O tráfico de armamento no continente africano não pode ser dissociado do desenvolvimento que esta atividade tem tido ao nível global. Durante o período da “Guerra Fria”1, as transferências de armamento2 constituíram, quase sempre, uma prática aproveitada por alguns Estados para reforçar o desenvolvimento de relações com outros Estados. A bipolarização vigente nessa época, e o receio mútuo que apoquentava os países que pertenciam aos dois blocos, fez crescer os arsenais de armamento de cada país ou organização (OTAN e Pacto de Varsóvia) para além das suas reais necessidades.
Com a queda do muro de Berlim, em 1989, e o consequente desmembramento da União Soviética, em 1991, muitos Estados viram-se obrigados a vender ou inutilizar parte desse armamento, sendo que os custos associados à sua destruição eram, e são, muito elevados. Tal situação contribuiu para o aumento do fluxo do comércio de armamento, não numa perspetiva de reforço dos arsenais ou das relações com outros Estados, mas agora numa perspetiva meramente economicista. Tratando-se de uma “mercadoria” sensível e muito procurada pelo poder que dispensa a quem a possui, não terá demorado muito tempo a escapar ao controlo e à fiscalização que existiu com algum pormenor até ao final da Guerra Fria. Passamos então a verificar que os Estados deixaram de ser os únicos interessados neste tipo de transações, tendo surgido empresas e pessoas em nome individual, com um interesse voraz de “entrar em cena”, não pensando nas consequências que este tipo de negócio pode originar, quando o destinatário da mercadoria, por não ser controlado e treinado, a usa em prejuízo de pessoas e bens, com objetivos pessoais, religiosos, étnicos ou pura e simplesmente com a finalidade de alimentar um modo de vida no qual nasceu e do qual não pretende ou não consegue sair.
Fig. 1 - Número de conflitos 2001-11
De acordo com um relatório divulgado, em Estocolmo, pelo Instituto Internacional de Estudos para a Paz3, apesar de assistirmos nos últimos anos a um decréscimo no número de conflitos armados no mundo, constatamos, de acordo com o mesmo Instituto, que o comércio mundial de armas convencionais cresceu 24 % entre 2007 e 2011, em relação ao quinquénio anterior (2002-2006). Esta situação tem forçado a Comunidade Internacional e as organizações com responsabilidades na promoção da segurança global a encontrar uma solução que sustente implementação de um mecanismo de controlo mais rigoroso e eficaz desta atividade. O caminho não tem sido fácil, uma vez que qualquer procedimento global além de ter que respeitar a legislação própria de cada país, não poderá obstaculizar a legitima necessidade de cada Estado em garantir a sua própria Defesa e Segurança, necessitando para tal de adquirir armamento e munições.
No entanto, a dificuldade em operacionalizar um sistema global realmente eficaz, leva-nos a concluir que existem muitos interesses que têm inviabilizado muitas das iniciativas que se têm tentado implementar. A conferência patrocinada pela ONU sobre o Tratado do Comércio de Armas, que reuniu em Nova Iorque, durante o passado mês de Julho de 2012, tinha o firme propósito de estabelecer elevados padrões comuns para o comércio internacional de armas convencionais. O resultado foi um desolador insucesso que atrasou, uma vez mais, uma viragem definitiva na resolução deste problema que afeta direta ou indiretamente muitos países.
Não será inocente admitir que possa existir alguma falta de inércia na resolução de alguns conflitos, desenvolvida por parte dos países que mais lucram com o comércio de armamento. Veja-se a título de exemplo, a situação vivida na Síria que já teve três propostas de resolução “chumbadas” nas Nações Unidas, as quais previam um aumento de sanções ao regime sírio com o objetivo de estancar esse conflito. O perdurar desta e outras situações idênticas, proporciona um “terreno fértil” ao desenvolvimento de atividades de comércio ilegal de armas.
