Nº 2521/2522 - Fevereiro/Março de 2012
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Sobre as condicionantes políticas e diplomáticas de Portugal durante a Guerra Peninsular (1808-1814)
Doutor
Pedro de Avillez
I - O Pensamento Político e Militar de Napoleão
 
O sistema europeu do mando de Napoleão
 
Napoleão dizia “há muitos e bons generais na Europa, mas vêm demasiadas coisas; eu não vejo mais que uma...” Também dizia “o meu talento é ver claro”.
 
Para o estudioso de História contemporânea o problema está exactamente em ver claramente uma só coisa, em discernir no meio do turbilhão dos acontecimentos sociais, económicos militares, nacionais e internacionais, a última e firme linha política, o argumento, o fio condutor. Falar do pensamento político e militar de Napoleão também tem essa dificuldade, discernir entre tantos escritos.
 
Luteranismo, cartesianismo e liberalismo de Rousseau levam-nos, em termos nacionais, às teses políticas do individualismo, da pessoa. Tudo foi empurrado pelo desenvolvimento do movimento iluminista de Rousseau. A idade contemporânea, pós-renascimento, viverá do problema “constitucional”, que irá abordar a situação do indivíduo na comunidade nacional. Já em termos de relações internacionais, será a afirmação da “pluralidade” e da “soberania” das nações. A Comunidade Internacional procurará uma ordem, uma norma de vida na variedade das nações.
 
Para falar da ordem internacional entre as nações temos que começar por distinguir qual o racional ou a definição de uma direcção da organização do poder. Em termos lógicos só temos quatro soluções: manda um, mandam vários, não manda nenhum, mandam todos. Nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, na Europa viveu-se em torno de três destes quatro modelos. O mando de um, que foi o Império Napoleónico europeu, o mando de vários, o Directório e o Congresso de Viena, e o mando de nenhum, a Europa dos “equilíbrios de poder”.
 
Debrucemo-nos então neste ensaio sobre o mando de um, na organização Napoleónica. O mando de todos, só começará a realizar-se mais tarde, no século XX com a Sociedade das Nações e a O.N.U….
 
Estudar Napoleão
 
A grande dificuldade de estudar o período napoleónico começa por ser a abundância asfixiante de bibliografia. Já no princípio do século XX Bainville dizia que uma boa biblioteca napoleónica deveria ter uns 10.000 livros e o essencial seriam cerca de 500 obras. A Bibliographie des Napoleonischen Zeitalters publicada por Kircheisen em Berlim em 1908-12, referia mais de 100.000 títulos! Segundo Jean Tulard hoje serão pelo menos 200.000 títulos... Em termos pessoais, possuo apenas umas modestas 900 obras, incluindo os cerca de 60 livros publicados pela Tribuna da História sobre esta época, e confesso que tenho dificuldade em as assimilar todas...
 
Tentar definir Napoleão
 
Um dos biógrafos de Napoleão, Teixeira de Pascoaes, dizia “Napoleão não cabe na sua época. É um Deus da Antiguidade que se atrasou no caminho”. Mas Napoleão afinal era apenas um ser humano, como nos lembra a cena, imortalizada no quadro de David, do jovem general Bonaparte trajando paramentos teatrais e avançando com grande pompa para o altar na Catedral de Notre-Dame, onde o esperava o Papa para o seu coroamento, o sacre, rodeado de uma multidão de dignitários ricamente aperaltados, alegadamente se voltou para o seu irmão mais velho, sussurrando: “José, se o nosso pai nos visse!..”.
 
Todos os seus actos foram recolhidos, analisados, discutidos. Todas as suas palavras também. Dai a confusão no que respeita às suas concepções políticas, às suas ideias e ao “sistema napoleónico”. A contradição dos textos provoca muitas confusões. Por vezes dizia uma coisa, outras vezes dizia o contrário. Talvez tenha sido sincero as duas vezes, talvez não tenha sido sincero nenhuma. Hilaire Belloc (Napoleon, Londres 1934 p.12) concluía: “uma breve leitura de Napoleão convence-nos que fala livremente e contraditoriamente, às vezes com um objectivo, por vezes com outro. Amiúde, é tão-somente a expressão momentânea de qualquer fantasia que lhe passa na cabeça, de uma paixão ou de alguma desculpa.” Em 31 Março 1797 em Klagenfurt, dirigindo-se ao Arquiduque Carlos, generalíssimo austríaco, Napoleão, como general vitorioso de Itália, disse: “Senhor General-Chefe, os militares valentes fazem a guerra e desejam a paz... se a proposta que tenho a honra de vos fazer pode salvar a vida de somente um homem, sentir-me-ei mais orgulhoso dos louros cívicos que haverei merecido, que das glórias que podem advir das minhas vitórias militares”. Porém em Dresden, em 26 de Junho de 1813 Napoleão assegura a Metternich: “vós não sois soldado e não sabeis o que se passa na alma de um soldado...um homem como eu não se preocupa com a vida de um milhão de homens!”. Em cada momento utiliza a linguagem adequada, que a ocasião faz contraditória.
 
De jovem oficial a figura política
 
Em 1789, jovem oficial com 20 anos é mandado reprimir os habitantes de uma aldeia sublevada com quem a sua consciência política simpatiza. Antes dos seus soldados dispararem grita: “que a gente honrada volte a suas casas. Só disparo sobre a canalha!” A multidão dispersou-se… não queria ser associada à canalha! A sua militância revolucionária levá-lo-á, quando da repressão violenta em Paris no cerco popular à Assembleia em 20 de Junho 1792, a dizer a Bourrienne: “varridos 400 ou 500 com os canhões, o resto desaparecerá a correr...”. Mais tarde no 13 Vendimário, depois da queda de Robespierre, enquanto se discutia o direito de usar a força contra a força, contra as revoltas populares realistas, contou ele próprio nas suas memórias ter dito: “estão à espera que o povo lhes dê autorização para atirar contra eles?... Então abandonei os advogados que se afogavam em palavras, e fiz marchar as tropas!”.
 
Desde cadete já era devorador de livros, em particular leitor entusiasta de Voltaire e Rousseau. Anteriormente à revolução francesa militava no ódio à França, em defesa da sua Córsega natal anexada à monarquia francesa. As suas actividades políticas na adolescência obrigam-no a refugiar-se em França onde envereda na carreira de oficial de artilharia, e segundo testemunhos consagra todo o seu tempo livre na leitura do ideário iluminista do seu século. Com o rebentar da Revolução Francesa adere logo ao movimento revolucionário. Este desprendimento de pátria e de adesão ideológica preferencial, explica talvez a sua insensibilidade aos sentimentos nacionalistas que mais tarde a sua política externa irá provocar na Europa.
 
As ideias do primeiro cônsul
 
Abandonando o seu exército expedicionário da República no Egipto, chega a Paris em Outubro de 1799, rodeado dos seus fiéis oficiais e começa, com a colaboração de seu irmão Lucien, Presidente do Concelho dos Quinhentos, e de republicanos Jacobinos moderados, a preparação para o golpe de estado que irá substituir o Directório jacobino por um triunvirato de Cônsules. Napoleão envereda pela sua carreira política convencido do seu destino histórico. Mas irá procurar uma base de apoio consensual. Já Cônsul, em Novembro de 1799, na sua proclamação de Consulado diz: “para consolidar a República é preciso que as leis sejam baseadas na moderação, na ordem e na justiça. A moderação é a base da moral e a primeira virtude do homem. Sem ela o homem não é mais que uma besta feroz, sem ela pode existir uma facção mas nunca um Governo nacional”. Mais tarde dirá a Cambacérès: “governar com um partido é colocar-se tarde ou cedo na sua dependência. Não cairei nisso. Eu sou nacional”. Ao assumir a função de membro do triunvirato do Consulado em Dezembro de 1799, declara no Concelho de Estado: “acabemos a novela da Revolução, agora é preciso começar a História”. Mas não esquece que a sua legitimidade política será a sua ligação ao período revolucionário. Depois de escapar a um atentado em Dezembro 1800 na rua St. Nicaise, dirá: “queriam destruir a Revolução atacando a minha pessoa; defendê-la-ei porque eu sou a Revolução!”
 
Madame de Staël no entanto em 1798 advertia já da ilusão com o jovem general herói com propostas de ditador, com quem todos os políticos se entusiasmavam na ânsia em conseguir a paz social numa França cansada de violência e dizimada por anos agrícolas sucessivamente catastróficos, e escrevia: ”Era a esperança de uns e outros; republicanos, monárquicos, todos viam o presente e o futuro no apoio da sua mão forte”. (Madame de Staël será expulsa de França em Outubro de 1803). Os franceses procuravam um conciliador que conseguisse unir as mudanças políticas e sociais da Revolução com a França tradicional e cristã. O pensamento de Napoleão neste ponto era bem claro, o governo da República terá que se esforçar para que as lutas entre franceses tenham que acabar.
 
A Constituição que irá criar o governo executivo da República entregue a um triunvirato de Cônsules será aceite por um plebiscito. Napoleão como Primeiro Cônsul irá iniciar o seu trabalho de união da República com a França religiosa, ele que era ateu, celebrando uma Concordata que conseguiu com alguma dificuldade fazer aceitar pelos seus correligionários Jacobinos, assinada em julho de 1801. Seguir-se-à o seu casamento religioso com Josefina e depois o coroamento pelo Papa, ambos em Dezembro de 1804.
 
