kaldor adianta que o fim da Guerra Fria marcou o início do fim dos conflitos entre Estados, sendo substituídos por conflitos caracterizados por uma luta civil isenta de racionalidade política.
Mas será que modelo ocidental de emprego da força militar está a sofrer alterações profundas? Sim, mas não tão profundas como à primeira vista possa parecer. Assiste-se a uma alteração no significado subjetivo da guerra, com importantes implicações para o combate e, por conseguinte, para o combatente. Há implicações importantes no modus operandi, armamentos, organização e composição de forças.
Por conseguinte, achámos importante uma linha orientadora para esta comunicação através da análise dos seguintes pontos:
- A relevância de uma teoria que defina, de uma forma simples e completa, os conceitos de guerra, estratégia e combate, focalizando a nossa análise neste último;
- Analisar conflitos recentes donde se podem extrair importantes ensinamentos relativos às formas de combate e suas coordenadas definidoras;
- Como se poderão apresentar os futuros cenários para o emprego de forças;
- Que implicações os anteriores pontos de referência têm na previsão do que poderá ser o combate no futuro.
1. Entre Clausewitz e Sun Tzu.
Somos atualmente bombardeados com inúmeras definições relacionadas com a guerra e com a estratégia ao ponto de nos considerarmos completamente esmagados com a terminologia adequada. Por isso, há que ter cuidado com excessos de linguagem e definições que servem para nos confundir e que não nos ajudam em nada a moldar a nossa abordagem.
Os ensinamentos do conflito entre o Hezbollah e as Forças de Defesa de Israel (FDI) demonstram que é necessário ter muito cuidado com as alterações bruscas nas doutrinas militares e que não é adequada uma rutura com o passado. Combater uma “guerra irregular” contra um adversário “híbrido” não implica a condução de uma operação militar “híbrida”. Nem isso implica que ao nível estratégico estejamos perante um diferente “tipo” de guerra. As forças armadas conduzem operações militares.
Independentemente da tipologia de guerra ou conflito, a natureza da estratégia e da guerra mantêm-se. O que se modifica é o modo como se combate. Não há “novas” guerras nem “velhas” guerras, há apenas guerras. O sucesso da estratégia depende da escolha das opções, métodos, objetivos e da capacidade de compreender as situações e avaliar os perigos e oportunidades que estas contêm. Mais do que uma caraterização das condições e de um novo arranjo doutrinário, o mais importante é utilizar a capacidade de análise e síntese do combatente, tendo como ponto de referência alguns conceitos centrais. Não é necessário nenhuma nova teoria. O recurso aos clássicos Clausewitz e Sun Tzu como a referência principal deve-se à necessidade de escolher uma teoria que englobe todos os aspetos da guerra e da estratégia. Uma teoria da guerra e da estratégia como as oferecidas por Clausewitz ou Sun Tzu tem aplicação universal e englobam todas as modalidades relevantes e explicam a “guerra regular”, “guerra irregular” ou “guerra híbrida”. Todavia, de acordo com aquela tipologia, a abordagem ao combate é diferente, mas não o é em termos estratégicos.
Por sua vez, o combate é a utilização do instrumento militar de forma violenta e planeada em que existe uma interação física entre dois oponentes em que pelo menos um dos contendores tem como objetivos controlar um território ou população e destruir ou incapacitar o seu oponente. A diferença entre combate regular e combate irregular deve ser medida em termos de simetria. O primeiro abrange todo o tipo de operações entre contendores que em termos genéricos são simétricos - equipamento, modus operandi, valores. O combate irregular abrange as ações de combate com meios assimétricos.
Há também que fazer uma clara distinção entre guerra e luta, ou combate. A guerra estabelece uma relação total com todos os instrumentos de coação, enquanto o combate está relacionado com a conduta da guerra através dos meios militares. Desta proposição infere-se que quem não for competente ao nível estratégico é irrelevante sê-lo ao nível tático e operacional. Clausewitz é muito claro na sua definição de estratégia e da sua relação com a política: A estratégia é a utilização da batalha como meio para atingir o objetivo da guerra. Por conseguinte, o estrategista define um objetivo para a vertente operacional que por sua vez está de acordo com a finalidade da guerra. Por outras palavras, o estrategista traça o plano de guerra, no qual o objetivo determina as séries de ações tomadas como adequadas para a alcançar.
A famosa conceptualização de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios e um instrumento para atingir objetivos e proteger interesses, mostra que a guerra tem uma natureza intrinsecamente política. Por conseguinte, para compreender a guerra deve-se perceber como o decisor político utiliza o instrumento militar e como os relaciona com os outros instrumentos para alcançar os seus objetivos. No final do século XX, a destruição mútua assegurada, o fim da Guerra Fria, a globalização e a disseminação da democracia pareciam ter determinado o “fim da História”. Porém, os conflitos na Somália, Ruanda, Bósnia, Iraque e Afeganistão, entre outras, vieram demonstrar que o “fim da História” não passava de uma utopia. Por isso, compreender a guerra, não como nós queremos mas como realmente é, mantém-se uma questão central na política internacional.
A força, como forma violenta da ação da política, é utilizada como instrumento principal para dominar um adversário, controlar terreno ou população. Por dedução, o território é um elemento central na definição e finalidade da guerra propostos por Clausewitz, o que tem levado alguns dos seus críticos a afirmar que as atuais ameaças transnacionais não estão abrangidas pela sua teoria, por serem consideradas ameaças sem território. Mas a verdade é que a “guerra contra o terrorismo” tem sido levada a cabo em países com Afeganistão, Iraque e Sudão.
Se a guerra é a continuação da política, então o governante não deve empenhar-se numa guerra sem saber que tipo de guerra irá enfrentar, o que nos leva a considerar que a guerra não se limita ao emprego estrito de forças em ações de combate convencionais. Este ponto é uma referência na determinação dos métodos de emprego da força e de forças militares, especialmente quando a população é o centro de gravidade da atividade militar, como nos casos da contrassubversão.
A globalização está a acelerar a mobilidade real e virtual das pessoas, coisas, ideias e a aumentar a um nível sem precedentes a sua interligação a nível mundial. O reforço dos valores e a sua disseminação, associados à ideia de democracia e ao mercado livre, e a cada vez maior interdependência da economia e finanças a nível mundial, mostram claramente as dinâmicas da globalização, como é o caso do acesso instantâneo à informação a nível global, que influenciam e influenciarão o modo como as operações militares são e serão conduzidas. A facilidade na mobilidade de pessoas, coisas e ideias significa também mais mobilidade de atores não-Estado, mais possibilidades de acesso a armamento - incluindo armas de destruição maciça (ADM) - e maior facilidade na disseminação de fundamentalismos de todos os tipos, cujo exemplo é a atividade terrorista com ações e impacto global. A globalização oferece-lhes a capacidade extraordinária de comunicar e coordenar os seus esforços com um simples telemóvel ou através da internet.
Se a globalização está a fazer a guerra mais perigosa e a introduzir novas dimensões, será que modifica a sua natureza?
Se a globalização introduz substanciais alterações na sociedade, a definição de “guerra” poderá não estar completa se a delimitarmos à expressão violenta da política. Por essa razão, um erro frequente na descrição da continuação da política por outros meios é a sua delimitação à eclosão de guerra entre Estados ou nações. A guerra ocorre cada vez mais frequentemente dentro de Estados, o que significa que é possível que só um contendor seja o Estado. Além do mais, as guerras ultrapassam fronteiras sem serem guerras entre Estados. Um outro aspeto que assumimos como ponto de referência é que a continuação da política por outros meios não se limita a operações de alta intensidade. Ou seja, a utilização da força organizada para os fins da política não se limitada ao combate convencional. Por conseguinte, o emprego de forças militares em operações em proveito da paz ou por questões humanitárias deve também ser englobada na continuação da política por outros meios.