Fig. 2 - A tendência nas transferências de armas 2002-11
Curiosamente, os países que mais lucram com o comércio de armamento são todos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Amnistia Internacional no seu relatório de 2012 faz a seguinte questão: “Podem os mesmos países que são capazes de vetar qualquer resolução do Conselho de Segurança da ONU ser de confiança para lutar pela paz e segurança internacionais, quando eles são os que mais lucram com o comércio global de armas? Enquanto o seu poder de veto for absoluto e enquanto não existir um Tratado de Comércio de Armas robusto capaz de os impedir de vender armas a governos que violam os direitos humanos, o seu papel de guardiões da paz e da segurança parece votado ao fracasso”4. Fica a questão para um eventual futuro desenvolvimento, que traduz a preocupação da Amnistia Internacional e não só…
Debrucemo-nos então sobre a questão central deste artigo, o Tráfico de Armamento em África.
O continente africano é constituído por cinquenta e três países, a maioria dos quais independentes, desde as décadas de 50 e 60 do século XX. A intervenção colonialista que perdurou até essa altura, conjugada com uma divisão de fronteiras desenhada a “régua e esquadro”, dividiu etnias, religiões e recursos naturais, sendo esta uma das principais causas dos conflitos armados que ainda hoje se verificam nesta região. O facto de ser constituída por um elevado número de Estados Frágeis5 e, simultaneamente, ser uma região possuidora de importantes e cobiçados recursos naturais, promove a constituição e sobrevivência de grupos armados, muitas vezes com a conivência e apoio dos próprios governos, em que o único interesse é o dinheiro e o crime. Jeffrey Gettleman jornalista do The New York Times, adianta que a principal razão para o arrastar das situações de conflitos verificadas nesta região é o facto de serem “guerras sem ideologia ou objetivos claros”. Naturalmente, a instabilidade provocada por estes conflitos é favorável ao desenvolvimento e manutenção de atividades de tráfico de armamento.
Presentemente, o continente africano é simultaneamente vítima e alvo deste tipo de atividade. Sem querer aprofundar o eterno dilema de concluir se o tráfico de armamento é uma causa ou uma consequência dos conflitos armados que um pouco por todo o mundo vão surgindo, o continente africano apresenta preocupantes particularidades, consubstanciadas na existência de inúmeros grupos armados que são alimentados por armas e munições que nem sempre, ou quase nunca, chegam ao seu destino através de métodos legais e internacionalmente aceites.
Podemos distinguir neste continente duas realidades distintas às quais estão associadas atividades de tráfico de armamento e que se prendem com o tipo de armamento que é traficado. Por um lado verificamos a existência de grupos armados que disputam recursos naturais, posse de terreno ou, pura e simplesmente, dedicam-se ao crime, alimentando um “estilo” de vida que muitas vezes serve fins políticos. Neste caso, o armamento transferido em maior quantidade é o armamento ligeiro que, atendendo ao seu reduzido volume e dimensões, é facilmente traficado neste continente, associando-se à permeabilidade e à falta de segurança existente nas fronteiras de grande parte dos países africanos, a má vontade de quem o usa. A região do Sahel6 representa neste caso a principal zona de instalação e ação destes grupos. A maioria dos representantes dos países africanos que participaram na Conferência sobre o Tratado do Comércio de Armas que decorreu na ONU em Julho passado, referiu que este tipo de armas constitui a sua principal preocupação, chegando mesmo a considerar que estas são verdadeiras armas de destruição maciça. Estimativas recentes, indicam que em África circulam mais de trinta milhões de armas ligeiras, sendo que 80% das quais estão nas mãos de civis7. Constatamos, neste caso, que o continente africano é vítima de atividades de tráfico de armamento que constitui uma séria barreira ao seu desenvolvimento, à sua segurança e à governação de um considerável número de países.