Depois ocupou-se da facção monárquica da França profunda. Primeiro, para afastar o perigo latente de conspirações monárquicas, irá organizar em 15 de Março de 1804 o rapto na Alemanha do duque d’Enghien, membro da família Bourbon, sobrinho de Filipe d’Orleans, que cinco dias depois será discreta e sumariamente julgado e rapidamente fuzilado na fortaleza de Vincennes, num processo atabalhoado, injusto e cruel. “Bonaparte cesse d’être un possible Monk pour devenir un futur usurpateur...” (Alfred Fierro, Histoire e Dictionaire du Consulat et de l’Empire, Laffont, 1995). Mas a França está ansiosa para ultrapassar os 15 anos de violências, e conseguir um viável entendimento social. Já antes no Directório haviam começado amnistias, entregas de patrimónios confiscados e pequenas indemnizações, o que irá facilitar o trabalho de Napoleão “aglutinador” dos franceses.
 
A criação do império francês
 
A criação do Império em Dezembro de 1804 será plebiscitada, com o voto favorável de 92% dos três milhões e meio de votantes, cerca de 10% da população francesa. A República dos Jacobinos foi construída na base de poder de uma elite burguesa de notáveis. No exílio em Santa Helena Napoleão dirá: “quanto mais o povo é esclarecido, mais haverá gente convencida da necessidade das leis, da necessidade de serem defendidos e mais a sociedade será sensata, feliz e próspera” (Las Cases, Memorial, 29 de Novembro de 1815). Longe de considerar a promoção social e cultural, Napoleão só pensava na importância e influência de uma elite poderosa, fundamento e senhora da gestão da sociedade, e é a esta criação e ao seu reforço que se irá consagrar. Neste sentido, a fusão dos vestígios dos “antigos privilegiados vítimas da Revolução”, com os “novos poderosos” nascidos com esta, passou a ser o seu imperativo. O essencial era deixar bem visível a autoridade política como fonte fundamental de todo o poder social. A ideia de reservar de facto a vida política a uma elite já vinha da Constituinte, onde a distinção entre cidadãos passivos e activos permitia conciliar a teoria com a realidade. A “igualdade entre todos”, mas pragmaticamente a utilidade de reservar o poder aqueles que conciliavam a inteligência e o interesse. Na realidade quis conciliar a igualdade e a riqueza, mas esta última de facto impôs-se como único fundamento da selecção! Através de eleições para órgãos das várias Assembleias, que se delegavam em escalões sucessivos, os deputados da Assembleia final, a Assembleia Nacional, acabavam sempre por ser recrutados entre os notáveis da sociedade.
 
No sentido de conciliar a República com a nobreza do Antigo Regime, que como acima referimos fora já iniciado com o Directório e com o Consulado, os cadastros de “emigrados” continuaram a ser encerrados, algumas propriedades devolvidas e indemnizações parciais concedidas. Napoleão irá criar 3.600 títulos de nobreza (22.5% a originários de nobreza antiga, 58% de origem burguesa e 20% de origens humildes) sendo 59% concedidos a militares, e cria dezassete mil famílias de nova nobreza de Império que se juntarão aos cento e cinquenta mil familiares nobres do Antigo Regime, numa França de cerca de trinta e cinco milhões de habitantes em 1804. Napoleão irá acelerar essa fusão dos “Flor de Lys” e dos “Abelha”. Numerosos embaixadores e altos funcionários do regime são já de origem nobre. Em 1814 43% dos Prefeitos (Governadores Civis) em França são de origem nobre! A sociedade francesa do Império está longe da França republicana da Convenção e mesmo do Directório.
 
E o povo e as classes trabalhadoras? Difícil de encontrar estatísticas e trabalhos credíveis. A escola de historiadores marxistas apresenta-os como aliados objectivos da burguesia, outros insistem nas suas misérias. Mas o mundo rural, cerca de 80% da população, evoluiu melhor nos finais do século XVIII e mesmo depois da revolução. Os preços de produtos cresceram 20% de 1800 a 1810 e os salários de 30%. Uma boa parte do dinheiro ganho e poupança vai para a compra de terrenos, servindo uma “fome de terra” que será a grande característica dos camponeses franceses até ao século XX. O operariado, que representava cerca de 7 a 10% da população francesa, acompanha o crescimento da industrialização ainda incipiente. A supressão das corporações irá multiplicar o número de pequenas oficinas nas cidades, mas destas a única grande cidade é Paris, com 600.000 habitantes em 1814, pouco mais do dobro de Lisboa. As restantes vêm as suas populações reduzirem-se em relação ao final do Antigo Regime. Até 1810 o emprego esteve próximo do pleno, sendo o elemento mais marcante deste período a quantidade de trabalho “por realizar” por insuficiência de mão d’obra, lacuna acentuada pelo peso da conscrição. Esta situação que se prolongou até 1811, fez subir a média dos salários na época napoleónica na indústria e serviços, entre 1804 e 1810, de 25% na província e 33% em Paris. De 1811 até ao final do Império, as dificuldades agrárias e na indústria têxtil, a guerra em solo francês e a decadência política, farão cair todos os rendimentos e salários cerca de 30%. (André Palluel-Guibert, Les Événements en France, Laffont, 1995).
 
A política externa herdada e a construção do império
 
Todas as teses sobre a política exterior de Napoleão, que criou conflitos e guerras em toda a Europa, podem reduzir-se a duas:
 
1.ª)     Que as guerras foram meras lutas defensivas contra a agressão dos inimigos da França Republicana;
 
2.ª)     Que pelo contrário, foi uma agressão ambiciosa de imperador conquistador.
 
No nosso entender não se tratou nem de uma nem de outra tese, mas da continuação de uma política herdada. Napoleão é totalmente herdeiro da Revolução, que formou a sua mentalidade e lhe deixou uma situação política nacional por resolver. Os grandes movimentos da sua política externa não são mais que a continuação das ambições políticas da monarquia francesa dos reis Bourbons, como aliás sempre o foram no período do Directório e do Consulado. As políticas encetadas ultrapassam de muito as manobras de defesa fronteiriça, ou os apoios ideológicos a facções revolucionárias de este ou aquele país! Quando Napoleão continua a política girondina de alargamento das fronteiras francesas, não o faz para libertar populações, mas primeiro para reconstruir aquilo que os seus antecessores chamavam as fronteiras naturais da França.
 
Mas Napoleão quis ir mais longe. Já em 1803, ainda Primeiro Cônsul, dizia a Miot de Melito:
 
“O meu projecto exigia a ordenação da Europa debaixo de um só chefe, que tivesse como oficiais às ordens os reis, que distribuísse reinos aos seus lugar-tenentes, que fizesse um rei de Itália, ao outro da Baviera, a este landamman de Suíça, àquele stauthouder da Holanda, todos com cargos na sua casa imperial, com os títulos de copeiro-mor, reposteiro-mor, mordomo-mor, monteiro-mor.... Dir-se-á que este plano não é mais que uma imitação de como o Sacro Império Alemão foi estabelecido, que estas ideias não são novas; mas nunca há nada de absolutamente novo; as instituições políticas não fazem mais que andar á roda, e por vezes há que voltar a fazer o mesmo.”
 
O império franco-cêntrico de Napoleão foi construído na perspectiva da grandeza da França e do seu soberano, reconstruindo o mítico império de Carlos Magno, visando assim a alimentação da sua Glória pessoal à custa dos seus vizinhos, que arruinava. “Eu tinha querido o Império do mundo!” confessou Napoleão durante os Cem Dias a Benjamin Constant. Nenhuma nação anexada ou aliada viu a sua economia prosperar. O imperador era um déspota num Estado omnipresente. A polícia e censura que instalava eram um retrocesso em relação à relativa tolerância das sociedades do Antigo Regime, porque mais militantemente política. O Império matou as liberdades, desfez culturas e nações, tirou poder e relevância às Assembleias, e esqueceu-se voluntariamente da Revolução Francesa que considerava utópica e insustentável. A Europa tinha no seu seio várias nações, com origens étnicas diferentes, com percursos históricos profundamente vividos e com opções de organização política e social diversas. Napoleão despreza as personalidades nacionais dos estados europeus e os seus patrimónios. Nenhuma nação aceitou a “pax napoleónica” de bom grado. A habilidade no uso da força militar é a grande qualidade napoleónica. É certo que o sucesso militar e a meritocracia que promete criar, irá criar de início uma proposta romântica e entusiasmará na altura muitos sectores da juventude europeia. No entanto os povos europeus invadidos ou coagidos não se entusiasmarão pelas suas promessas de reformas e não se iludirão com a sua proposta imperial. Fora da França Napoleão não será popular. Viam que na essência tudo era para servir a ambição de um homem que tinha a pretensão de desenhar e impor um mundo, que ele achava ideal e obrigatório, a todos os países da Europa. A epopeia napoleónica será mais uma tentativa de criação de um império europeu ao serviço de um e imposto aos outros. Como todas as outras tentativas que tiveram lugar desde o império romano até aos nossos dias, de agregação das nações europeias pela força num grande império europeu, o projecto napoleónico irá falhar com tremendos custos humanos para os Franceses e para os outros povos da Europa.
 
