Uma reorganização do exército é uma operação que deve ser feita sempre que haja que adequar a estrutura e os meios às missões que este deve cumprir. É, porém, uma operação delicada, porque, se forem feridos os seus fundamentos, o resultado pode ser contrário àquilo que se pretende, ou destrutivo da sua operacionalidade. De facto, o exército é uma organização cujos fundamentos nunca poderão ser esquecidos.
As principais características do Exército Nacional, que é fundamental serem preservadas, são a sua singularidade, o seu carácter institucional, o facto de ter por finalidade o combate, a importância do moral, a ligação à nação e a sua história. São características conhecidas por quem está atento, respeita ou conhece bem as suas Forças Armadas, mas parece-me conveniente relembrá-las nestas breves considerações, porque elas deverão estar presentes em todos aqueles que tratam da reorganização do nosso Exército. Esquecê-las pode dar origem a uma organização que não sirva ou sirva mal o interesse nacional, que é aquilo aliás que justifica a existência do Exército.
A Singularidade
O Exército é uma instituição singular e imprescindível, função da missão “sagrada” que lhe está atribuída - a defesa da Pátria; por não haver qualquer sucedâneo que preencha a função que ele desempenha; pela sua pertença e pelo seu peso dentro das Forças Armadas, já que elas detêm o monopólio da violência organizada para fazer face às ameaças que se revelem; pelos sacrifícios que podem ser pedidos aos seus elementos, o que não tem paralelo em nenhuma outra organização.
Esta singularidade impede que se façam analogias e induções viciosas, tendo como referência outras organizações. Além disso, dada a prontidão que se lhe exige, a disciplina que é indispensável e se pratica, as restrições aos direitos que são impostas aos seus elementos, os sacrifícios que lhes são pedidos que podem ir até à doação da vida, há que tratar os seus servidores com particular atenção.
Quanto ao exército como um todo, não se deve alterá-lo de tal modo que aquilo que se procura de hipotéticas melhorias ou de paralelismo com estruturas civis ponha em causa a sua finalidade, ou desmoralize o pessoal que o serve. Quanto a estes, não se lhes pode exigir o que é especial, se lhe for dado apenas o que é normal. Há que tratar os militares com particular cuidado, dada a singularidade do seu estatuto. A condição militar que os caracteriza deve ser sempre valorizada e respeitada.
O Carácter Institucional
O Exército, símbolo e agente da soberania nacional, é uma instituição e não uma simples organização. Pelo objectivo que lhe está atribuído, que é também um objectivo do próprio Estado; pelos valores que tem de guardar com vista à sua eficiência e eficácia; pela bem vincada hierarquia e pela disciplina que lhe é exigida e é exigida aos seus elementos; pelo valor do seu potencial, particularmente o humano – o Exército é uma verdadeira instituição.
Sendo o Exército uma instituição estrutural do próprio Estado, ainda que haja princípios organizacionais que são comuns a outras estruturas, ele é muito diferente de qualquer empresa. Havendo aspectos comuns, tais como a produção de um bem; a utilização de meios humanos, materiais e financeiros para esse fim; a utilização de um capital fixo; e o dever de gestão racional -, o Exército é bem diferente em outros aspectos. De facto, o que ele produz é segurança, produto que não é evidente em períodos de paz e que é muito diferente do objectivo de lucro das empresas; o produto do Exército serve o bem comum e não interesses particulares; o que se exige dos seus elementos obriga a cultivar valores que vão da coragem à abnegação, da frontalidade à disciplina, do amor à Pátria à camaradagem, que não existem em outras organizações. Por tudo isto, o Exército não é apenas uma verdadeira instituição mas uma instituição única.
A Finalidade é o Combate
O “canto das sereias” tem levado muita gente, até mesmo pessoas consideradas responsáveis, a pensar que hoje o Exército é para a paz (aliás, sempre o foi, porque procura alcançar a paz…) e não mais para a guerra. Isto seria uma bela utopia, mas é também um verdadeiro disparate, porque, sendo os exércitos caros, se forem dispensáveis, deverão simplesmente acabar. Mas, porque a guerra é infelizmente possível e porque para as crises são necessários aparelhos de força, não se pode acabar com o Exército.
Para as missões de segurança e defesa que competem ao Exército torna-se imprescindível que ele tenha capacidade para combater, porque é isso que lhe dá poder de dissuasão, ou a possibilidade de enfrentar as ameaças que surjam. Mas, a capacidade para combater pouco tem a ver com as visões popularizadas de “heróicos Rambos” ou de actuação em operações especiais, para as quais algumas unidades estão vocacionadas. A capacidade de combate, num conflito de alta intensidade (para o qual temos de estar preparados) é a convergência do trabalho táctico das várias armas apoiadas pelos diversos serviços.