Fig. 3 - Importações de armas 2007-11
Por outro lado, o continente africano começa a ser alvo de uma nova tendência que se prende com a constatação de uma deslocalização das ameaças terroristas do Médio Oriente para África. Assistimos com preocupação à instalação da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico que tem ampliado a sua influência à região do Sahel, com particular interesse na região nordeste do Mali. É com idêntica preocupação que verificamos a relação deste grupo terrorista com outros grupos armados existentes em África, como sejam a Al-Shabbab na Somália e o Boko Haram na Nigéria. Esta realidade tem preocupado a comunidade internacional que se tem desdobrado na cooperação com alguns países africanos com o objetivo de tentar travar o fluxo crescente de atividades destes grupos. O reforço de relações entre estes e outros grupos armados, pode transformar algumas regiões do continente africano, com especial destaque para a região do Sahel, em pontos de partida para ações terroristas, não só em África, mas em qualquer local do mundo.
Um artigo de Davis Lerman refere que a administração Obama chegou a comparar a região norte do Mali com o Afeganistão dos anos 90, antes do derrube talibã8. O mesmo artigo atribui ao senador republicano Johnny Isakson, que integra o subcomité de assuntos africanos no Comité de Negócios Estrangeiros, a seguinte afirmação “África é o local perfeito para a Al-Qaeda fazer aquilo que antes fez no Afeganistão”. Neste caso, revela-se preocupante o uso de outro tipo de armas e munições que podem provocar efeitos mais devastadores. Existem suspeitas que as armas químicas que saíram da Líbia após os conflitos aí verificados possam ter tido como destino a Al-Qaeda do Magrebe Islâmico.
As transferências de armamento realizadas em África são fundamentalmente efetuadas de duas formas. Uma forma autorizada e uma forma ilícita. A forma autorizada é normalmente declarada pelos Estados no Sistema de Registo de Transferências de Armas Convencionais das Nações Unidas, tendo nós conhecimento, com base neste registo que nos últimos anos o continente africano absorveu cerca de 9% do total de importações de armamento convencional de todo o mundo e foi a região que registou o maior aumento nos gastos militares em 2011 – 8,6%9. Quanto às transferências ilícitas, sabemos e podemos afirmar baseado nos relatos de várias agências internacionais em missão nos países africanos que, em África, o tráfico de armamento existe, com uma preocupante tendência para aumentar.
Muito do armamento traficado em África tem origem no interior do próprio continente. Apesar de existir alguma capacidade de produção de armas ligeiras na África do Sul, Zimbabué, Uganda, Quénia, Nigéria e no Egito, pensamos que a maior parte do armamento, produzido na indústria militar destes países, não se destina ao comércio ilícito, dadas as restrições internacionais impostas pelas Nações Unidas. Sendo assim, apesar da dificuldade que existe em aferir o volume de armamento que se movimenta nos corredores do tráfico, podemos afirmar, baseado em acontecimentos que comprovadamente existiram, que a origem destas armas poderá ser, entre outras, resultado de assaltos a arsenais do exército, muitas vezes com a conivência de militares corruptos, armas roubadas ou vendidas por peacekeepers e também como resultado de produção artesanal. Apesar da Small Arms Survey10 referir que a quantidade de armas produzidas artesanalmente é realizada em pequenas quantidades, um estudo realizado em por Emmanuel Kwesi Aning11, destaca o Gana, referindo que este pais tem capacidade para produzir cerca de 200.000 armas ligeiras por ano, com qualidade comparável com as produzidas nas grandes indústrias.
Uma outra fonte que não pode ser descurada advém do apoio que determinados grupos rebeldes recebem de governos de países vizinhos onde estes se encontram a atuar. O interesse que por vezes existe na “desgraça dos outros” provoca quase sempre um ricochete destas ações, arrastando esses países para caminhos mais difíceis. Quando tentam obstaculizar o desenvolvimento de países vizinhos, por vezes não veem que estão a fazer exatamente o mesmo ao seu próprio país.