Uma vez que é a política a dar o significado à guerra através da atribuição de uma finalidade e da orientação - objetivo - passa a ser o centro de gravidade na definição da sua natureza. Por essa razão, consideramos que a guerra não deve ser reconhecida apenas como um puro ato de força e de destruição, mas um ato não autónomo, que não funciona por si mesmo e que é controlado pelas mãos da política.
Segundo Clausewitz, a guerra tem uma natureza objetiva e uma natureza subjetiva. A natureza objetiva inclui os seus atributos, que são válidos para qualquer situação: violência, dimensão humana, fricção, acaso e incerteza. A sua natureza subjetiva, ou caráter, engloba os aspetos válidos apenas para cada situação em particular: doutrina, armamento, organização, composição de forças e modus operandi, que a caracterizam como um empreendimento humano único. Assim, parece lógico que ao que assistimos é a uma adaptação do caráter da guerra, mantendo-se inalterada a sua natureza objetiva.
Interessa estabelecer uma relação entre a natureza da guerra e estratégia. Ao nível estratégico, conduzir o emprego de forças de forma regular ou irregular pode ser praticamente irrelevante, porque preocupação deve estar centralizada no modo como a sua conduta influencia o resultado do conflito. A excelência aos níveis operacional e tático são necessariamente importantes, mas sem aplicação para os fins da política, são qualidade perdida. De facto, a estratégia é uma ciência de fins.
Mas o que é a estratégia e qual a sua natureza? A resposta é composta da combinação de quatro atributos fundamentais. O primeiro, baseado em Clausewitz, representa o facto de que a estratégia se relaciona com o uso da força ou a ameaça do seu uso em proveito da política. Esta definição acaba por ser uma adaptação da famosa frase de Clausewitz, que estabelece que a “estratégia é o emprego da batalha como meio para atingir o objeto da guerra”, porque a sua orientação parece ser focalizada no campo de batalha. Porém, se expandirmos o conceito de “emprego da batalha” para “emprego dos elementos de poder”, podemos admitir que a sua definição tem cabimento para aquela adaptação. Nenhuma arma ou método são inerentemente estratégicos, porque para o serem terão de ter uma influência na vontade política do adversário.
O segundo atributo decorre da relação entre meios e fins (objetivos). Os fins representam o que deve ser alcançado e “decorrem da consideração de interesses e são expressos em termos de estado final limitados pelas capacidades e limitações dos instrumentos disponíveis. Se a política se centraliza nos fins e o combatente no emprego dos meios, é a estratégia estabelece uma ponte entre ambos. Portanto, há aqui um tipo de relação contínua entre estes dois atores e que se focaliza nas relações civis-militares.
O terceiro atributo é a permanência da relação entre o político e o combatente. Se o combatente não consegue atingir o efeito que o político pretende ou as suas ações não têm efeitos políticos, então não se pode aplicar a máxima de Clausewitz de que conduta da guerra, nas suas linhas gerais, é a própria política.
O quarto atributo é o facto de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Por essa razão, devemos ter em consideração que a guerra não deve ser reconhecida como um puro ato de força e de destruição, mas que se aplica para resolução de problemas do mundo real que não funciona por si mas que é controlado pelas mãos da política. Assim, retemos como fundamental desta breve apreciação aos quatro atributos, que a estratégia representa a instrumentalização do uso da força ou da ameaça do seu uso.
Estratégia é Estratégia seja qual for a circunstância, mas o comportamento de quem aplica a força que a estratégia orienta varia de caso para caso. Clausewitz é claro neste ponto ao afirmar que o ato de apreciação mais decisivo de um homem de Estado ou um comandante-chefe consiste na apreciação correta da forma de guerra que leva a cabo, a fim de não a tomar por aquilo que ela não é e não querer dela aquilo que a natureza das circunstâncias lhe impede que seja. Contentemo-nos em determinar o principal ângulo sobre o qual a guerra e a sua teoria devem ser abordadas.”
Patra completar a nossa referência doutrinária, focalizemo-nos agora em Sun Tzu. Pouco se sabe da sua personalidade, exceto que era um conselheiro ou general do rei de Wu (atualmente a China). O ambiente de guerra persistente em que o reino de Wu estava mergulhado permitiu a Sun Tzu desenvolver os treze princípios que hoje são conhecidos como a sua Arte da Guerra. Estes princípios cobrem um amplo espectro desde a estratégia à tática.
Para se compreender a importância que Sun Tzu dava à guerra basta citar que a guerra é de suprema importância para o Estado. É uma questão de vida ou de morte, o caminho para a sobrevivência ou para a ruína.
Em toda a sua obra se releva a preferência pela aproximação indireta, cujo estado da arte se pode resumir ao seguinte: submeter o inimigo sem combater é a excelência suprema. Sempre que possível, a vitória sobre o inimigo deve ser alcançada através do ataque à sua estratégia, evitando os seus pontos fortes. É o que faz um adversário que classificamos como assimétrico, evitando uma confrontação direta decisiva e esperando que a sua estratégia desgaste a opinião pública do seu inimigo.
O primeiro elemento da aproximação indireta é o conhecimento profundo do inimigo: quem é o inimigo? Que pontos fortes e que fraquezas tem? O que o motiva? A resposta a estas questões facilita a determinação de objetivos e a conceção de estratégias eficazes. Os problemas que os russos tiveram na Chechénia, os americanos no Iraque e a OTAN no Afeganistão devem-se em larga medida à falta de informações relevantes sobre o adversário. Outro exemplo é a guerra contra o terrorismo, cujas ameaças são multifacetadas e, por esse motivo, extremamente complexas. Surgiram de deficientes condições económicas, sociais e políticas e que foram facilmente catalisadas por ideias de extremismo religioso. Compreender as raízes do extremismo e as suas conexões em rede é fundamental para alcançar a vitória nessa luta.
Os extremistas sabem que não poderão vencer militarmente o Ocidente, mas também sabem que a sua opinião pública se desgasta facilmente com o tempo quando não se vislumbram êxitos. De facto, têm uma apurada, precisa e relevante informação sobre o seu adversário, mas o inverso parece não ser verdadeiro. Naqueles casos, os extremistas aplicam também uma outra máxima de Sun Tzu: a forma de um exército é como a água e quem obtém a vitória modificando as suas táticas de acordo com a situação do inimigo pode ser considerado divino. Há que responder às circunstâncias de uma infinita variedade de formas.
2. Análise a Conflitos Recentes: Subsídios para a compreensão das tendências do combate
É muito importante reconhecer que a terminologia associada ao carácter a guerra tem passado por constantes períodos de transição e transformação. Alguns poderão prever que o futuro será dominado pelas revoluções tecnológicas e que serão maioritariamente de atrito e regulares. Outros, por ambientes do tipo irregular, ciberwar, cuja finalidade é erodir a vontade política do oponente. Não obstante, o que se deve considerar relevante é o facto de que os exércitos que não aprenderem com os conflitos do passado poder-se-ão encontrar na posição dos franceses em maio de 1940. Sun Tzu preferia derrotar o inimigo através do ataque a pontos fracos evitando os pontos fortes.
Que métodos, então, uma força de “inferior” pode utilizar para derrotar uma de nível superior?
A superioridade ocidental no domínio aéreo e naval é demasiado esmagador para poder ser desafiado, sendo o combate terrestre o ponto central do confronto. De facto, a principal característica das forças terrestres é dominar terreno e populações o que, em última instância, representa o domínio do Estado. É também o combate terrestre que provoca mais baixas e aquele que se pretende evitar, em especial se não estiverem objetivos vitais em causa.
Batalha 73 Eastings (26-27 Fevereiro de 1991)
Esta batalha foi das mais significativas na operação Desert Storm e um exemplo claro do combate blindado entre duas forças muito desniveladas em termos doutrinários, treino e equipamento. Desconhece-se exatamente o que teria levado os iraquianos a empenhar-se contra as forças da coligação, mas supõe-se que criam na desistência norte-americana se o número de baixas que conseguissem infringir fosse elevado.
