O tema cuja abordagem me foi proposta nunca foi objecto de qualquer reflexão estruturada da minha parte: tendo despertado para a adolescência durante a II G.M., que acompanhei com especial interesse e entusiasmo através dos jornais, dos noticiários de Fernando Pessa e dos documentários cinematográficos (aos quais podia assistir gratuitamente, porque o gerente do cinema local era primo de minha Mãe...), e tendo escolhido a carreira militar por opção consciente e rebeldia, nunca tive dúvidas ontológicas ou de outra natureza sobre a minha condição militar e sua razão de ser.
Assim, aceitei o convite que me foi dirigido por três razões principais:
– por provir do Senhor General Pinto Ramalho, que muito considero e aprecio desde os seus tempos de jovem capitão da minha Arma de origem, e em nome da Revista Militar, que me acolhe há cerca de 40 anos;
– por este colóquio se realizar na Academia Militar, onde fui cadete, instrutor, docente e comandante, e desta forma poder dirigir-me, mais uma vez, a jovens cadetes;
– e porque, na fase da vida em que me encontro, entendi o desafio como que um exercício mental, estimulante e fortificante, na esperança de que contribua para aumentar o meu prazo de duração...
Além disso, tranquiliza-me a certeza da compreensão dos camaradas menos jovens para o facto de nada lhes dizer de novo, tanto mais que o mais importante já foi dito no painel anterior e de forma superior.
Generalidades
O tema que tentarei abordar não inclui o “Poder Político”, o que tornaria a dialética entre os vários termos mais complexa e problematizadora, como já foi aflorado anteriormente. Assim, cingindo-me estritamente ao tema, entendo que a relação entre as Forças Armadas e a Sociedade é directa e biunívoca e fortemente influenciada pelo tipo de serviço militar (obrigatório ou voluntário) e, em parte, pelo tipo de regime político (totalitário, autoritário ou democrático). Tendo presentes as concepções de Tonnies, ao referir-me a “Sociedade” estou na realidade a pensar em Nação, ou Povo, ou Comunidade.
Forças Armadas de conscrição
As Forças Armadas (FFAA) de conscrição são características dos países que, pelo contexto geopolítico em que se inserem, têm enfrentado, historicamente, graves problemas de segurança quanto à manutenção da sua integridade territorial, ou ao exercício da sua soberania ou à conservação da sua independência. Para esses países, a guerra no interior do seu território é uma experiência histórica e é encarada como passível de voltar a ocorrer, com temerosa probabilidade, no futuro. São também FFAA que privilegiam a conscrição as fundadoras de novos Estados: estes, em regra, nascem quando um grupo armado, encarnando um poder político nascente, se impõe vitoriosamente a um outro poder político pré-existente nesse território (Mao podia assim dizer que o poder nasce na ponta de uma espingarda...) e dessa forma a estrutura militar vitoriosa constitui a ossatura ou esqueleto que vai servir de suporte à edificação do Estado. (Assim – e convém não o esquecer – as FFAA precedem normalmente o Estado e sem FFAA sólidas, responsáveis e coesas o Estado corre o risco de se esboroar). Tendem ainda a assentar na conscrição as FFAA de países não-democráticos, por princípio fortemente ideologizados.
Neste quadro geral, a defesa do solo pátrio surge ao cidadão como um dever evidente, natural e lógico. Consequentemente, o serviço militar geral, pessoal e obrigatório (SMO) foi o tipo de serviço militar adoptado por quase todos os países continentais da Europa, historicamente palco frequente de conflitos armados, de natureza, causas, duração e intensidade variadas. Regista-se que o “geral” nunca foi um absoluto, desde logo porque, até tempos recentes, dele estavam excluídas as mulheres e sempre excluiu os inaptos e os que tinham uma idade aquém ou além de certos valores; mas, além disso, por razões económicas ou logísticas, de insuficiências de equipamentos, pelo que durante séculos o sistema apenas proporcionou exércitos relativamente pouco numerosos. A Revolução Francesa, com a sua forte carga ideológica e missionária, ao criar o cidadão-soldado dá a sua máxima expressão aos exércitos de conscrição, tornando-os muito mais volumosos, fortemente ideologizados e visceralmente nacionalistas, e organizacionalmente muito mais complexos, com as correspondentes alterações, também profundas, nas doutrinas militares de emprego.
