Nº 2537/2538 - Junho/Julho de 2013
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Democracia e as Forças Armadas
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

Introdução

As Forças Armadas (FA) são a mais importante instituição que o Estado possui para garantir um dos seus objectivos principais – a segurança – e ser a salvaguarda do outro – o bem-estar. Esta característica das FA faz dela uma instituição estruturante do próprio Estado, já que sem FA (entenda-se, não virtuais ou destabilizadas por grandes e repentinas mudanças) não se pode falar de Estado soberano. Ter-se-á, antes, um Estado dependente, um protectorado, um “estado exíguo”, como refere Adriano Moreira, aquilo a que chamo um “estado lastimoso”. É um facto que a soberania está hoje diminuída, por tudo aquilo que, vindo do exterior, limita o poder, do direito às finanças, mas a soberania possível terá que continuar a manifestar-se para que sejam tomadas, com uma certa independência e em defesa do interesse nacional, as principais decisões.

Como organização fundamental do Estado e para o Estado, a Instituição Militar (IM) depende do poder político, sendo este quem determina a sua dimensão e estruturas, as capacidades que deve possuir, e decide o que ela tem de fazer para que a segurança seja garantida. Tudo isto é claro e sobejamente conhecido, mas não é demais sublinhar-se que, para as decisões a tomar sobre a estratégia e sobre as FA, o poder político deverá avaliar com muito cuidado os riscos que assume, dadas a imprescindibilidade da segurança, as características ímpares das FA e a salvaguarda da soberania.

As relações do poder político do Estado, que é quem decide superiormente a estratégia, e as FA, que executam uma parte muito significativa e, por vezes, decisiva dessa estratégia, é, nas democracias, uma matéria suficientemente importante para merecer uma análise muito atenta que incida sobre a estratégia e o saber que permitem a segurança e a defesa. Julgamos que só com outras finalidades, que não a estratégica, se pode comparar o nosso País com a Dinamarca, levando-nos até a supor que, ao apontar-se a Dinamarca como exemplo, “something is rotten in our Kingdom”. Isto porque, pela variedade de factores – situação geográfica, população, quadro político, economia, idiossincrasia, etc. –, não há situações estratégicas idênticas que aconselhem decisões estratégicas iguais. É como comparar arenque cru com sardinhas assadas, isto é, comparar o incomparável.

Pelas razões acima indicadas, vamos apresentar algumas reflexões sobre dois aspectos da relação entre o poder político e a IM. A primeira resulta das razões estratégicas terem, na maior parte dos casos, uma durabilidade muito superior à dos governos, pois é relativamente curto o prazo em que um partido político ou uma coligação, com as suas ideias, programas e políticas, exerce o poder. De facto, pelo voto popular e pela alternância, outro partido ou coligação, com outras ideias, programas e políticas, irá depois tomar o seu lugar no exercício do poder. Esta mudança de ideias e políticas é agravada, infelizmente, entre nós, pelo alheamento dos partidos em relação à estratégia e às FA, que os seus programas esquecem ou só, muito vagamente, afloram. O segundo aspecto resulta de suceder, por vezes, um afastamento muito nítido entre as propostas apresentadas pelos partidos (que, pelo voto popular, deram origem à sua eleição para a direcção política) e a política que depois executam, quando exercem o poder. Nesta situação, cava-se um fosso profundo entre direcção política e a “vontade geral” da população, para o qual as FA têm que olhar com apreensão.

 

A durabilidade do poder

A estratégia dum país, porque visa a sua segurança e defesa, não deve mudar drasticamente, excepto quando sucedam alterações radicais nas situações internacional ou nacional, que configurem novas ameaças, ou ambientes estratégicos diferentes. Isto significa que, não é por aparecer um novo poder político, resultante de um acto eleitoral, que se deve alterar significativamente as suas FA. Primeiro, por não ter havido uma “revolução” na situação