O objetivo estratégico das forças da coligação era a saída incondicional do Exército Iraquiano do Koweit. A concentração de poder militar da coligação era esmagador e o seu único receio era a utilização de armas químicas pelas tropas de Saddam. Em termos teóricos, de acordo com o potencial relativo de combate e configuração do terreno, a vitória da coligação era praticamente certa. Ao nível operacional, o VII Corps (EUA) executava o ataque principal e tinha como missão romper as defesas iraquianas e envolver por Oeste para evitar um contra-ataque da Guarda Republicana. O VII Corps utilizou como força de cobertura o 2nd Armored Cavalry Regiment para proteger o grosso das forças e localizar a Guarda Republicana.
A batalha empenhou um Grupo de Reconhecimento do 2nd Armored Cavalry Regiment contra forças de duas divisões iraquianas, uma delas da Guarda Republicana. As unidades iraquianas protegiam o flanco Oeste da cintura defensiva do Koweit e estavam preparadas para contra-atacar se os aliados conseguissem penetrar. Quando as forças de reconhecimento americanas estabeleceram contacto com as iraquianas puderam de imediato explorar as suas vantagens tecnológicas, cujo resultado foi a rotura das defesas iraquianas e a passagem segura das restantes forças do VII Corps que permitiu uma vitória em 100 horas.
Esta batalha é uma aberração como modelo de combate do futuro porque a opção iraquiana de defender fora de “terreno complexo” permitiu às forças da coligação tirarem o máximo partido da vantagem tecnológica que dispunham. O deserto não oferecia cobertura e a elevada amplitude térmica do dia para a noite facilitou de forma decisiva a utilização dos dispositivos térmicos de pontaria e do standoff dos seus sistemas de armas.
Mogadíscio, Operação Restore Hope (3-4 de Outubro de 1993)
Esta batalha é um exemplo de como uma força “irregular” pode frustrar os objetivos de uma potência militar, através da exploração de terreno complexo. A partir de um ambiente de baixa intensidade, os militares norte-americanos enfrentaram um ambiente hostil característico de alta intensidade. O combate acabou por saldar-se numa vitória tática norte-americana mas numa derrota ao nível político-estratégico.
Em Dezembro de 1992 a situação humanitária na Somália era de tal modo degradante que o presidente G. Bush ordenou que forças norte-americanas fossem enviadas para proteger e distribuir ajuda alimentar às populações. Devido ao sucesso inicial, em 1993 o comando das operações no terreno foi transferido para as Nações Unidas (NU) e iniciaram-se as operações estabilização. O ponto de viragem na situação operacional na Somália deveu-se ao facto de as NU terem declarado Aidid e o seu clan como o maior obstáculo ao processo de estabilização. As milícias controladas por Aidid iniciaram uma série de ataques a forças das NU, um dos quais acabaria por provocar a morte a 24 paquistaneses, despertando a liderança norte-americana para a necessidade de nova intervenção.
Foi utilizada a Task Force Ranger com a finalidade de executar um golpe de mão para capturar Aidid. Depois de receberem a informação de que “senhores da guerra”, incluindo Aidid, se reuniriam em Mogadíscio, foi preparada uma ação direta pelas forças norte-americanas que acabaria por redundar numa cascata de efeitos negativos ao nível estratégico.
O sucesso da operação dependeria da junção de uma coluna de viaturas no objetivo para retirar a força e transportar os elementos feitos prisioneiros. A ação iniciou-se com o movimento da força por helicópteros sobre o objetivo. Logo no início dessa ação um militar americano caiu ficando gravemente ferido enquanto o grupo de assalto surpreendia os “os senhores da guerra”. Sem ninguém ter dado conta disso, um elemento da milícia somali disparou um RPG sobre um helicóptero, abatendo-o e causando a morte à maior parte da tripulação. Com a confusão gerada, a população saiu à rua e bloqueou as ruas por onde a coluna militar passaria, privando a força de apoio sanitário e transporte durante longas horas. Para agravar a situação, a população enraivecida apoderou-se do corpo de um soldado americano e arrastou-o pelas ruas à mercê das câmaras de televisão.
As imagens marcariam um ponto de viragem no conflito. Embora um importante membro do clan de Aidid tenha sido capturado, as imagens de televisão com o soldado norte-americano a ser arrastado teve um impacto dramático na política americana, uma vez que desencadeou a decisão de fazer retirar as suas tropas da Somália em seis meses. Esta batalha demonstrou que a opinião pública é demasiado sensível a baixas em operações fora de um contexto de guerra onde estão em causa objetivos vitais.
A operação na Somália, que começou como ajuda humanitária, transitou para missão de polícia e culminou em ações de alta intensidade. A ação em Mogadíscio é um combate de uma força de primeiro nível numa área urbanizada num contexto de baixa intensidade. De pouco serviu a tecnologia e poder de fogo ao dispor da força, porque a situação política não permitia que houvesse baixas no seio da população. De facto, parece previsível que algum conflito aconteça sem uma extensiva cobertura dos media.
Operação Anaconda (Março de 2002)
O sucesso das operações de novembro de 2001 no Afeganistão para derrubar o regime taliban, levou a classificar a atuação das forças da coligação como modelo de guerra do futuro, a que Stephen Biddle denominou de Afghan Model. O modelo tinha três pilares: ações das forças especiais, munições de precisão e apoio de forças autóctones. Este modelo, embora parecesse revolucionário, não era mais do que o resultado da aplicação a um conflito típico do século XX, ao qual devemos acrescentar a utilização extensiva das armas de precisão guiadas por elementos das forças especiais.
Os taliban e membros da Al-Qaeda no Afeganistão foram surpreendidos e esmagados pela ação militar da coligação, tendo sido capturados ou abatidos cerca de 800 elementos. Porém, após o sucesso inicial da coligação, elementos taliban e da Al-Qaeda conseguiram retirar-se para o Paquistão. Por essa razão, em março de 2002 foram referenciados nas montanhas junto da fronteira do Paquistão, no vale Shah-i-Kot, consideráveis efetivos taliban e da Al-Qaeda.
Todavia, o Afhgan Model já não apanhou os taliban de surpresa. Os taliban aprenderam com os seus erros e utilizaram o terreno de forma adequada para se camuflarem e protegerem, e disciplinaram a utilização das suas comunicações. Isto permitiu “iludir” os sistemas de vigilância e reconhecimento dos norte-americanos.
Os taliban adaptaram-se à superioridade esmagadora da coligação e alterou-se significativamente o carácter do combate. A significativa vantagem na utilização dos meios de vigilância das forças americanas deixou de ser precisa e, durante a operação, os aliados foram alvo de ataques de posições não previamente identificadas. As posições estavam de tal forma camufladas que uma força aeromóvel desembarcou numa posição taliban. Isto quer dizer que o terreno, seja qual for a tecnologia ao dispor, se utilizado de forma adequada, assume características complexas que podem ser facilmente exploradas.
Os intensos bombardeamentos em apoio às forças terrestres foram incapazes de neutralizar os taliban, tal era a eficaz organização e dissimulação das suas posições. Além do mais, a maior parte conseguiu sobreviver e estar em condições para combater, sendo apenas derrotados pelas forças ligeiras em combate próximo. Isto não quer dizer que as munições de precisão não sejam letais, mas quem as orienta pode ser facilmente iludido e o efeito pretendido ficar aquém do previsto. A História está cheia de exemplos da ineficácia dos fogos massivos: em Verdun (1916) as defesas francesas mantiveram a sua eficácia defensiva após dois dias de bombardeamentos alemães; em Monte Cassino (Março de 1944) os paraquedistas alemães sobreviveram a 300 toneladas bombardeamentos aéreos e derrotaram o assalto da infantaria aliada.