Neste contexto, a relação das FFAA com a Sociedade é simples, directa e biunívoca: emanam da Sociedade, existem para garantir a conservação e protecção dessa Sociedade, politicamente organizada, e reflectem-na, isto é, são como que o seu espelho, na medida em que incorporam elementos de todos os estratos – profissionais, sócio-económicos e culturais –, bem como de todo o país, do maior centro urbano à mais remota aldeia. E como esses exércitos se destinavam, essencialmente, à defesa do solo pátrio, tinham uma implantação territorial que se espalhava por todo o país, com especial atenção às regiões fronteiriças. Os exércitos estavam, assim, natural e permanentemente embebidos no corpo nacional e as unidades militares eram, além de foco de convergência de juventude, pequenas alavancas dinamizadoras das economias locais e estimuladoras do recrutamento de quadros permanentes (QQPP). E, nos momentos festivos, eram como que locais de peregrinação: de confraternizações de turnos de incorporação ou de classes de mobilização e, sobretudo, de familiares dos que se encontravam ao serviço – os pais assistiam ao juramento de bandeira dos filhos geralmente no mesmo local onde, duas ou três décadas antes, haviam feito o mesmo juramento, numa continuidade de gerações que reflectia a continuidade da Pátria. E alterar o dispositivo militar não era uma questão de natureza apenas técnica ou económica: se profunda, essa alteração equivalia a uma modificação, também profunda, da estrutura do país.
Mas as FFAA, além de reflectirem a Sociedade, são também, de forma mais acentuada nas de conscrição, elemento significativo de transformação dessa Sociedade, especialmente no caso de sociedades economicamente pouco desenvolvidas, com baixos índices de alfabetização e fortemente estratificadas. Nestas sociedades, os grandes agentes de mobilidade social têm sido as Igrejas, as FFAA e a emigração. O SMO abre, à juventude em geral, uma janela de oportunidades, na altura da vida em que normalmente não tem ainda encargos familiares e dispõe de liberdade de opções. E se é certo que o SMO não permite, pelo menos em tempo de paz, a concretização do dito napoleónico de que “todo o soldado transporta na sua mochila o bastão de marechal“ – os grandes marechais de Napoleão começaram como desconhecidos soldados, tal como altos chefes militares africanos começaram como modestos guerrilheiros – certo é que o SMO proporcionava, ao jovem, contactos com novas realidades económicas e sociais, facilitava-lhe a melhoria das suas habilitações literárias e permitia-lhe adquirir novas e mais evoluídas qualificações profissionais, proporcionadas pelas várias especialidades do serviço militar, que abriam caminho a novas e mais satisfatórias actividades profissionais, na vida civil, com reflexos positivos na estrutura produtiva do país. E nas situações limite, quando um país importante percepciona graves ameaças à sua segurança, mobiliza parte substantiva das suas capacidades e recursos, dos económicos aos científicos, na busca dos melhores instrumentos capazes de garantirem essa segurança. As FFAA são então um poderoso instrumento de transformação societal, que acaba por não reconhecer fronteiras. Assim, como é sabido, e para me cingir apenas à minha experiência de vida, a maior parte dos grandes instrumentos e tecnologias que moldam o mundo moderno tiveram o seu berço nas FFAA, que as promoveram, impulsionaram e orientaram o seu desenvolvimento e as dirigiram, ou no minimo, controlaram. Tal é o caso dos antibióticos, do radar, do laser, da energia nuclear, das telecomunicações, da velocidade supersónica, dos satélites, da internet, das ligas leves, etc., etc..