 
II - A Revolução Francesa, Napoleão e a Génese do Liberalismo em Portugal
 
Muitos escritores portugueses têm querido explicar a génese do liberalismo em Portugal no início do século XIX como sendo uma corrente de pensamento político nascida com a Revolução Francesa e,
 
- Trazida para Portugal pelos soldados dos exércitos napoleónicos que nos invadiram, e/ou
 
- Trazido para Portugal e pelos oficiais e soldados portugueses que seguiram para França com a depois chamada Legião Portuguesa, e/ou
 
- Propagada em Portugal pelos civis que privaram com as forças ocupantes francesas.
 
Seria assim a ideologia da Revolução Francesa que nos teria arrancado ao Antigo Regime, à monarquia Absoluta de D. João VI e à influência política abusadora da Grã-Bretanha na sociedade portuguesa. Os conspiradores afrancesados de 1817 e 1820 seriam os promotores nacionais desta ideologia importada.
 
A influência da revolução francesa e as consequências das invasões
 
Esta interpretação da história, acima referida, é importante e consequente. Explica-nos assim a razão por que alguns textos em livros e revistas que têm recentemente vindo a público, se refiram com simpatia por vezes mal disfarçada aos soldados napoleónicos que, com brutalidade inegável, invadiram o nosso país, chegando mesmo a enfatizar que esses exércitos eram portadores de civilização e ciência! Acrescentam alguns que os soldados britânicos aliados estavam cá a defender os seus interesses (que interesses deveriam defender?) e que faziam mais destruições que os soldados franceses, opinião que nunca se viu demonstrada em textos da época. Há como que uma intenção em inverter papéis de protagonismo histórico.
 
À luz de uma historiografia mais recente, menos ideológica e mais escrupulosa não encontramos no seu trabalho evidência histórica que possa suportar a interpretação de que o ideário liberal, que representou um avanço histórico na democratização progressiva da sociedade portuguesa, seja essencialmente uma criação das ideias da Revolução Francesa, e que este ideário nos tenham sido trazido hipocritamente pelo exército invasor napoleónico. Pensamos que no ideário político português anteriormente às revoluções americana e francesa, vivia-se já uma evolução significativa da sociedade portuguesa, no sentido da progressiva implementação de estruturas e instituições de cariz liberal e democrático. A rejeição da grande maioria da população portuguesa das ideias e valores franceses, à época das brutais invasões, é um facto histórico bem documentado. Porque mais do que uma ideologia, Napoleão tentava impor um projecto Europeu Franco-cêntrico. O entusiasmo dos portugueses era difícil de mobilizar para um Império Napoleónico. Se tinham já rejeitado cento e cinquenta anos antes, e com 28 anos de guerra e sacrifícios, a inserção da nação portuguesa num império Ibérico, porque raio do diabo os portugueses se iriam entusiasmar em serem uma província do Senhor Napoleão, que só lhes trazia lágrimas, suor e sangue, e a integração num modelo de sociedade que lhes era estrangeiro?
 
Em 1812, os anos de glória, promessas e esperança do projecto europeu de Napoleão estavam já para trás. A sua proposta política estava desacreditada em toda a Europa ocupada, e os estados ainda independentes foram forçados a alianças prepotentes. Mesmo aqueles que como Beethoven em 1805 tinham saudado a chegada do novo herói redentor, levantavam-se agora a partir de 1807 contra a proposta da nova sociedade napoleónica, que mascarava apenas a sua ambição de emulação de Carlos Magno, num projecto imperial Europeu de dominação francesa. Em todos os países “libertos” por Napoleão as populações procuravam a revolta. Aos que esperavam mais prosperidade, mais liberdades, mais direitos garantidos e maior participação política, Napoleão oferecia só a sua sociedade militarizada, hierárquica, policiada e comandada de Paris, sem considerar as heranças históricas e as culturas próprias de cada povo, nem interesses económicos ou simplesmente comerciais para os quais tinha pouca sensibilidade e paciência. As políticas de Napoleão irão provocar o aparecimento de um forte nacionalismo na Europa. Cada povo procurou a evolução política e social na sua cultura própria, desenvolvendo o progresso social em que já antes estavam envolvidos (uns mais avançados, como a Holanda e Grã-Bretanha... outros menos, como a Rússia e a Prússia).
 
A rejeição em Portugal do invasor napoleónico
 
Portugal evoluía para uma sociedade mais liberal que as guerras napoleónicas vieram suspender, provocando mesmo o acender de reflexos reaccionários na sua própria população. Quais eram então as origens ou génese do pensamento político liberal português no próprio Portugal? Parece-nos plausível que a génese dos valores liberais se tenha tratado de uma tomada progressiva de consciência política nacional desde os primórdios da Fundação, com a criação sistemática de forais concedidos não a senhores feudais mas a grupos geográficos, corporativos e a ordens religiosas, de que é exemplo significativo o movimento emancipalista, e a revolução de 1385. Com a Restauração veio a necessidade de procurar o apoio popular e municipal para o esforço de financiamento da Guerra, que levou a Nação a revalorizar instituições de mobilização de valores populares. Depois veio a reflexão trazida pelas ideias iluministas que inspiraram a criação das instituições sociais e do aparelho de Estado no século XVIII. Finalmente os ideais liberais tomarão forma e expressão com as consequências do impacto da agressão napoleónica, como aconteceu na época com muitas outras nações europeias. Mas em Portugal as invasões francesas foram também acordar raízes populistas e tradicionais profundas, com ideários sociais e políticos reaccionários, que provocarão fracturas na sociedade.
 
Temos que ter presente que as brutais invasões militares sofridas pela população portuguesa, causaram no país a maior calamidade de guerra de sempre, gerando um défice populacional (mortos, emigrados e diminuição de nascimentos) de cerca de 300.000 portugueses (10% da população, ou seja, relativamente da ordem do holocausto sofrido pela URSS quando da invasão hitleriana). Houve uma mobilização consensual profunda e largamente maioritária, do interesse nacional e de defesa da independência. Todas as Juntas mobilizadas na revolta nacional anti-napoleónica de 1808 se declaram pela legitimidade da soberania do Príncipe Regente Dom João, apesar da sua distância física, a meses de comunicação no outro lado do Atlântico. Se em Espanha a revolta teve tonalidades nacionais e políticas diferentes, os exércitos estavam geograficamente dispersos em diferentes corpos provinciais e as guerrilhas eram por vezes unidades de “irregulares”sem coordenação nacional, tudo isto é compreensível porque a Espanha era, com hoje, uma união numa coroa de várias nações diferentes. Em Portugal as Juntas eram nacionalmente unitárias, as guerrilhas eram “regulares”, organizadas e enquadradas por oficiais de Milícia ou de Ordenanças, e todos mobilizados pela febre nacionalista e de repúdio dos afrancesados. Poucos meses após o seu aparecimento expontâneo, as Juntas extinguiram-se voluntariamente e sem hesitação, para entregar o poder e consolidar o novo Conselho de Regência nomeado novamente em 1808 por Dom João a partir do Brasil, com o afastamento de apenas três dos anteriores membros da Regência acusados de demasiada colaboração com a administração de Junot.
 
Será no entanto a já referida distância longe de Portugal, tanto do rei como da principal nobreza de corte, que irão acelerar as mudanças políticas para o modelo de governação liberal. Os membros proeminentes da Grande Nobreza, que no Antigo Regime ocupavam os principais postos de comando militar e que também constituíam uma parte importante da oficialidade, seguiram uns para o Brasil com o Príncipe Regente, outros refugiaram-se nos Açores e Inglaterra, outros ainda, talvez um terço, seguiram voluntariamente para França na futura Legião Portuguesa levantada por Junot. Finalmente outros oficiais, representando cerca de metade dos oficiais mas na grande maioria de patentes menos elevadas, oriundos da aristocracia provincial do Norte, foram desmobilizados do exército quando da ocupação de Junot, retirando-se para as suas terras. Com as urgentes necessidades de oficiais criadas pelas mobilizações em 1808 e 1809 para fazer face às 2ª e 3ª invasões francesas (1809 e 1810-11), e à continuação do esforço militar na Guerra Peninsular (1812-1814), a maioria destes corpos antigos de oficiais serão substituídos. Muita da nova oficialidade será recrutada na aristocracia provincial e na burguesia citadina, prevalente nas unidades de Milícia, com origens sociais novas que irão marcar a maioria dos oficiais do novo exército, mais abertos a mudanças de sociedade e a ideias políticas mais liberais, certamente afectados culturalmente por muitos dos seus monitores britânicos, procedentes de uma sociedade mais liberal e espiritualmente mais independente. Este facto é bem presente nos textos da literatura inglesa da época, traduzidos e publicitados nestes numerosos colóquios da celebração dos Duzentos Anos da Guerra Peninsular. Trataremos mais à frente do desempenho político deste novo corpo de oficiais.
 