Os taliban adaptaram-se à vantagem aliada e demonstraram que o fogo não é suficiente para derrotar uma força que defende aproveitando bem o terreno. Foi necessário utilizar a infantaria para os desalojar. A operação Anaconda demonstrou um “regresso ao passado”, com o sucesso a depender da combinação do fogo e da manobra e não o triunfo da nova tecnologia.
Guerra entre Hezbollah e Israel (Verão de 2006)
O conflito do verão de 2006 opôs as Forças de Defesa de Israel, força militar que nunca foi derrotada no campo de batalha, ao Hezbollah, um movimento com combatentes equipados com armamento de alta tecnologia e que desenvolveu ações que se enquadram no que designamos de combate convencional. Israel optou por uma campanha aérea e pela utilização de forças sem preparação e equipamento adequados, contando que a aviação iria infringir danos severos no Hezbollah. Embora o Hezbollah possa ser considerado uma “força de guerrilha”, colocou demasiada ênfase no controlo de terreno em vez de se disseminar com a população. Tendo como facto o domínio aéreo das FDI, o Hezbollah optou por ocupar posições defensivas dispostas em profundidade ao longo da fronteira, o que lhe permitia manobrar na retaguarda das forças terrestres israelitas.
Na resposta ao rapto de dois militares israelitas, em julho de 2006 o governo Israelita aprovou o lançamento de uma campanha aérea contra o Hezbollah para alcançar três objetivos estratégicos: criar condições para a entrega dos soldados raptados; degradar a capacidade militar do Hezbollah; e empurrar o Governo Libanês a aceitar a Resolução 1559 do Conselho de Segurança das NU para assumir a soberania no Sul do Líbano. As FDI, na tradução do objetivo político num plano de campanha essencialmente aéreo, acrescentaram um outro objetivo: reforçar a sua imagem dissuasora perante os outros estados na região.
Lançaram uma campanha aérea que, nas primeiras duas semanas, teve pouco impacto na capacidade do Hezbollah lançar rockets de forma indiscriminada sobre as cidades israelitas. Ao longo de mais três semanas os combates intensificaram-se mas os objetivos israelitas não foram cabalmente atingidos. As FDI perderam cerca de 60 viaturas, das quais 25 Carros de Combate Merkava e dois helicópteros. Mas o que mais celeuma causou foi a estratégia de emprego da força por parte do General Dan Haloutz, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas: a utilização do poder aéreo como resposta para esmagar o Hezbollah. O poder político não queria arriscar uma linha de operações com forças terrestres que causasse baixas incomportáveis para a opinião pública.
Apesar dos meios envolvidos, cerca de 360 saídas diárias de aeronaves em missões de bombardeamento, as FDI foram incapazes de travar o lançamento de rockets. A eficácia do Hezbollah deveu-se sobretudo à sua rapidez na mudança de posição, contra o tempo necessário para as FDI adquirirem alvos. O Hezbollah necessitava de oito minutos para disparar e reposicionar-se algumas centenas de metros, tempo insuficiente para o targeting israelita.
Como os efeitos pretendidos com a campanha aérea não foram atingidos, ao nível operacional foi precipitado o emprego das forças blindadas para combates não adequadas a esse tipo de forças. As FDI subestimaram a capacidade de combate do Hezbollah, baseado no equipamento de combate de última geração - mísseis anticarro, anti-navio, meios de comunicação e de vigilância - na organização e no elevado nível de treino.
A pressão por parte do poder político em executar uma campanha rápida levou ao emprego de viaturas blindadas quando o bom senso não o aconselhava. A eficácia dos blindados Merkava e M-60 implica uma ação combinada com a infantaria para sua proteção próxima, o que não viria a acontecer, deixando-os à mercê de emboscadas de curta distância. O mito da indestrutibilidade do Merkava caiu por terra, sofrendo perdas que significaram um rude golpe na sua reputação como blindado indestrutível.
O Hezbollah surpreendeu também pela sua capacidade na manipulação de imagens de televisão enquanto as FDI optaram por uma postura defensiva, lançando panfletos sobre as áreas das operações militares como meio de informação sobre as operações seguintes nessas áreas e como método para dissuasão.
Ao nível tático, embora o modus operandi das FDI fosse semelhante ao dos norte-americanos no Afeganistão, os militares israelitas não estavam preparados para se empenhar num corpo-a-corpo com as forças do Hezbollah. Este conflito demonstrou a necessidade de valorizar o combate com forças de infantaria com treino especial. Era previsível que após o longo período de combate na Cisjordânia as FDI estivessem mais bem preparadas.
O Hezbollah contava com cerca de 10.000 efetivos, dos quais cerca de 2.000, um núcleo duro, eram elementos muito bem treinados com formação baseada em manuais dos EUA e de Israel, o que a somar ao conhecimento e organização do terreno lhe deu uma enorme vantagem em combate.
Este conflito também mostrou um ator não-Estado com um comportamento militar típico de um Estado, portanto muito diferente do que se observava no Iraque e no Afeganistão o que nos dá um sinal para o facto de o combate de actores não-Estado não está limitado à ação irregular.
Com estes exemplos surgem-nos algumas tendências quanto ao que é previsível que uma força ocidental possa encontrar nos teatros de operações. O Combate convencional simétrico é o preferencial para as forças mais dotadas tecnicamente, cujo modelo mais recente foi a Guerra do Golfo em 1991. Por essa razão, devido aos resultados alcançados pelos países mais dotados tecnologicamente, não é de admitir que os menos dotados optem por este método.
Quando o adversário reconhece a vantagem tecnológica tende a encurtar o combate próximo. Devido à proximidade do combate, a força mais dotada tecnologicamente não pode explorar a sua superioridade em poder de fogo nem tirando partido do standoff dos seus equipamentos. O resultado do combate fica muito dependente do combate corpo-a-corpo e, como tal, da dimensão humana. Foram os casos de batalhas na guerra do Vietname, Grozny, Mogadíscio, Bagdade, e atualmente no Afeganistão, por exemplo.
Um outro método utilizado pelos adversários menos dotados é levar o Combate em terreno complexo. Consiste em empenhar uma força mais dotada tecnologicamente em ambiente severamente restritivo, como é o caso do urbano, onde a presença de civis e a degradação da eficácia de plataformas e armamentos são os fatores mais importantes. São os exemplos de Mogadíscio e Grozny. Além do mais, a possibilidade de danos colaterais afeta profundamente a capacidade de resposta das forças ocidentais por causa das restrições políticas e morais. Pelo seu impacto político, este último fator é determinante na escolha deste tipo de terreno para uma força de nível inferior.
A utilização eficaz do terreno restritivo combina os anteriores. Só em última instância uma força menos dotada e preparada poderia combater uma força de primeiro nível em terreno não restritivo. Entra perfeitamente neste método a Operação Anaconda (Março 2002), onde os Taliban e elementos da Al Qaeda utilizaram as montanhas de Tora Bora para mitigar a utilização eficaz das tecnologias de vigilância surpreendendo as tropas americanas a partir de posições que não tinham sido identificadas.
3. O Dilema da Segurança e os Desafios ao Combatente
A realidade e a severidade das atuais ameaças, associadas aos assuntos de segurança transnacionais que os países ocidentais enfrentam, parecem indicar um novo paradigma para a conduta das operações militares a todos os níveis da guerra.
Até ao fim da guerra fria, o dilema de segurança parecia ser “o que é ser belicoso” contra “o que é ter uma postura defensiva”. Hoje colocam-se novos desafios.
O Tratado de Vestefália viria a consagrar o facto de a soberania ser sacrossanta. A intervenção nos assuntos internos de outro país, incluindo as questões económicas e territórios ultramarinos, era considerada como agressão. Assim, a soberania tinha uma dimensão económico-militar e era primariamente defensiva.