No plano da cidadania, os exércitos de conscrição são uma expressão da cidadania, mas também dela condicionadores. Prestar o serviço militar é um direito, mas sobretudo um dever, que se prolonga, imanente, durante a vida útil do indivíduo, do serviço activo ao chamado escalão das tropas territoriais. Só usufruiriam da plena cidadania aqueles que tivessem cumprido cabalmente as suas obrigações militares.
O serviço militar é também um poderoso promotor da cidadania e da democratização social. Relativamente a esta última, o jovem incorporado, ao receber um uniforme e um número, ingressa numa condição que não é afectada pela sua origem sócio-económica ou pelo apelido familiar. O uniforme “uniformiza”, isto é, igualiza, e a prestação do serviço como potencial oficial, sargento ou praça é apenas uma questão de mérito, inicialmente aferido pelas habilitações literárias. E, pelos valores inculcados e deveres impostos, o serviço militar constitui uma poderosa escola de cidadania, que contribui para suprir as insuficiências de uma deficiente educação familiar ou escolar. E a forma como um cidadão prestava o seu serviço militar era também um atestado de cidadania: poder exibir a caderneta limpa era um objectivo de todo o jovem brioso, que sabia que dessa forma poderia encontrar melhores oportunidades no mercado de trabalho ou no acesso à função pública, com especial relevo para um ingresso na PSP, ou na GNR.
Finalmente, ao proporcionar ao grosso da juventude a possibilidade de conhecer grande parte do país e de várias das suas manifestações e expressões e de conviver com elementos das várias regiões o SMO é também um poderoso instrumento do reforço da coesão nacional.
E a não prestação do serviço militar poderia tornar-se quase um labéu. Assim, há algumas décadas, em aldeias da minha região de origem, as raparigas casadoiras e seus pais olhavam com suspeição aqueles que não haviam sido considerados aptos: se não serviam para a tropa também não serviam para maridos...
Forças Armadas assentes no voluntariado
As FFAA assentes no voluntariado são características dos países que, pela sua situação geográfica, não percepcionam a ameaça de uma guerra travada no seu território. Tem sido, historicamente, o caso da Inglaterra e dos EUA, que, quando em guerra, intervieram sempre no território de outros, sob a forma de forças expedicionárias. Mas, quando as situações exigem grandes efectivos, estes países tendem a adoptar sistemas mistos, que combinam o voluntariado com a conscrição. O voluntariado é também característico daqueles Ramos ou Corpos destinados a actuar sob condições especiais, em regra afastados do território pátrio, como sucede historicamente com a Armada e, mais recentemente, com a Força Aérea e as Forças Especiais.
Tende a ser, também, a forma de recrutamento privilegiada pelos regimes democráticos, que aspiram a FFAA menos volumosas, mas dotadas de melhores equipamentos. E digo “tende” porque o critério prevalecente é sempre o da sensibilidade do território à ameaça militar externa. Assim, Israel, cuja sobrevivência está permanentemente em jogo, é o exemplo limite de uma “democracia militarizada”, baseada na conscrição de homens e mulheres e em sistemas de mobilização globais, pormenorizadamente estruturados, e periodicamente treinados e ensaiados.
A diminuição do risco de guerra no mundo ocidental e a necessidade, hoje em dia, por razões conhecidas, de FFAA dotadas de meios sofisticados, que incorporam altas tecnologias, que são caros e que exigem uma preparação militar longa e dispendiosa, vem conduzindo a FFAA mais profissionalizadas, assentes no voluntariado, também mais caras em termos humanos, já que, em grande medida, têm de respeitar a “lei da oferta e procura”.