A colaboração com a ocupação de Junot existiu, mas em número de magistrados e cidadãos restrito. A maioria dos oficiais do exército recusaram participar na Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão, particularmente a quase totalidade dos oficiais que serviam no exército no Norte e alguns no Sul (ver M. Fátima Bonifácio Memórias do Duque de Palmela, D. Quixote, 2011) e muitos dos que aceitaram seguir para França desertaram ao atravessar a Espanha e mesmo mais tarde. Poucas dezenas de membros da nobreza colaboraram com Junot (Memórias do Marquez de Fronteira), embora a grande maioria desta tinha ficado em Portugal, pois Dom João só deixou seguir consigo para o Brasil 17 titulares, os quais ou eram membros do Governo ou eram membros do Conselho de Estado. Não devemos deixar de considerar que muitos funcionários, oficiais, clérigos e responsáveis vários da sociedade portuguesa tinham ficado confusos como proceder com o ocupante, pois o Príncipe-Regente Dom João ao partir para o Brasil tinha explicitamente dito para receberem bem o ocupante e evitarem hostilizar.
 
A presença dos oficiais britânicos em Portugal
 
Quando da reorganização do exército português em 1809 e durante a sua participação na Guerra Peninsular, Portugal encontrava-se com um exército decapitado de oficiais, sobretudo nos escalões superiores. O governo pediu à Grã-Bretanha o envio de oficias britânicos, com experiência de guerra e que pudessem ser integrados no Exército português. Serviram cerca de 217 oficiais britânicos, 3 oficiais por batalhão de cerca de 25 oficiais e 700 soldados, em postos alternados, num quadro de cerca de 50 unidades, mais outros oficiais presentes em unidades de instrução e de Estado-Maior, e cerca de 10 brigadeiros e oficiais generais. Deva-se sublinhar que este expediente funcionou com aceitação geral no exército e teve até reconhecidamente um papel profissional positivo, (J. Centeno, O Exército Aliado Anglo-Português 1808-1814, Tribuna da História, 2011). Depois de acabada a Guerra Peninsular a presença de oficiais britânicos terá indirectamente um papel político importante na mudança de regime, posto que a sua continuada presença no exército provocava a irritação da maioria dos oficiais portugueses, frustrações que culminaram em revolta política. Argumentava-se a sua desnecessária presença, que lesava as legítimas aspirações de carreira e promoção dos oficiais portugueses, para mais nos quadros de um exército que após o fim das guerras napoleónicas procedia agora a um emagrecimento e cortes de despesas. Acresce que a grande maioria dos oficiais haviam protagonizado as guerras de defesa nacional, em combates, riscos e privações, que legitimavam as suas expectativas de promoção.
 
A presença de oficiais estrangeiros no exército poderá ter sido vista como uma maior garantia de um exército disciplinado, profissional e politicamente “domesticado”, pelo Governo de Dom João VI, longe no Brasil, o que explicaria a demora deste em apressar a saída dos oficiais britânicos. As tensões entre o Governo no Brasil e a Regência em Lisboa alimentavam incertezas. Igualmente, a insatisfação crescente na opinião pública metropolitana, era receada pelo governo de Dom João no Rio de Janeiro. Mas os sentimentos de frustração da oficialidade portuguesa, ao não serem atendidos pela Regência que superintendia em Lisboa o Exército, irão ser instrumentalizados pelos revoltosos liberais de 1817 e 1820.
 
O marechal Sir William Beresford, funcionalmente apenas comandante do Exército Português, mas que depois da partida de Wellington em 1813 era figura decisiva no relacionamento do Governo Britânico com o Conselho da Regência em Lisboa, ao passar por cima da Regência na sua ligação directa a Dom João no Brasil, humilhava os sentimentos nacionais dos portugueses “metropolitanos”. A atmosfera política já estava muito frustrada com a continuação do Rei e Governo de Portugal no Rio de Janeiro. A revolta também crescia entre os comerciantes, que sofriam com a perda dos antigos privilégios no monopólio do comércio colonial com o Brasil e na reexportação de produtos brasileiros para os mercados europeus, e também com as elites mais bem mais informadas que repudiavam a “política brasileira” de Portugal no Congresso de Viena. A proximidade de Beresford com o Rei levava-o a interferir com assumida autoridade nos assuntos de governação da Regência, estando esta por sua vez em crescente tensão com o Governo no Rio. O rei Dom João VI não seria avesso a utilizar os serviços dedicados de Beresford, como muitas vezes acontece com chefes de Estado ou de governo quando utilizam “os bons serviços” de um agente “fora do baralho”.
 
Se Beresford interferia nos assuntos de defesa e segurança, a acusação de que “mandava em Portugal”, repetida por uma literatura francófila, é um pouco exagerada, pois este não procurava intervir directamente nas noutras áreas de governo ou na economia, áreas de autoridade exclusiva da Regência. É interessante assinalar que contrariamente à imagem popular que se tem publicitado, o marechal Beresford não trabalhava tanto pelos interesses de Inglaterra mas tentava antes ser o fiel administrador dos interesses “políticos” do Rei Português, da Casa de Bragança e da defesa do Antigo Regime em Portugal. Quando descobre a conspiração de 1817 e a refere a D. Miguel Forjaz, manifestará o seu espanto pela reacção rápida e dura da Regência com os conspiradores, já que a maçonaria não era vista com a mesma inquietação pelos britânicos. Beresford aliás continuará empenhado em defender os interesses da Casa Real portuguesa no seu relacionamento posterior com Dom Miguel, comportamento que merece respeito, pois mostra-nos um actor político leal, servindo dedicadamente os interesses do seu chefe político que era o Rei Português, e não o Governo Britânico, pese a ideia que possamos ter do valor da opção política que tinha maior interesse para Portugal.
 
A já referida tradicional referência à “colonização de Portugal” pela Grã-Bretanha nos anos finais da Guerra Peninsular e seguintes, repetidamente mencionado por historiadores franceses quando tratam da política diplomática na Europa, merece também uma reflexão. Após a abertura aos negociantes britânicos do mercado Brasileiro em 1808, após a retirada da Armada Portuguesa para o Brasil em 29 de Novembro de 1807, fora do alcance de Napoleão, após terem obtido o acordo de Portugal para ocuparem Goa e a Madeira em finais de 1807, e após o estabelecimento da Família Real Portuguesa no Brasil em 1808, os objectivos estratégicos do Governo Britânico estavam conseguidos. Na realidade o controle do Atlântico pela Royal Navy estava assegurado com as bases das Ilhas Britânicas e das Caraíbas, da Madeira, dos Açores e de Gibraltar. Lisboa não era já objectivo estratégico. A partir de 1813 o porto de Lisboa passou a ter alternativas de uso portuário em Espanha, com portos mais próximos dos mercados de consumo europeus e de Inglaterra, e permitindo melhor apoio logístico ao exército britânico que ia operando no Norte de Espanha e Sul de França, cada vez mais longe das suas anteriores bases portuguesas. O território português e a sua arruinada economia pouco interesse tinha agora para os britânicos, aliás assim como para os franceses, tanto em termos de mercado importador como em termos de produtos de origem.
 
O único interesse com Portugal que restava aos Aliados britânicos, após a expulsão de Junot no verão de 1808, era a colaboração do exército português durante a Guerra Peninsular, pois os exércitos espanhóis tinham-se singularizado pela insegurança da sua colaboração e pela dificuldade em aceitarem combater em formações aliadas integradas. Finda a guerra, este interesse deixou de ser importante. As ilhas e colónias portuguesas que durante o conflito foram ocupadas pelos britânicos, alegadamente para impedir a sua ocupação por forças francesas (Madeira e Goa), foram desocupadas após o fim deste. A situação catastrófica da economia portuguesa não atraía financeiros e comerciantes. Tudo isto nos leva a pensar que a alegada “colonização” que seria procurada pelos ingleses pós-1814, é mais uma obsessão anti-anglosaxónica de autores franceses ou afrancesados que uma realidade política. A historiografia francesa sempre teve dificuldade em aceitar que o interesse de Portugal possa estar numa aliança com a Grã-Bretanha, potência marítima e tradicionalmente em conflito com o Império Espanhol, e não com a França, potência continental e tradicionalmente aliada a Espanha, sobretudo após a implantação da monarquia espanhola (de Bourbon).
 
Em Portugal subsiste uma irritação pelo papel britânico na perda do comércio colonial cativo brasileiro. Mas a independência do Brasil era inevitável. O ónus é mais de Portugal que não soube criar no Portugal metropolitano suficiente actividade económica na sua economia doméstica, deixando assim o País em caos económico com a perda do Brasil. Convém não esquecer que os exemplos emancipalistas norte-americano e hispano-americano constituíam eles já por si um risco político sério à soberania portuguesa no Brasil. A Grã-Bretanha não fazia mais que posicionar-se perante as oportunidades evidentes, e Portugal ia-se adaptando às situações possíveis na defesa dos seus interesses. Resta como argumento de revolta anti-britânico a arrogância insular tradicional dos súbditos de Sua Majestade Britânica, como alimento para as frustrações portuguesas. Para além disso não se vê evidência que não fosse a Regência e o Governo no Brasil que governassem Portugal de acordo com o que entendiam serem os interesses nacionais.
 