Até ao fim da Guerra Fria as relações internacionais, donde se inclui o fenómeno da guerra, o Estado-nação foi principal ator no sistema internacional. Porém, o fim da Guerra Fria e a hegemonia ocidental dominada pelos EUA vieram a facilitar a degradação do sistema de Vestefália e emergência de um novo tipo de atores capaz de desafiar o Estado-nação. A Al-Qaeda conseguiu assumir-se como um “ator não-estado hegemónico” ao conseguir expandir a sua luta a todo o globo. O seu objetivo não pretende modificar uma ordem injusta mas uma mudança radical que passa pela destruição e substituição dos aliados ocidentais na sua área de influência por governos do seu interesse.
A íntima ligação entre as economias e as finanças ao nível global, e a expansão da democracia no mundo, reduzem a possibilidade de uma guerra entre potências, pelo que será mais comum a utilização de forças militares na franja mais baixa do espetro do conflito.
É já uma evidência que a conflitualidade intraestatal vem assumindo a primazia em relação ao conflito entre estados. O ambiente de segurança é dominado por um conjunto de dimensões que convém referir dada a sua importância no planeamento e emprego de forças:
- Atores não-estado (redes criminosas, terroristas, companhias militares privadas, gangs, etc.) estão já envolvidos num conflito cujo objetivo principal é ocupar uma posição que lhes permita assumir o poder;
- O terrorismo, ao contrário dos métodos e armas das forças regulares, é prático, calculista, cínico e barato, sendo uma modalidade de ação adequada contra adversários mais fortes;
- Muitos destes atores violentos utilizam como principal instrumento as inovações “político-psicológicas”, explorando a pobreza e a degradação social em vez de recorrer a armamento dispendioso;
- Os principais objetivos em causa nos conflitos intraestatais estão associados à influência da opinião pública e das lideranças políticas, ao contrário dos objetivos absolutos (orientados na submissão militar do adversário) característicos da guerra entre estados;
- Os atores não-estado hegemónicos (em que a Al-Qaeda não é o único exemplo) ameaçam a segurança e estabilidade internacionais. A guerra, o poder para a levar a cabo, para a destruição e manipulação da segurança das pessoas e mudanças radicais nos Estados, está mais facilmente à mercê de qualquer ator violento;
- O dilema da segurança passou a ser quando e como intervir para evitar o sofrimento humano. A soberania, que outrora estava exclusivamente ligada ao território, é a responsabilidade para proteger o bem-estar das pessoas em qualquer lado.
É um lugar-comum referir que as principais ameaças à segurança internacional são a corrupção na governação, pobreza extrema e exclusão social, terrorismo, criminalidade transnacional, tráfico de pessoas, armas de destruição maciça, desastres naturais e degradação ambiental.
A manutenção da paz e segurança no futuro próximo requer que as organizações internacionais devam ser proactivas em vez de reativas. Os líderes políticos dos Estados não são só responsáveis pelos seus cidadãos, mas também pela comunidade internacional. Assim, se a população sofre por causa de conflito interno, subversão, estado-falhado, o princípio vestefaliano de soberania tem de ser mudado para um novo conceito de soberania caracterizado pela responsabilidade de proteger e prevenir. Isto não representa uma alteração radical, nem altruísta, da ordem internacional. Afinal, não é mais do que a extrapolação dos desenvolvimentos pós-guerra fria em que as regras antigas se têm provado, no mínimo, contra produtivas e, no máximo, assassinas.
Na realidade, a guerra parece assumir uma nova máscara que não é mais do que a sua adaptação à evolução e características da sociedade. Alguns autores, como Thomas Hammes e Ruppert Smith, propuseram duas interessantes abordagens para se compreender o caráter da guerra que os nossos militares podem ter de enfrentar.
T. Hammes propõe-nos a G4G como o modelo atual, que evoluiu de outras formas sem ter havido nenhuma rutura desde o modelo napoleónico. A G4G não pretende a derrota militar do adversário no campo de batalha. A batalha decisiva, a manobra blindada e o armamento baseado em alta tecnologia são atualmente irrelevantes.
A G4G é uma forma evoluída de subversão, baseada no reconhecimento de que uma vontade política superior empregue adequadamente pode derrotar uma potência militar e económica. A G4G utiliza as redes disponíveis (políticas, económicas, sociais, informacionais e militares) para demonstrar aos líderes políticos dos adversários que o preço a pagar pelo sucesso estratégico é muito elevado ou inalcançável.
Através daquelas redes, a G4G ataca diretamente a vontade política do seu adversário. Assim, a utilização dos meios de comunicação assume um papel central na manipulação da opinião pública para colocar em causa a defesa dos seus interesses. O praticante da G4G não necessita de gastar recursos para defender instalações ou equipamento, sendo por isso uma aproximação essencialmente ofensiva. Também não necessita de grandes quantidades de abastecimentos logísticos. O que movimenta são as suas ideias e dinheiro, que são recursos que se podem movimentar em poucos segundos para qualquer parte do mundo.
Isto não quer dizer que a G4G seja baseada na rapidez. Antes pelo contrário, a G4G é lenta e o tempo pode ser medido em décadas. Não procura baixas militares, mas civis. A G4G é a guerra que as potências ocidentais vêm perdendo, derrotou a URSS no Afeganistão e na Chechénia, a França na Indochina e na Argélia. Por essa razão, este tipo de aproximação deve merecer destaque na comunidade militar e estratégica.
Ruppert Smith vai mais direto ao assunto, quando afirma que a guerra já não existe. Como é lógico, aquela afirmação é uma força de expressão, e forças militares mantêm a mesma relevância na defesa tradicional, na segurança dos cidadãos e na paz internacional, mas a liderança política e estratégica tem que compreender com o que é que se está a lidar. Por essas razões, é necessária uma adaptação na abordagem ao combate, à organização das instituições e forças militares para poder responder aos desafios da “guerra entre as pessoas”.
Para isso, R. Smith postula um conjunto de tendências:
- O objetivo pelo qual se luta passou de um conjunto de condições que decide um resultado político para um conjunto de condições através das quais o resultado político se pode decidir. Ou seja, o instrumento militar pode não ser o mais importante;
- O combate é levado a cabo entre as pessoas e não num campo de batalha aberto através de “combates regulares”. A população é simultaneamente campo de batalha, eixo de aproximação, ponto importante, obstáculo e objetivo;
- Os conflitos tendem a ser duradouros, pelo que o tempo passou a ser um importante instrumento de poder. Não se pode esperar que as operações sejam resolvidas por uma batalha decisiva;
- Combate-se mais pela proteção da força do que pela obtenção de um objetivo militar. Isto quer dizer que a composição de forças deve ter este aspeto em consideração. Não é nada descabido que uma força seja constituída por meios militares e por meios civis e que as forças militares sejam primariamente utilizadas na sua proteção;
- Por isso, em cada situação deve procurar-se a utilização eficaz para organizações e equipamentos que são característicos da era industrial;
- As partes em conflito são maioritariamente não-estados.
Há que referir que este tipo de guerra é combatido contra adversários que se imiscuem com a população para dificultarem a sua identificação e aquisição. Como nenhuma ação militar convencional será decisiva, ganhar a confiança da população é o objetivo mais eficaz. O potencial de combate deve ser entendido como a capacidade de cumprir a missão, num somatório de meios e métodos em que o mais importante a reter é que a informação vem substituindo os fogos letais e as forças militares podem não levar a cabo a operação decisiva.
Contra um adversário que evita o confronto direto, que evita o terreno aberto, que procura a reação excessiva das nossas forças, que utiliza todo o tipo de redes para garantir liberdade de movimentos e de ação, que procura que as ações táticas tenham importante repercussão estratégica, a única limitação para o emprego de forças e da força é a imaginação do homem. A vitória no conflito contemporâneo requer a utilização de civis, polícias, especialistas em finanças, economia, propaganda, etc. Todavia, há que ter como referência central que as forças militares conduzem operações militares. Todavia, podemos melhorar as suas perícias em aspetos não essencialmente militares.