Com este tipo de recrutamento, as FFAA emanam, evidentemente, da Sociedade, mas já não a reflectem. De facto, o voluntariado, ou é a expressão de um alto grau de consciência cívica, do gosto pelo risco, do espírito de aventura ou do desprendimento pelos bens materiais, ou é uma opção, quer destinada a evitar situações militares mais gravosas, quer determinada pela situação do mercado de trabalho. Neste último caso, certamente o mais frequente em tempo de paz, as FFAA, excepto nas situações de elevado índice de desemprego, tendem a ser constituídas pelos segmentos mais débeis e menos qualificados da Sociedade, o que contraria a racionalidade do sistema. (É o que tem acontecido nos EUA, com consequências graves para o seu prestígio militar, em termos operacionais e éticos). Para que tal não aconteça e possam ser supridas as necessidades das FFAA, o Poder Político tem de criar condições atractivas, de acordo com a “lei da oferta e procura”. As FFAA tendem, consequentemente, a subordinar-se a uma lógica mercantil, que fere o seu cerne e razão de ser. Acresce que as qualificações da oferta raramente correspondem às desejáveis. E como não se admite como provável uma ameaça militar ao território nacional, os dispositivos passam a obedecer a um critério puramente económico, de racionalização de instalações e de outras infra-estruturas, sacrificando-se a cobertura territorial e a noção de fronteira: as FFAA deixam progressivamente de estar embebidas no corpo nacional e vão-se esbatendo as ligações afectivas entre a Sociedade e as FFAA. Por outro lado, tradicionalmente as FFAA foram concebidas para serem auto-sustentáveis em combate, desde as necessidades de alojamento e de alimentação às de munições, no quadro natural dos extensos, duros e altamente letais campos de batalha. Mas, devido ao ordálio nuclear e à pacificação alcançada (pelo menos nos tempos previsíveis) na Europa e noutras áreas do globo, o risco de uma grande guerra deu lugar à realidade de pequenas guerras, de baixas intensidades e custos humanos, de variados conflitos identitários e de frequentes situações de instabilidade político-económico-social que podem degenerar noutras mais gravosas e contagiantes. Tal tem proporcionado que um certo entendimento da racionalidade económica e o jogo de grandes interesses venham corroendo aquela autarcia tradicional das FFAA: conceitos como os de “leasing”, “outsourcing”, privatização de funções de segurança, etc., etc., vêm invadindo a realidade das FFAA, correndo-se o grave risco de uma alteração profunda do seu paradigma, transformando-as numa força armada, isto é, numa “mercadoria” que se pode alugar ou trocar. É evidente que nesta hipótese, certamente pessimista, deixaria de haver qualquer nexo entre a Sociedade e essa força armada. Mas há o risco real da Instituição Militar, historicamente a coluna vertebral do país, ser encarada como uma mera Organização, amovível e removível.
No plano individual da cidadania, o serviço militar passa a traduzir-se, em grande medida, por um contrato. Enquanto o SMO era fértil em deveres, mas quase omisso quanto a direitos – quase circunscritos ao alojamento, alimentação, fardamento e assistência sanitária –, o regime de voluntariado tem de atender a um número significativo de direitos, inclusive de ordem social, na óptica do cidadão e soldado, reforçados no caso de uma concorrência desse sistema com regimes democráticos. Daqui surgem enormes reflexos na vivência diária das tropas, desde as casernas aos regimes de fardamento e de aquartelamento, no cerimonial militar, na disciplina e na justiça militar. A disciplina tende a ser mais livremente assumida e consentida do que imposta. Além disso, na medida em que é voluntário, o militar deve adoptar padrões mais exigentes de conduta e de responsabilidade pessoal (inclusive quanto ao património e equipamento), bem como deve assumir as chamadas virtudes militares de uma forma mais esclarecida e interiorizada, o que exige elevados níveis de cidadania. Mas, a total disponibilidade para o serviço tende a degradar-se, chegando o regime de voluntariado a não abranger, implicitamente, a disponibilidade para o cumprimento de missões no estrangeiro, o que representa uma negação da sua razão de ser histórica. E, neste contexto, desenvolvem-se naturalmente pulsões de natureza sindical, perturbadoras dos fundamentos da hierarquia militar, verificando-se já, em alguns países afloramentos de reivindicações sobre horários de trabalho e horas extraordinárias. E a dissociação cidadão/soldado, conjugada com princípios fundamentais inerentes aos regimes democráticos, além de alterarem profundamente certas normas de conduta tradicionais – caso, por exemplo, da tolerância relativamente ao consumo de drogas ou a aceitação da homossexualidade –, acarretam uma vasta restrição no âmbito da justiça militar, com a distinção entre o foro civil e o foro militar, que tende a ser reduzido ao mínimo ou, nas correntes mais radicais, mesmo extinto. Algumas destas tendências dificilmente são compatíveis com as exigências, especificidades e valores fundamentais das FFAA, especialmente quando em operações.