Os reinados absolutistas influenciados pelo iluminismo
 
Mas para uma melhor compreensão da génese do Liberalismo em Portugal, importa voltar um pouco atrás na História de Portugal e acompanhar as suas origens na evolução do governo e da filosofia política da nação portuguesa. Evolução política que tem forças constantes que ajudam a compreender a persistência da personalidade nacional e a sua independência secular. Analisemos aqui reduzidamente apenas a época mais recente, o século XVIII, marcado pelo movimento iluminista começado com os enciclopedistas, com Lock, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, Voltaire, etc., que tanto influenciou as elites intelectuais e políticas europeias. Armados com os novos avanços da ciência, os homens do Iluminismo aplicaram-se a libertar a humanidade dos preconceitos pessimistas e da superstição, legitimando o poder popular, promovendo o ensino laico e criando um mundo mais razoável de investigação, experimentação e progresso. Estas ideias iam conjugando-se ironicamente com o desenvolvimento de estruturas políticas de Absolutismo real em vários países europeus.
 
A estrutura moderna, pós-renascimento, da organização e administração do Estado Português durante o reinado de D. João V, irá permitir e incentivar no âmbito das relações externas uma actividade diplomática intensa que conquistará 40 anos de paz para Portugal e, com esse pressuposto, uma melhor utilização do ouro brasileiro. O esforço militar feito na época, em que os efectivos militares foram duplicados, passando de 20.000 para 40.000 soldados, também não será inconsequente neste contexto… No plano da administração do reino foi crucial as reformas que trouxeram a criação das Secretarias de Estado em 1736, independentes da Magistratura, e que vêm substituir os vários Conselhos em que pontificavam elementos da alta aristocracia, até então os verdadeiros gestores dos negócios do Estado. Ao criar as Secretarias de Estado, o Rei chama a gestão executiva do País à sua pessoa. É o começo do Absolutismo em Portugal. A mesma preocupação com as Academias privadas como centros de reflexão intelectual, que o conde de Ericeira transforma em 1735 em Academias Reais. As “reflexões” passam a ser junto da Pessoa Real. Estas iniciativas de governo de D. João V são já à época reflexo em Portugal das teorias e propostas dos pensadores escoceses, franceses e ingleses, chamados “iluministas” por trazerem novas luzes de compreensão social, um optimismo sobre o homem e a sociedade com propostas de comportamento político e modo de governo dos estados europeus, que começavam a animar as tertúlias das elites intelectuais, as leituras dos cidadãos culturalmente curiosos e as conversas na Corte.
 
Em termos de posicionamento do poder real português na comunidade europeia, a grande batalha de D. João V é o problema da “paridade”. As Grandes Potências obrigavam os embaixadores a visitarem os seus Secretários de Estado e nas Pequenas Potências eram os seus Secretários de Estado que visitavam os Embaixadores dos Grandes. Portugal esteve em tensão diplomática com a França de Luís XIV desde 1721 porque estes insistiam em tratar Portugal como Pequena Potência. Só já em 1742, sob Luís XV, a França transigiu com o tratamento de paridade com Portugal. A pressão diplomática permanente com o Vaticano foi grande e hábil, permitindo assim que Dom João V tenha obtido a criação rara de um Patriarcado em Lisboa, o tratamento de “Majestade Fidelíssima” pelo Papa, e que fosse tratado como uma das principais monarquias católicas da Europa. Todo este ritual tinha importância, pois na Europa do “equilibro das Nações”, os acordos de relações entre os Estados eram só negociados e decididos pelos Grandes, os Pequenos Estados não se sentavam à mesa e tinham que procurar acomodamento junto de um Grande Estado protector. Aqui se explica a preocupação de D. João V em fazer obras de espectaculosidade, Mafra, Aquedutos, Bibliotecas, Música, etc., e as embaixadas faustosas para marcar na Europa o seu poder material e ganhar o respeito das outras potências, segundo os conceitos e valores da época. Importante lembrar que o reconhecimento da nossa independência de Espanha depois da Restauração de 1640 ainda era negado ou tratado com relutância por muitos países, incluindo o Vaticano, que as manobras espanholas de intriga em Roma e nas cortes europeias era constante, e que Portugal não fora convidado para participar nas discussões e assinatura do Tratado de Vestefália em 1648, o primeiro tratado multilateral europeu, que regia as relações entre Estados na Europa. A Espanha e o Vaticano só reconhecem de jure a dinastia de Bragança em 1670. Já em 1712-1715 Portugal irá participar nas negociações e assinatura do multilateral Tratado de Utreque, com a França abandonando as suas pretensões Amazónicas no Brasil e a Espanha restituindo a Colónia de Sacramento. O Vaticano, depois das impressionantes embaixadas portuguesas e de muitas obras de devoção em Portugal e no seu Império colonial, que mostravam poder a Roma e aos europeus, acabará por reconhecer a importância do Estado Português na Europa e no Mundo, estendendo privilégios e poderes.
 
O desenvolvimento do Absolutismo Real continua com a política do Marquês de Pombal no sentido de centralizar cada vez mais o poder na pessoa do Rei, diminuindo poderes e interesses locais, assim como funções de autoridade que antes eram tradicionalmente exercidas por membros das Grandes Casas da nobreza. A direcção das Secretarias de Estado e os serviços oficiais são progressivamente profissionalizados e nomeados responsáveis de acordo com as suas capacidades e necessidades do serviço. Para forçar e melhorar a qualidade da aristocracia e preparar os seus membros para o serviço do Estado é criado o Colégio dos Nobres e as Academias Militares. Pombal preocupa-se em utilizar profissionais para a Administração pública segundo critérios de competência pessoal e dedicação única ao Estado na pessoa do rei. O Absolutismo Iluminado é também na Europa o corte com o poder político da aristocracia, a elite social da época, como grupo político independente do Rei, a procura da racionalidade e do conhecimento científico aplicado à economia e à cultura, e a abertura social. As reformas dos serviços de administração ultramarina, da magistratura e dos serviços fiscais, vão no sentido de uma maior intervenção do poder do Governo do Rei e na procura de um poder central do Estado mais afirmativo, face à aristocracia de espada no exército e milícias e na organização e utilização das ordenanças, e face à magistratura, ou aristocracia de roupão, que antes exerciam muito desse poder autonomamente nas autarquias locais. É também uma diminuição do tradicional poder político e social da Igreja. A tudo isto corresponde um maior acesso das classes populares a funções de responsabilidade no funcionalismo e incentivos à actividade económica.
 
A mobilização de uma burguesia comercial e industrial, numa interpretação discutível da razão dos sucessos da crescente industrialização e organização mercante da sociedade britânica, levará o governo de Pombal à criação de monopólios majestáticos nas colónias e na metrópole. Pombal desiste de promover o interesse pela actividade económica e financeira na aristocracia obcecada com terras e cargos públicos. Pombal pensava que a chave do sucesso comercial e industrial da sociedade britânica residia na existência de uma forte classe de profissionais financeiros na City e empenha-se em criar uma burguesia endinheirada em Lisboa. A economia é gerida à força de decretos e regulamentos. Estamos perante aquilo que Kenneth Maxwell chamou de paradoxo do absolutismo iluminista! Com os seus sucessos e erros, uma verdadeira engenharia social fora posta em movimento por Pombal, que, aliada à conjuntura das guerras napoleónicas e às suas consequências sociais, se irá acentuando nos anos finais do Antigo Regime, criando assim as aberturas nas estruturas sociais que levarão mais tarde, no começo do século XIX, à intervenção das novas elites militares na promoção política e institucional do sistema de liberalismo constitucional em Portugal.
 
Na “viradeiracomeçara já a abertura social do Antigo Regime sobe D. Maria I, que abrira a sociedade civil às mulheres portuguesas com a faculdade dada às filhas segundas de poderem recusar a sua entrada nos conventos, ao invés de uma prática tradicional, salvo intenção expressa pelas mesmas. Em 1821 serão muito poucos os conventos femininos existentes, comparado com 50 anos antes! São muitas as obras de carácter social e laicas desenvolvidas pelo Estado no reinado de D. Maria. Importante é também a revolução no campo religioso, onde a devoção mariana prevalecente sobe D. João V e D. José, é substituída pela devoção do “sagrado coração de Jesus”, verdadeira reforma centralizando o culto e abrandando as devoções católicas de santos. O ministro da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, substitui os nomes de santos nos navios de guerra por nomes laicos. D. Maria institui as comissões para os assuntos eclesiásticos, que chama a Lisboa o processamento e decisões que normalmente eram tratadas em Roma, reforçando a Igreja Lusitana, como tão bem explica o Visconde de Santarém. No campo musical Beckford deixou escrito que “a orquestra da capela da rainha de Portugal é a primeira da Europa, melhor ainda que a do Papa”. No campo social, educação e cultural há o aparecimento de várias instituições de ensino laicas como a Casa Pia, o Colégio Militar, Academia do Nu, antecessora das Belas Artes, e as instituições de ensino militar como a Academia Real de Fortificações, Artilharia e Desenho, Academia Real de Marinha, Escola de Guarda-Marinhas, Escolas de Anatomia e Cirurgia nos Hospitais, a Academia das Ciências de Lisboa e a primeira biblioteca pública em Lisboa. Em 1780 havia já 12 livrarias em Lisboa, os Gabinetes de leitura abertos a sócios da classe média, que funcionavam em lojas ou andares da Baixa lisboeta, a Real Academia de Ciências com instalações cedidas no Palácio das Necessidades, e realizaram-se as primeiras missões científicas a África e Brasil e um museu de História Natural denominado Real Gabinete da Ajuda criado pelo botânico Avelar Brotero. A política do reinado de D. Maria I continuou no seu essencial a obra de progresso social e institucional iniciada nos reinados do seu avô e do seu Pai. Libertou da prisão personalidades acusados de subversão pelo Marquês de Pombal, mas não condenou publicamente as decisões assinadas por seu pai, limitando-se a desterrar o marquês para as suas terras em Pombal, após um discreto julgamento formal. Contrariamente a uma historiografia menos rigorosa, D. Maria é referida por Luís de Oliveira Ramos (D. Maria I, Círculo dos Leitores, 2010) como “inteligente, cauta e meditativa, conciliando Distinção e Bondade”. Continuou substancialmente a política josefina-pombalista, embora de forma mais humana e escrupulosa em consonância com a sua fé cristã e com o espírito iluminista da época.
 