4. O Combatente e a Orientação às Operações Militares
Como tentámos apresentar, a atuação das forças militares é meramente instrumental, não é um fim em si mesmo. Serve a política com o objetivo principal orientado à manutenção da soberania, a qual deve ser entendida como o bem-estar das pessoas. Para obter sucesso nesse desiderato, há que estar preparado para responder a um enorme conjunto de questões que se deparam ao combatente:
a. O que torna o ambiente operacional ambíguo?
A dificuldade em distinguir o que é criminalidade, .terrorismo, subversão, milícias, grupos paramilitares, gang’s. Virtualmente, não há regras. Aquelas ameaças são essencialmente internas, mas os seus efeitos estendem-se para além das fronteiras. Por serem uma questão interna e não uma questão entre Estados, é difícil encontrar uma posição comum na comunidade internacional.
Além do mais, neste contexto, não há terreno que possa ser ultrapassado, conquistado, não há limites nem fronteiras, campo de batalha que possa ser ignorado ou utilizado.
b. Quem é o adversário? Quais as suas motivações e objetivos?
Apesar de tantos anos focados num inimigo tradicional que punha em perigo as nossas fronteiras, instituições e recursos, as experiências dos últimos 50 anos demonstram que os conflitos dominantes foram do tipo “subversivo”. Parece ser este o conflito mais provável em que as forças militares possam estar envolvidas.
Afinal, o centro de gravidade (CoG) deixou de ser uma força militar típica da geração industrial (G3G). Hoje, e num futuro previsível, o inimigo típico é um ator político que atua de forma direta ou indireta através de ações multidimensionais, militares e não militares, letais ou não letais, no exterior ou no interior do país, com o objetivo de ameaçar a sociedade e o bem-estar das populações, explorando as causas da instabilidade interna.
O confronto militar direto não tem relevância para o seu sucesso, o qual é baseado na erosão moral e política do seu adversário. Tal como Clausewitz nos transmitiu, o CoG pode mudar de um conceito familiar relativo a forças militares para outros tipos como a opinião pública e liderança política. Por isso, não se pode esperar que o objetivo primário do emprego de forças num operação militar seja a captura ou destruição do inimigo.
Este, dissimula-se com a população e não dispõe de grandes bases de apoio. Por essa razão, o papel esperado para a ação militar é o estabelecimento de condições político-psicológicas como contributo para o objetivo político. Ao nível tático, espera-se que o inimigo procure a liberdade de movimentos e de ação. Ao nível operacional, espera-se que pretenda alcançar objetivos políticos de curto e médio prazo e que promova a sua aceitação, credibilidade e legitimidade de facto junto das comunidades locais, nacionais e até internacionais.
Irá procurar minar o governo estabelecido para evitar que consiga levar a cabo as suas funções básicas; influenciar a mudança de políticas; isolar as comunidades raciais ou religiosas do governo central e substituí-lo nas suas funções básicas; transformar essas sociedades isoladas em “estados virtuais” controladas por si; conduzir ações táticas com objetivos estratégicos para garantir a erosão política do seu adversário. Cabe-nos contrariar esta estratégia.
c. O que é que as lideranças militares e políticas devem saber?
Os conflitos atuais podem ser totais em três diferentes dimensões: âmbito, território e tempo. No seu âmbito e território envolvido, o conflito atual envolve populações inteiras, os seus vizinhos e aliados. Ao mesmo tempo envolve ONG, Organizações Voluntárias Privadas, alianças, e outras organizações. Partindo do facto que o inimigo vive com a população e procura a todo o custo derrubar os governos seus adversários, destruir ou causar danos nas sociedades, o conflito atual é guerra total na aceção da referência clausewitziana. É um jogo de soma zero no qual só existe um vencedor.
Como consequência, a outra dimensão, o tempo, passa a ser um importante instrumento de poder do Estado. Quem for mais paciente obtém uma significativa vantagem. O momento é de guerras de ideias, guerras irrestritas sem as regras tradicionais, limitações e métodos convencionais.
A todos os níveis, as lideranças devem compreender a natureza da subversão, especialmente o modo como se utilizam os elementos militares e não militares, letais e não letais, e que aproximação, direta ou indireta, para alcançar os objetivos políticos. Não se pode esquecer que o tempo corre sempre a favor da subversão.
d. Como é que é que as lideranças militares e políticas devem relacionar-se com outros profissionais e populações?
Espera-se que o pessoal militar e civil envolvido em operações atue de forma colegial em coligações e em operações multinacionais. Devem também ser capazes de atuar colegialmente com a população e com os media locais e estrangeiros. Por essa razão, tem de haver um esforço conjugado entre todos para que se melhore a interagência e a consciencialização cultural através de programas conjuntos de ensino e instrução militares, de ensino de língua estrangeira e programas multinacionais.
e. Que outras tarefas devem os “peacekeepers” saber fazer?
Para além de manterem os beligerantes afastados e de participarem em tarefas do foro não militar, os combatentes envolvidos em operações em proveito da paz e segurança internacional devem estar aptos a conduzir operações militares de combate “strictu sensu”. É muitas vezes imprevisível saber quando a situação vai escalar e quando é necessário o emprego da força de forma convencional. Sabe-se que a atuação clássica não é solução para os conflitos atuais, mas também se sabe que sem ela são muito mais difíceis de resolver.
f. Quem é o combatente? O que representam todas estas questões para o combatente?
O combatente é um jovem que decidiu juntar-se às forças armadas por várias razões, das quais podemos destacar a possibilidade de um emprego, por devoção a uma causa nobre, pelo gosto do risco e aventura, e muitas outras. É um soldado e um quadro muito diferente do militar do serviço militar obrigatório. Também o momento é substancialmente diferente. A obrigação da defesa territorial contra um inimigo que pretendia o controlo do continente europeu foi substituída por um conceito muito mais alargado: a soberania da segurança internacional.
Porém, há que ter em mente que essa viragem tem implicações diretas no sucesso das operações e nas motivações dos combatentes. A soberania orientada à defesa territorial da pátria era, e é, um objetivo vital. Por essa razão, é facilmente compreensível a morte no cumprimento do dever. Mas a orientação em objetivos que se afastam geograficamente do país introduz um elemento central nas operações atuais: é muito fácil o desgaste da opinião pública e o líder político pode não aceitar correr o risco. É necessário ter em conta que a dimensão política interna é por vezes a dimensão mais importante nas decisões de política externa.
As democracias têm horror à guerra porque o seu principal “negócio” é o comércio. Quando não se trata de objetivos vitais, as democracias tendem a transformar as suas forças para evitar o “combate de última milha”. Por essas razões, as doutrinas de emprego de forças têm sido dominadas por conceitos como o mais rápido, o mais forte, o mais tecnológico o mais letal. Mas vem-se provando que esse modelo não é adequado aos desafios do presente.
O sucesso para lidar com os atuais desafios, como os casos da promoção do bem-estar e desenvolvimento, estão intimamente dependentes da necessidade de contacto com as populações e no desenvolvimento de medidas que ataquem as causas da instabilidade. Assim, para além da necessidade de um reforço educativo orientado a outras perícias que não o combate é necessário um reforço educativo orientado na cidadania que facilite a ligação entre o príncipe e o soldado.
Os desafios e tendências descritos não são radicalmente diferentes do que costumávamos fazer. São, acima de tudo, uma extensão lógica da segurança e defesa nacional. Se aceitarmos que estas tendências nos ajudem a completar as nossas capacidades e perícias, provavelmente o nosso país estará muito mais apto a contribuir para a cooperação, paz e segurança internacional.
Os esforços cooperativos com outras agências e civis não são fáceis de iniciar nem alcançar. Contudo, parece-nos um caminho lógico para que o preço a pagar pela manutenção da soberania seja mais baixo do que é atualmente. Afinal, o dinheiro e a eficácia também contam.