Algumas considerações sobre o caso especial dos Quadros Permanentes
Os QQPP das FFAA representam uma forma especial de prestação do serviço militar: por um lado, reflectem as características do voluntariado; por outro, o vínculo profundo que os liga à Instituição Militar e à Nação é o que está na base da razão de ser do SMO, mas com a característica especial de os compromissos do juramento de bandeira não respeitarem apenas a um período da vida, limitado, mas serem para toda a vida útil. Tal significa que, em vez do cidadão/soldado ou do cidadão e soldado, temos o soldado/cidadão com vínculos, obrigações, disponibilidades e limitações cívicas que não têm paralelo com quaisquer outras formas de prestação de serviços à Sociedade ou ao Estado. Ser militar do QQPP passa a ser um estado ou condição permanente e não uma situação, mais ou menos temporária. E daqui que não se possa confundir com um funcionário público, ligado ao Estado por um vínculo contratual limitado de deveres e direitos, periodicamente negociável.
Mas, o que funcionalmente caracteriza um militar dos QQPP não é apenas a sua permanente e total disponibilidade para o serviço legalmente determinado, em quaisquer condições, mas também, e sobretudo, a sua função de “especialista”, isto é, de formador ou instrutor de outros militares e de pensador e investigador, ou seja, de criador de doutrinas sobre a genética, a estrutura e a utilização das FFAA, expressas em vários tipos de manuais e regulamentos, que também elabora. E, além disso, relativamente ao sistema militar assim criado, há que saber geri-lo, mantê-lo coeso, eficiente e eficaz e acioná-lo, não apenas em tempos de paz, mas nos ambientes mais extremos, adversos e incertos, como são os de guerra. Em nenhum outro corpo de serviço à Sociedade ou ao Estado se observa a exigência de um tal conjunto de capacidades.
Algumas conclusões e questões
Vai sendo de forma crescente reconhecido que, como há muito venho referindo, a problemática da segurança exige uma abordagem simultaneamente holística (que vai da segurança individual à da Humanidade, passando pelos níveis local, municipal, estatal, regional, etc.) e sistémica (que considera e integra os diversos recursos e capacidades). Em nenhuma situação, e muito menos na previsão do emprego ou na utilização das FFAA, faz sentido considerar apenas o factor militar ou falar apenas em defesa, em sentido restrito (militar). Situando-nos ao nível do Estado, reconhece-se que o problema de uma organização adequada do mesmo para fazer face àquela problemática é de difícil resolução, devido à força de determinados atavismos. E, embora o panorama seja melhor que tempos atrás, não abundam as instâncias onde a problemática seja satisfatoriamente estudada e que sirva de fermento a uma mais generalizada consciencialização da Sociedade e dos quadros políticos quanto à sua importância.
As consequências da predominância de visões sectoriais sobre a segurança ou defesa estão à vista. Limitando-nos aos tempos relativamente recentes, estes são férteis em verdadeiros desastres estratégicos e em surpreendentes manifestações de incapacidade estratégica, em vários casos protagonizados por grandes potências e apesar da disponibilidade de vultosos recursos e orçamentos. E cingindo-nos ao nosso caso, Portugal é hoje um país praticamente sob tutela estrangeira, quase simbolicamente independente e de soberania limitada. Dos três objectivos clássicos da defesa nacional, apenas se assegurou um, o da integridade territorial, apesar dos vários conceitos estratégicos de defesa nacional que foram produzidos. O que é que falhou? Não foi a defesa militar, certamente. E por que falhou?