A razão porque mencionamos todos estes aspectos da história do século XVIII, é porque pensamos que é importante que tenhamos consciência que quando chegaram as invasões francesas havia uma evolução liberalizante própria da sociedade portuguesa, mesmo se o seu avanço era ainda insuficientemente rápido, comparado com outras sociedades Europeias mais avançadas.
 
A política exterior do Príncipe Regente Dom João; a tentativa da neutralidade e a mudança radical numa aliança com a Grã-Bretanha
 
No campo das relações internacionais, D. João como Príncipe-Regente vai insistir em manter uma política de Neutralidade entre o Governo da República Francesa, depois Império Napoleónico, e o Governo da Grã-Bretanha. Tarefa difícil, que levava repetidamente a despesas importantes com os pagamentos de suborno exigidos pelos governantes franceses, e a constantes reposicionamentos da política exterior, por vezes de aparência contraditória, requerendo negociações diplomáticas de grande agilidade. Estes constantes reajustamentos levaram muitos autores do século XIX, não interessados em reconhecer os méritos desta política do rei, em classificarem as corajosas e inteligentes manobras diplomáticas de Dom João como hesitações e medo.
 
O facto é que Portugal conseguiu manter 15 anos de relativa paz e conseguiu multiplicar quatro vezes o seu comércio mercantil, como nos refere J. Borges de Macedo (História Diplomática de Portugal, Constantes e Linhas de Força, 2ª edição, Tribuna da História 2006). Os esforços de neutralidade eram ensombrados por vezes por acções bélicas ditas de “neutralidade colaborante” (em apoio à monarquia Espanhola no Roussilhão, ou mais frequentemente com a Royal Navy), ou de promessas de tratado com a França, mas todas de curta duração, pois Portugal voltava sempre a tentar o estatuto de neutro… com a colaboração de um Talleyrand que ia metendo no bolso os “mimos portugueses” e ia aguentando o reconhecimento da nossa neutralidade, dizendo a Napoleão que não convinha “empurrar Portugal para os braços ingleses”, e com o acordo tácito dos governos de Londres, a quem sussurravam que as “acomodações” com os franceses eram só “temporárias” e “para não serem cumpridas”!
 
Neste período, e aproveitando o estatuto português de neutralidade, também desenvolvemos significativamente o comércio directo com a Europa do Norte, prescindindo parcialmente do tradicional intermédio comercial Britânico. A insistência de Dom João numa política portuguesa de neutralidade foi extremamente difícil, numa Europa devastada por guerras constantes, com pequenas crises e interregnos, com apoios militares à vizinha Espanha no Rossilhão (1793-5) em “guerra não declarada” à República Francesa, em acções navais pontuais de apoio à Grã-Bretanha no canal da Mancha (1794) e no Mediterrâneo (1799/1800) sempre sem “guerra declarada”, (um exercício de “neutralidade colaborante”, uma figura jurídica que fará escola em Portugal…), e na defesa em 1801 da invasão de Portugal por três corpos espanhóis, ataque apoiado pela República Francesa já com Napoleão Cônsul, chamada de Guerra das Laranjas.
 
Esta defesa foi um sucesso, pois foi uma defesa de Portugal sozinho contra Espanha, em que as invasões no Minho e no Algarve são repelidas com sucesso, e no Alentejo Godoy se recusa a penetrar ao encontro do exército português concentrado no Norte do Alentejo, porque não consegue conquistar Elvas, ficando-se por sucessos secundários na raia! É curioso que alguns dos nossos historiadores ainda insistem em referir o que foi uma habilidosa defesa deste ataque espanhol como uma derrota portuguesa…. Se com a guerra das Laranjas Portugal entregou Olivença, praça indefensável, esta foi a moeda usada para impedir a França de se juntar à Espanha numa guerra em 1801 contra Portugal, posto que se sabia que um corpo comandado pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão, avançava por Espanha adentro em direcção a Portugal. Espanhóis e portugueses assinaram apressadamente a Paz em Badajoz, na presença de Lucien, irmão de Napoleão, pondo assim termo a eminência do envolvimento francês. Os portugueses retiram das localidades que haviam ocupado na Galiza e os espanhóis das povoações fronteiriças que haviam ocupado no Alentejo. Mas Dom João, a coberto desta agressão espanhola, autoriza em retaliação a conquista de território sul americano espanhol, em Mato Grosso e Rio Grande do Sul, que irá alargar o território brasileiro em mais 10%. (Manuel Amaral in Olivença, Portugal em Guerra do Guadiana ao Paraguai, Tribuna da História, 2004).
 
Apesar de dificuldades e custos, como já referimos, a política da Neutralidade trouxe a Portugal ganhos comerciais importantes, pois o volume do comércio português ao longo destes 15 anos foi multiplicado por quatro, sendo a actividade mercante responsável de cerca de 70% do rendimento nacional (António Alves Caetano A Economia Portuguesa no tempo de Napoleão, 2008 ed. Tribuna da História). Convém lembrar que Portugal não era apenas um pequena potência de dimensão europeia, mas era ainda uma monarquia que possuía um dos maiores impérios ultramarinos, cobiçado por muitos, e uma marinha que à época era a 5ª do mundo.
 
Só quando Napoleão é surpreendido pela rapidez da acção dos britânicos no raid a Copenhaga em Setembro/Outubro 1807, pois já de Tilsit também tinha instruído o marechal Bernardote para invadir a Dinamarca e se apoderar da armada dinamarquesa (T. Munch-Petersen Defying Napoleon, Sutton Publishing 2007), é que se decide a seguir o velho conselho de Dumouriez, que sempre aconselhou a via militar para lidar com Portugal, e manda rapidamente invadir Portugal para capturar a Armada portuguesa, antes dos britânicos o fazerem.
 
Depois de Trafalgar, a França ficara sem navios para proteger a sua flotilha de 2.400 navios anfíbios já preparados e estacionados em Bologne e na Flandres, para uma anunciada e constantemente adiada invasão de Inglaterra. As Armadas dinamarquesa (21 navios de linha) e portuguesa (23 navios de linha, dos quais 14 na Europa) tinham passado a ser de importância estratégica capital, quer para viabilizar uma invasão de Inglaterra, ou para impedir a mesma. Eram as últimas Armadas importantes na Europa, com as marinhas de Veneza, Génova, Nápoles e Holanda destruídas, e as da Rússia e da Suécia neutralizadas. A Grã-Bretanha, na altura com um exército pequeno e desacreditado, só contava com a sua apreciada Royal Navy para se defender dos exércitos de Napoleão. Lutava pela sobrevivência da sua independência!
 
Numa tentativa de última hora, pressionada pelo ministro Araújo de Azevedo, membro do chamado “partido francês”, que não acreditava que Napoleão quisesse verdadeiramente invadir Portugal e agravar a sua economia, pois iria penalizar a indústria têxtil francesa pelo consequente corte do algodão proveniente do Brasil (o que de facto acontecerá!), Dom João tenta convencer Napoleão que rompia com os Britânicos, concentrando o exército português na costa par defender Portugal da hipótese de um ataque britânico e expulsando súbditos britânicos, mas dizendo secretamente aos britânicos que a manobra era temporária e no interesse da velha aliança… Pelo sim pelo não Londres concentra uma esquadra em frente de Lisboa. Sabendo da invasão francesa iminente manda dizer ao Príncipe Regente que, ou faz sair a Armada portuguesa para fora de Portugal, ou a Royal Navy fará em Lisboa como fez na Dinamarca!
 
Em Lisboa haviam começado secretamente desde Setembro as operações de embalagem de vasta documentação de arquivo, mobília, bibliotecas, impressora, carruagens, reunião de todo o erário público disponível e dos equipamentos essenciais a um governo do Império fora de Portugal, assim como das necessidades domésticas da numerosa família real. A concentração e preparação de meios navais de transporte haviam também começado em segredo. Para evitar alvoroços e acalmar governos estrangeiros, fora posto a correr a notícia que o Príncipe Regente iria enviar o seu filho mais velho para o Brasil. O Príncipe Regente já havia prevenido secretamente por carta em Junho o Vice-Rei do Brasil da sua possível transferência, pedindo para preparar a sua eventual instalação no Rio de Janeiro. Com a Grã-Bretanha tinha-se ratificado em Outubro a escolta naval britânica aos pesados navios carregados de bens e pessoas.
 