Considerações Finais
Tenente-general PilAv António de Jesus Bispo
Portugal passa por uma crise difícil. Não poderá ser certamente equiparada a outras grandes crises da sua História, porque ainda não sabemos o seu desfecho, mas, em qualquer caso, é uma crise com um formato novo. Crise significa decidir, e decidir provoca mudança. Contudo, se não formos capazes de decidir, o resultado mais provável será o caos, a que se seguirá um resultado determinado por factores externos e não pelos agentes institucionais responsáveis.
O objecto da crise actual mais frequentemente referido é o da situação económica e financeira, e esse é sem dúvida o mais sensível e imediato. Mas existe um outro objecto, menos debatido mas mais importante do que este. Trata-se, do nosso ponto de vista, das possíveis consequências do processo de mudança de paradigma político e social, ou de uma crise de valores, se assim quisermos dizer.
O combate mais importante para Portugal é o combate pela afirmação credível no contexto mundial, para reforço de todas as vertentes do seu poder. Não para exercer domínio, para afrontar os outros actores, ou para sonhar com novos impérios, mas para exigir respeito internacional e dignificar os seus cidadãos.
Para este combate estão convocados todos os Portugueses.
É preciso reforçar a consciência nacional no quadro actual das interdependências, e da defesa dos valores universalistas que todos dizem seguir, fazendo profissão de fé, mas que muitas vezes ponderam em função das conjunturas.
Nos tempos actuais exige-se muito mais sabedoria na gestão das soberanias, na medida em que se exige que a utopia conviva com o exercício tradicional dos factores de poder.
Apesar da mobilidade resultante da abertura das fronteiras, por onde passam as coisas boas e más, é fundamental dispor da capacidade para levantar projectos nacionais liderados pela inteligência nacional, que é o resultado dos contributos individuais dos nacionais mais qualificados, sem prejuízo da liberdade intelectual orientada para o reforço do Conhecimento e o progresso da Humanidade. A exportação forçada de cérebros, a um custo desvalorizado pela actual situação de fraqueza, de vulnerabilidade ou de dependência, tem uma contrapartida muito limitada em benefício dos objectivos nacionais.
Neste pressuposto, a Conferência deste ano procurou reflectir sobre uma vertente específica desta questão, designadamente sobre alguns aspectos de Segurança e Defesa associados à hipotética mudança que referimos.
De facto, a ideia de Segurança que vem sendo consolidada desde o início dos tempos, e que sobreviveu a todas as convulsões ideológicas entretanto ocorridas, parece estar hoje a ser objecto de ataque aparentemente insidioso e a ser encarada segundo uma perspectiva unilateral, isto é, rejeitando assumir os seus encargos e escamoteando os seus aspectos positivos. Parece que se vai assim criando a ilusão de que o progresso será possível sem custos, de que os futuros risonhos não necessitam de ser construídos e que surgirão como dádiva natural, ou como resultado da interacção voluntarista, que o desenvolvimento é possível sem que a segurança esteja garantida.
Na base desta posição está uma visão nova sobre os fins propostos para os sistemas políticos, ou seja, para os fins políticos da governação. De acordo com esta visão, estes sistemas deverão proporcionar a realização das possibilidades imaginadas pelos indivíduos. Foi esta convicção que conduziu à dívida monumental e aos colapsos financeiros e económicos, e ao aproveitamento subsequente das vulnerabilidades assim criadas, por aqueles que no final ficam com mais poder.
Esta perspectiva, assim tão simplesmente apresentada, poderá ter como última consequência, a prazo, a irrelevância da Nação e dos valores tradicionais que a sustentam. Como pressuposto daquela visão, os seus autores defendem que, para que estas possibilidades individuais possam ter expressão, será necessário criar uma situação de plena liberdade individual. Igualmente sugerem que a vontade dos cidadãos no sentido da realização daquelas possibilidades determinará o comportamento do sistema, isto é, o exterior deixará de ser factor de estímulo para o comportamento da unidade política, para o alcance dos seus objectivos próprios, que deixarão de existir como tais. O que passará a existir será apenas o que estiver relacionado com a realização das possibilidades dos indivíduos eticamente descondicionadas. Deixará de existir uma atitude racional perante o exterior, assim como uma decisão unitária determinada por factores objectivos analisados de forma integrada.
Nesta teoria, assume-se obviamente que o indivíduo, ao se orientar na sua actividade, avalia as posições dos outros, e tem a sabedoria para procurar a harmonia e evitar a colisão de trajectórias de vida. É evidente que esta manifestação de liberdade, numa acepção de auto condicionamento, sem possibilidade de conflito, terá subjacente uma ideia de limite que se expressas pelas diferenças e pelas fronteiras.
Algumas correntes de pensamento, não deixando de considerar esta ideia de limite, não lhe dão o valor que lhe era atribuído no passado, e não parece que forneçam pistas para a sua ultrapassagem, sobre o que deveremos pensar ou fazer nesta nova circunstância.
De facto, no passado considerava-se que o caos e a desordem eram empurrados para além das fronteiras, no interior das quais existia ordem - hoje parece que caminhamos, no plano das ideias, para a situação contrária.
O pensamento tradicional considera que é a segurança que cria espaços de liberdade, que poderão ir sendo sucessivamente ampliados por força da actividade dos diversos agentes, tendo em conta o contexto; hoje parece fazer-se crer que a segurança é a única fonte da opressão e da injustiça, propondo alguns autores que nos libertemos dessa situação, desse fardo que pesa sobre os ombros dos indivíduos. Sem fazer esta menção explícita, é nesta linha que hoje se diz que a defesa deverá ser orientada para a defesa dos cidadãos, em vez do conceito clássico da defesa do território ou da unidade política - em caricatura poderíamos dizer que nesse futuro não faria sentido falar de defesa nacional.
Neste contexto das ideias, é preciso acreditar que a Instituição Militar continuará a assumir um pensamento consequente, isto é, que tenha em vista as consequências das decisões actuais, analisando os perigos potenciais à vida colectiva e preparando-se para os enfrentar, no caso da pior situação possível, em última instância, preparação que envolve o conhecimento crítico dos debates da actualidade. Na continuação deste enunciado, será necessário convocar duas entidades que deveriam estar permanentemente no centro do debate, mas que não estão porque se procuram contornar: são elas o Estado e a Nação.
As declarações sobre a morte do Estado começaram antes do início do fenómeno da globalização, quando foi introduzida a ideia dos grandes espaços. Foram notícias um pouco exageradas. É certo que o Estado Hegeliano, detentor exclusivo e último da Razão, vai-se fingindo ignorar cada vez mais, e o Estado real vai-se transfigurando, com novas roupagens ideológicas, sem perder no entanto a sua característica essencial, agora designada como regulação, braço mecânico da mão invisível. Nesta perspectiva caricatural, se o Estado deixasse de ser a figura principal do sistema político, as instituições que o suportam poderiam ser obviamente dispensadas, ou modificadas para passarem a ser apenas figuras simbólicas ou ornamentais.
Com o fim da guerra fria, alguns autores e líderes políticos acreditaram que estávamos em presença de uma nova Ordem Mundial. A realidade no entanto veio demonstrar que, em vez dessa situação, passaram a existir várias Ordens, onde as regras de comportamento e os instrumentos da acção são diferentes, sendo que uma dessas ordens é a que é baseada no Estado Moderno, que monopoliza os meios de gestão da violência, e que continua a subsistir, outra é a que se caracteriza pela falência do Estado onde impera o caos e a desordem, e finalmente uma outra, a Pós Moderna, que corresponderá à configuração ocidental, em particular a europeia. Contudo, a crise que atravessamos parece colocar em causa esta última, pois são os Estados, e não outra entidade qualquer, que estão no centro do furacão que nos está fustigando, pelo que se lhes exige que façam.