No mundo actual predomina a percepção de uma diminuição da acuidade de uma ameaça militar de graves dimensões e da sua substituição por conflitos militares de baixa intensidade e relativamente localizados, pela eclosão de situações de grande instabilidade político-social e por ameaças insidiosas, por vezes de difícil caracterização e avaliação. Por outro lado, muitas das ameaças mais prementes só podem ser enfrentadas num quadro de segurança regional ou colectiva. Este panorama geral faz com que a fronteira da segurança se situe muito para além da tradicional fronteira política, o que dificulta, a largos segmentos da Sociedade, uma compreensão sobre a necessidade e o papel das FFAA. Mesmo alguns responsáveis políticos tendem a justificar as FFAA pelas suas missões secundárias, que não são a sua razão de ser. Torna-se, pois, necessária uma cultura de defesa mais generalizada e sofisticada. Onde, por quem, com que instrumentos promover essa cultura?
Como referimos, o regime de voluntariado requer uma elevada consciência cívica e padrões elevados de cidadania. Pelo menos, até há pouco, nas escolas nem o hino se ensinava... Ora não há defesa sem vontade de defesa e espírito de defesa, sem patriotismo ou “amor da Pátria”, apoiado num sistema educativo que proporcione um conhecimento do país, da sua geografia, dos costumes, condições de vida e tradições do seu povo, da sua história, do seu património cultural, etc., bem como uma educação cívica que vise uma cidadania responsável. E também aqui a pergunta: onde, a que níveis, por quem, com que instrumentos promover essa educação?
As FFAA protagonizam, por excelência, o espírito de defesa duma Sociedade. A vitalidade desse espírito, depende, certamente, de factores tangíveis, tais como efectivos e equipamentos; mas depende, sobretudo, de factores intangíveis, tais como o referido patriotismo, a solidez das estruturas disciplinares, a ética, o espírito de corpo, a lealdade e firmeza das chefias, a solidariedade da Sociedade, a camaradagem, o prestígio institucional, o respeito público, etc., etc..
Na medida em que o homem é o elemento fulcral das FFAA e em que os problemas que estas têm de enfrentar respeitam a sociedades humanas, a problemática das FFAA insere-se essencialmente no campo das Ciências Humanas. E nestas há várias “racionalidades” (física, estratégica, económica, política, etc.). Os factores envolvidos – em grande parte de natureza intangível – não são fungíveis, isto é, redutíveis a um valor de medida comum, nem são matematizáveis, traduzíveis por uma fórmula ou um sistema de equações mais ou menos complexas, embora sejam numerosos os esforços, inglórios, para se calcular, por exemplo, o potencial estratégico. Em consequência, não são representáveis por um número, seja este um valor, um custo ou uma relação custo-benefício. Qual a relação custo-benefício da segurança de uma Comunidade, do cumprimento de um tratado, do Mosteiro da Batalha, do Colégio Militar ou de uma paisagem do Douro?
* Sócio Efetivo da Revista Militar.
Nasceu em Mateus, Vila Real, em 11 de Março de 1932, onde fez o curso de liceu que terminou em 1949, com 18 valores.
Cursou Artilharia, na Escola do Exército (1949/1953). Depois fez outros cursos: Geral e Complementar de Estado-Maior, do Instituto de Estudos Militares (IAEM); Emprego de Armas Especiais, na Escola do Exército dos Estados Unidos da América, em Oberamergau e Superior de Comando e Direção, do IAEM.
Frequentou o curso de licenciatura em Ciências Físico-Químicas da Faculdade de Ciências de Lisboa.
Atualmente, é general do Exército na situação de reforma.
Professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (desde 1987) e membro do Conselho