internacional ou nacional que tal exija, como foi o caso da queda do muro de Berlim ou o 25 de Abril. Ou seja, por não haver um fundamento racional para essa alteração. Segundo, porque a prudência aconselha a que não se façam mudanças bruscas na IM, porque, afectando estruturas, materiais em uso, a vida do pessoal e até o seu moral (que é um valor inestimável), isso reflecte-se na sua operacionalidade. Os aumentos de operacionalidade, porque dependem da formação de novas aptidões, de outros materiais, de treino, só se conseguem após períodos dilatados; pelo contrário, a diminuição de operacionalidade pode obter-se rapidamente, por alheamento, por ignorância, por incúria ou por decreto. Isto não quer dizer que as FA não devam sofrer reorganizações; pelo contrário, a reorganização deve ser permanente, para que elas estejam mais aptas, em cada momento, a cumprir as missões que lhe são atribuídas. Não deve é sofrer reorganizações irracionais.

Estas diferenças de perspectivas temporais entre a estratégia e um poder político eleito aconselham a que haja um certo domínio ou correcta utilização do saber estratégico; o estabelecimento de consensos políticos quanto aos objectivos estratégicos e capacidades a explorar pelos vários vectores, nomeadamente o militar; e uma maior consideração e empatia dos agentes do poder político para com a IM e os militares.

Quanto ao saber estratégico, apesar de alguns esforços feitos há alguns anos, com o aparecimento da estratégia na universidade e com a criação dos cursos de defesa nacional, continua a verificar-se que os agentes do poder político, na sua maioria, não a dominam. Isto por falta de formação ou interesse, por ignorância sobre as possibilidades e limitações dos vectores estratégicos, por desconhecimento dos fundamentos da IM; por os decisores políticos se rodearem de assessores igualmente pouco habilitados para apoiar as decisões do âmbito da estratégia e das FA, escolhidos mais pela sua filiação partidária, pelas amizades ou pelas aptidões noutra áreas, como a dos conhecimentos empresariais, que não são transponíveis para a IM sem a descaracterizarem; e, também, porque tendo em pouco apreço os militares, não vêem neles os cidadãos que mais têm pensado e elaborado sobre a estratégia.

Quanto aos consensos (apesar de haver algumas ideias comuns aos vários partidos, como se verifica por vezes na Comissão de Defesa da AR), eles não são procurados quando das decisões sobre estratégia genética, estrutural ou operacional. Mas, como estas estratégias são aquilo que acaba por definir o valor e a operacionalidade das FA, as alterações no poder político dão origem a decisões que invertem caminhos, ferem a continuidade do planeamento e perturbam as FA. Isto é, o consenso não deve apenas ser obtido para ideias vagas e decisões de âmbito geral, mas têm que ir um pouco mais ao detalhe, para que a IM não sofra alterações profundas, dolorosas e inconvenientes de cada vez que muda o poder político.

Quanto à consideração e empatia por parte dos agentes políticos em relação à IM e aos seus servidores, por detrás duma aparente admiração que se ouve, ciclicamente, em discursos de circunstância, há na maioria da classe política pouco respeito e até desprezo pelos militares. Chega a parecer que assinam os seguintes parágrafos da terceira parte do volume II do De la démocratie en Amérique, de Tocqueville, que transcrevemos:

Lorsque l’esprit militaire abandonne un people, la carrière militaire cesse aussitôt d’être honorée, et les hommes de guerre tombent au dernier rang des fonctionnaires publics[1].

Après tout, et quoi qu’on fasse, une grande armée, au sein d’un peuple démocratique, sera toujours un grand péril ; et le moyen le plus efficace de diminuer ce péril sera de réduire l’armée[2].

Mas, se subscrevem estas frases, como parece, convinha que tivessem lido o livro com mais atenção. Com efeito, estava-se em 1831, na infância da democracia moderna, num país acabado de nascer; Tocqueville ficara deslumbrado com a democracia e as instituições que a influenciavam (em que não estava a militar); o país, face às ameaças que se vislumbravam, não parecia necessitar muito da IM; ao pensar em FA, o autor tinha ainda como referência os exércitos da revolução e do império; Tocqueville, no seu amor à liberdade e pela observação do desejo de bem-estar nas democracias, avançava com a “descoberta” do desaparecimento do espírito militar, mas confundindo o que podem ser as aspirações do homem democrático com a lassidão produzida pelo mal-estar da guerra, não se apercebia do perigo que ronda a liberdade e a democracia se o espírito militar desaparecer; o autor apontava, por vezes com razão, algumas características dos exércitos democráticos, com destaque para a baixa cotação e falta de honorabilidade dos militares, esquecendo-se porém de chamar a atenção para o facto de que aquilo que se defende nas democracias – o território, as pessoas, os bens e o regime democrático – ficar altamente vulnerável se a função militar não estiver prestigiada e faltar vontade de defesa.