A figura do Estado Pós Moderno será então caracterizada, segundo os teóricos seus proponentes, pela abertura aos outros, pela transparência total de intenções, pela aceitação da vigilância e interferência mútuas, pela ausência de interesses estratégicos na justa medida em que não existem preocupações quanto aos posicionamentos dos outros estados pós-modernos, pelo privilégio absoluto da negociação quanto aos desenhos das possibilidades, pela indiferenciação entre negócios internos e negócios estrangeiros, pela rejeição da força, em qualquer circunstância, para a resolução de conflitos. Neste contexto, seria legítima a pergunta quanto à necessidade da força militar. Contudo, a pergunta não é explicitamente feita, provavelmente porque não se encontra uma alternativa viável; os proponentes deste Estado pós moderno não a eliminam do seu conceito de forma clara, apenas a ignoram. A razão pela qual a resposta não é dada é porque um Estado pós moderno pode encontrar, no âmbito das suas relações, Estados pré-modernos ou estados modernos, onde a força continua sendo uma forma última da resolução dos conflitos extremados e em legítima defesa, e por força desta contingência deverá estar preparados para enfrentar essas situações.
Não será necessário aprofundar muito a análise para concluir que esta proposta é utópica. Bastará olhar em redor para ver que o Estado continua a ser o actor principal, em especial nas situações de crise, mesmo tendo em conta as interdependências actuais e as alianças. A soberania assumiu formas diferentes, face à teia de interesses que actualmente se desenham, mas não foi extinta por decreto, de forma radical. Apesar da proibição da guerra, a verdade é que a violência atinge limites dramáticos em muitos pontos do Mundo.
A outra entidade que resolvemos trazer para este debate é a Nação, e aqui passa-se um fenómeno semelhante: parece pretender-se colocá-la atrás do biombo da indiferença, a pretexto de nos defendermos do nacionalismo doentio ou do xenofobismo. Parece rejeitar-se a referência aos valores da Nação, mesma que ela seja feita de forma equilibrada, porque essa referência traz consigo perigos. Não nos parece que seja uma atitude construtiva passar de um extremo a outro, pois assim negamos um valor indiscutível que deve ser preservado, a propósito de um receio de se cair numa situação irracional, extremista, em consequência de uma ideologia totalitária. A ideia de que uma parte do ser humano está intrinsecamente ligado, ou faz parte do colectivo, é fundamental para o entendimento de que a organização social e política é condição de promoção do indivíduo. Foi o colectivo que foi desenvolvendo os sentimentos de pertença e de partilha, criando a nacionalidade como forma superior de convivência. Existe, portanto, um legado cultural que deve ser respeitado para se caminhar na senda do progresso, há uma ideia de Pátria que deve ser honrada. E todos estes valores podem e devem ser salvaguardados num quadro de cooperação com os outros.
Embora não o expressando explicitamente na gestão diária das suas vidas, os portugueses querem, indubitavelmente, continuar a ser portugueses em vez de abandonarem essa qualidade a benefício de outras vantagens materiais imediatas, e nisso definem a sua dignidade própria.
Sem nos alongarmos mais, estes serão os combates mais importantes por Portugal - os Portugueses esperam que as lideranças políticas escolhidas por um processo genuíno possam conjugar vontades neste sentido, e criar condições para um reforço da coesão nacional, em clima de equidade e responsabilização.
Nestes combates, a Instituição Militar nunca poderá ser dispensada porque ela continuará sendo, pela sua própria natureza secular, a sede fundamental de cultura dos valores da Nação, onde se coloca a defesa da Pátria, e de tudo que ela encerra, ao nível do valor da vida. A Instituição Militar é um dos pilares do Estado e fundamenta a sua existência na defesa dos valores da Nação, em última instância, apesar dos fins da sua intervenção serem definidos pela política, por razões de equilíbrio que a História foi ensinando.
É por tudo isto que o nosso debate incluiu uma reflexão sobre as relações civis militares, tanto ao nível da articulação política dos fins com os objectivos militares, como ao nível do apoio civil às funções militares, e da participação militar em tarefas de reforço da nacionalidade.
Não se podem alterar por decreto os elementos identitários das Forças Armadas; se esses elementos deixarem de conter tudo o que decorre da defesa militar da Nação, em situação de última instância, estaremos em presença de uma outra instituição, e não da Instituição Militar. As Forças Armadas tiveram no passado um carácter seminal na construção das sociedades políticas, pela criação de espaços de liberdade, pela concentração de capacidades ou de especialidades que eram exigidas para o caso extremo da guerra, e que puderam servir também para a construção das próprias sociedades - apesar da situação ter tido uma evolução em que a sociedade se auto sustenta, existem ainda muitas áreas em que as Forças Armadas se poderão constituir como fontes de desenvolvimento, em especial quando a sociedade enfrenta situações extremas, em que a sua segurança pode ficar em risco. Em qualquer circunstância, seria um erro profundo colocar as Forças Armadas numa situação de gueto, desligadas da Nação que servem, ou ignorar o seu carácter de aplicação em situações drásticas de último recurso, sem ambiguidades da linha de comando - na situação profundamente materialista e individualista em que vivemos, em que o horizonte político não passa para além do imediato, é possível que a falta de conhecimento sobre estas matérias conduza a situações desta natureza.
É dito com frequência, nos dias de hoje, que não existem ameaças às sociedades ocidentais, ao contrário do que aconteceu no passado século, na medida em que não se conseguem identificar e medir com precisão os perigos que impendem sobre essas sociedades. Contudo, os riscos, que correspondem àquelas situações de perigo difusas, difíceis de identificar, são numerosos, ao ponto de se caracterizarem as sociedades actuais como sociedades de risco. Esta “nuance” semântica é aproveitada por alguns pós modernistas para negarem a necessidade ou inutilidade da Estratégia, para reforçarem a sua posição de crentes num mundo harmonioso, por natureza, para desvalorizarem o papel das Forças Armadas nas sociedades desenvolvidas, sobrevalorizarem a opção preventiva com a utilização de instrumentos políticos, económicos e sociais. Ora acontece que, ao contrário do passado recente, o que importa é poder dispor de tecnologia militar, de forças e de doutrina que permitam actuar e reagir a situações de risco elevado e de espectro alargado, em vez de uma orientação precisa contra uma ameaça específica e conspícua. Por outro lado, sendo as Forças Armadas concebidas para serem usadas em último recurso, deverão dispor de capacidades que suplantem as de um inimigo difuso que se esconde no meio da sociedade, e de outras organizações cujo escopo é a actuação a um nível de risco inferior. Nestas circunstâncias, o planeamento da defesa deverá ter por objecto a constituição equilibrada de capacidades, em função do querer nacional, dos recursos nacionais e da análise realista das contingências - só a partir deste patamar de planeamento será possível conceber partilhas com outros aliados. Neste mundo de riscos permanentes, onde cada País procura estar apto a enfrentar as catástrofes resultantes da manifestação real desses perigos, e a prevenir a sua consequência dramática, as Forças Armadas desempenham um papel fundamental, pelo que será necessário pensar num relacionamento civil militar saudável, em que as linhas de autoridade deverão ser compatíveis com a natureza da missão atribuída e da função institucional própria.
A situação difusa que procurámos enunciar, e que será típica das situações de paz, mesmo com as convulsões e os perigos ou riscos da actualidade, tende para a desvalorização do que está no cerne das Forças Armadas e que é a sua capacidade para ganhar combates. Por outro lado, a comunidade internacional coloca o seu enfoque na salvaguarda dos direitos humanos, em qualquer ponto do planeta, o que pode exigir acções de força num quadro de operações de apoio à paz. Cada Estado, ao participar nestas operações está igualmente a promover os seus interesses próprios de credibilidade e de reforço do seu poder. Em todo o caso, é sempre preciso ter presente que as Forças Armadas só terão justificação própria se tiverem a capacidade para enfrentar o combate clássico com a tecnologia que estiver disponível. Independentemente das circunstâncias ideológicas, políticas ou estratégicas as Formas Armadas nunca deixarão de cumprir os compromissos que assumiram perante a sociedade que agora se constitui em Nação, e sempre assim foi desde o início dos tempos, desde a existência das sociedades primitivas, pela própria natureza das coisas.