Com a confirmação da invasão francesa e espanhola de Portugal em 26 de Novembro de 1807, Dom João vê-se obrigado a recorrer abertamente à Aliança com o Governo de Sua Majestade Britânica. A defesa militar de Portugal contra os exércitos conjugados dos dois grandes países, e sem o apoio de forças terrestres de qualquer aliado, era impossível. Numa manobra que toma de surpresa toda a Europa e que frustra com humilhação pública o poder de Napoleão, na sua tentativa de prender a família real portuguesa e apresar os navios da importante Armada portuguesa, o Príncipe-Regente Dom João acciona a transferência da capital política do império português para a sua colónia na América do Sul, e deixa Lisboa em direcção ao Brasil com 23 navios de guerra e 31 navios mercantes.
 
Transferência da capital e da família real para o Brasil
 
Com toda a Família Real seguiam os membros do Governo e do Conselho de Estado e numerosos funcionários, artífices, músicos, escolas da marinha, etc., ao todo cerca de 15.000 pessoas, incluindo as tripulações dos 23 navios de Guerra e 31 navios mercantes. Como todos os navios estavam parcialmente desarmados e atolados de carga, Dom João tinha acordado em Junho com Londres uma escolta de 4 navios da Royal Navy para defesa de eventuais ataques de corsários a este apetecível comboio naval. Dom João sabia que a defesa de Portugal contra o poderoso e vitorioso exército de Napoleão, apoiado ainda por cima pelo exército de Espanha, e com a recusa da Grã-Bretanha em nos apoiar com tropas em terra por pragmaticamente considerar a defesa de Portugal nestas condições inviável, era uma tarefa militar impossível. Assim a única opção que salvava a sua legítima soberania sobre Portugal, e num primeiro momento a integridade do império, era a transferência da capital, Governo e Família Real para o Brasil, uma decisão estratégica corajosa e bem preparada que surpreenderá Napoleão. Para evitar mortes e destruições inúteis, Dom João deixa instruções ao Conselho de Regência que nomeia para ficar a governar Portugal, e ao Exército que se preparava para combater, de não hostilizarem inutilmente os exércitos invasores e de lhes oferecer em seu nome um acolhimento pacífico. O exército, como refere o general Marquês de Alorna, irá ficar frustrado por ter ordens de não combater as tropas esfarrapadas de Junot. Mas qualquer reacção militar aos invasores franceses, no cenário estratégico da Península nesta altura, era suicídio adiado e convite a retaliações. Outros tempos viriam que viabilizariam a defesa militar e um retorno à independência plena de Portugal.
 
A revolta contra os ocupantes franceses
 
A oportunidade virá com a mudança de campo político da vizinha Espanha, cujo povo se revolta em Maio de 1808, despoletando uma revolta contra as tropas Napoleónicas e contra os “afrancesados” que alastrará por toda a Península, incluindo Portugal de Norte a Sul. Estava criado na Península uma nova realidade geopolítica e uma oportunidade estratégica para a Grã-Bretanha, que entretanto recebe pedidos de ajuda de várias Juntas patrióticas espanholas e do Bispo do Porto. Alertado por pescadores do Algarve da revolta nacional, Dom João inicia a negociação de auxílio financeiro e militar da Grã-Bretanha para o rearmamento e defesa de Portugal.
 
Importante entretanto também referir que a Regência ao decretar o “levantamento em massa” de todos os homens válidos portugueses, estes irão criar em 1808 e 1809 vários grupos para tarefas temporárias locais, ou de acção de guerrilha, depois geralmente coordenados pela organização das Ordenanças, e posteriormente alguns servindo até em unidades mais estruturadas e profissionalizadas de voluntários da Milícia (como o Real Corpo do Comércio de Lisboa, os Voluntários Reais a Cavalo, o Batalhão Académico de Coimbra, os Voluntários Reais de Portalegre, etc.).
 
O tenente-general Sir Arthur Wellesley, que havia liderado no verão de 1808 o raid militar que expulsou Junot de Portugal, é convidado para comandar o exército Português “em reconstrução”, mas recusa alegando ter responsabilidades políticas (no governo da Irlanda e em Londres) e propõe o tenente-general Sir William Beresford, que apreciara em campanhas que fizeram juntos, sendo também anglo-irlandês como ele, e que tinha conhecimentos de língua portuguesa, adquiridos no tempo em que governou a Madeira com o acordo do governo do Príncipe Regente, de 26 de Dezembro 1807 a 17 de Agosto 1808, quando da retirada do Rei, da Corte e da Capital para o Rio de Janeiro.
 
O Secretário do Conselho de Regência encarregado dos negócios da Guerra e Estrangeiros, D. Miguel Pereira Forjaz, inspector das Milícias e participante de todos os projectos de reforma do exército português desde a campanha do Rossilhão, irá reconstruir em colaboração com o novo comandante do Exército português, marechal William Beresford, as forças militares portuguesas. De modo improvisado e ainda desarticulado, o exército de linha, as milícias e grupos de ordenanças participarão na defesa da 2ª invasão. Mas será só com a 3ª invasão em Setembro de 1810, já perfeitamente organizado, que o novo exército fará o seu verdadeiro e impressionante baptismo de fogo na batalha do Buçaco. Continuará a defender o solo pátrio, já com o respeito de aliados e inimigos, até à expulsão da terceira invasão em 1811.
 
Durante os próximos quatro anos em Espanha e França não cessará de continuar na luta vitoriosa contra os agressores napoleónicos, nunca perdendo uma bandeira em combate e continuando a progredir em eficiência, disciplina e eficácia no combate, tendo merecido a referencia de Wellington, comandante Aliado, que afectuosamente os chamava de fighting cocks of my Army! As unidades regimentais deste novo exército serão organizadas tacticamente em doze brigadas, das quais seis juntas a outras brigadas britânicas formando assim seis Divisões Aliadas mistas, duas numa Divisão portuguesa independente e três em brigadas independentes, todas integrando o exército Aliado de manobra Anglo-Português comandado por Wellington, até à vitória final já na França invadida, em Abril de 1814. (João T. Centeno, O Exército Aliado Anglo-Português, Tribuna da História, 2011)
 
Este exército Aliado foi experiência exemplar de um exército respeitando simultaneamente duas organizações militares diferentes com culturas, credos religiosos e línguas próprias, mas tudo com unidade táctica e de comando, e com disciplina e resultados operacionais históricos. Tal sucesso é testemunho da qualidade humana dos seus elementos, e não pode deixar de ser também o reflexo da confiança dos seus intervenientes na tradicional aliança histórica, mesmo se só no subconsciente. Tal construção foi impossível na Guerra Peninsular entre soldados Espanhóis e Britânicos, pour cause… não lhes era possível fazer esquecer o peso da História. Depois da Batalha de Talavera em Julho de 1809, em que Wellington ensaiou a colaboração de uma força conjunta britânica e espanhola com relativo insucesso, Wellington desistiu de jamais tentar construir a sua força de combate com um exército aliado Anglo-Espanhol e daí em diante só se concentrou no aperfeiçoamento e utilização de uma força mista militar anglo-portuguesa até ao fim da Guerra Peninsular. A capacidade de integração e cooperação entre portugueses e britânicos foi certamente em parte fruto de um passado histórico com muitas experiências de aliança conseguidas.
 
O príncipe-regente e os partidos
 
D. João VI, ainda como Regente vai continuando a reduzir a aristocracia enquanto grupo de poder, continuando a obra de Pombal. Embora evite confrontos e a aparência de parcialidade, na realidade irá apoiar-se cada vez mais, já no século XIX, nos “Servidores do Estado”, também designados por partido “inglês” ou “pombalino”, em que pontificam os irmãos Sousa Coutinho, o Monteiro-Mor, os irmãos Sousa, os Melo e Castro, os Sousa Holstein e outros, que servindo o Rei, prestigiavam o Estado e serviam a profissionalização da função pública, num exercício de meritocracia. Pragmática e paradoxalmente é também a participação crescente dos cidadãos na gestão do poder, sorte de evolução tímida de democracia, inspirada nos valores do “iluminismo” que a informava. Politicamente o Absolutismo combate o “partido aristocrático”, também chamado de “partido francês”, admiradores do Orleanismo em França, dos whigs Britânicos e dos aragoneses Espanhóis, que reivindicava para si o direito de continuarem a dirigir o País porque seriam os dirigentes naturais, a classe letrada, culta e economicamente responsável, os descendentes dos grandes actores da Guerra da Restauração, com experiência da gestão dos assuntos do Estado, no poder desde D. Afonso V.
 