As diferentes armas e serviços têm materiais muito diferenciados; formações e formas de actuar distintas; maneiras de estar, regras e valores que lhe são próprios; campos de treino com diferentes requisitos. Porque é fundamentalmente diferente o combate próximo, o apoio de fogos maciços, o apoio de combate, as missões de protecção, segurança e ligação, e o apoio de serviços, as armas e serviços não podem ser uniformizadas ou amalgamadas. Uma guarnição de uma peça de artilharia; a manobrabilidade e poder de choque de uma secção de carros de combate; o material e a técnica de um pelotão de pontes; a forma de actuação de uma unidade de apoio de serviços - não são comparáveis com a forma de agir de uma secção de atiradores de infantaria. Há pois que respeitar estas diferenças, missões, particularidades e valores, se se pretender ter um exército.
A Importância do Moral
Os exércitos valem pela adequação do seu produto operacional às necessidades de defesa, a qual é dependente da organização, do potencial físico e do moral dos seus elementos. A organização, porque define a estrutura e gere o todo; o potencial físico, porque é demonstração da capacidade técnica e do poder dos materiais que possuem e operam; o moral, porque é o elemento que contém a vontade de vencer.
A melhor organização e os mais sofisticados e poderosos meios não fazem dessa organização um exército de valor. O valor provém, essencialmente, do moral dos militares que o constituem. É o moral que garante a constância dos propósitos, que permite ultrapassar as dificuldades, que rendibiliza os meios, que persiste no desejo de vencer. Mas, o moral não é de geração espontânea. Funda-se no amor à Pátria, no espírito de missão, no desejo de bem cumprir. Cultiva-se, acarinha-se.
O moral fortalece-se no treino que prepara o combatente e aperfeiçoa as unidades, desenvolve-se no espírito das armas e no espírito de corpo das unidades em que se serve. Os militares não se batem somente pela defesa da Pátria e pela segurança dos seus concidadãos, batem-se também pela unidade a que pertencem, pelos seus camaradas, pela sua honra. Esquecer isto é alienar um dos mais relevantes valores institucionais. Um exército sem moral não é um exército, é uma inutilidade e uma derrota antecipada.
A Ligação à Nação
Um exército, para ser nacional, tem que obviamente emanar da nação e estar fortemente ligado a ela. Isto é, não pode ser um exército de mercenários movido por interesses pessoais (já Maquiavel advertia o Príncipe do seu fraco valor e desvantagens), pois tem que ter por motivação a defesa da nação, da sua história, do seu património, da sua cultura. Quando existia o serviço militar geral e obrigatório, esta ligação à Nação estava assegurada pela cíclica chegada dos contingentes incorporados nas fileiras, que saíam do seio da Nação, e pela inserção do pessoal disponibilizado no todo populacional, portador de experiência militar e dos valores adquiridos. Mas, num sistema de voluntariado, como é o actual, essa ligação só pode ser garantida pela proximidade entre o Exército e a população e outras instituições nacionais, pela proximidade nos sentimentos e valores que existem na família, que se esboçam na escola e que se praticam no contacto pessoal dos militares com a população. Por essa razão, os militares não devem viver em instalações isoladas, em “guetos”, mas em cidades que tenham orgulho nas unidades aí sediadas e as acarinhem. Esta proximidade produz vocações para servir nas forças armadas, particularmente importantes quando se vive num sistema de voluntariado e permite a “osmose” das preocupações, das alegrias e dos sentimentos que são factores da nacionalidade e fazem com que o exército seja considerado pela população como seu exército – logo, um Exército Nacional.
A sua História
A história do Exército e a história das suas unidades é um capital muito valioso.
O Exército evolui para se acomodar às orientações da direcção política, à tecnologia disponível, às ameaças a que tem que fazer face, aos meios que lhe são atribuídos, mas há um lastro, um peso histórico que tem uma relação directa com o potencial físico e moral que apresenta. Por esta razão, as alterações a fazer no Exército têm que ser particularmente cuidadas, assemelharem-se mais a uma evolução do que a uma revolução, e serem claramente entendíveis pelos elementos que o servem. Não há reorganizações de exército de “base zero”, porque, a fazer-se algo semelhante, está-se a alienar um capital insubstituível.
As unidades que o constituem (como o nome indica) e os órgãos são elementos onde, pelo conhecimento, pela vivência diária, pela coesão, pelo treino, e pela vontade de bem servir se obtém capacidade para a realização de certas tarefas. Além disso, têm história, acções registadas, os seus mortos, as suas condecorações, o seu orgulho. Tudo isto são valores inestimáveis que alimentam o moral dos seus componentes e a ligação à população e ao todo nacional.
Conclusão
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.