A atividade do tráfico de armamento em África continua a ser um sério obstáculo ao seu desenvolvimento. Apesar de todos os contratempos que a própria história se tem encarregado de orientar, cremos que este continente, rico em recursos naturais que são e serão cada vez mais necessários a toda a humanidade, saberá encontrar o caminho que leve todos os países sem exceção, à prosperidade e ao desenvolvimento. No entanto, para que isto aconteça, ainda existe ainda um longo caminho a percorrer que terá que ser trilhado não só por grande parte dos países africanos, mas também pela própria Comunidade Internacional. Se, por um lado, a fraca estabilidade politica e a difícil capacidade de governação verificada em África são condições que inviabilizam o caminho da prosperidade, por outro, torna-se cada vez mais necessária a criação um mecanismo global de controlo do comércio de armamento, capaz de eliminar, ou no mínimo reduzir o volume de tráfico de armamento existente um pouco por todo o mundo e com especial incidência no continente africano. Neste sentido, organizações internacionais como a ONU, a União Africana, a própria CPLP, no caso dos países de língua oficial portuguesa, não podem deixar que este assunto fique ao sabor de uma solução milagrosa, porque essa, com toda a certeza, não vai chegar.
Páginas da Internet com informação relevante:
http://www.sipri.org/yearbook/2012/06
http://www.un-register.org
http://www.osce.org
http://www.smallarmssurvey.org
http://www.poa-iss.org
http://www.amnistia-internacional.pt/files/relatorioanual/RA_2012/PT_Introducao_2012.pdf
* Licenciado em Ciências Militares, ramo Cavalaria, da Academia Militar. Mestrando de Relações Internacionais na Universidade do Minho. Convidado para várias conferências na Universidade do Minho e na Universidade Católica – Braga (UCPBraga. Autor de diversos artigos de índole civil e militar. Entre 2010 e 2012 chefiou a Secção de Gestão de Praças da Repartição de Pessoal Militar da DARH. Atualmente, desempenha as funções de Chefe da Secção de Operações Informações e Segurança do Regimento de Cavalaria nº 6.
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1 Designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, compreendendo o período entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991).
2 O instituto das Nações Unidas para pesquisa sobre desarmamento (UNDIR) define quatro tipos de transferências de armamento: Autorizadas (autorizadas no mínimo por um governo), Irresponsáveis (autorizadas por governos mas contra as leis e os tratados internacionais), Ilegais (sem autorização dos governos) e Ilícitas (conjunto das ilegais e irresponsáveis).
3 Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), Yearbook 2012.
4 Shetty, Salil “LIDERAR A PARTIR DAS RUAS”, Relatório Anual 2012, Pág. 5.
5 Estados que não possuem capacidade de realizar suas funções normais e promover o desenvolvimento.
6 O Sahel (do árabe ساحل sahil, que significa “costa” ou “fronteira”) é a região da África situada entre o deserto do Saara e as terras mais férteis a sul, que forma um corredor quase ininterrupto do Atlântico ao Mar Vermelho, numa largura que varia entre 500 e 700 km.
7 Reis, Carlos, “Comércio e tráfico de armas: arsenal africano”, 2010.
8 Artigo de Davis Lerman publicado no Jornal Público, em 21 de agosto de 2012.
9 Relatório anual do SIPRI (2012).
10 Projeto de pesquisa independente, localizado no Graduate Institute of International and Development Studies em Geneve, Suiça.
11 Aning, Emmanuel Kwesi, Head of the Department of Research at the Kofi Annan International Peacekeeping Training Centre (KAIPTC) in Accra, Ghana: “THE ANATOMY OF GHANA’S SECRET ARMS INDUSTRY”, págs. 83-84.
Licenciado em Ciências Militares, ramo Cavalaria, da Academia Militar. Mestrando de Relações Internacionais na Universidade do Minho. Convidado para várias conferências na Universidade do Minho e na Universidade Católica – Braga (UCPBraga. Autor de diversos artigos de índole civil e militar. Entre 2010 e 2012 chefiou a Secção de Gestão de Praças da Repartição de Pessoal Militar da DARH. Atualmente, desempenha as funções de Chefe da Secção de Operações Informações e Segurança do Regimento de Cavalaria nº 6.