Ao pugnar por manter as grandes orientações na economia e na política exterior num caminho independente dos partidos e das ideologias que se debatiam na Europa e em Portugal, D. João VI vai adaptando progressivamente as estruturas do Antigo Regime às novas exigências liberais no Brasil e em Portugal, sem nunca tomar no entanto partido inequívoco por uma das duas principais facções políticas que se debatiam sobre o modelo político a adoptar pela sociedade Portuguesa, sociedade que particularmente desde os meados do século XVIII se encontrava em mutação social acelerada (Mendo Castro Henriques, Portugal, Brasil e o Império Napoleónico, Empresa de Ciências Sociais, 2010). Dom João ouvia o seu Conselho de Estado e conforme as circunstâncias optava por sugestões de grupos diferentes, mas sempre independente praticava o que entendia ser “o Partido Português”. Este seu comportamento e independência será interpretado pelos seus detractores como hesitação, incoerência ou mesmo medo! Porém temos que reconhecer que a coerência e persistencia da sua actuação se reflecte no facto de ter conseguido adiar durante 15 anos o alinhamento total de Portugal com qualquer das duas grandes potências europeias, sucesso raro no teatro Europeu, e que durante esse período floresceu o comércio e se evitou o envolvimento do País nas grandes guerras que assolavam a Europa.
 
Os liberais do pós-Antigo Regime serão os sucessores do “partido pombalino”, ou “inglês”, abertos à reestruturação social, ao poder legítimo das assembleias políticas, incorporando numerosos militares portugueses veteranos da Guerra Peninsular. Irão por sua vez dividir-se entre Cartistas ou Constitucionalistas moderados, e Setembristas radicais. Os Setembristas são os sucessores dos liberais de 1820 que reivindicam o poder soberano total da Assembleia Constituinte, depois Nacional, representantes do poder popular e da primeira Constituição de 1820, que fora influenciada pela Constituição de Cádis de 1812. Os Cartistas, liberais moderados, aspiravam ao modelo democrático do parlamentarismo britânico, que mantêm um poder moderador na pessoa do Rei hereditário, mas que entregam o controlo do Parlamento e dos Governos à aristocracia liberal, à burguesia industrial e aos comerciantes da City. Sistema pragmático, advogado sobretudo pelas figuras políticas de notáveis que passaram sucessivamente pelas embaixadas Portuguesas em Londres e na Europa, e pelos chefes militares formados no exército Aliado, no contacto com a oficialidade inglesa.
 
O “partido francês” dos Valença, Ponte de Lima, Lafões, Alorna, Gomes Freire, Pamplona, Sabugal, Loulé e outros aristocratas tradicionalistas, são os representantes do Antigo Regime que resistem à reestruturação social e política do pós guerras napoleónicas. Grupo político que fora combatido por Pombal, mas que fora ainda importante no tempo de D. Maria I e até à invasão de Junot. Porém, com a ida da Corte para o Brasil, e com a militância de muitos dos seus protagonistas na Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão, desprezando os Aliados Britânicos e portanto perdendo influência militar, deixará de ter um grande papel na cena política nacional até à constituição do movimento Miguelista que muitos irão integrar. Curiosamente, devido certamente á filiação maçónica de algumas destas figuras, à evocação de simpatias culturais afrancesadas e às suas anteriores actuações contra o poder do Rei, na figura do Príncipe Regente (motins de Campo de Ourique em 1803 e tentativa de golpe de Estado com Carlota Joaquina, em 1805), estas figuras são tratadas erradamente pela historiografia portuguesa dos finais do século XIX, como precursores do Liberalismo pós Guerra Peninsular!
 
O equívoco de muitos historiadores é por não compreenderem a essência elítica do “partido francês”, versão portuguesa do Orleanismo francês, do partido Aragonês espanhol e dos Whigs britânicos, que começaram por ser simpatizantes da Revolução Francesa, porque pensavam dominar um parlamento que iria retirar poder ao rei, mas que serão ultrapassados pela Revolução que ajudaram a nascer. O seu pensamento político pretende o governo, não nas mãos do rei, mas num parlamento, o qual seria essencialmente composto e controlado por uma elite de notáveis e fidalgos da primeira nobreza. Consideravam-se mais aptos e os mais preparados para gerir os interesses da nação. Assim, percebe-se que as principais resistências políticas às propostas de reorganização do exército de 1803, que implicavam a diluição da importância do Conselho de Guerra e da Junta dos Três Estados, controlados pela aristocracia de corte, assim como do tradicional controlo, pela nobreza de província, das Milícias e das Ordenanças, tivessem a oposição de figuras como o marquês de Alorna e Gomes Freire de Andrade, (Manuel Amaral A luta política em Portugal nos finais do Antigo Regime, Tribuna da História, 2010-2011).
 
O liberalismo em Portugal, para além de recrutar adeptos nos militares revoltados com a presença privilegiada de oficiais ingleses nas hierarquias do exército, militares que haviam sido formados pela oficialidade inglesa que os inspirou, mas que paradoxalmente agora atacam, vai também recrutar na burguesia mercante revoltada com as perdas do comércio do Brasil, beneficiará também da actuação política dos funcionários meritocráticos que serviam directamente o Rei desde D. João V, D. José I, D. Maria I e D. João VI. Serão todos estes, os verdadeiros agentes liberais e os agentes da progressiva democratização da sociedade Portuguesa. O grande paradoxo é assim que a génese do liberalismo político tenha sido preparada pela própria monarquia absolutista!
 
O exército e o liberalismo
 
Os militares portugueses do início do século XIX estavam conscientes que tinham salvo Portugal nas guerras da Revolução Francesa e das invasões napoleónicas. O argumento de que a implantação do liberalismo é obra dos maçons Portugueses não é inteiramente verdade. Não só muitos liberais não eram maçons como a maçonaria na altura ainda não é a força política que virá a ser mais tarde. A adesão de muitos oficiais à maçonaria era um reflexo corporativo de defesa da classe castrense, como aliás se passava em muitos outros exércitos europeus da época, incluindo muitos dos oficiais britânicos em Portugal. E os maçons civis não tinham a força necessária para implantar regimes políticos sozinhos.
 
O Exército português que regressa a Portugal no verão de 1814, após o final das campanhas do Exército Aliado Anglo-Português, é um corpo moderno e prestigiado. Primeiro, pela expulsão dos invasores franceses de Portugal em 1808-1811. Depois pela sua participação nos combates e nas grandes batalhas em campo aberto na vizinha Espanha em 1812-1813, que levaram à colaboração com forças aliadas espanholas e à expulsão dos exércitos napoleónicos de Espanha. Por fim, pelo sucesso da invasão Aliada do Sul da França, que os levou até Bordéus e Toulouse na campanha feroz que fechou a Guerra Peninsular em Abril 1814, vingando assim em solo de França as três invasões francesas que massacraram Portugal. Empedernidos pelos perigos e condições duras de seis anos de campanhas, os oficiais e soldados portugueses não vão aceitar o Portugal mergulhado numa profunda crise económica e financeira, fruto dos esforços de guerra e da perda do comércio brasileiro em que a economia metropolitana estava assente. Mas as tentativas de implantação liberal nos movimentos de 1817 e 1820 não vão vingar, em parte porque agora o seu mundo político era “estrangeirado”, a proposta não considerava as realidades de uma sociedade ainda muito agarrada a complexas heranças e hábitos sociais.
 
Como nos lembra o Professor António Telo, estes oficiais foram politicamente formados pela convivência de anos, em campanhas longe de casa, pelos seus colegas britânicos. Refere-nos que “a ironia da História é que a Inglaterra formou os quadros que fariam uma revolução anti-oficiais ingleses em Portugal (não anti-Inglaterra) na esperança inútil de fazer o tempo voltar para trás. A grande fraqueza da revolução liberal era a ingenuidade do seu programa real, que consistia em querer fazer o Brasil regressar à situação anterior, como base de “regeneração” de Portugal. É claro que isso implicava que a Grã-Bretanha e o Brasil aceitassem, o que não acontecia nem Portugal tinha força para os obrigar. As revoluções de 1817 e 1820 estavam condenada ao fracasso nessa roupagem anti-britânica e só renasce já numa roupagem pró-britânica e bem educada com D. Pedro… o percurso agitado do liberalismo em Portugal não é um problema de debate ideológico,… é um problema fundamental do enquadramento externo de Portugal e do realismo possível.”
 
Portugal entrará num período de acentuada violência política e social, em que o Exército, na sua maioria e acima dos partidos, irá ele próprio acelerar o colapso em Portugal da velha ordem social, designada por Antigo Regime, e promover a viragem para o Liberalismo Constitucional, num dos períodos mais dramáticos da História de Portugal.
 
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*  Licenciado em ciências políticas por I. Sc. Po e doutorado em sociologia económica na EPHE (Sorbonne). Foi diplomado pela E.N.A. do Governo Francês. Seguiu carreira diplomática, depois banca internacional e administração de empresas financeiras e industriais. Após aposentação fundou e gere a editora Tribuna da História. É investigador de história e filosofia política.
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2012-12-12
205-232
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Doutor

Pedro de Avillez

Licenciado em ciências políticas por I. Sc. Po e doutorado em sociologia económica na EPHE (Sorbonne). Foi diplomado pela E.N.A. do Governo Francês. 

Seguiu a carreira diplomática, depois banca internacional e administração de empresas financeiras e industriais.

Após aposentação fundou e gere a editora Tribuna da História.

É investigador de história e filosofia política.

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by COM Armando Dias Correia