Enfim, a democracia não é o “paraíso” que ele notou, a quase pax democratica, que ele desejava e aflora, não se verificou ao longo destes cerca de duzentos anos, e a IM continua a ser um pilar fundamental
do Estado moderno. Mas, regressando ao nosso País, quando um ministro refere num discurso a “sociedade civil” e diz “eu não gosto desta expressão porque nós não somos militares”, além da manifesta ignorância sobre aquilo que é a “sociedade civil”, que não parece compaginável com o cargo que exerce, mostra o seu desconhecimento, suspeição e desprezo que sente pelos militares, posição infelizmente muito comum na nossa classe política dirigente.

 

Prática política e “vontade geral”

As instituições democráticas que estão fixadas na Lei Fundamental resultaram da vontade maioritária dos constituintes. O seu claro e regular funcionamento não causa qualquer reparo quando a maioria dos cidadãos está de acordo com a forma como a política é praticada pelos órgãos de soberania. Mas, se a prática política se afasta da “vontade geral”, o voto popular, quando for expresso, irá condenar essa prática e escolher outros que pratiquem uma política diferente. O problema torna-se, porém, sensível e preocupante quando, estando a “vontade geral” claramente em oposição com a prática política, não sucedem, num curto prazo, eleições. Isto é agravado quando o desvio da direcção política em relação ao programa com que foi eleito produz um manifesto mal-estar na maioria dos cidadãos, contrariando um dos principais objectivos do próprio Estado, o de conseguir o bem-estar. Neste caso, a “vontade geral” pode passar a exprimir-se, não apenas pelo contraditório parlamentar e por manifestações que a lei autoriza, mas por uma agitação que pode chegar a uma violência “paralamentar”.

Em tal situação, a IM fica apreensiva e sente dúvidas, porque, sendo uma emanação da Nação, que acima de tudo defende o interesse nacional, é dirigida por uma política que se afasta claramente do sentido maioritário dos cidadãos. Se tal não tiver impacto naquilo que é o essencial da sua função de segurança e defesa, a condição militar daqueles que servem nas FA cala o seu sentir de cidadão. Mas se, pelo contrário, começar a ver-se que a própria segurança e defesa estão ameaçadas, pelas alterações profundas e não fundamentadas que a direcção política lhe imprime, e pelo completo afastamento daquilo que é a “vontade geral”, o problema é grave. Então a solução pacífica será a de o poder político procurar aproximar-se da “vontade geral”.

É evidente que a “vontade geral” não está sempre ao lado do poder, porque, se assim não fosse, não haveria alterações de poder. E é óbvio que as FA não têm que estar a avaliar em permanência se há concordância ou discordância. Mas, se suceder que as divergências e o afastamento do poder político da “vontade geral” são gritantes, geradores de violência, e que a direcção política as não quer ver, as FA devem transmitir ao poder a sua grande preocupação.

 

Conclusão

– A estratégia é insuficientemente cuidada no nosso País, por ignorância dos decisores políticos e pela falta de consensos políticos nesta matéria.

– A IM, pouco considerada pela classe política, sofre transformações rápidas e injustificáveis que põem em causa a sua operacionalidade e o moral dos seus militares.

–   A IM reconhece há muito a sua inserção no poder político democrático, mas, quando esse poder é manifestamente posto em causa pela “vontade geral”, os militares não desejam que o “exército nacional” se transforme em “l’armée du roi”.

 


[1] A. Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Tome II, Paris: Gallimard, 1951, p. 272.

[2] Id., p. 276.

 

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by COM Armando Dias Correia